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Revista da SBPH
versão impressa ISSN 1516-0858
Rev. SBPH vol.22 no.spe São Paulo 2019
ARTIGOS
Psicanálise E hospital hoje: o lugar do psicanalista
Psychoanalysis and hospital today: the place of the psychoanalyst
Maria Lívia Tourinho Moretto1
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo/SP
RESUMO
Este trabalho parte do princípio de que o que define o caráter analítico de uma prática não é o lugar onde ela se realiza, mas é o lugar de onde o operador da Psicanálise faz ato. Nesse sentido, convém dar ênfase ao fato de que quando estamos falando de Psicanálise e Hospital, estamos falando do lugar do psicanalista. Esse lugar não é um lugar dado a priori, e precisa ser construído em cada experiência, de um modo tal que ele, o psicanalista, possa operar. Há três pontos que convém destacarmos para nossa reflexão, neste trabalho: 1) sobre a presença do pensamento psicanalítico no campo da saúde; 2) sobre o potencial transformador da presença do psicanalista no hospital: a entrada e a inserção; e 3) sobre os efeitos da presença do psicanalista na instituição, dando ênfase às consequências e aos problemas decorrentes dessa inserção. Concluímos que, se podemos falar dos efeitos da psicanálise nas instituições de saúde é porque eles evidenciam que o potencial transformador da presença do psicanalista no referido campo não fica sem consequências quando da sua interlocução com os demais campos de saber, pois é o modo pelo qual ele responde (ou não) às demandas a ele dirigidas, sustentando as diferenças discursivas, que possibilita (ou não) a construção do lugar do analista, a realização e os efeitos de seu trabalho na instituição de saúde.
Palavras-chave: psicanálise, hospital, psicanalista.
ABSTRACT
This work assumes that what defines the analytical nature of a practice is not the location in which it takes place, it is where the psychoanalysis takes action. In this sense, it is important to emphasize that when we talk about Psychoanalysis and Hospital, we are talking about the psychoanalyst's place. This place is not given in advance, and needs to be built in each experience, in a way that the psychoanalyst can operate. There are three points that we can highlight for our reflection, in this work: 1) about the presence of the psychoanalytical thought in the health field; 2) about the transforming power of the psychoanalyst's presence in the hospital: the entrance and input; and 3) about the effects of the psychoanalyst's presence in the institution, emphasizing the consequences and the problemas arising from this input.We conclude that if we can speak of the effects of psychoanalysis in health institutions, it is because they show that the transformative potential of the psychoanalyst's presence in the field is not without consequences when he interacts with other fields of knowledge, it responds (or does not) to the demands addressed to it, supporting the discursive differences, which makes it possible (or not) to construct the analyst's place, the realization and effects of his work at the health institution.
Keywords: pscycoanalisys; hospital; pscychoanalyst.
A experiência de trabalho enquanto psicanalista no hospital (ao longo de quase três décadas) e o percurso de trabalho enquanto psicanalista como docente na Universidade (ao longo de quase duas décadas), ao mesmo tempo que me possibilitou a construção de saberes a respeito das possibilidades, dos limites e dos alcances do trabalho do psicanalista nas instituições de saúde, possibilitou-me também a formulação de muitas outras questões. Algumas delas são objetos de reflexão neste trabalho.
Embora o Hospital seja, por excelência, o local onde ela, a Psicanálise, nasceu e se desenvolveu (como nos indica a experiência de Charcot na Salpêtrière, de Freud no Hospital Geral de Viena e de Lacan no Hospital de Sainte-Anne), em nosso meio, a ideia da Psicanálise no Hospital pareceu se associar, rapidamente, a dificuldades ligadas, em um primeiro momento, à viabilidade do método psicanalítico no contexto hospitalar (Moretto, 2015).
Pode-se, no entanto, afirmar que, como quis Freud (1919/1974), um dia, o trabalho consolidado de psicanalistas no hospital e as pesquisas desenvolvidas na área indicam que, dentro das condições de possibilidade do que é uma análise e considerando as especificidades do contexto, a questão da viabilidade do método psicanalítico já está bem discutida, uma vez que o que define o caráter analítico de uma prática não é o lugar onde ela se realiza, mas é o lugar de onde o operador da Psicanálise faz ato.
