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Psicologia: teoria e prática
versão impressa ISSN 1516-3687
Psicol. teor. prat. vol.15 no.3 São Paulo dez. 2013
PSICOLOGIA SOCIAL
O acolhimento institucional na perspectiva da nova Lei de Adoção
Institutional shelter in the perspective of the New Adoption Law
La acogida institucional bajo la perspectiva de la Nueva Ley de Adopción
Milena Leite Silva; Dorian Mônica Arpini
Universidade Federal de Santa Maria - Santa Maria - RS - Brasil
RESUMO
Este estudo foi realizado com oito psicólogos e assistentes sociais que trabalham em instituições de acolhimento institucional em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, com o objetivo de compreender a visão destes profissionais sobre o acolhimento institucional, a partir da vigência da nova Lei Nacional de Adoção. O método utilizado foi a entrevista semidirigida de questões abertas, e os resultados foram analisados por meio da análise de conteúdo. Os resultados evidenciam que o acolhimento institucional é compreendido pelos profissionais como um misto de fracassos e superações, destacando-se um movimento de transformação de práticas antigas referentes aos orfanatos, incentivado pela nova Lei Nacional de Adoção. As considerações finais indicam importantes mudanças no cenário da institucionalização de crianças e adolescentes no contexto atual, ao mesmo tempo que evidenciam a presença de práticas e modelos historicamente construídos. Reconhecer a presença dessas práticas é um dos caminhos para superá-las.
Palavras-chave: abrigo; leis; crianças; adolescentes; profissionais.
ABSTRACT
This study was carried out with eight psychologists and social workers who work in institutional shelters in a city in the interior of Rio Grande do Sul, with the purpose of understanding their views regarding the shelter, since the implementation of the New Adoption Law. The method applied was the semi directed interview with open questions and the results were analyzed by content analysis. Results evidence that institutional shelter is understood by the professionals as a midst of failure and overcoming, highlighting the movement of transformation of past practices referred to the orphanages, encouraged by the new National Adoption Law. Final considerations emphasize important changes in the scenery of institutionalization of children and adolescents in such context, and at the same time evidence the presence of practices and models historically built. Recognizing the presence of such practices is a path to overcome them.
Keywords: shelter; laws; children; adolescents; professionals.
RESUMEN
Este estudio fue realizado con ocho psicólogos y asistentes sociales que trabajan en los centros de acogida institucional en una ciudad del interior del Rio Grande do Sul, Brasil, con el objetivo de comprender sus visiones acerca sobre la acogida institucional, a partir de la vigencia de la nueva Ley Nacional de Adopción. El método utilizado fue la entrevista semi-dirigida con preguntas abiertas y los resultados analizados mediante el análisis de contenido. Los resultados muestran que la acogida institucional es comprendida por los profesionales como una mezcla de fracasos y superaciones, destacandose un movimiento de transformación de prácticas antíguas referentes a los orfanatos, incentivado por la nueva Ley Nacional de Adopción. Las consideraciones finales indican cambios importantes en el escenario de la institucionalización de niños y adolescentes en el contexto actual, mientras que pone de manifiesto la presencia de prácticas y modelos históricamente construidos. Reconocer la presencia de esas prácticas es uno de los caminos para superarlas.
Palabras clave: centros de acogida; leyes; niños; adolescentes; profesionales.
Os caminhos percorridos para o atendimento à infância e adolescência no Brasil foram marcados por diferentes orientações, as quais estiveram associadas às concepções de infância e adolescência vigentes em cada época. A primeira legislação relativa às crianças e aos adolescentes do país foi o Código de Menores de 1927, embasado na doutrina da situação irregular. A doutrina explicitou o domínio jurídico sobre as questões da infância e da adolescência e fortaleceu o caráter tutelar assumido pelo Estado, legitimando práticas de exclusão por meio de medidas aplicadas indistintamente aos menores infratores, carentes ou abandonados, os quais eram institucionalizados (Rizzini & Rizzini, 2004; Silva & Mello, 2004), não sendo diferenciadas situações decorrentes de ato infracional, maus-tratos perpetrados pela família ou abandono social (Janczura, 2008). Uma nova legislação surgiu em 1979, o Novo Código de Menores, que, na realidade, reafirmou a doutrina da situação irregular.
