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Psicologia: teoria e prática
versão impressa ISSN 1516-3687
Psicol. teor. prat. v.6 n.2 São Paulo dez. 2004
ARTIGO
Habilidades cognitivas que predizem competência de leitura e escrita
Cognitive skills that predict competencies in reading and spelling
Alessandra Gotuzo Seabra CapovillaI, 1; Cláudia Regina Danelon GutschowII; Fernando César CapovillaIII, 2
I Universidade São Francisco
II Universidade de Santo Amaro
III Universidade de São Paulo
RESUMO
Para identificar habilidades cognitivas capazes de predizer desempenhos ulteriores em leitura e escrita, 54 crianças de pré-escola e de 1ª. série foram avaliadas em vocabulário, consciência fonológica, seqüenciamento, memória fonológica, memória visual, cópia de figuras, aritmética e qualidade da escrita; e, dez meses depois, em leitura e escrita. Análises de regressão para verificar quais habilidades melhor predizem leitura e escrita identificaram as seguintes boas preditoras: aritmética, memória fonológica, vocabulário, consciência fonológica e seqüenciamento. Não houve correlação significativa de leitura e escrita com habilidades de processamento visual ou motor, exceto entre escrita e memória visual. O estudo corroborou a hipótese do déficit fonológico e forneceu validação preliminar de instrumentos e diretrizes para detectar crianças em risco, o que possibilita intervenção precoce eficaz.
Palavras-chave: Leitura, escrita, Processamento fonológico, Alfabetização.
ABSTRACT
To identify cognitive skills capable of predicting subsequent reading and spelling performances, 54 preschoolers and first graders participated in two series of assessments. The first included receptive vocabulary, phonological awareness, sequencing, phonological memory, visual memory, picture copying, arithmetic, and writing quality. The second, 10 months later, assessed reading and spelling. Regression analyses identified these predictors: arithmetic, phonological memory, receptive vocabulary, phonological awareness and sequencing. No significant correlation was found between visual or motor skills and reading or spelling, except for a positive correlation between spelling and visual memory. This study supported the phonological deficit hypothesis, and established the preliminary validity of instruments for identifying children at risk of subsequent reading and spelling acquisition difficulties, thus allowing for effective early intervention.
Keywords: Reading, Spelling, Phonological processing, Literacy.
Introdução
A análise das dificuldades de leitura e escrita auxilia a compreender os processos envolvidos nessas habilidades. A tradicional hipótese do déficit visual (AJURIAGUERRA, 1953; ORTON, 1937) atribuía aos problemas de leitura e escrita a dificuldade com o processamento de padrões visuais. Tal hipótese perdurou por cerca de 50 anos, da década de 1920 à década de 1970. A partir da década de 1970, evidências de distúrbios de processamentos fonológicos subjacentes aos problemas de leitura e escrita começaram a acumular-se, enfraquecendo a hipótese do déficit visual. Vários estudos foram conduzidos demonstrando que dificuldades fonológicas (i.e., dificuldades relacionadas à percepção e ao processamento automático da fala) e metafonológicas (i.e., dificuldades relacionadas à segmentação e à manipulação intencionais de segmentos da fala) são capazes de predizer dificuldades ulteriores na aprendizagem de leitura e escrita, e que procedimentos de intervenção voltados ao desenvolvimento de habilidades metafonológicas (especialmente procedimentos para desenvolver a consciência fonológica) são capazes de produzir ganhos significativos em leitura e escrita (BYRNE; FREEBODY; GATES, 1992; A. CAPOVILLA; F. CAPOVILLA, 2003; ELBRO; RASMUSSEN; SPELLING, 1996; LIE, 1991; LUNDBERG; FROST; PETERSEN, 1988; SCHNEIDER; KÜSPERT; ROTH; VISÉ; MARX, 1997; TORGESEN; DAVIS, 1996; VANDERVELDEN; SIEGEL, 1995; VELLUTINO, 1979). Tais achados levaram à substituição da hipótese do déficit visual pela hipótese do déficit fonológico, segundo a qual os problemas de leitura e escrita se devem fundamentalmente aos distúrbios de processamento fonológico.
