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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.22 no.spe São Paulo  2019

 

ARTIGOS

 

Dispositivos de eficácia: impasses para a Psicanálise no Hospital

 

Devices of effectiveness: impasses for Psychoanalysis at the Hospital

 

 

Marcos Vinícius Brunhari1

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ

 

 


RESUMO

Lacan (1966/2001) indica a presença de uma organização industrial, externa ao campo da saúde, como fornecedora de subsídios científicos e tecnológicos, cuja incidência gera a problemática que se constrói com a introdução de medidas de controle quantitativo da eficácia terapêutica. Os modelos de mensuração de eficácia, ao indicarem as constantes estatísticas a serem constatadas em um processo de pesquisa científica, convocam a evidência de sucesso como condição indispensável e essa organização exigirá certa produtividade dos trabalhadores da área. Com o objetivo de questionar a ressonância de tais exigências de eficácia sobre a prática clínica no âmbito hospitalar, sustenta-se que os índices da prática assistencial correspondem ao que se destaca como dispositivo de eficácia. Diante disso, fomenta-se a discussão sobre como o lugar da psicanálise no hospital é atravessado por uma vertente política que implica aspectos clínicos e institucionais de uma prática.

Palavras-chave: avaliação de eficácia; psicanálise; psicologia hospitalar; Lacan, J.


ABSTRACT

Lacan (1966/2001) indicates the presence of an industrial organization, external to the health field, as a supplier of scientific and technological subsidies, whose incidence generates the problematic that is constructed with the introduction of measures of quantitative control of therapeutic efficacy. Efficacy measurement models, when indicating the constant statistics to be verified in a scientific research process, call for the evidence of success as an indispensable condition and this organization will require a certain productivity of the workers of the area. In order to question the resonance of such efficacy requirements over clinical practice in the hospital setting, it is maintained that the indexes of care practice correspond to what stands out as an effective device. Thus, it is fomented the discussion about how the place of psychoanalysis in the hospital is crossed by a political aspect that implies clinical and institutional aspects of a practice.

Keywords: efficacy assessment; psychoanalysis; hospital psychology; Lacan, J.


 

 

Introdução

Os vínculos entre a economia e a saúde se estabelecem desde pesquisas e aplicações de instrumentos econômicos de maneiras estratégicas com fins operacionais. Os impasses entre ambas as áreas surgem no dia a dia das práticas profissionais e, por muitas vezes, a articulação de uma economia da saúde é vista com receio pelos trabalhadores da área. É preciso destacar a relevância das pesquisas que constituem essa disciplina de fundamental importância, cujo teor evidencia problemáticas que se estendem desde questões sanitárias e de condição de vida de populações, até questões de custo-efetividade e viabilidade financeira de novas tecnologias e de serviços de saúde. A aplicabilidade de uma economia da saúde parte de um processo decisório pertinente ao campo da política e a utilização de recursos e distribuição de serviços se realizam desde as orientações de um sistema de saúde pautado nesse campo.

Segundo Del Nero (1995, pp.20-21), uma definição de economia da saúde contempla a área do conhecimento que objetiva a "otimização das ações de saúde, ou seja, o estudo das condições ótimas de distribuição dos recursos disponíveis para assegurar à população a melhor assistência à saúde e o melhor estado de saúde possível, tendo em conta meios e recursos limitados". A aplicabilidade estratégica caracteriza esse ramo da economia que se fia ao propósito de assegurar às populações a melhor forma de utilização dos recursos, desde o princípio, limitados.

A economia da saúde tem nas organizações de saúde, e especialmente nos hospitais gerais, um cenário em que a aplicabilidade adota como imprescindível uma gestão. Tal aplicabilidade detém-se sobre o aspecto otimizador dos procedimentos e resultados, justificando seus fins com argumentos pautados na manutenção financeira e patrimonial. A qualidade e a regulação da distribuição de recursos são o desafio da instituição que responde aos protocolos de avaliações e às métricas de desempenho financeiro e organizacional. Tais aspectos são atualmente centrais na construção do campo da saúde, especialmente marcado pelo crescente e problemático processo de mercantilização dessa área.