As antigas instituições ficavam isoladas da comunidade, eram fechadas e tinham no seu interior todas as "necessidades" de que os menores precisavam dispor, de modo a evitar que eles convivessem na sociedade (Baptista, 2006). A dinâmica das instituições permaneceu até a entrada do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (1990), baseado na supressão da intimidade e da individualidade.
Com o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), as orientações anteriores de cuidados às crianças e aos adolescentes, marcadas pelo assistencialismo e pelo tratamento pouco individualizado, começam a se alterar, transformando crianças e adolescentes em sujeitos de direitos e de proteção. Reafirma-se, por meio do ECA, a utilização da institucionalização como o último recurso relacionado à proteção de crianças e adolescentes. Dessa forma, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), quando ocorrem situações em que se observam falhas na proteção e nos cuidados no interior das famílias, será preciso fazer uso de medidas de proteção que possam assegurar condições adequadas de desenvolvimento aos filhos. Se houver necessidade de a criança deixar seu lar, a legislação prevê que ela encontrará um abrigo. Esse abrigo se constitui em um serviço de proteção especial de alta complexidade que consiste em moradia alternativa, a qual tem por objetivo garantir a proteção integral de crianças e adolescentes, oportunizando-lhes alimentação, vestuário, higienização e acolhida nos momentos, legitimados por lei, de necessidade de separação temporária da família (Janczura, 2008; Silva, 2004).
Os abrigos, como saída encontrada para proteção de crianças e adolescentes, se constituíram numa alternativa ao fracassado modelo do internato. Para tanto, passaram por um reordenamento institucional, constituindo-se em espaços físicos menores, que atendem a um número também reduzido de crianças e adolescentes em cada núcleo, privilegiando a manutenção de grupos de irmãos na mesma instituição (Arpini, 2003).
Porém, na prática, pesquisas têm demonstrado que crianças e adolescentes ainda convivem com os dois modelos de instituição, os orfanatos e os abrigos. Encontram-se justificativas institucionais relativas à eficácia do modelo antigo ou às dificuldades na alteração do atendimento (Guará, 2006; Oliveira, 2006; Silva, 2004). Entretanto, mesmo que com o ECA as instituições tenham se tornado mais abertas e com clientela mais definida, Arpini (2003) e Rizzini e Rizzini (2004) afirmam que a renovação não assegurou que os vícios, tais como a institucionalização como uma medida amplamente utilizada, o atendimento massificado e o distanciamento da família durante a medida, referentes aos internatos não se repetissem nesse novo modelo, pois, mesmo que os orfanatos tenham ficado obsoletos, a cultura da institucionalização fomentada por esse modelo tende a resistir.
A nova Lei Nacional de Adoção, Lei n. 12.010/09, tende a tornar o contato das instituições de acolhimento institucional com o Judiciário mais estreito, de modo a favorecer o diálogo entre essas instituições e responsabilizar os técnicos (psicólogos e assistentes sociais) que trabalham nas instituições de acolhimento pelo retorno à convivência familiar das crianças e dos adolescentes acolhidos (artigo 92, I). A convivência familiar e comunitária (artigo 19), já legislada no ECA, lei que regia anteriormente o abrigamento, foi reforçada por meio de três incisos.
Esses incisos estabelecem o seguinte:
• A situação jurídica da criança acolhida em uma instituição deve ser reavaliada a cada seis meses (§ 1º).
• O tempo máximo de permanência em acolhimento institucional será de dois anos, salvo quando comprovada a necessidade que atenda ao interesse da criança (§ 2º).
• A manutenção ou reintegração de criança ou adolescente à sua família terá preferência em relação a qualquer outra ação (§ 3º).
