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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.15 no.3 São Paulo dez. 2013

 

PSICOLOGIA CLÍNICA

 

Revisão crítica sobre conflitos éticos envolvidos na situação de suicídio

 

Critical review about ethical conflicts related to suicide

 

Revisión crítica de los conflictos éticos implicados en el suicidio

 

 

Maria Julia Kovács

Universidade de São Paulo - São Paulo - SP - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo tem como objetivo fazer uma revisão crítica sobre suicídio e os conflitos éticos envolvendo o tema. São apresentados dados epidemiológicos, manifestações do comportamento suicida entre jovens e idosos, definições e questões vinculadas à sua prevenção. Discute-se a abrangência e complexidade do tema e como respos-tas simplistas e definitivas podem levar a erro. Aponta-se que o suicídio pode ser uma das formas de enfrentar o sofrimento. A opção existencial do suicídio é ilustrada, trazendo como exemplo duas histórias verídicas: o escritor Andrew Solomon e Ramón Sampedro, autor do livro Cartas do inferno. Profissionais de saúde podem ter como ação terapêutica: impedir a todo custo que o ato suicida ocorra ou compreender o sofrimento humano, que pode levar ao ato suicida como forma de acabar com a dor. Esse é o conflito principal que envolve a questão do suicídio e os profissionais de saúde.

Palavras-chave: suicídio; prevenção; ética; profissionais de saúde; morte.


ABSTRACT

The article proposes a critical review about suicide and ethical conflicts concerning the subject. Epidemiological data, definitions and expressions of suicide among adolescents and elderly people are presented and prevention interventions are discussed. The amplitude and complexity of the subject are discussed and how simplistic and conclusive answers can lead to error. Suicide can be considered as an existential option to deal with pain and suffering, as considered by writer Andrew Solomon and Ramón Sampedro, who wrote the book Letters from hell. Health professionals may have the therapeutic action: to prevent at all costs the suicidal act or to understand the human suffering, which can lead to the suicidal act as a form of ending pain. This is the main conflict surrounding the issue of suicide and health professionals.

Keywords: suicide; prevention; ethics; health professionals; death.


RESUMEN

El artículo tiene como objetivo hacer una revisión crítica acerca del tema del suicidio y conflictos éticos relacionados con el tema. Son presentados datos epidemiológicos y manifestaciones de conducta suicida entre jóvenes y viejos y definiciones y cuestiones relacionadas con prevención. Se discute el alcance y complejidad del tema y como respuestas simplistas pueden conducir a error. Se argumenta que el suicidio puede ser una manera de abordar el sufrimiento. La opción está representada pelo suicidio existencial; trayendo como ejemplos dos historias reales: el autor Andrew Solomon y Ramón Sanpedro, que escribió el libro Cartas desde el infierno. Profesionales de la salud pueden tener dos acciones terapéuticas: evitar a todo costo el acto suicida o entender el sufrimiento humano que puede conducir al acto del suicidio como forma de acabar con el dolor. Este es el principal conflicto en torno al tema de los profesionales y el suicidio.

Palabras clave: suicidio; prevención; ética; profesionales de la salud; muerte.


 

 

Este artigo tem como objetivo propor uma revisão crítica sobre suicídio e os conflitos éticos que envolvem o tema, considerando também os questionamentos vividos por profissionais que atendem pessoas com ideação e tentativa de suicídio.

Morte é tabu, e o suicídio é o tema mais complexo nesse espectro de interdição. Explicações simplistas levam a erro e intervenções rápidas sem reflexão, podem causar intenso sofrimento. Levy (1979) define suicídio como autoeliminação consciente, voluntária e intencional. Num sentido mais amplo, o autor inclui os processos autodestrutivos, inconscientes e crônicos.

A intencionalidade da ação destrutiva é aspecto distintivo do suicídio, devendo se considerar a impossibilidade da reversão do método empregado no ato suicida e sua letalidade. Há graduação da intencionalidade do ato suicida que envolve: desejo de morrer, ideação constante, comunicação sobre a intencionalidade de se matar, tentativa e o ato suicida. Em muitos casos, observa-se a ambivalência entre o desejo de viver e morrer (Kovács, 1992).

Schramm (2002) discute a questão da desapropriação da morte quando se busca salvar vidas a todo custo, sem disponibilidade para ouvir o desejo de morrer e finalizar a vida. Pessini (2006) afirma que o suicídio pode ser considerado como holocausto silencioso, matando mais que algumas guerras ou desastres naturais. Para cada suicídio, há quatro tentativas, e é justamente aí que a intervenção dos profissionais de saúde mental é fundamental.