Diante disso, pretendemos aqui questionar a respeito de uma política que se expressa como gestão no âmbito hospitalar, que incide sobre a prática assistencial de diversas maneiras e que prioriza a eficiência enquanto dispositivo que torna tanto o profissional, quanto o paciente, indivíduos a serem motivados em nome de um bem comum. Por meio do que se reconhece hoje como uma dificuldade pela psicologia hospitalar, proporemos as métricas e avaliações da prática assistencial como um item correspondente ao que destacaremos como dispositivos de eficácia. Nosso objetivo se concentra em um questionamento acerca das possíveis ressonâncias dessas exigências sobre a prática clínica no âmbito do hospital.

 

A gestão como dispositivo de eficácia

Partindo da limitação de meios e de recursos, a gestão deve se balizar pela eficácia dos resultados e eficiência da aplicabilidade dos recursos disponíveis. Essa otimização busca reduzir custos, pela apuração da eficiência das técnicas e dos procedimentos, sem que a eficácia deles seja comprometida. Para que isto se torne possível, a gestão hospitalar necessita de um sistema de informação que ofereça subsídio para tomadas de decisões gerenciais e adoção de medidas que podem interferir na conduta de procedimentos. O gerenciamento da assistência à saúde deve ser pragmaticamente embutido na rotina dos profissionais como uma ferramenta. A gestão baseada na eficiência e redução de custos procura firmar, de maneira sistemática, a regulamentação das práticas assistenciais (Dallora & Forstr, 2008).

A utilização desse instrumental, elaborado pelo gerenciamento da assistência à saúde, se traduz em parâmetros e referências que são enumeradas de acordo com protocolos avaliativos. A prática da assistência em saúde passa então a oferecer ao modelo de gestão suas métricas quantitativamente listadas. Segundo Burmester (2013, pp.255-256):

Uma dimensão relevante na gestão de um serviço de saúde é o uso efetivo dos dados qualitativos e quantitativos disponíveis, como os relativos ao desempenho dos processos, satisfação de clientes, aplicação de recursos, entre outros; são os indicadores de qualidade e produtividade. (…) [O indicador] constitui a representação quantificada da qualidade de um produto ou serviço. Os indicadores e informações devem representar o conjunto de requisitos utilizados pela organização para determinar a adequação e a eficácia das práticas utilizadas na gestão.

A eficácia das práticas em saúde é representada quantitativamente pelos indicadores em um processo de aperfeiçoamento gerencial que visa regular a qualidade e a produtividade dessas práticas. E é assim que a inovação na gestão acompanha a transformação das instituições hospitalares que, ao longo dos últimos anos, passaram a incluir, por exemplo, administrações privadas a hospitais públicos, associação entre hospitais públicos e fundações privadas, privatização e terceirização de serviços de limpeza, laboratoriais e de exames dependentes de maquinários (Del Nero, 1995). As inovações administrativas acompanham uma época em que a instituição se altera e se organiza como empresa.É preciso frisar a importância da gestão nessa atualidade administrativa que perpassa o hospital, pois "o gerenciamento é a garantia da organização concreta da produção, ou seja, da conciliação dos diferentes elementos necessários para fazer a empresa viver" (Gaulejac, 2017, p.43). Não se trata aqui de traçar uma depreciação do gerenciamento empresarial. Sua importância está na garantia da produção pela conciliação entre os elementos que compõem a organização.

A gestão teve sua concepção de empresa atravessada, nos últimos anos, por uma preocupação com o fator humano. A gestão de pessoas ou dos recursos humanos não abandona o modelo experimental objetivado por uma preocupação com as medidas e toma o humano como fator/recurso a ser gerenciado. A métrica que firma matematicamente respostas e as oferece como variáveis a serem isoladas e analisadas não é uma novidade para a ciência orientada por um método experimental. É desde esse método que buscamos sublinhar aqui uma certa utilidade que reveste um modo de coleta de dados. Essa cientificidade se torna útil enquanto técnica aos objetivos de uma gestão que busca investir seu objeto de uma passividade de experimentação (Gaulejac, 2017).