Nesse sentido, convém dar ênfase ao fato de que quando estamos falando de Psicanálise e Hospital, estamos falando do lugar do psicanalista. Esse lugar não é um lugar dado a priori, e precisa ser construído em cada experiência, de um modo tal que ele, o psicanalista, possa operar. Não há psicanálise no hospital sem psicanalista. Esse é um lugar que só se sustenta, portanto, pelo desejo do psicanalista.
O nosso trabalho toma, desde o princípio, o discurso psicanalítico como referência teórica, clínica e ética. Essa é uma marca que tem nos identificado como um grupo de trabalho composto por psicanalistas dentro da instituição de saúde e na Universidade, nos três âmbitos seguintes, simultaneamente: assistência, ensino e pesquisa.
A partir daí, as questões cotidianas convocam os psicanalistas a construírem dispositivos clínicos que considerem a importância de sustentar esse lugar na interlocução com os demais campos de saber que compõem a cena institucional, e os colocam diante de desafios que evidenciam a importância de pôr em prática o conceito de interdisciplinaridade.
Há três pontos que convém destacarmos para nossa reflexão, neste trabalho: 1) sobre a presença do pensamento psicanalítico no campo da saúde; 2) sobre o potencial transformador da presença do psicanalista no hospital: a entrada e a inserção; e 3) sobre os efeitos da presença do psicanalista na instituição, dando ênfase às consequências e aos problemas decorrentes dessa inserção.
1) Sobre a presença do pensamento psicanalítico no campo da saúde
É nesse ponto que vale a pena ressaltarmos os valores de referência e orientação que tem a teoria psicanalítica para os profissionais, psicanalistas e não psicanalistas, que atuam no campo da saúde (Moretto, 2017).
Consideremos, por exemplo, as diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS). É inegável a influência do pensamento freudiano nos pontos que indicam o valor do resgate da subjetividade no campo da saúde. Nota-se a influência da Psicanálise para a construção de estratégias que apostam na construção de relações cujos valores norteadores são o protagonismo dos sujeitos, a corresponsabilidade, os vínculos solidários e a participação coletiva na gestão e nos processos de promoção de saúde (Moretto, 2017).
De acordo com as diretrizes do SUS, e isso é válido para todo profissional da saúde, não se pode reduzir o sujeito a recortes diagnósticos ou burocráticos. A ideia é que possamos tomar o usuário como um sujeito ativo convidando-o a ser parte principal na construção de seu próprio projeto terapêutico.
Note-se que o desafio de convidar o usuário a ocupar o lugar de autor na trama de suas decisões é tributária da Psicanálise já que, seja qual for a vertente teórica escolhida pelo profissional, ele sabe que, para que esse tipo de trabalho possa alcançar algum sucesso, ele deve (embora nem sempre consiga fazer) considerar as singularidades de cada caso e partir da premissa ética de que o outro é um sujeito histórico e político, capaz de se engajar, a partir de seus modos de subjetivação, com a sua história e com a da comunidade à qual pertence (Moretto, 2017).
Os conceitos da Psicanálise têm sua função quando um profissional da saúde resolve, de fato, se ocupar da análise das relações das pessoas com os fatores determinantes (ou não) de sua saúde, interessado em entender, inclusive, o processo de tomada de decisão de pessoas com relação ao seu estilo e às suas condições de vida.
2) Sobre o potencial transformador da presença do psicanalista no hospital: a entrada e a inserção
As equipes nos chamam porque têm dificuldades. Eles supõem na nossa presença um potencial transformador (isso vale para o bem e para o mal). O potencial transformador é a transferência. No entanto, entrada não é inserção, e é o modo pelo qual manejamos essa transferência que vai possibilitar ou não a construção e a sustentação do lugar do psicanalista, determinando seus efeitos.
Essas dificuldades têm a ver com o adoecimento. É frequente que sejamos chamados pela via do que os profissionais entendem como efeitos traumáticos do adoecimento e do tratamento, numa tendência a se "demitirem" do caso quando as coisas chegam nesse ponto.