Ainda, tendo em vista a agilidade no atendimento às necessidades de cada criança e adolescente acolhidos, instituiu-se a elaboração de um Plano de Atendimento Individual - PIA (artigo 101, §§ 4º, 5º e 6º). As instituições que antes se chamavam abrigos, com a nova Lei Nacional de Adoção, passaram a ser denominadas instituições de acolhimento.
Dados apontados por Silva (2004), em pesquisa realizada nos abrigos brasileiros, revelam que mais da metade das crianças permanece nas instituições por mais de dois anos. A criação de uma nova lei que defina os atores responsáveis por esse resgate dos vínculos e o limite de tempo para que isso ocorra parece se constituir em uma das ações importantes para alcançar os princípios da brevidade e da excepcionalidade.
Com relação à revisão da situação jurídica a cada seis meses, entende-se que esta poderá contribuir para que seja explicada à autoridade judiciária as ações de que são objeto crianças e adolescentes que se encontram acolhidos. O fato de as entidades serem acompanhadas em suas ações pelo Judiciário, a cada seis meses, pode agilizar a individualização do atendimento e, consequentemente, a reinserção familiar, pois estudo de Silva, Mello e Aquino (2004) refere que apenas 42,4% das entidades de atendimento pesquisadas no Brasil têm como rotina enviar relatórios periódicos acerca da situação jurídica de crianças e adolescentes que se encontram sob medida de acolhimento. Diante desse novo cenário delimitado pela nova Lei Nacional de Adoção, faz-se importante compreender como os psicólogos e assistentes sociais que trabalham nas instituições acolheram essa nova perspectiva.
Método
Participante
Participaram do estudo quatro assistentes sociais e quatro psicólogos, os quais representam a totalidade dos profissionais atuantes nessas áreas na cidade. Neste trabalho, esses participantes são indicados pela letra P. De acordo com os dados sociodemográficos, esses profissionais têm em média 31 anos de idade e atuam nas respectivas áreas há, no mínimo, dois anos e, no máximo, seis anos. O período de atuação na instituição de acolhimento varia de sete meses a três anos.
Instituições
Ao total, foram envolvidos no estudo cinco instituições e oito profissionais. De-ve-se destacar que duas das instituições participantes contam com a mesma equipe técnica. As instituições acolhem bebês, crianças e adolescentes, e juntas totalizavam 93 acolhidos no momento da realização da pesquisa. A instituição 1 é uma organização não governamental destinada ao atendimento de crianças e adolescentes. A capacidade máxima para acolhimentos é de 100 pessoas, e, durante a realização do estudo, havia 54 acolhimentos. A instituição 2 é uma organização não governamental destinada a atender meninos na faixa etária de 4 a 12 anos e, na realização da pesquisa, contava com quatro acolhimentos. A instituição 3 é uma instituição não governamental direcionada ao atendimento de meninas de 0 a 12 anos e contava com 21 meninas acolhidas durante a realização do estudo. A instituição 4 é governamental, atende adolescentes do sexo masculino e, durante a realização da pesquisa, contava com seis adolescentes acolhidos. A instituição 5 é governamental e atende adolescentes do sexo feminino, e, durante a realização do estudo, havia oito adolescentes acolhidas.
Instrumentos
Para realização do estudo, foram utilizadas entrevistas semidirigidas de questões abertas (Turato, 2003), com o propósito de compreender em profundidade as experiências dos psicólogos e assistentes sociais em relação à nova Lei Nacional de Adoção dentro das instituições. Houve uma troca dinâmica na condução da entrevista, isto é, as questões iam sendo colocadas ora pelo entrevistador, ora pelo entrevistado, o que facilitou a coleta de informações baseada no discurso livre do entrevistado por meio da introdução de tópicos pelo entrevistador.
Para conhecer em profundidade a opinião dos profissionais acerca do acolhimento institucional a partir da nova Lei Nacional de Adoção, utilizaram-se os seguintes tópicos-guia, que representam os objetivos específicos deste trabalho:
• Quais são, na sua opinião, as principais alterações propostas pela nova Lei Nacional de Adoção?
