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Psicologia: teoria e prática
versão impressa ISSN 1516-3687
Psicol. teor. prat. vol.12 no.3 São Paulo mar. 2010
ARTIGO ORIGINAL
Uso dos espaços urbanos pelas crianças: uma revisão
Use of the urban spaces for the children: a review
Uso de los espacios urbanos para los niños : una revisión
Giordana Machado da Luz; Luana dos Santos Raymundo; Ariane Kuhnen
Universidade Federal de Santa Catarina
RESUMO
O espaço ao ar livre tem se mostrado importante para o desenvolvimento infantil por oportunizar habilidades físicas, sociais e afetivas. Mudanças sociais, econômicas e espaciais, contudo, têm interferido no comportamento de uso de tais espaços, podendo trazer prejuízos à saúde e ao desenvolvimento das crianças. Esta revisão bibliográfica teve como objetivo investigar os fatores que têm sido apontados pelos pesquisadores como intervenientes no uso de tais espaços. Foram analisados os estudos publicados no período de 2005 a julho de 2010, em duas bases de dados (Science Direct e PsycNet). Os resultados foram agrupados em categorias, e são três os principais eixos temáticos que norteiam as pesquisas sobre a relação criança-espaço urbano: 1. o contexto sociofísico dos espaços urbanos, 2. a percepção parental do bairro e da vizinhança e 3. a percepção da própria criança usuária dos espaços destinados ao lazer; havendo predominância do primeiro eixo. Os resultados apontam que vários são os fatores intervenientes, entre eles, as condições de planejamento, psicossociais e físicas. Contudo, verificou-se pouca atenção ao estudo da relação crianças e espaços ao ar livre, o que gerou dados pouco conclusivos.
Palavras-chave: Crianças; Bairro; Atividade Física; Desenvolvimento; Revisão.
ABSTRACT
Outdoor spaces are important for developing physical, social and affectionate skills. Social, economic and special changes, however, have interfered on the use of these spaces, with a possibility of bringing harm to children’s health and development. This review examined the factors that have been identified as intervening in the use of these spaces. Were analyzed studies published from 2005 to July 2010 in two databases (Science Direct and PsycNet). The results indicated that several factors are involved, including the conditions of planning, psychosocial and physical factors. However, there was little attention to the study of the relationship children and use of spaces. This generated data was inconclusive.
Keywords: Children; Neighborhood; Physical activity; Development; Review.
RESUMEN
El espacio al aire libre ha demostrado ser importante para el desarrollo infantil en la promoción de capacidades físicas, sociales y afectivas. Los cambios sociales, económicos y espaciales, sin embargo, han intervenido en el comportamiento del uso de tales espacios, pudiendo traer daños a la salud y al desarrollo de los niños. Esta revisión bibliográfica tuvo como objetivo investigar los factores descritos por los investigadores como intervinientes en el uso de tales espacios. Fueron analizados los estudios publicados entre el período del año de 2005 hasta julio de 2010 en dos bases de datos (Science Direct y PsycNet). Los resultados fueron agrupados en categorías, siendo que son los tres los principales ejes temáticos que dirigen la investigación de la relación entre los niños y los espacios urbanos: 1. el contexto socio-físico del los espacios, 2. la opinión parental del barrio y de los vecinos, y 3. la opinión del niño que usan los espacios destinados al ocio; un predominio del primer eje fue encontrado. Los resultados indican que existen varios factores intervinientes, entre ellos, las condiciones de planificación, factores psicosociales y físicos. Sin embargo se verificó poca atención al estudio de la relación niños y espacios al aire libre. Esto generó datos poco conclusivos.
Palabras clave: Niños; Barrio; Actividades físicas; Desarrollo; Revisión.
Introdução
Até o século XIX, a rua era o espaço de socialização e brincadeira por excelência, tanto de crianças como de adultos. Com o crescimento das cidades e a consequente inibição da brincadeira na rua, tornou-se necessária a criação de espaços exclusivos de lazer infantil. Os parques públicos infantis foram criados no fim do século XIX, pós-Revolução Industrial, tornando-se o espaço urbano de lazer da família da classe trabalhadora (OLIVEIRA, 2004; BORGES, 2008).