O Portal de Saúde da Organização Mundial da Saúde apresenta dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Sistema Único de Saúde (SUS) de 2001-2008. Ocorreram 73.261 mortes por suicídio nesse período, o que corresponde a 22 suicídios por dia. No Brasil, são computados 4,5 por 100 mil habitantes. É importante ressaltar que nesses números estão incluídas as notificações de suicídio, e não os acidentes. Camargo (2007), ao apresentar dados da Organização Mundial da Saúde, informa que em 2020 poderá haver 1,53 milhão de suicídios, índice de mortalidade maior do que guerras e acidentes de trânsito. Entretanto, cabe destacar que estatísticas nem sempre traduzem a realidade da situação, acidentes e mortes resultantes de comportamentos autodestrutivos não são computados como suicídio, uma forma de proteção à memória do falecido e à vergonha ou culpa da família, como apontam Benincasa e Rezende (2006).

Botega (2007) afirma que o suicídio é problema de saúde pública. No Brasil, houve aumento de 60% de casos, apontando para a necessidade de criação de políticas nacionais para prevenção e cuidados a pessoas com ideação ou tentativa de suicídio. Observa-se aumento significativo de suicídios entre 1994 e 2004, principalmente na faixa etária dos 15 aos 25 anos. O autor lembra que o Brasil é o único país da América Latina com programa de prevenção de suicídio em âmbito nacional.

Borges e Werlang (2006) realizaram estudos em Porto Alegre e constataram que mulheres com depressão e desesperança, cujos amigos tentaram suicídio, apresentavam maior ideação suicida, como se houvesse contágio.

Estudos realizados por Grubits, Freire e Noriega (2011) confirmam dados obtidos em outros países. No Brasil e em países da América Latina, há predomínio do suicídio entre homens e ideação e tentativas entre mulheres, com índices maiores entre pessoas solitárias. Os autores realizaram estudos com indígenas guaranis e kaiowaas, considerados como grupo de risco, e observaram influência da pressão ambiental e coletiva no ato suicida. Há semelhança entre suicídio de indígenas jovens e os da metrópole, que vivenciam desintegração cultural, exclusão, desorganização sem possibilidade de viver seus ritos de iniciação. É frequente o suicídio por enforcamento entre indígenas. Os autores apresentam a hipótese da superpopulação: como as terras desses indígenas foram invadidas, eles tiveram de deixar de lado os valores da própria cultura, não aceita pelos brancos. Esse é um problema importante a ser considerado nas políticas de prevenção do suicídio no Brasil.

Fensterseifer e Werlang (2006) discutem processos autodestrutivos como resposta aos valores da sociedade pós-moderna. Condutas violentas surgem para deter o fluxo do desprazer ao lidar com impotência e desamparo. Há valorização da liberdade individual, e o sofrimento pode estar relacionado com a obrigatoriedade de sentir prazer. O sentimento de desenraizamento envolve perda de referenciais simbólicos, gerando insegurança. Os autores se fundamentam em Freud para compreender a destrutividade como sintoma para lidar com o ambiente hostil, enfrentar a dor psíquica e o desamparo, podendo levar ao ato suicida.

Segundo Cassorla (2004), suicídio e comportamentos autodestrutivos têm amplo espectro, incluindo a morte de si mesmo, exposição a condutas de risco, falta de cuidados na doença, intoxicação, desastres, entre outros.

A intencionalidade do ato pode indicar que se está no campo do suicídio propriamente dito. Entretanto, processos autodestrutivos, por vezes, inconscientes, não considerados como suicídio podem levar à morte. Índices de suicídio não incluem casos em que se observa a intencionalidade para o suicídio, mas a morte não ocorre. Para o autor, na ideação e na tentativa de suicídio, há ambivalência entre o desejo de morrer e de viver, com intensidades diferentes. Estão presentes aspectos inconscientes nas reações de aniversário e datas relacionadas à morte de pessoas próximas, o que pode resultar em depressão, desejo de morrer, adoecimento ou ações de risco.

Há diversos elementos que podem estar relacionados a atos suicidas, como é o caso da doença mental. Diferente é o ato suicida relacionado a feitos heroicos. Associar atos de "homens-bomba" ou pilotos kamikazes com o suicídio pode levar a uma interpretação simplista, ao não se considerar a influencia de fatores culturais. Como classificar greves de fome, ações de risco ou imolações? É mais importante compreender a dinâmica do processo e suas dimensões variadas do que rapidamente classifi-cá-lo como suicídio.