• Quais são as principais alterações ocorridas no contexto do seu trabalho na instituição?
As entrevistas foram realizadas individualmente, nas dependências das próprias instituições, em local adequado e com privacidade.
Procedimentos de coleta de dados
Para a realização do estudo, primeiramente foi feito um contato prévio com os psicólogos e assistentes sociais das instituições de acolhimento de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, quando se apresentou a proposta do estudo. Em seguida, obteve-se a concordância das instituições por meio do Termo de Autorização Institucional, e as entrevistas foram agendadas. Antes do início da entrevista propriamente dita, os objetivos do estudo foram retomados, e solicitou-se a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. As entrevistas foram realizadas nas próprias instituições e gravadas com o consentimento dos participantes.
Esta pesquisa está respaldada nas diretrizes e normas que regulamentam a pesquisa envolvendo seres humanos, tendo parecer favorável do Comitê de Ética e Pesquisa (Protocolo de aprovação nº 0127.0.243.000-10) da instituição de ensino superior na qual os pesquisadores atuam. Em função da preocupação ética e da garantia do anonimato dos participantes, não foram identificados o núcleo profissional nem a instituição em que estes trabalham.
Procedimentos de análise dos dados
Após a transcrição das entrevistas, procedeu-se à leitura e análise de cada uma delas. Em seguida, o conjunto do material foi analisado, e, considerando os aspectos relevantes por sua força discursiva, a presença nas entrevistas e as repetições, deu-se início à construção das categorias. A análise dos dados foi realizada por meio de análise de conteúdo (Bardin, 1977), a qual se caracteriza por um conjunto de instrumentos metodológicos que se aplicam aos discursos, com o objetivo de avaliar as comunicações.
Resultados
O acolhimento institucional hoje: misto de fracassos e superações
Algumas falas dos profissionais denotaram a presença de sofrimento no acolhimento institucional, um sofrimento atualmente reconhecido e que vem sendo superado com a compreensão e a ajuda dos técnicos entrevistados.
Porque o abrigo tem uma questão muito de trauma. [...] Porque no momento aquilo ali já diz para os pais que eles foram incapazes, é a afirmação de que eles foram incapazes, que eles foram incapazes de fazer o alimento, que eles foram incapazes de cuidar dos filhos, que eles foram incapazes como pes-soas porque eles não foram capazes de não conseguir beber, né? [...] Então o acolhimento é aquilo ali, ó, é o marco, né?, é a data, é o aniversário, é a festa da comemoração do fracasso! (P4).
A institucionalização de crianças e adolescentes é sempre uma medida extrema que faz com que os olhares dos atores se voltem para a família dessas crianças e adolescentes, em busca de respostas sobre o que aconteceu para que a convivência familiar fosse interrompida. O "fracasso" pode estar atrelado a uma perspectiva existente a partir dos anos 1990 que busca se opor à institucionalização e a fomentar a responsabilização das famílias e os direitos de crianças e adolescentes de permanecer em seus contextos de origem (Rizzini, Rizzini, Naiff, & Baptista, 2006).
A fala dos profissionais entrevistados acerca de suas práticas no interior das instituições de acolhimento foi permeada por um resgate da história destas e das legislações que pouco a pouco foram normatizando novas formas de compreender o acolhimento institucional.
O quanto a gente fez aquele movimento das montanhas, né? O quanto a gente subiu, subiu, subiu, caiu, caiu, caiu, subiu, subiu, subiu. Então, como a gente tem picos de conquistas na realidade, né? Claro que, a partir da década de 1980 pra cá, a gente tava meio que estagnado na subida, e eu acho que a nova Lei de Adoção veio fazer com que a gente suba até o pico (P1).
Por um lado, os profissionais entrevistados consideram o atual contexto do acolhimento institucional, marcado pela nova Lei Nacional de Adoção, como um avanço em relação às situações do passado e, por outro, como a única referência de trabalho que possuem, uma vez que a maioria deles se graduou recentemente. Mesmo que tenham começado sua prática profissional na "era" do ECA, tais profissionais pontuaram, em suas falas, a necessidade de superar os modelos antigos.