Nos últimos 50 anos, contudo, mudanças sociais e econômicas vêm restringindo o acesso das pessoas aos espaços urbanos. Os grandes centros são os que mais sofrem com o adensamento populacional e de veículos, com a redução das dimensões espaciais e de áreas verdes e com o aumento da criminalidade. A rua, outrora lugar de socialização e lazer, tornou-se via de circulação e lugar de perigo, sobretudo para as crianças. As praças públicas e os parques infantis também sofrem com o abandono do poder público e, muitas vezes, são utilizados para fins ilícitos como o tráfico de drogas e o vandalismo (MEKIDECHE, 2004; OLIVEIRA, 2004; COTRIN et al., 2009).
O parque público infantil pode ser um dos primeiros espaços onde a criança tem oportunidade de se relacionar com outras crianças e adultos não integrantes de sua família, estimulando o contato com a diversidade cultural, étnica e social e ajudando a construir o sentido de cidadania. Além disso, propicia o contato com a natureza e a variedade de materiais, cores, texturas e relevos, promovendo o desenvolvimento motor, cognitivo, sensorial e emocional, através da atividade do brincar (MEKIDECHE, 2004; OLIVEIRA, 2004; RABINOVICH, 2004)
Em razão da importância que os espaços urbanos desempenham no desenvolvimento físico, social e psicológico do ser humano, a falta de acesso a esses espaços e sua não utilização são apontadas como prejudiciais à saúde e maturação infantil, sobretudo pela redução de mobilidade e atividade física das crianças (KORPELA, 2001). Assim, a falta de acesso a tais espaços e a não utilização deles pelas crianças tornam-se não apenas um problema social e espacial, mas também uma questão de saúde física e psicológica. Desse modo, a presente revisão bibliográfica foi realizada com o propósito de investigar que fatores têm sido apontados pelos pesquisadores das ciências humanas como intervenientes no uso dos espaços urbanos pelas crianças.
Método
A pesquisa foi realizada nas bases de dados Science Direct e PsycNet. As palavras-chave utilizadas na busca foram: children and outdoor e children and neighborhood. Entre os artigos localizados, selecionaram-se aqueles que realizaram relações entre o comportamento da criança e o espaço ao ar livre disponibilizado no bairro. Após a busca geral, os resultados encontrados foram restringidos, considerando os seguintes critérios: artigos publicados em periódicos científicos no período de janeiro de 2005 a julho de 2010 que tiveram crianças como público-alvo.
Na base PsycNet, foram encontrados 92 artigos, sendo excluídos 65 por não atenderem aos critérios de inclusão na pesquisa, ou seja, por não relacionarem o comportamento infantil com o espaço urbano. Na base Science Direct, identificaram-se 61 artigos, no entanto, foi verificado que oito deles estavam duplicados, sendo, portanto, excluídos da pesquisa. Desses 53 artigos restantes, 14 atenderam aos critérios de inclusão na pesquisa. Foram selecionados, portanto, 41 artigos, categorizados conforme três eixos temáticos, definidos com base nos objetivos desta pesquisa:
• O contexto sociofísico dos espaços urbanos como aspectos intervenientes no comportamento de uso das crianças: 21 artigos.
• A percepção parental como aspecto interveniente no comportamento de uso dos espaços urbanos pelas crianças: 11 artigos.
• A percepção da criança como aspecto interveniente em seu comportamento de uso dos espaços urbanos: nove artigos.
Discussão de resultados
Quando se analisaram os resultados, percebeu-se a predominância de estudos abordado a relação entre as características sociofísicas dos bairros como intervenientes no uso dos espaços urbanos pelas crianças. A quantidade de artigos encontrados em cada eixo temático, portanto, indica uma tendência nos estudos em relação à problemática estudada. Assim os eixos temáticos serão descritos e exemplificados a seguir.