Solomon (2002) se refere a quatro tipos de suicídio: 1. atos nos quais impera a impulsividade, como forma de expulsar a dor; 2. ações em que predomina a busca de alívio e consolo pela morte; 3. processos em que a morte é considerada como a única saída para o sofrimento e forma de aliviar o fardo de pessoas próximas; 4. planejamento racional do suicídio. Para o autor, o suicídio é solução duradoura para um problema que poderia ter outras saídas.

Menninger (1965) se refere ao desejo de matar, morrer e ser morto, envolvendo agressividade, punição ou erotismo. Se os três elementos não estiverem presentes, emergirão formas incompletas ou paradoxais de suicídio. Cito como exemplos: na falta do desejo de morrer, a pessoa pode cometer o ato suicida e depois pedir ajuda para ser salva. Se não houver desejo de matar, a pessoa falará repetidamente de sua vontade de morrer, mas não terá coragem para executar o ato.

Cassorla (2004) menciona as principais fantasias observadas em pacientes com ideação ou tentativa de suicídio: 1. busca de outra vida; 2. reencontro com a pessoa querida, fato observado pelo aumento do índice de mortes após viuvez; 3. autopunição, ligada à experiência de culpa em pessoas com melancolia; 4. vingança e punição, como forma de castigar pessoas próximas; 5. pedido de ajuda, a comunicação do que não pode ser expresso. É muito importante considerar as fantasias de pessoas com ideação ou tentativa de suicídio para compreensão do processo vivido.

Dados epidemiológicos citados por Botega (2007) apontam a migração das taxas de suicídio para fases mais jovens. Embora o Brasil não esteja entre os países com maiores índices de suicídio, o problema tem aumentado nas grandes cidades brasileiras, entre jovens do sexo masculino em situação de risco e em adolescentes do sexo feminino, gestantes e moradoras de rua. Segundo o autor, há forte associação entre transtorno mental, questões existenciais, solidão, desamparo e impotência. Cassorla (2004) aponta que jovens podem cometer suicídio como forma de buscar uma nova vida, excitação, pedido de ajuda ou para comunicar que algo não vai bem.

É fundamental discutir o assunto com os jovens, a fim de buscar possíveis explicações para o aumento dos índices de suicídio observado entre eles e verificar que intervenções e cuidados consideram importantes.

O grupo com o maior índice de suicídios, segundo dados do Portal da Saúde do Ministério da Saúde (2012), são idosos e pessoas institucionalizadas. Hennezel (2000) refere que idosos expressam seu desejo de morrer, não se alimentam, ficam em casa, buscando segurança como forma de lidar com angústias que a proximidade da morte provoca. Para a autora, é fundamental respeitar o idoso e oferecer maternagem e toques acolhedores.

Para alguns idosos, o sentimento de inutilidade provoca o desejo de morrer. Pla-nejar a morte pode proporcionar sensação de controle da vida, como resposta ao desinvestimento social. De acordo com Lépargneur (2004), pacientes idosos podem ser considerados como "pedaço de carne numerado", uma morte social. Então, buscam o suicídio como forma de encerrar a vida, sentida como indigna.

 

Suicídio, eutanásia e suicídio assistido - questões éticas

Pode-se estabelecer associação entre suicídio e eutanásia no que concerne ao desejo de morrer, uma tentativa de planejar a morte para aliviar o sofrimento. Eutanásia é passível de punição legal para quem realiza o ato, e o suicídio não é considerado crime, mas ainda é visto como transgressão religiosa e social. Do ponto de vista da medicina, o suicídio é associado a doença psíquica, pois a mesma pessoa que deseja morrer provoca a própria morte. Na eutanásia, o pedido é feito por uma pessoa para que outra execute o ato de matar.

A recusa de tratamentos com pouco benefício à custa de grande sofrimento não deve ser associada ao suicídio, mas pode-se estabelecer a proximidade com um dos componentes do suicídio pelo desejo de morrer, como mencionado por Menninger (1965). Interferir no processo de morte como decorrência de doença e de seu agravamento não seria uma forma de assassinato da boa morte? Costa (2005) aponta o direito de as pessoas decidirem sobre o final da própria vida. Trata-se de uma forma de lutar contra a distanásia, como questão ética, atualmente grande desafio para profissionais de saúde. Não se deveria permitir que a morte fosse acompanhada de flagelo ou violação da dignidade.

Uma forma de suicídio assistido ocorre na clínica Dignitas, na Suíça, onde pessoas pedem para que se apresse a morte. Trata-se da fronteira entre eutanásia e suicídio assistido, este último com intervenção da pessoa ao final do ato.