Do nosso ponto de vista, é claro que o adoecimento é um acontecimento que pode se transformar em uma experiência traumática na vida de uma pessoa, mas é importante que se entenda que o que confere o caráter de traumático a um acontecimento não é o acontecimento em si, mas a forma pela qual ele é incluído – ou, pior, excluído – no seu campo de relações (Moretto, Kupermann e Hoffmann, 2017).
Pode-se dizer, portanto, de outra maneira, que toda situação potencialmente traumática requer um processo, sempre singular, de elaboração. Ou seja, o traumático ao qual nos referimos aqui não está tanto da natureza do acontecimento, mas sim do fato de a experiência não ter lugar no campo da alteridade, ou seja, traumática é a experiência que, não reconhecida, produz um sujeito invisível ao outro por meio da indiferença deste último.
Eis a importância da alteridade nesse processo de produção (ou não) de experiências traumáticas. Quando o psicanalista se oferece como alteridade, é porque ele sabe da importância de sua presença atenta ao reconhecimento da experiência do sofrimento como facilitador para o necessário processo de elaboração de lutos (Moretto, Kupermann e Hoffmann, 2017).
E sabe também que o que confere o caráter de traumático a uma experiência é, sobretudo, o fracasso de seu testemunho frente a um outro que não está disponível e que, por meio de sua indiferença em relação à experiência de sofrimento, também o desautoriza, transformando o que antes era o indizível da dor em experiência inaudível no campo da alteridade.
O que se pretende demonstrar é que, neste contexto onde o psicanalista é chamado em função das dificuldades da equipe de saúde relativas ao manejo da subjetividade, a experiência do cuidado consiste, sobretudo, na atenção ao potencial traumático dos acontecimentos.
É nesse sentido que se faz essencial a relação entre entrada e inserção, quando o que está em jogo é a construção desse lugar chamado psicanalista. Chamamos de inserção o processo de construção desse lugar e é dele, do psicanalista, a responsabilidade desse trabalho. A respeito desse lugar do analista na instituição de saúde, se desde mais cedo entendemos que o que define o caráter analítico de uma prática não é o local onde ela se realiza, mas o lugar de onde o operador da Psicanálise faz ato, depois desses quase trinta anos de experiência, o que se pode concluir é que os anos de experiência não são, absolutamente, o que define e nem sequer o que garante a sustentação desse lugar.
Sendo assim, mesmo que o psicanalista esteja ali há trinta anos, a Psicanálise nunca está na instituição de saúde de modo definitivo. Talvez ela esteja, todos os dias, por um "triz", indicando a efemeridade e a impermanência desse lugar.
A cada dia, todos os dias, em cada encontro, a cada atendimento clínico, em cada reunião de equipe, devemos fazer um retorno à experiência para fazer a sustentação desse lugar, em cada relação. Se a construção desse lugar é fruto do ato analítico (e não do contrato instituído), a sustentação dele exige trabalho contínuo e esse é o nosso trabalho.
Ao contrário do que ocorre com a grande parte dos demais profissionais, no nosso caso, a experiência acumulada, consolidada, nos exige o movimento repetitivo de busca e conferência constantes das referências éticas e teóricas que fundamentam nossa prática e, frente a cada situação, reiniciamos, sem cansaço e com entusiasmo, o debate a respeito de nossa posição clínica e institucional.
3) Sobre os efeitos da presença do psicanalista na instituição
É claro que todo psicanalista tem que se perguntar por que, apesar de tudo, ele se mantém na instituição pública de saúde. Mas aqui é igualmente importante considerarmos a questão por meio de outro viés: por que uma instituição pública de saúde mantém um psicanalista?
Não é exatamente pela essência do que é a psicanálise que ela se torna alvo de elogios ou de insultos. É, geralmente, pela força de seus efeitos, sejam eles positivos ou negativos, que ela se faz presente como tema central nos distintos contextos onde as pessoas, cada uma ao seu modo, se empenham em transmitir algo de sua experiência com a psicanálise (Moretto, 2017).
