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Psicologia: teoria e prática
versão impressa ISSN 1516-3687
Psicol. teor. prat. vol.15 no.3 São Paulo dez. 2013
AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA
Relações entre raciocínio auditivo musical e inteligência*
Relationship between musical auditory reasoning and intelligence
Relación entre el razonamiento y la inteligencia musical auditiva
Fernando PessottoI; Ricardo PrimiI; Lucas de Francisco CarvalhoI; Fabiano Koich MiguelII
IUniversidade São Francisco, Itatiba - SP - Brasil
IIUniversidade Estadual de Londrina, Londrina - PR - Brasil
RESUMO
O presente estudo teve como objetivo investigar se o teste de raciocínio auditivo musical (RAu) avalia uma habilidade específica, relacionada ao processamento auditivo (Ga), ou se o instrumento configura-se como teste de avaliação de inteligência fluida (Gf) ou de conhecimento específico (Gkn). Além disso, buscou-se evidenciar a capacidade do RAu para discriminar os indivíduos em diferentes níveis de habilidade musical. Três grupos - músicos (N = 7), músicos amadores (N = 22) e leigos em música (N = 20) - com idade variando entre 18 e 59 anos, sendo 57,1% do sexo masculino, responderam aos testes. Encontraram-se correlações moderadas significativas entre Analogias 2 e as provas de raciocínio verbal e raciocínio espacial (0,36 e 0,37, respectivamente). Os três grupos diferiram significativamente nas medidas de acordo com o nível de experiência com música. Os resultados sugerem que o raciocínio e processamento auditivo são construtos relacionados, e que o RAu é capaz de discriminar as pessoas de acordo com o nível de habilidade musical.
Palavras-chave: avaliação psicológica; raciocínio; inteligência fluida; processamento auditivo; aptidão musical.
ABSTRACT
The present study aimed to investigate if the Musical Auditory Reasoning Test (RAu) evaluates a specific ability related to auditory reasoning (Ga), or if the instrument is presented as a test for fluid intelligence (Gf) or specific knowledge (Gkn) assessment. In addition, we sought to verify the RAu's capacity to differentiate individuals into different levels of musical ability. Three groups - musicians (N = 7), amateur musicians (N = 22) and lay in music (N = 20) - aged between 18 and 59 years, with 57.1% males, answered the tests. Moderate significant correlations were found between Analogies 2 with verbal reasoning and spatial reasoning tasks (.36 and .37 respectively). The three groups differed significantly in measures according to the level of music experience. The results suggest that the auditory processing and reasoning are related constructs, and that RAu is able to discriminate people according to the level of musical ability.
Keywords: psychological assessment; reasoning; fluid intelligence; auditory processing; musical aptitude.
RESUMEN
El presente estudio tuvo como objetivo investigar si el test de razonamiento auditivo musical (RAu) evalua una habilidad específica relacionada con el razonamiento auditivo (Ga), o si el instrumento se presenta como una prueba para la evaluación de la inteligencia fluida (Gf) o de conocimientos específicos (Gkn). Además, tratamos de verificar la capacidad del RAu para diferenciar a los individuos en diferentes niveles de habilidad musical. Tres grupos - músicos (N = 7), músicos amadores (N = 22) y los laicos en la música (N = 20) - con edades comprendidas entre 18 y 59 años, con 57,1% de los hombres, responderán a las pruebas. Se encontraron correlaciones significativas moderadas entre Analogías 2 con el razonamiento verbal y razonamiento espacial (0,36 y 0,37 respectivamente). Los tres grupos diferían significativamente en las medidas de acuerdo con el nivel de experiencia de la música. Los resultados sugieren que el procesamiento auditivo y el razonamiento son constructos relacionados, y que el RAu es capaz de discriminar a las personas de acuerdo al nivel de habilidad musical.
Palabras clave: evaluación psicológica; razonamiento; inteligencia fluida; procesamiento auditivo; musical de aptitud.