Segundo Grégoire e Piérart (1997), os estudos realizados para detectar as habilidades que se encontram prejudicadas nos maus leitores sugerem que a maioria dos distúrbios situa-se nos mecanismos básicos que tornam possível o reconhecimento das palavras escritas (i.e., decodificação), e não nos componentes sintáticos ou semânticos (i.e., compreensão). Segundo Lecocq (1991, p. 42):
Numerosos trabalhos [...] permitiram afunilar progressivamente o caminho da pesquisa e mostrar que a dificuldade dos disléxicos não reside na pobreza de vocabulário, nem numa memória semântica medíocre, nem num defeito de sensibilidade à informação contextual, nem na fraqueza da análise sintática, nem em dificuldades de compreensão geral, mas sim na incapacidade de obter certas informações foneticofonológicas.
Tais pesquisas evidenciam que os problemas de leitura ocorrem devido a dificuldades de decodificação e não de compreensão, mostrando a importância da rota fonológica para a leitura competente e apontando para a necessidade de desenvolver instrumentos de avaliação e procedimentos de intervenção remediativa e preventiva relacionados às habilidades metafonológicas. Os resultados obtidos por A. Capovilla e F. Capovilla (2003) corroboram a hipótese do déficit fonológico e demonstram a eficácia de instruções metafonológicas (i.e., treino de consciência fonológica) e fônicas (i.e., ensino de correspondências entre grafemas e fonemas) para a aquisição de leitura e escrita competentes. Segundo Alegria, Leybaert e Mousty (1997), a análise explícita das palavras em unidades fonológicas é indispensável para compreender o código alfabético e, por este meio, aprender a ler e escrever.
Porém, ainda permanece em aberto a questão de se as dificuldades dos maus leitores são específicas ao material verbal, ou se são conseqüência de problemas mais gerais de natureza perceptual e/ou temporal e/ou de armazenamento na memória de longo prazo. Nesse esforço por ampliar o escopo das análises, F. Capovilla e A. Capovilla (2003) demonstraram que crianças com atraso na aquisição de leitura apresentam também problemas de discriminação fonêmica, de memória de trabalho fonológica e de velocidade de processamento fonológico. De fato, a pesquisa é consistente em apontar evidências da relação entre a aquisição de leitura e escrita e as habilidades metafonológicas, mnemônicas e lexicais. Do mesmo modo, estudando o envolvimento de outros fatores causais na produção de problemas de aquisição de leitura e escrita na população escolar, pesquisa recente tem demonstrado o envolvimento do tipo de ortografia (F. CAPOVILLA; A. CAPOVILLA, 2003; GOSWAMI, 1997), bem como os efeitos deletérios de problemas de processamento auditivo central (F. CAPOVILLA, 2002), perda auditiva (PORTUGAL; CAPOVILLA, 2002) e distúrbios do sistema vestibular (AYRES, 1995), além de outros (SHARE, 1995). Porém, ainda há grande carência de pesquisas sobre as relações entre leitura e escrita e outras habilidades cognitivas, como as habilidades visoespaciais, seqüenciais e aritméticas, dentre outras. Um primeiro estudo objetivando expandir o escopo das habilidades cognitivas avaliadas foi o de A. Capovilla, Smythe, Capovilla e Everatt (2001) que comparou o desempenho em leitura e escrita com desempenhos em habilidades metafonológicas, visoespaciais e motoras. Os dados desse estudo pioneiro com esse teste corroboraram a hipótese do déficit fonológico em detrimento da hipótese do déficit visual. O presente estudo, de natureza longitudinal, objetivou comparar o desempenho em habilidades cognitivas fonológicas, visoespaciais e motoras com o desempenho em leitura e escrita dez meses depois, de modo a comparar o teor preditivo dessas diferentes habilidades e, assim, aprofundar a compreensão de seu envolvimento na aquisição de leitura e escrita e em seus distúrbios.
Objetivo
O estudo objetivou identificar que habilidades, na pré-escola e início da alfabetização, são capazes de predizer o desempenho ulterior em leitura e escrita. Para tanto, por meio de análises de regressão, comparou habilidades cognitivas mnemônicas, metalingüísticas, verbais e visoes paciais, avaliadas num primeiro momento, com as habilidades de leitura e escrita, avaliadas dez meses depois. Com a identificação dessas habilidades preditoras, torna-se possível identificar precocemente crianças em risco de desenvolver problemas de leitura e escrita, bem como intervir precocemente para prevenir a ocorrência desses problemas.