Houve diminuição de pedidos de eutanásia e suicídio assistido de pacientes gravemente enfermos em programas de cuidados paliativos. Nesses programas, procede-se ao alívio de sintomas incapacitantes, preservação da dignidade e autonomia dos pacientes e cuidados nas esferas clínica, social, psicológica e espiritual.

 

Suicídio - fuga da dor psíquica

Cassorla (1991) aponta que, diante da desintegração psíquica, da sensação de aniquilamento, a morte pode ser forma de escape, o que pode justificar o maior índice de suicídios entre pessoas com depressão e esquizofrenia. Menninger (1965) observa que a opção pelo suicídio pode ser menos dolorosa do que a melancolia. O suicídio é uma das formas de matar a depressão e o sofrimento, e segundo Solomon (2002), uma forma de amor a si.

Questionamos se pessoas com ideação ou tentativa de suicídio comunicam a intencionalidade de se matar. Algumas questões devem ser observadas: isolamento, redução drástica das atividades cotidianas, conclusão de assuntos pendentes, testamento solidão, desamparo e incompetência (Portal da Saúde do Ministério da Saúde, 2012).

 

Suicídio e cuidados - profissionais de saúde

Dados do Portal da Saúde do Ministério da Saúde (2012) indicam que 40% das pessoas que cometeram suicídio procuraram postos de saúde e encontraram nessas instituições: escuta, empatia, suporte, mas também julgamento, críticas e desprezo. Estes últimos exacerbam o sofrimento, isolamento e desamparo. Os profissionais de saúde captam o lado agressivo do suicídio e podem senti-lo como ataque, porque foram formados para salvar vidas. Quando a pessoa não deseja viver, os profissionais se sentem confusos, pois as premissas de sua vocação são confrontadas. Não seria essa uma razão para considerar a inclusão do tema da morte e sua aceitação como final da existência na formação desses profissionais?

Mesmo com todo o cuidado dispensado, alguns pacientes cometem suicídio quando estão sob cuidados médicos, causando impacto nos outros pacientes, nos familiares e na equipe assistencial, o que provoca sentimentos de culpa, raiva e ansiedade, como apontam Bertolote, Mello-Santos e Botega (2010). Os cuidados, segundo Pessini (2006), não deveriam jamais aumentar o sentimento de culpa na pessoa com ideação ou tentativa de suicídio e em seus familiares. Solidariedade e acolhida são fundamentais, e a escuta é atividade importante a ser desenvolvida em profissionais de saúde.

Suicídios afetam profundamente de cinco a dez pessoas, entre familiares, amigos e profissionais. A família necessitará de cuidados, pois culpa é sentimento presente. O Programa Nacional de Prevenção do Suicídio lançou o Projeto Conviver, incluindo bibliografia sobre suicídio para profissionais que cuidam de pessoas com ideação ou tentativa de suicídio ou de familiares sobreviventes, o que pode ajudar no aperfeiçoamento nos cuidados destinados a essas pessoas.

Fukumitsu (2005) considera que, quando há potencial de suicídio, é importante não deixar o paciente sozinho. O trabalho de acompanhantes terapêuticos ou a internação em instituições especializadas devem ser considerados. É importante ampliar o sistema de apoio, procurando ajudar a família na compreensão dos motivos do ato suicida numa abordagem multidisciplinar. O terapeuta pode não perceber indícios de que o paciente tem potencial suicida. Por isso, o contrato terapêutico precisa ser pensado para resguardar o psicólogo, baseando-se na confiança e relação entre terapeuta e cliente.

 

Suicídio não autorizado

A obra Ética e psiquiatria, coordenada por Luiz Carlos Aiex Alves (2007), aponta subsídios para profissionais de saúde mental, e o capítulo "Suicídio e ética" é de responsabilidade de Ibiracy de Barros Camargo (2007), que arrola os seguintes pontos para discussão:

A psiquiatria tem a obrigação de intervir em atos que possam colocar a vida em risco, preveni-los e interrompê-los.

O sigilo é princípio incluído no código de ética do médico que, em situações de morte ou suicídio, pode ser quebrado.

Anotações em prontuários sobre esses eventos são essenciais.

O título de especialista em psiquiatria inclui 48 habilidades, entre as quais os riscos relacionados a patologias envolvendo suicídio, homicídio e comportamentos de risco. Embora essa especialização seja exigida no caso do suicídio, não há sinal patognomônico específico. Há patologias que têm risco para suicídio, como depressão e esquizofrenia. Segundo Camargo (2007), entrevistas clínicas e o monitoramento contínuo são armas importantes do psiquiatra para prevenir o suicídio. O que se pode observar é que, apesar de todas essas recomendações, ainda é muito difícil contemplar todos os elementos envolvidos em situações em que pessoas apresentam ideação e tentativas de suicídio.