O contexto sociofísico dos espaços urbanos como aspectos intervenientes no comportamento de uso das crianças
No eixo temático das condições do contexto dos espaços ao ar livre intervenientes no comportamento infantil, foram encontrados, sobretudo, estudos que buscavam relacionar aspectos do desenvolvimento da criança com características socioespaciais do contexto domiciliar. Dessa forma, observaram-se, nesse eixo temático, investigações da relação entre variáveis, como características socioeconômicas dos bairros, infraestrutura disponível, índices de vulnerabilidade, localização periférica ou central das moradias, perfil sociodemográfico da vizinhança, entre outras, e o acesso aos espaços público de lazer, seu uso pelas crianças e, consequentemente, suas influências no desenvolvimento infantil saudável (MITCHELL; MURDOCK, 2005; XUE et al., 2005; MCCULLOCH, 2006; CAUGHY; HAYSLETT-MCCALL; O’CAMPO, 2007; JACKSON; MARE, 2007; READING et al., 2008; VADEN-KIERNAN et al., 2010).
Entretanto, observou-se também uma predominância de estudos que, quando problematizavam os aspectos físicos dos bairros de moradia, geralmente o faziam buscando a relação entre as atividades fisicamente ativas das crianças e os espaços ao ar livre disponíveis para essa prática (ROEMMICH et al., 2006; GRAFOVA, 2008; JANICE; JEFFREY; GILBERT, 2008; VEITCH; SALMON; BALL, 2008; VEUGELERS et al., 2008; CUTUMISU; SPENCE, 2009; FRANZINI et al., 2009; CARTER; DUBOIS, 2010; JONES et al., 2010). Ou seja, o acesso a áreas de lazer, como praças e parques ou outros espaços urbanos construídos, a distância entre a residência e a escola, o trajeto percorrido em outras atividades cotidianas e o tempo de permanência em casa e na rua foram variáveis consideradas como intervenientes nos índices de obesidade infantil ou sedentarismo.
Roemmich et al. (2006), ao estudarem o deslocamento pelo bairro de 32 meninos e 27 meninas de quatro e sete anos de idade, durante três dias na semana e um dia do final de semana, concluíram que a maior proximidade entre as casas e as áreas públicas de lazer, e a maior proporção dessas áreas nos bairros estavam associadas com a maior prática de atividade física dessas crianças. Da mesma forma, Veugelers et al. (2008) concluíram que a infraestrutura do bairro pode evitar o sobrepeso nas crianças, na medida em que o acesso a parques e praças e instalações de lazer com segurança, de maneira geral, estavam relacionados à dieta e aos exercícios físicos praticados pelas crianças. Esses autores relacionaram, portanto, entre outras variáveis, as características sociodemográficas da vizinhança, o consumo de frutas e hortaliças pelas crianças, a frequência da prática de esportes, o tempo em que elas assistiam à televisão e o sobrepeso. Obtiveram como resultado que as crianças nos bairros com bons acessos a parques infantis e instalações recreativas eram mais ativas e com menor probabilidade de terem excesso de peso ou serem obesas.
Também buscando identificar as relações entre obesidade infantil e aspectos físicos dos bairros, Cutts et al. (2009) encontraram uma diferença de ofertas ambientais entre os bairros estudados em um município dos Estados Unidos e alertam para a falta de oferta de espaços públicos para a população identificada como a mais vulnerável à obesidade. Os resultados, além disso, indicaram que a garantia de qualidade e segurança nesses espaços deve ser considerada, pois são fatores intervenientes no acesso aos espaços e na utilização deles pelas crianças.
Também alertando para a problemática da falta de segurança nas áreas públicas, Carver, Timperio e Crawford (2008) concordaram que a percepção de risco e a falta de segurança no bairro são barreiras potenciais para a atividade física das crianças. Esses autores, além de resgatarem a percepção dos pais e dos jovens sobre a vizinhança, buscaram identificar as armadilhas ou os riscos sociais e físicos encontrados nos espaços pesquisados.