Se podemos falar dos efeitos da psicanálise nas instituições de saúde é porque eles evidenciam que o potencial transformador da presença do psicanalista no referido campo não fica sem consequências quando da sua interlocução com os demais campos de saber, pois, como já mencionado, é o modo pelo qual ele responde (ou não) às demandas a ele dirigidas, sustentando as diferenças discursivas, que possibilita (ou não) a realização e os efeitos de seu trabalho na instituição de saúde.
Então, neste campo, o que é mais importante agora é que nos questionemos: que efeitos são esses e por quais razões eles interessam ao campo da saúde? Que diferenças se produzem e quais problemas concernentes a tal campo poderiam se resolver por meio da investigação e da intervenção psicanalíticas, conferindo a estas últimas o estatuto de contribuições da psicanálise ao campo da saúde?
Uma delas é a soberania da clínica sobre uma certa postura educativa na saúde que tem tido efeitos de sofrimento para as equipes. Enquanto os profissionais da saúde mapeiam, por motivos justos, os fatores de risco para o adoecimento de um sujeito, o psicanalista escuta esse sujeito contando com a possibilidade (não rara) de que, muitas vezes, o próprio usuário contribui para o seu adoecimento (nem sempre de forma consciente), evitando ações que favorecem uma espécie de infantilização do usuário, que lhe oferece, a despeito das diretrizes do SUS, um posicionamento passivo tal, que beira a irresponsabilidade.
Outra diferença que decorre dessa é o modo pelo qual os profissionais formulam suas demandas a partir dos efeitos da presença do psicanalista no hospital, o que se nota, com clareza pelas mudanças subjetivas nas situações em que precisam se posicionar frente ao sofrimento de pacientes, de familiares e deles próprios.
A experiência tem nos feito aprender que, quando nos dispomos a cuidar, a reconhecer e a escutar o outro em sua radical singularidade, é o modo pelo qual nos interessamos pelas pessoas que faz com que elas valorizem a própria fala.
O que a presença do psicanalista nos espaços públicos nos ensina também é que a clínica psicanalítica não é o lugar da aplicação de um saber teórico, mas é o lugar de sua produção.
Conclusão
Considerando-se a produção de conhecimento científico que apresenta importantes contribuições da Psicanálise à área da saúde, pode-se entender que a presença de psicanalistas nas instituições de saúde é, hoje, uma realidade bem estabelecida, mas ela depende mais do psicanalista do que da Psicanálise.
Se a Psicanálise é o discurso que resguarda o lugar do sujeito é porque ela sustenta que o sujeito tem algo a dizer que ninguém mais poderia dizê-lo em seu lugar (Jorge, 2005).
Nosso desafio é, sem dúvida, elaborar, junto às equipes, estratégias de atenção que possam considerar também outra concepção de saúde, (re) introduzindo o sujeito na cena médica.
Por fim, concluímos que, em um contexto onde predominantemente trabalha-se em busca da padronização de comportamentos e de crenças voltadas para a normatização de atitudes diante dos pretensos padrões de normalidade e, mais ainda, num contexto onde a subjetividade é tomada como um risco, a Psicanálise vem trabalhar com a hipótese de que o arriscado é, justamente, a exclusão da subjetividade.
Referências
Freud, S. (1975). Linhas de progresso na terapia psicanalítica. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. (J. Salomão trad., V.17). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1919). [ Links ]
Jorge, M. A. C. (2005). Ninguém é substituível. In: D. Fingermann, M. M. Dias, Por causa do pior. São Paulo: Iluminuras. [ Links ]
Moretto, M. L. T. (2017). A presença do pensamento freudiano no campo da saúde. In: D. Kupermann (Org.), Porque Freud hoje? 1. ed. São Paulo: Zagodoni, v. 1, (pp. 191-213). [ Links ]
Moretto, M. L. T. (2015). O psicanalista no hospital. Viver (São Paulo), v. 1, (pp. 64-69). [ Links ]
Moretto, M. L. T, Kupermann, D. & Hoffmann, C. (2017). Sobre os casos-limite e os limites das práticas de cuidado em psicanálise. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 20(1), 97-112. https://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2017v20n1p97.7 27 [ Links ]
1 Psicanalista, Professora Livre Docente do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). E-mail: liviamoretto@usp.br