A empresa como experimento é o objeto de uma gestão que se pretende científica, na medida em que recolhe e mensura dados. Essa coleta de dados confirma o humano enquanto recurso em uma engrenagem que aponta para a primazia da eficiência à qual esse indivíduo deve se adaptar. Isso coaduna com o princípio segundo o qual o trabalhador motivado é eficaz; princípio que se apregoa não apenas ao trabalhador de uma empresa, mas ao soldado no exército, ao aluno na escola e ao doente no hospital. Esse humanismo empresarial é a performance dessa gestão que, segundo Dardot e Laval (2016), ultrapassa as normas daquela sociedade industrial e de seu indivíduo produtivo. É a isto que os sociólogos franceses nomeiam como "dispositivo de eficácia" (Dardot e Laval, 2016, p.324) orientado por uma normatização subjetiva que oferece às estratégias de gestão recursos humanos aptos a funcionar em um circuito de produção e consumo.

A gestão implantada na instituição não se restringe ao plano administrativo na medida em que se presentifica na prática assistencial com seus protocolos e projetos de redução de custos. A presença da gestão da eficiência na assistência hospitalar é uma problemática a ser interrogada pelo psicanalista que tem sua prática clínica e institucional atravessada pelos parâmetros dessa inovação gerencial. Diante disto, enfatizamos que a docilidade às estratégias de gestão não se diferencia da revolta frente à empresarização das relações. Essa indiferenciação acontece na medida em que o lugar de recurso humano permanece intacto em ambas as vias. Ao questionarmos sobre a incidência de tais inovações na prática do psicanalista, não buscamos neste artigo, firmar docilidade ou revolta. Procuramos eleger um lugar como objeto de questionamento. Esse lugar pode ser articulado a partir da proposta lacaniana de um Discurso do Capitalista que, desde uma vinculação peculiar entre sujeito e objeto, nos oferece a oportunidade de avançar em nossa discussão sobre os dispositivos de eficácia.

 

O Discurso do Capitalista e sua política

É desde a articulação entre o significante mestre (S1) com outro significante (S2) que se tem o sujeito ($) como efeito e o objeto a como causa o desejo. É desde essa organização que o discurso se estabelece como meio de ordenamento entre linguagem e gozo. Segundo Lacan (1972/1978, p.51), o discurso é aquilo que "no ordenamento daquilo que pode se produzir pela existência da linguagem, faz função de laço social".

 

 

Os posicionamentos distintos da sequência de elementos escrevem cada discurso em sua particularidade. Eis um aparelho que funciona, de acordo como o modelo termodinâmico, em que um excesso se perde. Essa perda tem no mais-de-gozar (Lacan, 1968-1969/2008) uma via de operacionalização. É pela homologia entre a mais-valia e o mais-de-gozar, proposto por Lacan ao término da década de sessenta, que se possibilitará a articulação de um Discurso do Capitalista diferenciando do Discurso do Mestre. É pela especificação da mais-valia como excedente que esse passa a ser tomado pelo capitalismo como objeto de consumo. Esse mais-de-gozar, oferecido como mercadoria, revela um gozo que se torna um produto.

O Discurso do Capitalista, firmado no ensino de Lacan no início da década de setenta, mantém um circuito fechado em que o sujeito é gerido pelo objeto de acordo com as leis do consumo. Caracterizado como freneticamente astucioso, o Discurso do Capitalista se consuma na medida em que consome não promovendo o laço social, já que a relação que se estabelece é entre o sujeito ordenado pela falta de gozo e o objeto de consumo acessível, nomeado por Lacan (1972-1973/1982, p.110) como gadgets.