A inteligência é um tema comumente abordado na psicologia, com um grande volume de trabalhos publicados, resultando em avanços e descobertas na área. Na tentativa de compreender questões sobre sua natureza, múltiplas visões acerca da inteligência surgiram, resultando em uma diversidade de respostas nem sempre consensuais (Primi, 2003).
Algumas teorias foram desenvolvidas a fim de possibilitar uma maior compreensão e, consequentemente, maior clareza dos processos subjacentes à inteligência. Entre elas, na corrente psicométrica, encontra-se a teoria Cattel-Horn-Carroll (CHC) das habilidades cognitivas (Carroll, 1997).
A teoria CHC compreende a inteligência numa estrutura em três estratos. O estrato III é formado por um fator geral, g, identificando uma interação e interligação entre todas as capacidades cognitivas. O segundo estrato é composto por 16 fatores amplos da inteligência, a saber, inteligência fluida (Gf), inteligência cristalizada (Gc), memória de curto prazo (Gsm), processamento visual (Gv), processamento auditivo (Ga), armazenamento e recuperação da memória de longo prazo (Glr), velocidade cognitiva geral (Gs), decisão e velocidade de reação (Gt), leitura e escrita (Grw), conhecimento quantitativo (Gq), conhecimento específico (Gkn), habilidade tátil (Gh), habilidade sinestésica (Gk), habilidade olfativa (Go), habilidade psicomotora (Gp) e velocidade psicomotora (Gps) (Carroll, 1997; McGrew, 2009). Abaixo desses, no estrato I, estão aproximadamente 70 fatores ligados às capacidades específicas, os quais não serão citados por não fazerem parte do escopo deste estudo.
Entre os 16 fatores do estrato II, está o processamento auditivo (Ga) que, como observado por Cunha (2007), ainda é pouco pesquisado e usualmente ignorado em diversos estudos pelo fato de os dados provenientes de testes de inteligência utilizados nas análises não requererem, primordialmente, a análise de estímulos auditivos. O Ga está relacionado aos processos que envolvem tarefas com conteúdos auditivos e é associado à percepção, análise e síntese de padrões sonoros. Exemplo disso é a capacidade de discriminar sons que são executados em um mesmo momento, inclusive a linguagem oral, e também em contextos mais complexos que envolvem distorções ou em estruturas musicais (Carroll, 1993).
Para compreensão do processamento auditivo, diferentes autores (Cunha, 2007; Billhartz, Bruhn, & Olson, 1999; Helmbold, Rammayer, & Altenmüller, 2005; Schellenberg & Moreno, 2009) buscaram estudá-lo a partir da comparação com outros fatores também localizados no segundo nível do modelo CHC ou com outros construtos relacionados à inteligência geral. Entre esses fatores, três são frequentemente estudados e aparecem como centrais no estudo da inteligência e processamento auditivo: a inteligência fluida (Gf), a inteligência cristalizada (Gc) e o conhecimento específico (Gkn) (Haavisto & Lehto, 2004; Verguts & De Beock, 2002; Vigil-Colet, Perez-Olle, & Fernandes, 1996). Vale ressaltar que Ga, Gf, Gc e Gkn são componentes do segundo estrato do modelo CHC e apresentam correlação entre si (Carroll, 1997; McGrew, 2009).
A Gf está ligada à capacidade de raciocínio em situações novas, em que a resolução não depende de conhecimentos previamente. Engloba ainda a capacidade de relacionar ideias, induzir conceitos abstratos, compreender implicações, reorganizar informações, apreender e aplicar relações, envolvendo principalmente representações não verbais adquiridas (Almeida, Guisande, Primi, & Ferreira, 2008).
Por sua vez, como descrevem Primi e Almeida (2002b), a Gc é associada à habilidade de extensão e profundidade dos conhecimentos adquiridos numa determinada cultura e à sua consequente aplicação no cotidiano. Associa-se ainda à capacidade de raciocínio adquirida pelo investimento da capacidade geral em experiências de aprendizagem e conhecimentos da linguagem, bem como ao conhecimento declarativo (conhecimento de fatos, ideias, conceitos) e ao conhecimento procedimental (raciocinar com procedimentos aprendidos previamente para transformar o conhecimento).