Metodologia
Participantes
Participaram do estudo 54 crianças do ensino infantil e da 1ª. série do ensino fundamental de três escolas da cidade de São Paulo, sendo duas escolas públicas e uma particular. A Tabela 1 sumaria a freqüência de crianças por escola e série, com as idades médias para cada classe.
TABELA I: Freqüência das crianças por escola, classe e gênero e idades médias para cada classe
Instrumentos
Foram avaliadas as seguintes habilidades cognitivas: 1) habilidade de leitura e escrita, 2) habilidades mnemônicas de codificar, armazenar e evocar informações, 3) habilidades metalingüísticas de raciocinar sobre a própria linguagem, tomando os aspectos fonológicos da linguagem como objeto de pensamento, 4) habilidades verbais relacionadas ao processamento de informações baseadas na estrutura da linguagem, e 5) habilidades visoespaciais relacionadas ao processamento de informações visuais, como percepção visual e localização no espaço. Os instrumentos usados encontram-se descritos a seguir.
Teste de Competência de Leitura Silenciosa (TeCoLeSi)
O Teste de Competência de Leitura Silenciosa ou TeCoLeSi (A. CAPOVILLA; F. CAPOVILLA, 2003) é um instrumento neuropsicológico e psicométrico para avaliação da competência de leitura silenciosa e diagnóstico diferencial de distúrbio de aquisição de leitura. É constituído de oito tentativas de treino e 70 de teste, cada qual com um par composto de uma figura e de um item escrito. A tarefa da criança é marcar com um X os pares figura-escrita incorretos.
Há sete tipos de pares, distribuídos aleatoriamente ao longo do teste, com dez itens de teste para cada tipo de par. Eles são: 1) palavras corretas regulares, como FADA, sob a figura de uma fada; 2) palavras corretas irregulares, como TÁXI, sob a figura de um táxi; 3) palavras com incorreção semântica, como TREM, sob a figura de um ônibus; 4) pseudopalavras com trocas visuais, como CAEBÇA, sob a figura de uma cabeça; 5) pseudopalavras com trocas fonológicas, como CANCURU, sob a figura de um canguru; 6) pseudopalavras homófonas, como PÁÇARU, sob a figura de um pássaro; 7) pseudopalavras estranhas, como RASSUNO, sob a figura de uma mão.
Os pares figura-escrita compostos de palavras corretas regulares e irregulares devem ser aceitos, enquanto aqueles compostos de palavras com incorreção semântica ou de pseudopalavras devem ser rejeitados. O padrão de erros em cada tipo de item é indicativo das estratégias de leitura usadas pela criança e daquelas com que ela tem dificuldade, desde que esse padrão se configure com significância estatística. O erro de rejeitar pares com palavras corretas irregulares pode indicar dificuldade com o processamento lexical, ou falta dele. O erro de deixar de rejeitar pseudopalavras homófonas também pode indicar dificuldade no processamento lexical, porém em nível mais acentuado, com uso exclusivo da rota fonológica. O erro de deixar de rejeitar pseudopalavras com trocas fonológicas pode indicar que a criança está lendo pela rota fonológica, ou seja, pela decodificação grafofonêmica estrita, sem fazer uso da rota lexical, mas com o agravante de dificuldades com o processamento fonológico. O erro de deixar de rejeitar palavras semanticamente incorretas indica que a criança não está fazendo acesso ao léxico semântico. O erro de deixar de rejeitar pseudopalavras com trocas visuais pode indicar dificuldade com o processamento fonológico e recurso à estratégia de leitura logográfica. Finalmente, o erro de deixar de rejeitar pseudopalavras estranhas pode sugerir problemas sérios de leitura ou de atenção. Devido às relações intrínsecas ao Teste de Competência de Leitura Silenciosa, ou seja, entre os sete tipos de pares figura-escrita, este instrumento permite uma checagem interna das conclusões e uma considerável validação cruzada das evidências fornecidas em cada tipo de par figura-escrita.