Muitas vezes, muita gente [diz]: "Ah, mas vocês só têm dois guris aí na instituição!". Sim, mas a gente tinha cinco, seis no final do ano, só que o objetivo não é esse, o objetivo não é a criança ficar aqui. Então a gente tem que dar um, um resultado, não é "Ah, vamos esquecer as crianças lá" (P5).
A história da instituição X é o orfanato, né?, orfanatão na realidade. E aquela história de que as mães que [...] possuem certas carências poderiam deixar seus filhos aqui. [...] as mães pensavam que deixando seus filhos na Febem eles iriam ter uma educação melhor, eles teriam na realidade mais chances de crescerem - que não na vila, que não no seu lugar, no seu território de origem. Então as pessoas enxergam a instituição X assim. E, devido à nossa historicidade, isso de desconstruir, né?, de desconstruir esse, essa história com as pessoas que chegam até aqui, é difícil; então a gente leva um caminho (P1).
Alguns dos profissionais trouxeram em suas falas a marca da história das instituições em que trabalham, caracterizando uma dinâmica de funcionamento e de cuidados destinados por longos anos às crianças e aos adolescentes. Essa dinâmica de serviços se dava em locais que apresentavam características das instituições totais (Goffman, 1961), ou seja, grandes complexos de internação que prestavam atendimento coletivo a um grande número de internos que não tinham a perspectiva de retorno à família.
Transformando a história
Essa lógica característica das instituições totais (Goffman, 1961) perdurou e se enraizou na cultura, sendo difícil para as pessoas compreenderem, segundo o profissional 5, a existência de uma instituição com acolhimentos reduzidos. Realmente, legitimar essa nova forma de funcionamento das instituições "leva um longo caminho", o qual já vem se consolidando pela própria redução do número de acolhimentos e pela alteração tanto do perfil das instituições quanto de seu próprio espaço físico.
Segundo informações obtidas, algumas dessas instituições abrigavam, antes da realização deste estudo, um grande número de crianças e adolescentes, as quais viviam em espaços coletivos destinados às refeições, à recreação e à hora de dormir. Embora as crianças abrigadas fossem separadas por sexo, conviviam com as demais crianças e até mesmo com adolescentes que viviam outro momento do desenvolvimento emocional. Essa situação se apresentou de forma diferente no momento de realização da pesquisa, na qual foi possível identificar um número reduzido de acolhimentos, espaços físicos mais reduzidos e pessoalizados. Esse aspecto é corroborado por P1: "Segundo o que me informaram, em 2007, na instituição existiam 52 crianças. Quando eu cheguei na instituição, existiam 30, hoje são oito. Então a diferença é bem gritante né?". Nesse contexto, na fala do profissional 3, pode-se perceber que esse grande número de acolhimentos, existentes no passado, poderia se relacionar a acolhimentos indevidos, os quais podem estar sendo reduzidos pela aplicação da nova lei:
Vinha, vinham muitos acolhimentos indevidos antes, e agora como tem que passar pelo Juizado, isso também dá uma triagem maior dos acolhimentos, né?. Porque como a gente sabe, desde a, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, o acolhimento é a última instância né?; tem que ser feito todas as medidas de proteção pra depois chegar no acolhimento, e eu acho que a Lei de Adoção garante bastante isso (P3).
Em uma das entrevistas, há o relato de construção de um acolhimento de forma singular com uma adolescente, que, segundo o profissional, foi chamada a participar do relatório que será entregue ao Juizado, momento que também favorece o diálogo com o técnico:
[...] mas, por exemplo, assim, ó, eu leio: eu botei aqui que tu... é este, é isto, tu concorda comigo, era isso que tu querias que eu passasse para o papel? Porque é diferente, daí ela vai conversar comigo, "Não tia, eu acho que tu não me entendeu", né?, ou "Naquele momento eu tinha aquela ideia, hoje eu não tenho", né? O adolescente ele muda, eu não posso colocar ele como uma coisa estanque; imagina, se a gente muda, imagina ele! (P4).