Ainda quanto às características físicas dos espaços, alguns estudos discutem também a variável presença de elementos naturais, sobretudo vegetação, nos espaços ao ar livre e sua relação com o comportamento das crianças (FABER TAYLOR; KUO, 2009; STAEMPFLI, 2009). De acordo com esses estudos, os ambientes naturais permitem que as crianças se engajem em atividades lúdicas com a vizinhança, experimentem sentimentos intensos, lidem com eles e tenham o contato com uma diversidade de estímulos materiais e sociais. Nesse sentido, a presença de áreas verdes e a boa relação com a vizinhança têm sido apontadas como fatores facilitadores no acesso das crianças aos espaços públicos ao ar livre, pois, além de diminuírem a percepção negativa dos pais em relação ao risco nesses espaços (PREZZA et al., 2005), estimulam algumas habilidades cognitivas e motoras nas crianças (FABER TAYLOR; KUO, 2009; STAEMPFLI, 2009).
Janice, Jeffrey e Gilbert (2008) relacionaram os escores do índice de massa corporal (IMC) de crianças residentes em bairros cujos espaços foram caracterizados com muita ou pouca área verde e concluíram que a presença de vegetação é significativamente também associada com a chance de as crianças se tornarem sobrepesas, provavelmente pelo aumento da atividade física ou do tempo gasto em áreas verdes, consideradas espaços mais atrativos e de maior permanência das crianças. Bell, Wilson e Liu (2008) também investigaram a associação entre a presença de áreas verdes, densidade residencial e escores de IMC de crianças de 3 a 16 anos. O estudo experimental demonstrou que o aumento de vegetação foi significativamente associado com a baixa nos escores de IMC. Os autores acreditavam que a presença de vegetação auxiliava no contato com o espaço ao ar livre, aumentando o nível de atividade física e promovendo hábitos saudáveis.
A dificuldade em encontrar espaços públicos seguros e com qualidade, ou seja, com presença de vegetação, que oportunizem atividades de lazer fisicamente ativas e estimulem uma variedade de atividades lúdicas, portanto, tem sido uma das responsáveis pelo aumento do sedentarismo e pelos altos índices de obesidade na infância, além de outros prejuízos ao desenvolvimento infantil (ROEMMICH et al., 2006; GRAFOVA, 2008; VEUGELERS et al., 2008). Segundo Veitch, Salmon e Ball (2008), as oportunidades que as crianças possuem para participar de atividades lúdicas grupais em espaços coletivos tornam-se limitadas por causa da falta de áreas livres de lazer nas proximidades de suas residências. Esses estudos alertam, portanto, para a necessidade de os órgãos governamentais e as administrações públicas locais melhorarem o acesso a áreas públicas de lazer e a oferta delas nos bairros, a fim de promoverem um desenvolvimento infantil saudável.
A percepção parental como aspecto interveniente no comportamento de uso dos espaços urbanos pelas crianças
Nesse eixo temático, foram encontrados estudos que relacionavam a percepção parental sobre os espaços urbanos e o uso deles pelas crianças. Em geral, o contexto dos estudos era o bairro de moradia das crianças e seus arredores. O foco de investigação dos artigos analisados nesse eixo temático, de maneira geral, refere-se à percepção parental sobre o ambiente do bairro; contudo essa variável estava relacionada a aspectos diferenciados nos estudos encontrados. Alguns estudos relacionaram a percepção parental sobre o bairro com os riscos oferecidos à saúde física e psicológica das crianças, por exemplo (READING et al., 2008; ROMICH, 2009; LIMA et al., no prelo). Outros trabalhos investigaram a influência da percepção parental do bairro sobre a atividade física das crianças (JUTRAS; LEPAGE, 2006; WEIR; ETELSON; BRAND, 2006; BEETS et al., 2007). Por último, alguns estudos buscaram validar instrumentos de pesquisa que pudessem ser utilizados na investigação da relação entre a percepção dos pais e o uso dos espaços urbanos pelas crianças (PREZZA et al., 2005; VEITCH; SALMON; BALL, 2008). Lima et al. (no prelo) investigaram os índices de risco para o bem-estar psicológico e comportamental de crianças em diferentes bairros, com o propósito de compreender se as características do bairro podem ter efeito cumulativo sobre o risco familiar de desenvolver problemas comportamentais nas crianças. O estudo incluiu 405 crianças, e os dados derivaram de entrevistas com o cuidador principal e avaliação com a criança. Os bairros de residência foram assim divididos: bairro potencial para o envolvimento da comunidade com as crianças e bairro de clima social negativo. Os resultados indicaram que a percepção parental sobre o bairro foi mediadora nos efeitos do risco familiar em relação aos problemas de comportamento, e um risco maior de problemas comportamentais e psicológicos foi associado a crianças que vivem em bairros considerados de alto risco.