Prova de Consciência Fonológica por produção Oral (PCFO)
A Prova de Consciência Fonológica por produção Oral ou PCFO (CAPOVILLA; CAPOVILLA; SILVEIRA, 1998) avalia a habilidade das crianças de manipular os sons da fala, expressando oralmente o resultado dessa manipulação. A PCFO é composta por dez subtestes, sendo cada um deles composto por dois itens de treino e quatro itens de teste. O resultado das crianças na PCFO é apresentado como escore ou freqüência de acertos, sendo o máximo possível de 40 acertos. Os subtestes são: Síntese Silábica, Síntese Fonêmica, Julgamento de Rima, Julgamento de Aliteração, Segmentação Silábica, Segmentação Fonêmica, Manipulação Silábica, Manipulação Fonêmica, Transposição Silábica e Transposição Fonêmica.
Em A. Capovilla, F. Capovilla e Silveira (1998) são encontradas as normas preliminares da PCFO para pré 1 a 2ª. série obtidas a partir de resultados de crianças de escola particular. Quanto à fidedignidade da prova, na avaliação teste e reteste, os índices foram bons tanto para o escore geral na PCFO (Pearson r = 0,90; 0,89; 0,80 em retestes após seis, oito e 17 meses, respectivamente, todos com p < 0,000) quanto para seus subtestes (Pearson r variando de 0,55 a 0,83, com p < 0,000 para todos os subtestes, exceto para Síntese e Segmentação Silábicas). Quanto à validade da prova, conforme descrito em A. Capovilla, F. Capovilla e Silveira (1998), numa amostra de 175 alunos de pré 1 a 2ª. série, o escore específico em cada um dos dez subtestes foi função direta do nível escolar e da idade das crianças. Houve ainda correlação entre cada subteste separadamente e os desempenhos de leitura em voz alta e de escrita sob ditado para as crianças a partir do pré 3. Somente não houve correlação entre o desempenho em leitura e em ditado, de um lado, e os desempenhos nos subtestes de síntese silábica, segmentação silábica e rima. Isso porque tais subtestes são os mais fáceis da PCFO e, portanto, discriminam melhor os desempenhos de crianças mais jovens, entre pré 1 e pré 2. Assim, os escores específicos em cada subteste são válidos para discriminar entre diferentes níveis escolares e idades, e estão relacionados a habilidades de leitura e escrita.
Prova de Consciência Fonológica por Figuras (PCFF)
A Prova de Consciência Fonológica por escolha de Figuras ou PCFF (CAPOVILLA; CAPOVILLA, no prelo) avalia a habilidade da criança de manipular os sons da fala. Baseia-se na Prova de Consciência Fonológica por produção Oral. A PCFF é composta de nove subtestes. Cada subteste é composto de dois itens de treino e cinco itens de teste. Portanto, o escore máximo na PCFF é de 45 acertos, sendo cinco acertos por subteste. Em cada item há cinco desenhos, e a criança deve escolher, dentre os desenhos, aquele que corresponde à palavra pronunciada pelo avaliador.
Os nove subtestes são: 1) Rima: tendo ouvido um nome pronunciado pelo avaliador, a criança deve escolher, dentre cinco figuras, aquela cujo nome falado termina com os mesmos sons do nome falado pelo avaliador; 2) Aliteração: tendo ouvido um nome pronunciado pelo avaliador, a criança deve escolher, dentre cinco figuras, aquela cujo nome falado começa com os mesmos sons do nome falado pelo avaliador; 3) Adição Silábica: tendo ouvido o avaliador pronunciar uma palavra e uma sílaba adicional, a criança deve escolher, dentre cinco figuras, aquela cujo nome falado corresponde à adição da sílaba ao nome falado pelo avaliador. (Por exemplo, PATO + SA no começo = SAPATO); 4) Adição Fonêmica: tendo ouvido o avaliador pronunciar uma palavra e um fonema adicional, a criança deve escolher, dentre cinco figuras, aquela cujo nome falado corresponde à adição do fonema ao nome falado pelo avaliador. (Por exemplo, ALA + /S/ no começo = SALA); 5) Subtração Silábica: tendo ouvido o avaliador pronunciar uma palavra e uma sílaba, a criança deve escolher, dentre cinco figuras, aquela cujo nome falado corresponde à palavra falada pelo avaliador menos aquela sílaba. (Por exemplo, MACACO - MA = CACO); 6) Subtração Fonêmica: tendo ouvido o avaliador