Ainda em relação à identificação de potencial risco suicida, Botega e Rapeli (2002) apresentam subsídios para entrevistas clínicas envolvendo questões sobre ideação suicida e fatores de risco para o suicídio. As entrevistas devem contemplar perguntas sobre intencionalidade e fatores preditivos de repetição da tentativa de suicídio. Indicam o que precisa ser investigado para o tratamento de pacientes em ambulatório.

O problema dos psiquiatras é avaliar o risco do suicídio e discutir as possibilidades de tratamento e seus benefícios. A internação poderá ser decidida mesmo sem a anuência da pessoa. Essa atitude está de acordo com a perspectiva de que a opção pelo suicídio nunca será levada em conta.

Camargo (2007) observa que não há unidades psiquiátricas antissuicídio no Brasil, o que confere à equipe dos serviços de saúde mental uma tarefa difícil. Familiares podem ser convocados a vigiar pessoas com risco de suicídio por 24 horas.

Profissionais buscam fazer alianças com seus pacientes para que estes os procurem quando se sentem ameaçados pela ideação suicida. Esses contatos não têm valor legal, mas são possibilidades de prevenção. O aceite dessa aliança não é garantia, pois o paciente pode concordar para não perder o apoio e cuidado do terapeuta. Solomon (2002) afirma que, nos momentos de impulsividade, pessoas em intenso sofrimento podem não se lembrar desse combinado ou não querer nenhum tipo de ajuda.

Suicídios podem envolver questões legais, pois há mortes envolvidas. É o temor pelos processos judiciais que pode levar profissionais a agir defensivamente, propondo internações forçadas ou medicação tranquilizante e/ou antipsicótica, sem aprofundar a compreensão do sofrimento e da dor da pessoa com ideação ou tentativa de suicídio. Entretanto, o constrangimento da internação ou a medicação forçada também não deveriam ser alvos de processos judiciais por ferirem a autonomia da pessoa em sofrimento? São questões que merecem debate.

Segundo Camargo (2007), os psiquiatras responsáveis pelo cuidado multidisciplinar a pessoas com ideação ou tentativa de suicídio devem fundamentalmente: 1. ter documentação, registros clínicos sobre os pacientes e familiares; 2. proceder à avaliação contínua; 3. estabelecer comunicação constante com pacientes e familiares de forma clara, envolvendo-os no processo; 4. adotar abordagem multidisciplinar; 5. explicitar os motivos da internação, principalmente quando for involuntária.

 

Suicídio e questões bioéticas

Camus (s.d.), na obra O mito de Sísifo, afirma que só há um problema filosófico que realmente importa: discutir se a vida vale a pena ser vivida. Essa é questão fundamental para a psiquiatria e psicologia. Goldim, Raymundo, Francesconi e Macgadi (2004) tecem considerações sobre questões bioéticas relacionadas ao suicídio e os princípios da beneficência e não maleficência, autonomia e equidade, ressaltando que suicídios são fenômenos complexos que envolvem várias disciplinas. Nesse contexto, respostas simplistas devem dar lugar à reflexão e ao debate multidisciplinar.

A proibição do suicídio com base em questões morais fundamenta-se na concepção de que a vida não pertence à pessoa. O suicídio pode ser visto como um homicídio dirigido para dentro. Para os que defendem a autodeterminação humana, o suicídio é direito da pessoa. Goldim et al. (2004) citam Hume que, em 1783 escreveu a obra On suicide, definindo o ser humano como dono de sua vida. A autonomia na decisão sobre suicídio não implica incentivo ou obrigação de se matar.

Suicídios já foram considerados crimes em várias épocas e sociedades. Se for equiparado ao homicídio (Código Penal brasileiro de 1940, artigo 122), ajudar uma pessoa a cometer suicídio é crime, mesmo no caso de pacientes gravemente enfermos em sofrimento. O suicídio do ponto de vista social representa estigma para o sujeito e família, o que faz com que seja acobertado.