Também com o objetivo de compreender a relação entre percepção parental e risco oferecido pelo ambiente do bairro, Romich (2009) investigou a relação entre a qualidade do bairro e o comportamento das crianças a partir de padrões de conduta familiar. Utilizando uma amostra de 1.879 crianças, de 12 a 13 anos, em uma pesquisa longitudinal, a autora constatou que os pais usam recursos dentro da família para proteger as crianças de ameaças representadas por bairros com altos níveis de criminalidade ou com baixos níveis de coesão social. Os dados também demonstraram que a percepção parental sobre o ambiente social do bairro, como índices de violência e relação de vizinhança, interfere no uso dos espaços pelas crianças.
Reading et al. (2008) buscaram identificar a influência do bairro no risco de acidentes com as crianças. Os autores utilizaram dados de um estudo longitudinal sobre os primeiros cinco anos de vida de crianças, combinados com informações coletadas no recenseamento e dados geográficos no Reino Unido. Os resultados indicaram que a percepção da mãe sobre a qualidade do bairro está relacionada ao risco de acidentes, mas não a acidentes com necessidade de assistência médica. As implicações desse estudo são de que as diferenças de risco de acidentes entre bairros são explicadas por fatores geográficos, individuais e familiares, indicando que as intervenções devem se centrar mais em fatores parentais e circunstâncias sociais domésticas do que no ambiente físico ou na comunidade de riscos.
A percepção parental é também relacionada ao uso do bairro pela criança a partir do nível de atividade física. O estudo de Beets et al. (2007) examinou o comportamento de apoio social dos pais durante a semana e no final de semana, sobre as atividades físicas ao ar livre (AFL) dos filhos. Trinta e nove meninas e 29 meninos, de 8 a 11 anos, usaram podômetros durante sete dias. Sessenta e cinco mães e 50 pais responderam a um questionário de apoio social sobre AFL, composto de quatro dimensões: incentivo, jogos, recreação familiar e tempo disponibilizado. Depois do controle feito por idade e esporte de participação, análises de regressão indicaram que o uso de atividade recreativa pelas mães foi associado positivamente com AFL das meninas durante a semana. No final de semana, jogos dos pais com os meninos foram associados positivamente com AFL. O resultado do estudo sugeriu que a eficácia das intervenções de atividade com base na família depende de quando os pais têm oportunidades para estarem presentes na atividade de seus filhos e das diferenças de gênero no suporte fornecido.
Jutras e Lepage (2006) analisaram as percepções dos pais de como a escola e o bairro contribuem para o bem-estar psicológico de suas crianças, de 6 a 12 anos. A análise do conteúdo de 260 entrevistas explorou a percepção dos pais e identificou os principais aspectos da escola e do bairro. Na escola, dois aspectos se destacaram: o apoio emocional e um ambiente de aprendizagem solidário. Qualidades que os pais valorizaram sobre o bairro incluíram simpatia das crianças, ambientes amenos e presença de vizinhos cordiais e de apoio. Os pais que viviam em bairros desfavorecidos diferiram em muitos pontos em suas percepções de pais que viviam em bairros mais ricos, refletindo as disparidades nos ambientes em que viviam e educavam os filhos.
Weir, Etelson e Brand (2006) compararam o local de residência e o nível de atividade física de crianças de 5 a 10 anos, a partir de entrevistas com pais residentes no subúrbio de Nova York. Os dados apontaram que crianças de cidade do interior se engajavam em menos atividade física do que crianças do subúrbio. Os pais de cidade de interior expressaram maior ansiedade sobre segurança do bairro que os pais suburbanos. O nível de atividade física das crianças do interior apareceu de forma negativamente correlacionada com a ansiedade parental sobre a segurança da vizinhança, indicando ser este um fator de inibição do acesso aos espaços além da residência. Os autores reforçam que a preocupação parental não pode explicar inteiramente a discrepância nos níveis de atividade entre as crianças do interior e as do subúrbio, mas um ambiente seguro é fundamental para o aumento das oportunidades de atividade física.