 

 

Uma questão sobre o lugar da psicanálise na política é lançada no momento em que os discursos são almejados como aparelhos de gozo. Segundo Lacan (1969-1970/1992), "a intrusão na política só pode ser feita reconhecendo-se que não há discurso – e não apenas o analítico – que não seja do gozo, pelo menos quando dele se espera o trabalho da verdade" (p.82). Pode-se almejar, assim, uma política do Discurso do Capitalista que não se firma pelo laço social, mas que tem no gozo seu elemento preponderante. Diferentemente do Discurso do Mestre em que o laço se estabelece entre um senhor (S1) e o escravo (S2), o Discurso do Capitalista sustenta a voracidade de um sujeito ganancioso que consome o produto de maneira insaciável.

O gadget como mais-de-gozar fundamenta uma gestão desde a qual o sujeito depende do que é fabricado para ser consumido. Nesse processo há uma acoplagem entre sujeito e objeto e isso pode ser ilustrado com uma infinidade de produtos e tecnologias disponíveis no mercado. É nesse conjunto que é possível inserir o trabalho humano. Propomos que, também nesse lugar, sejam passíveis de inclusão os dispositivos de eficácia como produtos a serem aplicados à empresa de maneira a gerir protocolos e recursos humanos.

 

A organização industrial: como responderão os psicanalistas?

Em "O lugar da psicanálise na medicina", Lacan (1966/2001) é interrogado pelos médicos acerca da democratização da prática da análise no hospital e na formação médica. Questiona-se a psicanálise como instrumento de valor a ser direcionado aos médicos em seus encaminhamentos científicos. Lacan inicia sua fala ao afirmar que o ensino da psicanálise problematiza a definição de democracia e a sequência de sua explanação segue por um debate que considera as dimensões da ética e do gozo como algo que deve ser levado em conta pelo profissional da medicina.

Uma arqueologia da clínica médica empreendida pelos estudos de orientação foucaultiana (1963/2011) indica o ponto de cruzamento da medicina com a ciência e a relevância da introdução aí do campo experimental. Isso implica o estatuto de subsistência científica dado às funções orgânicas que, desde então, tornam-se montagens equivalentes em uma formalização funcional dos sistemas fisiológicos (Lacan, 1966/2001). Esse saber deve ser considerado em sua relação aos progressos da ciência e às implicações disto na vida cotidiana e, assim, o psicanalista extrapola a questão da cientificidade da medicina ao apontar uma exigência que surge de um outro campo, o do laço social. Dessa forma, entende-se que a proposta de um homem que corresponda às condições e exigências científicas possa gerar adversidades.

O médico passa a ser requerido enquanto cientista da fisiologia e são depositadas em suas mãos as ferramentas químicas, biológicas e estatísticas capazes de contribuir, em termos terapêuticos, com o tratamento do organismo. O profissional, diante disso que o convoca, coloca à disposição do público produtos terapêuticos a serem aplicados. Essa convocatória é sinalizada por Lacan (1966/2001) como da ordem da demanda que deve ser considerada pelo médico em detrimento à equivalência à função do agente distribuidor de objetos a serem ofertados.

Ao lado dos impasses da demanda, Lacan (1966/2001) problematiza a relação da medicina com o corpo como um segundo ponto a ser tomado em consideração. A medicina é também subvertida desde fora por algo que escapa ao corpo em seu registro purificado. O corpo não se encerra à extensão cartesiana; é um corpo que goza de si e que tem a dimensão do gozo excluída na medida em que isso é velado. O efeito dessa obturação são os objetos deslocados do corpo que surgem em nosso espaço cotidiano na atualidade. Essas partes de corpo habitam a exterioridade corpórea e são ordenadas por Lacan (1966/2001) como efeitos que se apresentam na forma de produtos.