Já o Gkn associa-se à extensão e profundidade dos conhecimentos adquiridos referentes às informações específicas que não se encontram no cotidiano (McGrew, 2009). Refere-se a uma especialização de conhecimentos produto de uma prática regular e sistematizada. Neste estudo, considerando a relação estrita entre Gc e Gkn, será abordado somente o Gkn por possibilitar a compreensão de um conhecimento específico (Gc) voltado para as habilidades musicais.
Na literatura, há evidências empíricas que demonstram relações de Ga com Gf e Gkn, de modo que diferentes autores encontraram associações entre habilidades de raciocínio e habilidades musicais (Schellenberg, 2004; Billhartz et al., 1999; Helmbold et al., 2005).
Dowling (1999) aponta que o processamento auditivo musical (Ga) apresenta a mesma estrutura que a compreensão da fala e descreve que um sujeito, ao ouvir um discurso, não tem capacidade de focar sua atenção em todos os detalhes, mas compreende o sentido geral. A velocidade do processamento depende da extensão dos conhecimentos na língua. Assim, similarmente, a compreensão de detalhes de processamento de inputs musicais depende do conhecimento específico (Gkn) dos conteúdos da teoria musical. Helmbold et al. (2005) corroboram essa afirmação ao descreverem que a habilidade musical associada ao Ga está ligada a conhecimentos específicos (Gkn), e, da mesma forma, Peretz, Champod e Hyde (2003) propõem um modelo de processamento cognitivo musical em que os inputs são processados pelo mesmo sistema da fala, porém, se for musical, segue por um caminho mais refinado, contendo detalhes sobre frequência, altura, intervalos, duração e ritmo, atributos ligados a padrões musicais.
Sobre a percepção de estímulos sonoros musicais, Lathroum (2011) ressalta que o ser humano tende a perceber o todo referente aos estímulos apresentados em detrimento das partes e que a compreensão destas depende do grau de especialização dos sistemas ligados à percepção. De acordo com a autora, inicialmente todos apresentam uma percepção global, e, à medida que essa habilidade é aperfeiçoada, é possível detectar e discriminar outros elementos. Ao lado disso, outros pesquisadores (Joanisse & Gati, 2003; Schönwiesner, Rübsamen, & Cramon, 2005; Wessinger et al., 2001) têm investigado especificamente a ativação neurológica no processamento de estímulos sonoros musicais ou não e também verificaram que, independentemente de os sons consistirem em fala ou música, o cérebro processa os estímulos auditivos de forma semelhante, com base em seus elementos constituintes. Portanto, o aperfeiçoamento do Ga é um dos componentes da habilidade musical ao lado de habilidades motoras, codificação de símbolos, entre outras.
Paralelo a isso, o estudo da música com estímulos predominantemente na forma de sons (Ga) configura-se como um processo de aprendizagem que compreende longos períodos de atenção concentrada sob uma variedade de estímulos, requerendo prática diária, leitura de linguagem específica, memorização de tempos, intervalos e distinção de padrões sonoros (Schellenberg, 2004). Desse modo, esse processo engloba novas tarefas a serem desempenhadas, presumindo que o sujeito deverá, por meio da inteligência fluida (Gf), relacionar ideias, induzir conceitos, compreender significados, reorganizar informações (Almeida et al., 2008).
Ao lado disso, em um estudo que buscou evidências de validade baseadas em variáveis externas para um instrumento de avaliação do raciocínio auditivo-musical, o teste de raciocínio auditivo musical - RAu (Cunha et al., 2006), Cunha (2007) investigou o Ga a partir da associação com a Gf, a Gc e o Gkn. Para tanto, contou com uma amostra de 162 pessoas: 24 músicos profissionais, 62 músicos amadores e 76 leigos em música. Entre os dados obtidos, verificou-se que tanto Gc quanto Gf estão relacionadas ao Ga, porém o treino em música demonstrou-se importante para a o bom desempenho no RAu, indicando ligação entre Ga e Gkn, já que os grupos extremos foram separados com diferenças significativas.