Portanto, a ansiedade parental não deve ser analisada separadamente de outros fatores que compõem o ambiente no qual a criança está inserida, como aponta o estudo de Prezza et al. (2005). Desenvolvida em seis cidades do interior da Itália, a pesquisa teve como intuito validar três escalas de percepção de pais, de crianças de 8 a10 anos, sobre o risco social e de tráfego da vizinhança, assim como a percepção sobre o potencial positivo das áreas ao ar livre para a autonomia das crianças. Para os autores, a percepção de risco social depende fortemente do tamanho do contexto urbano. Em grandes cidades, a percepção de risco é maior, porém é diminuída inversamente ao aumento de senso de comunidade. Dessa forma, o senso de comunidade e a boa relação com a vizinhança podem ser fatores de proteção ao sentimento de insegurança. A relação entre vizinhança e diminuição da percepção de risco não foi completamente verificada no estudo dos autores, somente quando comparada ao tamanho do contexto.
A presença de áreas verdes é também associada à percepção positiva da vizinhança, uma vez que, em locais de tráfego intenso, a percepção de risco dos pais diminui com a presença de vegetação (PREZZA et al., 2005). Essa relação é explicada pelo fato de a presença de áreas verdes suscitar sentimento de proteção, sendo considerada por mães e educadores como uma característica importante em contextos adaptados para crianças. Na verdade, os resultados concluem que, onde há tráfego sem área verde, a criança estaria duplamente à mercê de riscos físicos, por meio de acidentes e doenças adquiridas pela poluição do ar.
Veitch, Salmon e Ball (2009) objetivaram desenvolver e testar a confiabilidade e a validade dos itens de pesquisa que examinam a frequência com que crianças em idade escolar primária utilizam locais ao ar livre. Os pais relataram o número de dias e horas que o filho passou jogando em espaços ao ar livre (ou seja, quintal em casa, própria rua, parque infantil), diferenciando dias de semana e final de semana, durante uma semana típica. Os resultados do estudo sugerem que a pesquisa foi, em geral, um instrumento válido e confiável para avaliar a frequência com que as crianças em particular jogam em espaços ao ar livre, especialmente no quintal de casa ou na rua.
Pode-se observar que alguns estudos tinham seu foco na percepção parental, contudo, não deixavam de explorar as características das crianças e do ambiente explorado. A preocupação com a investigação dos múltiplos fatores que cercam a relação crianças e espaços públicos urbanos é percebida na tentativa de construção de instrumentos que possam retratar, em suas várias facetas, essa realidade.
A percepção da criança como aspecto interveniente em seu comportamento de uso dos espaços urbanos
A percepção ambiental das crianças usuárias dos espaços urbanos é o tema do último eixo temático desta pesquisa. Todos os estudos encontrados sobre a relação percepção da criança e uso dos espaços têm como pano de fundo a preocupação de como as características do espaço, percebidas pelas crianças, podem favorecer a atividade física delas (HUME; SALMON; BALL, 2005, 2007; CHERNEY; LONDON, 2006; MIN; LEE, 2006; ANTHONY; NICOTERA, 2008; CASTONGUAY; JUTRAS, 2009; LEGENDRE, 2010). Houve uma predominância, contudo, de estudos sobre as preferências das crianças por determinados espaços e as características físicas e sociais que explicam essa escolha (HUME; SALMON; BALL, 2005, 2007; MIN; LEE, 2006; CASTONGUAY; JUTRAS, 2009; LEGENDRE, no prelo). Os demais autores investigaram a percepção da criança e o uso dos espaços a partir de características pessoais como sexo e idade (CHERNEY; LONDON, 2006).