As duas vias destacadas por Lacan, a da demanda e do corpo, colocam em jogo a dimensão do gozo. Ambas confluem sobre a ética como aquilo que se estende em direção ao gozo. A psicanálise surge como resposta à subversão da posição do médico frente à ascensão da ciência. É assim que a ética da psicanálise permite um outro posicionamento diante do gozo que não coincide com a resposta à demanda e com a autenticação do corpo reduzido à res extensa cartesiana.

Ao apontar a ética como ponto de confluência entre as problemáticas da demanda e do corpo, Lacan (1966/2001) frisa a problemática da resposta do médico ao que chama de "organização industrial" (p.9). Na discussão empreendida pelo psicanalista francês, a medicina e o médico são convocados a um posicionamento diante disso que exige produtividade. A organização da saúde em torno de uma indústria exigirá do médico produtividade. Lacan interroga sobre como o médico responderá a tais exigências e, a partir dessa indagação, estendemos aos psicólogos hospitalares o mesmo questionamento sobre como responder às exigências de tal organização. Sobre isto, Lacan (1966/2001) afirma:

É do exterior de sua função [do médico], especialmente o da organização industrial, que lhe são fornecidos os meios, ao mesmo tempo que as questões, para introduzir as medidas de controle quantitativo, os gráficos, as escalas, os dados estatísticos através dos quais se estabelecem, indo até uma escala microscópica, as constantes biológicas. Do mesmo modo desloca-se a evidência do sucesso, condição para o advento dos fatos. (pp. 09-10)

Desde uma organização industrial, externa ao campo da saúde, que oferece subsídios científicos e tecnológicos, a introdução de dispositivos de controle quantitativo e demais dados estatísticos ergue outra face sobre o trabalho dos profissionais da área da saúde. Essa outra face que permite indicar as constantes biológicas a serem evidenciadas em um processo científico de pesquisa, concomitantemente, convoca uma evidência de eficácia como condição para o advento dos fatos. É assim que, frente ao risco de ser empregado de uma empresa universal da produtividade, Lacan (1966/2001) propõe que o médico deva estar atento à demanda do doente.

Como já indicamos, há uma gestão que se presentifica na prática assistencial por meio de protocolos e projetos de redução de custos. Essa presença, pela via de dispositivos de eficácia, é uma problemática a ser questionada pelo psicanalista que tem sua prática atravessada pelos parâmetros dessa inovação gerencial. Esse questionamento elege um lugar que, a partir da referência o Discurso do Capitalista, pode ser pensado como o do encontro entre sujeito e objeto de gozo.Diante das pontuações lacanianas à questão da medicina em sua controversa situação relativa ao mercado, destaquemos a atualidade dos impasses levantados pelos dispositivos de eficácia inseridos no hospital, por meio de uma gestão que se assemelha ao que Lacan atribui à demanda de produtividade, e tomemos como orientação, a qual cabe ao psicólogo hospitalar, a atenção à demanda do doente. Essa orientação permite almejar aquilo que está além dos dispositivos de eficácia e, sem que seja necessário destituir a relevância da gestão, localizar uma ética como o fundamento da psicanálise como uma prática que se insere no âmbito da psicologia hospitalar.

 

Considerações finais

Se o que destacamos como dispositivos gerem a partir da redução de custos, entendemos que os resultados derivados possam se submeter a esses mandamentos criando demandas de eficácia. Interrogamos, assim, quais as evidências de eficácia que os números e indicadores derivados da clínica poderiam apontar. Sob a égide desses dispositivos, é preciso destacar que não pretendemos sustentar aqui uma crítica aos empreendimentos que visam aprimorar condutas e procedimentos da assistência hospitalar. Questionamos o momento em que esses programas, projetos e práticas assiduamente promovidos pelas psicologias hospitalares passam a responder às demandas de mercado geridas pelos dispositivos de eficácia. Portanto, é pela não equivalência das práticas assistências aos dispositivos de eficácia que interrogamos acerca do valor de produto orientado por um aparato que pretende determinar e coordenar tais práticas.