Esses dados estão de acordo com os resultados apresentados por Helmbold et al. (2005) que realizaram um estudo para verificar a relação entre habilidade musical e habilidades intelectuais em músicos (N = 70) e não músicos (N = 70), utilizando o Cattell´s Culture Free Intelligence Test para avaliação da inteligência. Os resultados encontrados sugeriram que os músicos apresentaram melhor desempenho em memória verbal e raciocínio. Os autores sugeriram, então, que os escores superiores por músicos devem ser explicados pela hipótese de que a memória verbal e o raciocínio (Gf) estão relacionados com aspectos cruciais do processamento da informação musical, como o rápido reconhecimento de símbolos musicais ou estruturas (acordes e intervalos, por exemplo).
Não obstante, Billhartz et al. (1999) estudaram o efeito do treino em música no desenvolvimento cognitivo de crianças (N = 71) de 4 a 6 anos de idade, utilizando o Stanford-Binet Intelligence Scale (4ª adição) e o Young Child Music Skills Assessmente (MSA), para avaliação da inteligência e habilidades musicais, respectivamente. Após todos os participantes terem respondido os testes, um grupo controle foi inserido em um programa de estudo musical durante 30 semanas, com 75 minutos semanais. Após a aplicação do pós-teste, o grupo submetido ao estudo musical apresentou ganhos significativos nas áreas da memória e raciocínio espaçotemporal. Segundo os autores, esses ganhos estão relacionados a um tipo de processamento que busca a organização sequencial de itens e é frequentemente utilizado em atividades mentais complexas, o que se configura como uma habilidade também utilizada por músicos na performance de tarefas musicais.
Diferentemente, Schellenberg e Moreno (2009), em uma pesquisa que visou verificar relações entre habilidade musical e QI, em que participaram 40 sujeitos, sendo 20 músicos e 20 não músicos, verificaram que os músicos obtiveram escores superiores nas provas com estímulos musicais [F (6, 33) = 2,54, p < 0,05], mas, para as matrizes progressivas de Raven, para mensuração do QI, não houve diferença significativa entre os grupos. Os autores apontam que esse resultado pode ter sido influenciado pelo reduzido número da amostra.
Os quatro estudos citados anteriormente buscaram verificar associações entre o Ga e a Gf ou o Gkn. A partir disso, é possível hipotetizar que, a partir de instrumentos que avaliaram o Ga, como no estudo de Cunha (2007), os participantes devem utilizar habilidades de raciocinar em tarefas que envolvam estímulos sonoros (Carroll, 1993). Também devem estar presentes conhecimentos específicos (Gkn) adquiridos por meio do aprendizado sistemático e sua consequente aplicação no cotidiano (McGrew, 2009), no caso, o conhecimento musical, e a capacidade de resolução de problemas novos (Gf).
Considerando as relações apresentadas entre os diferentes tipos de habilidades do segundo estrato, o presente estudo tem como objetivo investigar se o RAu avalia predominantemente o fator Ga mais que os fatores Gf e Gkn. Para tanto, foi utilizado o RAu para avaliação do Ga, dois subtestes de um instrumento de raciocínio para avaliação da Gf, e a pontuação em Ga da amostra foi comparada de acordo com o nível de conhecimento musical, compreendido como Gkn.
Método
Participantes
Participaram deste estudo 49 sujeitos com idade variando de 18 a 59 anos (M = 29,1 e DP = 10,0), sendo 57,1% do sexo masculino. A amostra foi dividida em três grupos, a saber, músicos (G1; N = 7), músicos amadores (G2; N = 22) e leigos em estudo musical (G3; N = 20). Os dados descritivos da amostra podem ser observados na Tabela 1.