pronunciar uma palavra e um fonema, a criança deve escolher, dentre cinco figuras, aquela cujo nome falado corresponde à palavra falada pelo avaliador menos aquele fonema. (Por exemplo, BOCA B = OCA); 7) Transposição Silábica: tendo ouvido o avaliador pronunciar uma palavra, a criança deve inverter a ordem das sílabas que compõem essa palavra e escolher, dentre cinco figuras, aquela cujo nome falado corresponde ao resultado dessa inversão de sílabas. (Por exemplo, LOBO / BOLO); 8) Transposição Fonêmica: tendo ouvido o avaliador pronunciar uma palavra, a criança deve inverter a ordem dos fonemas que compõem essa palavra e escolher, dentre cinco figuras, aquela cujo nome falado corresponde ao resultado dessa inversão de fonemas. (Por exemplo, ÍRIS / SIRI); 9) Trocadilho: tendo ouvido o avaliador pronunciar duas palavras, a criança deve inverter a ordem dos fonemas iniciais dessas duas palavras e escolher, dentre cinco figuras, aquela cujo nome falado corresponde ao resultado dessa inversão de fonemas. (Por exemplo, CULAR PORDA/PULAR CORDA).
Teste de Vocabulário por Imagens Peabody (TVIP)
O Teste de Vocabulário por Imagens Peabody ou TVIP (DUNN; DUNN, 1981) avalia o desenvolvimento lexical no domínio receptivo, i.e., as habilidades de compreensão de vocabulário, de crianças entre dois anos e seis meses até 18 anos de idade. Permite uma avaliação objetiva, rápida e precisa do vocabulário receptivo auditivo em uma ampla variedade de áreas, incluindo pessoas, ações, qualidades, partes do corpo, tempo, natureza, lugares, objetos, animais, termos matemáticos, ferramentas e instrumentos. É indicado para avaliar o nível de desenvolvimento da linguagem receptiva em pré-escolares, bem como em crianças ou adultos incapazes de ler, de escrever ou mesmo de falar já que, para avaliar a compreensão auditiva de palavras isoladas, requer apenas que o examinando escolha a figura correspondente à palavra falada pelo examinador.
Desde a sua versão original em inglês, o teste tem sido revisado e adaptado a outras línguas como espanhol (DUNN; PADILLA; LUGO; DUNN, 1986a, 1986b) e o português (CAPOVILLA; CAPOVILLA, 1997). O TVIP correlaciona-se fortemente com a maior parte dos testes de vocabulário e de inteligência verbal. No presente estudo foi usada a versão hispano-americana de 125 itens, que pode ser aplicada em crianças a partir de dois anos e seis meses (DUNN; PADILLA; LUGO; DUNN, 1986a), adaptada, validada e normatizada no Brasil para a faixa de dois a seis anos (F. CAPOVILLA; A. CAPOVILLA, 1997) e de seis a 14 anos (F. CAPOVILLA; NUNES; NOGUEIRA E COLABORADORES, 1997). Esta versão consiste em cinco pranchas de prática seguidas de 125 pranchas de teste, organizadas em ordem crescente de dificuldade. As pranchas são compostas de quatro desenhos de linha preta em fundo branco. O teste é organizado de acordo com um modelo de múltipla escolha. Ele não requer que o examinando leia, escreva ou vocalize qualquer coisa. A tarefa consiste simplesmente em selecionar, dentre as alternativas, a figura que melhor representa a palavra falada apresentada pelo examinador. O escore máximo no TVIP é de 125 pontos.
Teste de Vocabulário por Figuras USP (TVFUSP)
O Teste de Vocabulário por Figuras USP ou TVFUSP (CAPOVILLA; VIGGIANO; CAPOVILLA; RAPHAEL; BIDÁ; MAURÍCIO, 2004) é semelhante ao TVIP e avalia o desenvolvimento lexical do domínio receptivo, isto é, as habilidades de compreensão de vocabulário. Fornece avaliação objetiva, rápida e precisa do vocabulário receptivo auditivo. É indicado para avaliar o nível de desenvolvimento da linguagem receptiva em pré-escolares, bem como em crianças ou adultos que não lêem, que não escrevem e mesmo que não falam. O TVFUSP original contém 139 pranchas de teste; o TVFUSP abreviado, 60 pranchas ordenadas com dificuldade crescente. As pranchas são compostas de cinco desenhos de linha preta em fundo branco. Num modelo de múltipla escolha, a tarefa do examinando consiste em selecionar, dentre as cinco figuras alternativas, aquela que melhor representa a palavra apresentada pelo examinador.