O Código de Ética Profissional do Psicólogo (Conselho Federal de Psicologia, 2005-2006) estabelece que psicólogos fundamentem sua conduta com base no respeito, na liberdade, dignidade, igualdade e integridade do ser humano. Devem contribuir para eliminação da negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, e atuar com responsabilidade social, analisando crítica e historicamente a realidade, buscando contínuo aprimoramento profissional. Os artigos 6º, 9º e 10º se referem ao sigilo com a finalidade de proteger a pessoa atendida, resguardando as informações e os fatos conhecidos por meio da relação profissional. Se houver necessidade de quebrar o sigilo, devem ser oferecidos apenas os esclarecimentos necessários para a tomada de decisão, que afete o usuário. O suicídio pode ser uma dessas situações (Zana & Kovács, 2012). Nesse caso, o psicólogo pode decidir pela quebra do sigilo, tendo em vista os princípios fundamentais da ética na busca do menor prejuízo.

Mesmo com essas considerações no Código de Ética, pode haver dúvidas sobre como agir. O que informar no caso de quebra de sigilo? Há diferentes posturas em relação a questões como: o psicólogo deve ou não impedir que pacientes cometam suicídio, avisar os familiares, considerando que a quebra de sigilo pode afetar a relação de confiança entre terapeuta e cliente. Santos (2007) afirma que pessoas que tentam suicídio buscam a confiança e o vínculo com o terapeuta. Na relação psicoterápica, o sigilo e a privacidade são essenciais, porque possibilitam ao paciente falar de sua intimidade na certeza de que será respeitado e protegido. Se o sigilo tiver que ser rompido, no caso de ideação ou tentativa de suicídio, é importante que os contratos terapêuticos sejam claros.

Quando há ideação ou tentativa de suicídio com risco de morte, o psicólogo está autorizado, com consentimento do cliente, a informar à família a situação. A quebra do sigilo é permitida, mas não obrigatória. É preciso pesar que, no afã de evitar o suicídio a todo custo, a escuta pode ficar prejudicada e a relação terapêutica ser rompida.

Heck (1997) problematiza essa questão, ao tratar da posição ética do profissional de saúde, com as considerações de que a pessoa que tenta suicídio tem o direito de se matar ou deve ser impedida, tendo aí como princípio a promoção da vida, considerada como valor absoluto. Apresenta-se o conflito: profissionais de saúde podem ou devem tentar impedir que o sujeito cometa suicídio? Esse autor aponta que a decisão do clínico sobre a atitude da pessoa que tenta suicídio está ligada a muitos questionamentos, com mais incertezas do que certezas. Do ponto de vista bioético, a pessoa tem autonomia em suas ações e decisões, e o profissional de saúde não pode ignorar esse fato. Na maioria das vezes, a pessoa que tenta suicídio está em sofrimento intenso, e a questão fundamental é como diminuí-lo. O autor considera inapropriado se guiar apenas por questões legais, defendendo a posição de compreensão e não condenação da pessoa que tenta suicídio.

Hillman (1993) se refere às diferenças de perspectiva para analistas e profissionais de saúde. Para esse autor, a análise não tem por objetivo promover adaptação social ou julgamentos. Na posição de analista, o psicólogo deve estar aberto à escuta de pessoas com ideação ou tentativa de suicídio, deixando em suspenso crenças, valores e pontos de vista. No entanto, quando o suicídio é o problema em questão, perguntamos: "Como o analista pode manter uma atitude objetiva?". De acordo com Hillman (1993, p. 25-26): "Objetividade significa abertura; e abertura a respeito do suicídio não é uma coisa facilmente conquistada", pois significa "um movimento em direção à morte, de uma maneira franca e sem medo". A investigação analítica não tem por objetivo perdoar ou condenar o suicídio, emitir julgamentos, e sim buscar compreensão. O autor afirma que, embora pareça contrário ao senso comum e à prática médica, "caso se defenda a vida psicológica, como deve fazer o analista, pode ser que se tenha que frustrar a vida física" (Hillman, 1993, p. 32).

Medeiros (2002), ao se referir ao trabalho do psicólogo nas instituições de saúde, indica que há muitas situações que constituem conflitos éticos na relação desse profissional com pacientes, familiares e equipe de trabalho. O que registrar sobre suicídio em prontuários que serão lidos por profissionais de várias especialidades, como proteger a intimidade e privacidade em relação a um tema tão delicado? No entanto, não informar o risco de suicídio poderá ser considerado como omissão de socorro? Como decidir? O Código não oferece respostas às questões apresentadas. Pode ser uma das referências para nortear as atividades dos profissionais da categoria. As particularidades de cada situação exigem reflexão, o que inclui o Código de Ética Profissional do Psicólogo, mas não se restringe a ele.