Essa fala evidencia mudanças importantes na compreensão do olhar institucional sobre a clientela, assim como sobre o fazer dos técnicos, contudo os participantes sinalizaram a permanência de elementos do passado ainda vivos nas práticas de acolhimento.
A permanência do passado
Estudos atuais (Azôr & Vectore, 2008; Silva, 2004) demonstram que nem sempre as características das instituições totais ficam para trás, pois muitas vezes as regras, as normas e mudanças institucionais não privilegiam a liberdade de quem está acolhido e nem da família, a qual, muitas vezes, é regrada, por exemplo, com horários para visitas, mesmo que tal conduta não tenha sido sugerida pelo Poder Judiciário, ou seja, a família não ameaça a criança, mas mesmo assim tem suas ações cerceadas pela instituição. A tarefa de "superação do orfanatão", como aponta P1, parece não estar ainda plenamente realizada. Tal como se pode perceber na fala a seguir: "E o tempo aqui dentro é horrível! Ficar, né?, 24 horas dentro de uma instituição total é, dentro de uma instituição - seja ela total ou não, de acolhimento ou não - é complicado, não é fácil" (P1).
Não vou nem dizer que diminuíram os acolhimentos porque hoje a gente tá com a casa superlotada, mas diminuíram os acolhimentos indevidos. Que existia, na verdade é porque a gente faz toda a busca da rede familiar antes de realizar o acolhimento, e isso não acontecia (P3).
As duas falas citadas anteriormente, relacionadas ao funcionamento de instituições totais, podem assinalar dificuldades em modificar o modelo de atendimento nas instituições, situações apontadas por pesquisas (Guará, 2006; Oliveira, 2006; Silva, 2004) que têm demonstrado que crianças e adolescentes ainda convivem com os dois tipos de instituição - orfanatos e acolhimentos - , os quais concretizam as ambivalências da sociedade e as dificuldades da passagem da doutrina da situação irregular e da concepção de menor para a doutrina da proteção integral dos sujeitos de direitos. Para tanto, encontram-se justificativas institucionais relativas à eficácia do modelo antigo ou às dificuldades na alteração do atendimento, em virtude da presença de vícios e à burocratização do funcionamento: "Eu digo todo dia aqui, e às vezes nem sempre eu sou escutado. Tem alguns vícios. Já fazem 12 anos que as pessoas que estão aqui, trabalham aqui. Então, eu faz sete meses. Então existem alguns vícios [...]" (P6).
Construir uma nova história a partir das concepções políticas, legais e sociais, as quais vão afinando os discursos dos atores e construindo suas práticas, exige o rompimento e a superação da herança que cultiva a institucionalização como algo que garante, melhor do que a família, o cuidado e a educação de crianças e adolescentes, principalmente aqueles pertencentes aos grupos populares. E nesse sentido, pode-se pensar que oferecer algo coletivo e superlotado para esse grupo já é melhor do que aquilo que as famílias conseguiriam oferecer. Como diz um dos entrevistados: "nós, o povo, as pessoas, a gente tem a cultura de que para pobre qualquer coisa serve" (P1). Para reconstruir a identidade dos acolhimentos e reordená-los, é preciso avançar, dando um rumo diferente à história dessas instituições, tentando romper com certos legados, principalmente no que concerne ao modo de cuidar das famílias e ao papel da instituição nesse processo.
A gente tem essa herança assistencialista dessas famílias culturalmente, famílias... [...] Que muitas dessas famílias acabam vendo o acolhimento não como, como, tirando o direito deles de pai e de mãe assim "bah eu perdi o meu lugar de pai e de mãe", mas veem como se fosse um lugar que eles vão estudar e se alimentar bem, como se fosse um internato (P8).