Internacional Dyslexia Test (IDT)
O Internacional Dyslexia Test ou IDT (CAPOVILLA; SMYTHE; CAPOVILLA; EVERATT, 2001) avalia diferentes habilidades cognitivas e é aplicado em duas partes, uma coletiva e outra individual.
A parte coletiva do IDT é composta por cinco subtestes: 1) alfabeto: a criança deve escrever as letras do alfabeto, em seqüência; 2) cópia de formas: a criança deve copiar quatro diferentes formas geométricas; 3) aritmética: a criança deve solucionar 20 problemas aritméticos simples, com operações de adição, subtração, multiplicação e divisão; 4) ditado: o examinador pronuncia um total de 30 palavras e 10 pseudopalavras que a criança deve escrever; 5) memória fonológica de curto prazo (digit span): o examinador pronuncia 16 seqüências de dígitos, que contêm de dois a nove dígitos cada uma, e a criança deve escrever os dígitos quando o examinador terminar de pronunciar a seqüência. Além desses cinco subtestes, as crianças são avaliadas no Teste de Matrizes Progressivas de Raven, um teste de raciocínio edutivo. Com base no desempenho da criança são analisados: 1) qualidade da escrita: escore de 1 (ruim) a 5 (muito boa); 2) espelhamento: freqüência total de espelhamentos observados no subteste de memória fonológica de curto prazo (digit span).
A parte individual contém os seguintes subtestes: leitura de palavras, leitura de pseudopalavras, aliteração, rima, contagem regressiva, repetição de palavras, repetição de pseudopalavras, batidas rítmicas, nomeação rápida de figuras, nomeação de números, desenho de memória de formas, seqüência de formas, habilidades motoras, discriminação de sons, repetição inversa de números e seqüências.
Assim, os subtestes do IDT avaliam diferentes habilidades cognitivas, incluindo: 1) leitura; 2) escrita; 3) habilidades matemáticas; 4) consciência fonológica; 5) processamento auditivo; 6) processamento visual; 7) velocidade de processamento; 8) seqüenciamento; 9) habilidades motoras; e 10) raciocínio. Neste estudo, foram aplicados todos os subtestes da parte coletiva (i.e., alfabeto, cópia de formas, aritmética, ditado e memória de curto prazo) e os subtestes individuais de desenho de memória de formas e seqüências, além das matrizes progressivas de Raven.
Procedimento
As crianças passaram por duas avaliações. A primeira foi realizada durante o período de março a setembro de 2001, com a aplicação dos seguintes testes: TeCoLeSi, PCFF, TVIP e IDT (todos os subtestes da parte coletiva e os subtestes de desenho de memória de normas e seqüências da parte individual). O período extenso de coleta de dados (quase sete meses) deveu-se a dificuldades, junto às escolas, para obter permissão para entrada em sala de aula para as avaliações, bem como ao grande número de faltas por parte dos alunos, especialmente aqueles das escolas públicas, tendo sido necessário vários retornos à escola para que todos os dados pudessem ser coletados. A segunda avaliação foi conduzida nos meses de março e abril de 2002, com a segunda aplicação de todos os testes: TeCoLeSi, PCFF, PCFO, TVIP, TVFUSP e IDT (subtestes da parte coletiva, desenho de memória de formas e seqüências). As avaliações foram conduzidas na própria escola das crianças, durante o período escolar regular.