Outro ponto de referência para o profissional diz respeito a convicções pessoais, valores e princípios individuais, uma ética autônoma. Porém, a autonomia do cliente é o elemento preferencial na relação terapêutica, não cabendo priorizar somente aquilo em que o profissional pessoalmente acredita e os aspectos que valoriza. Ao considerar apenas crenças e valores pessoais, o psicólogo pode induzir a adaptação da pessoa com ideação ou tentativa de suicídio, levando a julgamentos, condenações ou estigma. A preocupação em adaptar a pessoa à sociedade pode levar a prejuízos em relação a uma escuta atenta e cuidadosa.

 

Suicídio pode ser uma saída ao sofrimento a ser legitimada?

Para Schramm (2002), deve-se discutir o direito da pessoa de dispor e dar sentido à vida, buscando dignidade, como forma de preencher o vazio existencial. É a possibilidade de exercer a liberdade e autonomia da forma mais radical. O desejo de morrer realizado como forma de debelar o sofrimento. Uma das questões fundamentais deste artigo é a discussão sobre a legitimação do desejo de morrer. Mas como considerar o desejo de se matar? Haveria diferença de julgamento nas duas situações ou atenuantes para o suicídio, de acordo com o momento vivido pela pessoa? Exemplificando: idosos com doença em estágio terminal ou em sofrimento intenso teriam legitimação e aceitação para encerrar sua vida? E se esse desejo for manifesto por um jovem sem doença física, mas com sofrimento psíquico? Que dor é mais intolerável: a que é provocada por doença com sintomas incapacitantes ou a solidão, o desamparo ou vazio existencial? Como avaliar a intensidade do sofrimento? Desrespeitar o pedido de um idoso para finalização de sua vida não seria também uma forma de matar sua autonomia e desejo de finalizar a existência de forma digna? Considerando o reverso, oferecer morte sem sofrimento não é profundo respeito à dignidade humana?

A pessoa é o supremo juiz de sua vida. É seu olhar e não dos outros que define o que é dignidade. Será que uma pessoa pode ser obrigada a viver? É possível julgar o processo de morrer escolhido pela pessoa? Suicídio não é mais penalizado, mas ainda se responde a ele como se fosse crime dispor da própria vida. A morte não é ato médico, mesmo que caiba a esse profissional constatar sua ocorrência. A escolha da morte é um ato da pessoa, e solidariedade, bem como compaixão, fazem parte do processo. Será que elas valem também quando o processo é o suicídio?

Ramón Sampedro (2005), no Cartas do inferno, discute o direito de escolher a morte quando a vida fica indigna. Esse livro foi base para o filme Mar adentro, de Alejandro Amenábar. No prólogo do livro, Sampedro (2005, p. 5) relata o mergulho que resultou na sua tetraplegia: "Desde esse dia sou uma cabeça viva em um corpo morto. Se fosse um animal teria sido sacrificado como um sentimento humano nobre".

Declara que o tetraplégico é um ser morto crônico e que reside no inferno, daí o título do livro. O que importa para ele é a liberdade do ser humano perante a vida e a morte. A família e os amigos não conseguiam compreender seu drama e, por amor, queriam impedir a sua morte, mantendo-o no seu inferno pessoal. Pelas limitações motoras decorrentes da tetraplegia, não conseguia efetuar o ato suicida. A solução encontrada foi pedir eutanásia como direito pessoal a uma boa morte. Ficou perplexo com o grau de intolerância dos representantes da religião, do Estado e da lei. Sampedro (2005) endereça cartas veementes que foram compiladas e compõem o livro citado. Afirma que o autoengano do ser humano diante da morte leva a atitudes irracionais de intensa negação na contemporaneidade. A liberdade como valor máximo deve permitir a decisão sobre o final da vida.

Apresento alguns trechos do livro para reflexão. Quando ocorreram o mergulho e a batida da cabeça no fundo de areia, se expulsasse o ar dos pulmões, teria morte suave. Mas foi salvo, e aí começou o inferno, segundo as palavras do autor. Manda um recado aos profissionais de saúde para que trabalhem sobre o direito da pessoa renunciar a certos estados de decrepitude humilhante prolongados artificialmente. Ao conversar com uma amiga, afirma que desejar a eutanásia não significava estar deprimido, e sim deixar a razão prevalecer:

Não aceito a vida sem a mínima liberdade de movimento que dê a meu corpo a possibilidade de sobreviver por mim mesmo. Sem essa liberdade mínima não se pode sentir feliz ou alegre (Sampedro, 2005, p. 78).

Pessoalmente, penso que para tolerar a eutanásia ou o direito de morrer com dignidade é preciso amar de verdade as pessoas e a vida e ter um profundo sentido de bondade (Sampedro, 2005, p. 82).