Min e Lee (2006) constataram que as crianças desenvolvem a maioria de suas funções psicológicas em espaços ao ar livre do bairro, como as áreas designadas para brincadeira e os parques urbanos. Esses autores elegem os lugares, porque cada um oferece algum atributo ambiental – espacial, físico e social – que dá suporte ao comportamento que crianças escolhem para se engajar. Os cenários que as crianças mencionaram ser importantes eram usados mais frequentemente e apresentavam uma maior variedade de comportamentos, sobretudo em grupo, além de proporcionarem às crianças um senso mais apurado da dimensão de seu próprio território. Os resultados apontaram que os espaços públicos ao ar livre, como o bairro e os parques infantis, emergiam como lugares importantes para as crianças.
Resultados semelhantes são encontrados por Hume, Salmon e Ball (2005), que investigaram as percepções da criança de seus ambientes e examinaram as associações entre essas percepções e o nível de atividade física. A amostra constituída por 147 crianças de 10 anos foi avaliada a partir de mapas da casa e do bairro. Uma amostra de crianças fotografou lugares e coisas nos ambientes que eram importantes para elas. Os mapas foram analisados a partir de temas e frequência com que objetos específicos e locais apareceram. A atividade física foi medida com o uso de acelerômetros. Os locais preferidos foram a casa e dois espaços do bairro, sendo a preferência explicada pelos atributos dos espaços, como oportunidades de atividade física e interação social, presença de comércio alimentício e espaço verde. Os resultados destacaram a importância potencial dos ambientes de casa e do bairro para promover o comportamento de atividade física.
Hume, Salmom e Ball (2007), em pesquisa subsequente, examinaram as associações entre percepções das crianças do ambiente bairro e a atividade física e a pé. O estudo transversal, com uma amostra de 280 crianças com 10 anos, de escolas de ensino fundamental em Melbourne, na Austrália, avaliou as percepções das crianças quanto aos atributos físicos e sociais do ambiente do bairro. A atividade física foi medida por acelerômetros. Os autores concluíram que vários fatores ambientais diferentes foram associados com atividade física e o deslocamento a pé. Percepções do ambiente do bairro foram mais fortemente associadas com as caminhadas das meninas do que com suas atividades físicas mensuradas.
Castonguay e Jutras (2009), com base em estudos com crianças de 7 a 12 anos, identificaram os locais de brincadeira de que elas mais e menos gostavam, e os espaços próximos e a casa de pessoas conhecidas (familiares) foram os favoritos. As crianças perceberam negativamente os lugares que são centros de risco e insegurança e distinguiram lugares favoritos pelo maior número de características positivas e atividades que eles ofereciam. Os lugares de que gostavam podiam variar, ainda, em função da idade da criança e grau de vegetação.
Legendre (no prelo) também procurou identificar os locais que favoreciam os jogos das crianças em ambientes urbanos. A pesquisa foi conduzida com 390 crianças, de 6 a 11 anos, que frequentavam uma escola primária de uma pequena cidade da área suburbana de Paris. As respostas das crianças sobre os lugares que declararam como importantes foram analisadas e distribuídas em uma classificação hierárquica ascendente. A classificação foi relacionada à idade e ao sexo das crianças, bem como à localização e ao tipo de habitação. Os resultados mostraram que parques públicos cumprem um papel importante nos jogos ao ar livre de crianças em idade escolar.
Diferenças quanto ao gênero e à preferência de brinquedos e jogos de crianças foram o foco do estudo de Cherney e London (2006). O estudo avaliou as respostas de 60 meninos e 60 meninas sobre seus brinquedos favoritos, programas de televisão, jogos de computador e atividades ao ar livre. Os resultados mostraram que o sexo foi um fator significativo. Em geral, meninos passaram mais tempo em atividades de lazer ao ar livre que meninas, e estas gastaram mais tempo assistindo à televisão. Resultados de um índice entre atividade de homens e mulheres indicaram que as preferências de lazer dos meninos tornam-se um pouco mais masculinas com a idade. Para as meninas, as preferências por shows de televisão tornaram-se mais femininas com a idade, mas as preferências por brinquedos, jogos de computador e esporte tornaram-se menos femininas. Os resultados sugerem que essas preferências podem proporcionar oportunidades diferenciadas para o desenvolvimento de habilidades visuoespaciais, realização, iniciativa, autorregulação e habilidades sociais entre os gêneros.