Resultados
Foram conduzidas análises de regressão entre, de um lado, os desempenhos nos diferentes instrumentos na primeira avaliação e, de outro lado, os desempenhos em leitura e escrita na segunda avaliação. Ou seja, foram analisadas as relações entre habilidades cognitivas num determinado momento e as habilidades de leitura e escrita dez meses depois. Foi possível verificar, dessa forma, quais habilidades na pré-escola e no início da alfabetização melhor predizem o desempenho ulterior em leitura e escrita. Para a condução das análises foram incluídas apenas as crianças que apresentavam o percentil no Raven igual ou superior a 50, de modo a uniformizar o nível intelectual das crianças para evitar que as variações de desempenho nos outros instrumentos pudessem ser devidas a variações de inteligência.
A Tabela 2 sumaria todos os resultados das análises de regressão entre, de um lado, os desempenhos nos diferentes instrumentos na primeira avaliação e, de outro lado, os desempenhos em leitura (à esquerda) e escrita (à direita) na segunda avaliação, com dados do coeficiente de correlação r e da probabilidade p entre parênteses. Os resultados estão dispostos por ordem decrescente do r (coeficiente de correlação), tanto para a leitura quanto para a escrita. Os resultados significativos encontram-se ressaltados emnegrito. Dessa forma, ficam claras as habilidades mais fortemente correlacionadas com a posterior aquisição de leitura e escrita.
Tabela 2: Resultados das análises de regressão entre, de um lado, os desempenhos em leitura no TeCoLeSi e em escrita no Ditado do IDT e, de outro lado, os desempenhos nas várias tarefas avaliadas no ano anterior, com dados do coeficiente de correlação r e a probabilidade de erro (i.e., nível de significância) p entre parênteses, ordenados por r decrescente.
Resultados significativos encontram-se ressaltados em negrito.
Conforme sumariado na tabela, as habilidades de processamento fonológico apresentaram maiores correlações com o desempenho posterior em leitura e escrita, incluindo consciência fonológica, vocabulário, memória e seqüenciamento. Por outro lado, as habilidades de processamentos visual e motor (cópia de figuras e qualidade da escrita) não apresentaram correlações significativas com leitura e escrita. Houve apenas correlação significativa entre memória visual e escrita. Tais resultados corroboram a hipótese do déficit fonológico, segundo a qual os distúrbios de processamento fonológico são a principal causa dos problemas de leitura e escrita. As habilidades motoras e as visuais estiveram bem menos relacionadas à posterior alfabetização do que as metafonológicas.
Discussão
Estudos internacionais sugerem que é possível prevenir distúrbios de leitura e escrita por meio do desenvolvimento precoce das habilidades pré-requisito para a alfabetização (BORSTROM; ELBRO, 1997; LUNDBERG; FROST; PETERSEN, 1988). Para que a intervenção precoce seja eficaz é preciso identificar corretamente essas habilidades pré-requisito para a alfabetização. O estudo de Demont (1997) demonstrou que, em crianças falantes da língua francesa, as habilidades metafonológicas (especialmente de manipulação e transposição silábica e fonêmica) e metassintáticas (de refletir sobre a sintaxe da língua) são as mais fortemente correlacionadas com a habilidade ulterior de leitura. O presente estudo também buscou identificar as habilidades capazes de predizer a aquisição subseqüente da línguagem escrita, mas desta feita em crianças falantes do português brasileiro. Para tanto, neste estudo longitudinal, 54 crianças de pré-escola e de 1ª. série do ensino fundamental passaram por avaliação de consciência fonológica, memória fonológica de curto prazo, vocabulário, seqüenciamento, aritmética, memória visual, cópia de formas geométricas e qualidade da escrita; e, dez meses depois, por avaliação de leitura e escrita, com o objetivo de identificar quais, dentre as várias habilidades, apresentariam maiores correlações com o desenvolvimento subseqüente de leitura e escrita.
Os resultados revelaram que as habilidades mais fortemente correlacionadas com leitura e escrita foram aritmética, memória fonológica, vocabulário, consciência fonológica e seqüenciamento. Enquanto a habilidade de seqüenciamento apresentou maior correlação com a leitura, a memória fonológica apresentou maior correlação com a escrita. Dentre as tarefas de consciência fonológica, aquelas envolvendo consciência de fonemas foram mais fortemente correlacionadas à leitura e à escrita do que aquelas outras envolvendo consciência suprafonêmica (de sílabas e rimas). Assim, as habilidades de processamento fonológico apresentaram maiores correlações com o desempenho posterior em leitura e escrita, incluindo consciência fonológica, vocabulário, memória e seqüenciamento. Por outro lado, as habilidades de processamento visual e motor (cópia de figuras e qualidade da escrita) não apresentaram correlações significativas com leitura e escrita. A única exceção foi a correlação significativa entre memória visual e escrita.