A vida só é racional enquanto for prazeroso e voluntário o fato de vivê-la. Não há ato mais cruel do que o de proibir à pessoa o direito de se libertar do sofrimento, ainda que isso implique em ajudá-la a morrer (Sampedro, 2005, p. 117).

Um dos grandes erros filosóficos é negar ao indivíduo o direito de renunciar à sua vida. Isso significa que nunca se quer reconhecer que a vida é sua propriedade, que é livre e adulto [...] o direito de nascer parte de uma verdade, o desejo de prazer; o direito de morrer parte de outra verdade, a de não sofrer (p. 162).

Ninguém é dono de sua vida se não tiver o direito de renunciar a ela [...]" (Sampedro, 2005, p. 169).

Eu recorri a juízes, solicitando o direito e a liberdade pessoais que, no meu entender, a Constituição me garante [...] ou supõe-se que, se tenho direito à vida, devo ter ou deveria ter direito à morte, à minha dignidade, minha personalidade (Sampedro, 2005, p. 204).

Vemos nesse discurso de Sampedro (2005), sobre sua história real, questões importantes a serem discutidas. A sua última opção foi o suicídio assistido. Ele não conseguiu o direito à eutanásia, pedida porque não tinha como realizar o ato suicida. Escolheu a forma de realizar seu intento, com a ajuda de uma amiga, que foi julgada pelo crime, atenuado pela intencionalidade claramente declarada de Sampedro (2005). Assim foi consumada sua morte pelo suicídio assistido.

Andrew Solomon (2002) relata, em seu livro O demônio do meio-dia, o processo de depressão e a experiência pessoal e familiar com o suicídio. A mãe do autor, a qual tinha câncer e múltiplos sintomas, cometeu suicídio de forma racional e planejada com a concordância da família. Solomon (2002) é adepto da liberdade da pessoa, inclusive em relação à obrigação de viver. Ao citar Thomas Szasz, referência na área da antipsiquiatria, afirma que o suicídio é direito da pessoa. Com relação ao suicídio da mãe, afirma que ela teve um final de vida digno depois de sofrer muito com sua doença em estágio terminal. Com a diminuição da ansiedade, teve tranquilidade para viver o término da vida com a família. Houve dúvidas e conflitos, mas os membros da família puderam realizar suas despedidas e compartilhar sentimentos. A decisão foi tomada com lucidez e não foi resultante de um quadro depressivo. Estava em casa, pois no hospital não teria a privacidade necessária.

De acordo com Solomon (2002), o que o aterroriza é perder a capacidade de cometer suicídio. Nesse aspecto, há concordância com Sampedro (2005), que havia perdido a possibilidade de executar o final de sua vida em função da tetraplegia. Não poder sair de uma vida com sofrimento, degeneração ou indignidade pode ser visto como prolongamento da dor. Solomon (2002) relata que seu terapeuta combinou com ele que não deveria cometer suicídio enquanto estivesse em tratamento. Questiona como pessoas desesperadas, assustadas ou com medo podem dar essa garantia. Seria como pedir a uma pessoa que tivesse pneumonia para não tossir, enquanto está em tratamento.

Apresento a seguir a carta a uma médica, escrita por Ramón Sampedro (2005, p. 148):

Sem sequer me olhar, diz muito séria que quero morrer porque estou deprimido [...] querida senhora não escuta ou não entende nada de amor e respeito. Eu peço a liberdade e não conselhos [...] Conheço a mim mesmo melhor do que a senhora jamais poderá conhecer.

Podemos observar nessas palavras de Sampedro (2005) o quanto a compreensão mais profunda sobre o desejo de morrer de forma digna, a autonomia, o controle sobre a própria existência ainda necessitam de reflexão e debate. Neste artigo, tentamos focalizar algumas questões que deverão ser aprofundadas na formação de profissionais de saúde e num processo de educação continuada, as quais se referem às formas de cuidado a pessoas com ideação e/ou tentativa de suicídio e seus familiares nas instituições de saúde e nos consultórios. É urgente também que os conselhos regionais e federais de medicina e psicologia proponham grupos de estudos e orientação a profissionais que cuidam desses clientes.

 

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Endereço para correspondência:
Maria Julia Kovács
Universidade de São Paulo, Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade
Avenida Mello Moraes, 1.721, Cidade Universitária
São Paulo - SP - Brasil. CEP: 05508-900
E-mail: mjkoarag@usp.br.

Submissão: 01.08.2012
Aceitação: 06.09.2013