Considerações finais
O presente estudo teve como principal objetivo investigar os fatores que têm sido apontados pelos pesquisadores como intervenientes no uso dos espaços públicos pelas crianças. Para isso, foram analisados os artigos publicados no período de 2005 a julho de 2010, em duas bases de dados (Science Direct e PsycNet). A Science Direct é uma base de dados multidisciplinar, enquanto a PsycNet é uma base de dados na área da psicologia. Dessa forma, buscou-se ter uma visão geral dos últimos estudos publicados sobre a temática do uso dos espaços públicos pelas crianças, tanto pelas ciências sociais e da saúde de modo geral quanto pela psicologia em específico.
Ao retomar o objetivo da revisão bibliográfica, observou-se como resultado o predomínio de alguns fatores apontados pelos artigos encontrados: disponibilidade de áreas públicas de lazer, presença de áreas verdes, proximidade dessas áreas das residências dos usuários, preferência e percepção das crianças, percepção de risco dos pais e relação dos pais e das crianças com a vizinhança. Portanto, a relação crianças-espaços urbanos envolve variáveis múltiplas e complexas que podem apresentar interferência direta, como a percepção da criança, e/ou indireta, como as políticas públicas de lazer que determinam a oferta e configuração desses espaços no comportamento de uso deles.
Pôde-se observar também que o eixo temático que agrupou os estudos referentes ao contexto sociofísico dos espaços urbanos como aspecto interveniente no comportamento de uso das crianças foi o que obteve o maior número de artigos encontrados. Destes, a maioria estava disponibilizada na base de dados da Science Direct, indicando como as ciências em geral vêm abordando essa temática. Também contribuíram para esse total os estudos publicados pela psicologia ambiental, pois essa disciplina possui como foco de estudo a relação pessoa-ambiente vista de forma bidirecional, ou seja, compreende que uma dimensão é tão importante quanto a outra nos resultados da relação estabelecida entre o espaço pesquisado e seus usuários. Em contrapartida, os estudos identificados na base de dados específica da psicologia (PsycNet) contribuíram com o escopo dos eixos temáticos da percepção parental do bairro e da vizinhança e da percepção da própria criança usuária dos espaços destinados ao lazer. Ou seja, ilustraram uma tendência da psicologia, em geral, de focar sua análise na dimensão da pessoa em detrimento dos aspectos sociofísicos do ambiente.
Enfim, com base nos resultados, este trabalho, mesmo limitado em escopo, permitiu apresentar alguns indicativos, sendo o principal a necessidade de compreensão e sistematização dos fatores intervenientes no uso dos espaços públicos de lazer pelas crianças na atualidade. A identificação desses fatores auxilia no conhecimento sobre como organizar esses espaços, a fim de maximizar as chances de torná-los mais adequados às necessidades das crianças.
Em decorrência desta análise primeira, verificaram-se diferentes tendências nos estudos encontrados nas bases de dados da Science Direct e PsycNet, mostrando que, na área da saúde, predomina a investigação dos aspectos físico-sociais intervindo no uso dos espaços pelas crianças, enquanto, nas áreas humanas, principalmente na psicologia, predomina a investigação da percepção do usuário sobre esse uso.
Considerando as limitações da amostra analisada, pois ela se restringiu a duas bases de dados internacionais, encorajam-se pesquisas futuras no exercício da análise de bases de dados mais específicas das áreas da psicologia do desenvolvimento e psicologia ambiental. Sugere-se ainda que estudos posteriores incluam em sua análise o modelo teórico e metodológico utilizado pelos autores nos artigos. Pôde-se perceber, durante a revisão bibliográfica, apesar de este não ser o objetivo da presente pesquisa, que os modelos teóricos e metodológicos utilizados são diversificados, mas pouco integrativos. Entende-se que com essas sugestões os resultados seriam enriquecidos quanto ao aprofundamento e à sistematização dos fatores que intervêm na relação crianças-espaços públicos.
Referências
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Tramitação
Recebido em março de 2009
Aceito em abril de 2010