Já que dispositivos de eficácia podem ser compreendidos como reguladores de uma assistência que contribua com as metas de redução de custos a serem atingidas pela empresa, a incidência de uma tal gestão também poderia dirigir o atendimento àquele que se encontra hospitalizado? Uma gestão da clínica já não é uma expressão incogitável, pois, assiste-se à ampliação de um modelo de eficácia que normatiza a subjetividade, propondo a motivação como solução (Dardot & Laval, 2016), e que é tido como inquestionável enquanto instrumento de um bem necessário.

Uma convergência entre a gestão enquanto dispositivo de eficácia e o que apontamos anteriormente como política do Discurso do Capitalistas e sustenta pela predominância de um gozo arraigado no processamento experimental das medidas extraídas de seu objeto, com fins de gerenciamento de condutas. Esta política desatrelada e precarizadora do laço é exercida perfazendo o que Lacan (1967/2003, p.263) sublinha como um "futuro de mercados comuns" orientado pela tecnicização da ciência e por sua aplicabilidade sobre as estruturas sociais. Esse futuro de mercados tem como efeito a ampliação dos processos de segregação que podem ser compreendidos como a estratificação do sujeito ao gozo e por aquilo que pode se evidenciar como uma consequente inconsistência das práticas de assistência atravessadas pelas coordenadas da gestão pautada no Discurso do Capitalista.

A partir da psicanálise interrogamos o destino da resignação frente aos dispositivos de eficácia e recorremos a Lacan (1959-1960/1997), em seu seminário sobre a ética, que propõe:

Quando se articulou na linha direta da experiência freudiana, a dialética da demanda, da necessidade e do desejo, será sustentável reduzir o sucesso da análise a uma posição de conforto individual vinculada a essa função, certamente fundada e legítima, que podemos chamar de serviço dos bens? (...) A passagem da exigência de felicidade para o plano político tem consequências (p.355-356)

A partir da experiência freudiana fundamenta-se a dialética entre demanda e desejo que inaugura uma outra posição diante do conforto oferecido pelos serviços de bens. A politicização da felicidade, já desmembrada por Freud (1930 [1929]/1996), em seu "Mal-estar na civilização".passa agora a ser apresentada pela gestão da eficácia e aponta para o modelo de um profissional da saúde apto a responder a esse funcionamento pelo cumprimento das métricas e aplicação das técnicas cada vez mais efetivas. Após nosso percurso, é possível propor essa posição confortável como aquilo que se pretende eficiente, de acordo com determinadas coordenadas, e que a psicanálise diverge dos dispositivos de eficácia ao não se oferecer como bem garantidor de um sucesso atrelado àquilo que se reduz ao encontro entre sujeito e objeto, como proporcionado pelo Discurso do Capitalista.

Ainda sobre o profissional que responde de maneira eficiente ou que se recusa pela via da ineficiência, esse empreendedor deve reunir em seu perfil habilidades científicas que são úteis aos fins especificados e se diferencia daquilo que Lacan (1959/1998, p.596) afirma sobre o lugar do analista em "A direção do tratamento e os princípios de seu poder": "O analista é ainda menos livre naquilo que domina a estratégia e a tática, ou seja, em sua política, onde ele faria melhor situando-se em sua falta-a-ser do que em seu ser". Mais de uma década antes de escrever o Discurso do Analista, tendo o objeto a no lugar de agente, a contrariedade ontológica da falta-a-ser é onde situa-se o analista em sua política que não engendra um exercício de poder na condução do sujeito ao bem passível de comercialização.

Não como garantia de um indicador da eficácia, o lugar da psicanálise no hospital é atravessado por uma vertente política que implica aspectos clínicos e institucionais de uma prática. Esse lugar não é garantido a priori, e não é, a não ser que se construa. O lugar da psicanálise no hospital é uma discussão que se relança sem uma definitiva resolução e que, hoje, precisa levar em consideração os dispositivos de eficácia em pleno desenvolvimento nesse contexto.

 

Referências

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1 Professor Adjunto do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Contato: mvbrunhari@gmail.com.

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