O critério para a classificação do grupo G1 foi ser estudante ou formado em curso universitário de música. Para G2, os indivíduos deveriam desempenhar algum tipo de atividade amadora (isto é, sem aprendizagem formal) com música, podendo ser lazer, hobby ou profissão (aulas particulares, participação em grupos musicais, entre outros); e, para o grupo G3, foram selecionadas pessoas sem qualquer tipo de experiência ou formação em música.
Instrumentos
Considerando o objetivo deste estudo, foram utilizados os subtestes de raciocínio verbal (RV) e raciocínio especial (RE) da bateria de provas de raciocínio - BPR-5 (Primi & Almeida, 2002a) para avaliação da Gf, e o RAu (Cunha et al., 2006) para avaliação do Ga.
Bateria de provas de raciocínio (BPR-5)
A BPR-5 é uma bateria de avaliação das habilidades cognitivas que avalia o funcionamento cognitivo geral, especificamente em cinco áreas: raciocínio abstrato, verbal, visuoespacial, numérico e mecânico. Seu modelo teórico subjacente se configura de modo que os componentes de performance são utilizados em diferentes combinações, dependendo da tarefa apresentada.
O instrumento é composto por duas formas: a forma A, destinada a alunos da sexta, sétima e oitava séries do ensino fundamental, e a forma B, destinada aos alunos do ensino médio. Cada forma possui cinco subtestes, de acordo com as áreas que pretende avaliar. Cada subteste possui números de itens e tempo de execução diferenciado: para RV 25 itens com duração de 10 minutos e para RE 20 itens com duração de 18 minutos. De acordo com os estudos apresentados no manual da BPR-5 (Primi & Almeida, 2002a), a análise dos itens do instrumento apontou índices de correlação item-total adequados, e também se observou que esses itens, como um todo, são capazes de medir uma única dimensão cognitiva. Além disso, foram evidenciados índices satisfatórios de consistência interna (alfa de Cronbach), sendo 0,72 para RV e 0,66 para RE.
Teste de raciocínio auditivo musical (RAu)
O RAu, desenvolvido por Cunha et al. (2006) e estudado por Cunha (2007), busca mensurar o raciocínio auditivo musical por meio de estímulos sonoros e é dividido em três subtestes: Séries (com 20 itens), Analogias 1 (com 20 itens) e Analogias 2 (com 14 itens). Em Séries, é apresentado uma sequência de sons ao sujeito, que deve discriminar entre três possibilidades a que melhor completa a série apresentada. No subteste Analogias 1, o sujeito ouve um conjunto de sons no qual deve identificar algum tipo de analogia, como um intervalo de terça entre as notas, e escolher entre as três alternativas a que apresenta a mesma analogia do item. Por último, em Analogias 2, o sujeito deve comparar duas melodias, identificar semelhanças entre elas e encontrar a mesma melodia em duas das quatro alternativas apresentadas.
Sobre os estudos realizados acerca da validade do RAu (Cunha, 2007), o instrumento foi aplicado em 162 sujeitos que possuíam diferentes níveis de conhecimento em música, sendo eles 24 músicos, 62 músicos amadores e 76 leigos em estudo musical. Os dados mostraram que o instrumento é capaz de separar as pessoas em três grupos distintos (músicos, músicos amadores e leigos), de acordo com o nível de habilidade musical (F = 42,398, p < 0,05). O índice de fidedignidade encontrado, alfa de Cronbach, foi igual a 0,91. Evidencia-se, assim, a adequação psicométrica do instrumento.
Procedimentos
Os participantes foram contatados e convidados a participar da pesquisa. Após terem aceitado, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Protocolo CAAE n. 0174.0.142.000-08). Todos os participantes responderam ao RAu, por meio de um microcomputador em que, previamente, o pesquisador instalou o software contendo o instrumento. Além disso, todos os participantes responderam a dois subtes-tes da BPR-5, primeiramente o RV e, na sequência, o RE, conforme especificado no manual do teste (Primi & Almeida, 2002a). A aplicação dos instrumentos teve uma duração média de 50 minutos.