Portanto, de forma geral, os resultados deste estudo corroboram a hipótese do déficit fonológico, segundo a qual os distúrbios de processamento fonológico são a principal causa dos problemas de leitura e escrita. As habilidades motoras e as visoespaciais parecem estar bem menos relacionadas à posterior alfabetização do que as fonológicas. Tais dados replicam, para a aquisição de leitura e escrita no português brasileiro, os achados de Demont (1997) quanto à aquisição de leitura e escrita em francês.
Ao identificar quais habilidades estão mais fortemente correlacionadas à posterior aquisição da linguagem escrita, o estudo fornece diretrizes para os profissionais que atuam na área, indicando as habilidades preditoras de leitura e escrita. A avaliação de tais habilidades pode auxiliar na detecção de crianças de risco, conforme discutido por Lyytinen (1997), e o desenvolvimento dessas habilidades por meio de intervenções focais permite prevenir e remediar distúrbios da linguagem escrita. Conforme Alegria, Leybaert e Mousty (1997), testes que produzem apenas escores globais de leitura não são suficientes para diagnóstico diferencial das dificuldades específicas que a criança apresenta. É preciso laborar testes capazes de examinar, de modo mais analítico, as diferentes competências relacionadas à leitura. Do mesmo modo, Braibant (1997) critica a restrição a uma nota média ou ideal para a avaliação de crianças com dificuldades de leitura e escrita e defende a necessidade de criar e utilizar instrumentos de avaliação mais sensíveis e discriminativos, que permitam mapear o perfil de cada indivíduo, incluindo os diferentes componentes que integram uma habilidade mais geral como a linguagem escrita. De fato, o Teste de Competência de Leitura Silenciosa, empregado no presente estudo, foi inspirado no trabalho de Braibant e ilustra precisamente esse tipo de teste analítico que permite a avaliação e validação cruzada de funções e a interpretação da natureza do processamento cognitivo subjacente.
Os presentes achados fornecem subsídios para derivar diretrizes de avaliação e intervenção com propósitos remediativos e preventivos nos contextos educacional e clínico. Já que as habilidades fonológicas, de vocabulário, consciência fonológica, memória e seqüenciamento são boas preditoras da aquisição de leitura e escrita, é preciso que o currículo escolar enfoque o desenvolvimento dessas competências. Como ressaltam Leybaert, Alegria, Deltour e Skinkel (1997), embora outros fatores também afetem a aquisição da linguagem escrita, como o nível socioeconômico, a inteligência geral, a escolaridade dos pais e a estimulação que os pais oferecem à criança em casa, tais fatores são bem menos acessíveis à intervenção do que os fatores cognitivos, como os fonológicos. Assim, o profissional não precisa esperar até que os fatores socioeconômicos e culturais sejam favoráveis, aguardando pela criança ideal, mas deve identificar os fatores acessíveis à intervenção imediata, capazes de promover a alfabetização eficaz da criança com que tem que lidar aqui e agora. Este estudo de avaliação longitudinal, juntamente a um grande número de estudos anteriores de avaliação e acompanhamento (CAPOVILLA; CAPOVILLA; SILVEIRA, 1998; CAPOVILLA; SMYTHE; CAPOVILLA; EVERATT, 2001; CAPOVILLA; CAPOVILLA, 2003) e de intervenção (CAPOVILLA; CAPOVILLA, 2003), ressalta a importância das habilidades metafonológicas e fônicas para a aquisição de leitura e escrita competentes. Ressalta, também, que é possível avaliar tais habilidades e intervir sobre elas.
Referências
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Endereço para correspondência
Alessandra G. S. Capovilla
Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia
Universidade São Francisco
Itatiba SP
CEP 13251-040
e-mail: alessandra.capovilla@saofrancisco.edu.br
Tramitação
Recebido em agosto 2003
Aceito em março 2004
1Bolsista de Produtividade em Pesquisa pelo CNPq
2Bolsista de Produtividade em Pesquisa pelo CNPq