Se, na fala dos profissionais entrevistados, há um processo que sinaliza a importância de superar o orfanato e tudo aquilo que ele trouxe consigo, é preciso, segundo os próprios entrevistados, pôr um fim às instituições totais, arejar esses espaços, fazer jus ao nome de acolhimento institucional, e certamente a Nova Lei se constitui em uma importante contribuição nessa direção.
Discussão
O acolhimento institucional é compreendido por esses profissionais como um espaço que ainda agrega o velho e o novo da história da institucionalização, na qual convivem, por exemplo, a instituição superlotada e a singularização do atendimento. Mesmo assim, fica claro um movimento gerado pela nova Lei Nacional de Adoção na prática dos profissionais entrevistados.
A prioridade estabelecida constitucionalmente é que crianças e adolescentes permaneçam com suas famílias. Dessa forma, o acolhimento institucional simboliza as ausências e as omissões das quais fazem parte muitos atores sociais, mas principalmente o Estado (Oliveira, 2006). Se o Estado falha, a família pode mesmo tomar para si a responsabilidade pelo fracasso que culmina com a institucionalização dos filhos, e, nesse sentido, a presença da medida acolhimento é a representação do fracasso familiar em dar conta dos cuidados em relação aos filhos.
Todavia, sabe-se que há realmente falhas no apoio às famílias em vulnerabilidade, pois ainda faltam investimentos por parte do Estado na família para que ela possa transformar-se, de fato, em uma instituição que garanta a proteção social de seus membros (Arpini & Quintana, 2009; Silva, Polli, Sobrosa, Arpini, & Dias, 2012). Mesmo que possa adquirir o sentido de concretizar o fracasso familiar para alguns entrevistados, o acolhimento institucional também foi apontado como uma medida que vem se transformando ao longo dos tempos (Silva & Arpini, 2012). Orientação realizada pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e Conselho Nacional de Assistência Social (Cnas) (2009) destaca que as instituições de acolhimento deveriam ser um recurso utilizado apenas nas situações em que não for possível realizar outra intervenção menos complexa.
Mesmo que os orfanatos tenham ficado obsoletos, a cultura da institucionalização e seus vícios podem resistir, sinalizando a continuidade de modos de pensar ainda compartilhados e que também constroem a dinâmica de funcionamento desses locais. As mudanças propostas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) deveriam transformar as instituições de caráter meramente assistencial, que justificou práticas impessoais e violentas, em instituições que passaram a se consolidar como espaços favoráveis ao desenvolvimento e à socialização da população infantojuvenil, assegurando um atendimento singular, individualizado, que se traduza em um programa que atenda à necessidade de cada criança e adolescente.
A nova Lei de Adoção reforçou a prioridade de atendimento já presente no ECA, trazendo consigo uma importante reflexão aos profissionais do acolhimento institucional sobre o rompimento de práticas antigas e sobre seu papel no decorrer da medida.
Considerações finais
Mesmo que o acolhimento comece a delinear uma dinâmica diferente, que preze pela escuta da criança e da família e que busque garantir a convivência familiar, ainda existem algumas dificuldades em superar as práticas referentes aos orfanatos, em decorrência de vícios de trabalho muito enraizados e que são realmente difíceis de ser desfeitos. Mesmo que a situação delineada pelos profissionais entrevistados não seja a ideal, a pesquisa constatou aspectos significativos que podem estar indicando mudanças na qualidade do atendimento prestado dentro dessas instituições.
Nesse sentido, pesquisas sobre a compreensão das famílias, das crianças e dos adolescentes acolhidos institucionalmente após a nova Lei Nacional de Adoção podem nos indicar se a transformação dos orfanatos em instituições de acolhimento também é uma realidade percebida pelos usuários desses locais.
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Endereço para correspondência
Dorian Mônica Arpini
Universidade Federal de Santa Maria, Departamento de Psicologia
Rua Floriano Peixoto, 1.750, 3° andar
Santa Maria - RS - Brasil. CEP: 97015-372
E-mail: monica.arpini@gmail.com
Submissão: 17.04.2013
Aceitação: 30.08.2013