Os dados foram analisados primeiramente quanto às estatísticas descritivas para verificar os desempenhos dos participantes nos testes utilizados. Foi realizada a análise Anova a fim de verificar diferenças significativas nos desempenhos dos grupos. Por fim, empregou-se a correlação de Pearson com o objetivo de identificar correlações entre os construtos avaliados. Vale ressaltar que não se realizou nenhum tipo de controle em relação a possíveis acertos feitos ao acaso pelos participantes que responderem ao RAu.
Resultados e discussão
Na sequência, são apresentados os resultados encontrados neste estudo para os grupos G1 (músicos), G2 (músicos amadores) e G3 (leigos), bem como a análise teórica desses dados. Na Tabela 2, as estatísticas descritivas e as informações obtidas por meio da Anova podem ser verificadas para os subtestes da BPR-5 e do RAu.
Pode-se observar que os sujeitos dos grupos G1 e G2 obtiveram os maiores escores para todos subtestes, destacando-se as provas de Analogias 1 e 2 do RAu. Além disso, os grupos apresentaram diferenças significativas nas cinco provas analisadas. Esses dados corroboram os estudos encontrados na literatura (Cunha, 2007; Helmbold et al., 2005; Billhartz et al., 1999), em que os instrumentos foram capazes de separar os grupos de acordo com o nível de formação em música. Também de maneira similar ao que foi apresentado neste estudo, essas pesquisas evidenciaram, no geral, maiores escores para os músicos nos testes aplicados.
Os dados encontrados, especificamente a obtenção de maiores escores pelos grupos de músicos (G1 e G2), apontam para uma relação entre o Ga, que se refere a processos envolvendo tarefas com conteúdo musical (Carroll, 1993), e o Gkn, que diz respeito à extensão e profundidade de conhecimentos específicos que não são presentes no cotidiano comum às pessoas (McGrew, 2009). Os resultados apoiam a ideia de que os escores superiores obtidos nos subtestes do RAu se dão devido aos anos de estudo em música e se associam à automatização de conhecimentos sobre esse tipo de conteúdo, facilitando o desempenho dos respondentes. Então, embora o teste possa ser resolvido por pessoas que não possuem esses conhecimentos, já que não requer habilidades musicais obtidas de maneira formal (por exemplo, leitura de partitura), o investimento de anos de instrução nesse tipo de domínio está associado ao melhor desempenho na tarefa. Vale ressaltar que o grupo de músicos não apresentou a maior média para o subteste RE da BPR-5, embora tanto os músicos profissionais quanto os músicos amadores tenham apresentado médias superiores aos leigos.
Buscando um refinamento para as análises Anova realizadas, por meio da análise post hoc verificou-se quais dos três grupos (G1, G2 e G3) apresentaram diferenças significativas em cada uma dos subtestes do RAu. Os dados são apresentados na Tabela 3.
Para todos os subtestes, os sujeitos foram divididos em grupos distintos. Para as duas provas de analogias, os grupos foram separados de acordo com a experiência musical (G1 e G2) e os que não possuem tal experiência (G3). O subteste Analogias 1 apresentou diferença entre os sujeitos do G3 e os sujeitos de G1 e G2 com magnitudes elevadas (p < 0,01; d = 1,0); os sujeitos do G3 demonstraram diferença significativa e com magnitude elevada dos demais grupos (p < 0,01; d = 2,5) no subteste Analogias 2. Para o subteste Séries, foram encontradas diferenças significativas e com magnitudes moderadas e altas, respectivamente, entre G2 e G3 (p < 0,01; d = 1,1) e G1 e G2 (p < 0,01; d = 0,65), diferenciando G2 de G3.
Esses dados demonstram que o RAu foi capaz de discriminar os sujeitos de acordo com o nível de conhecimento específico (Gkn) relacionado ao domínio musical. Pode-se inferir, ainda, que o RAu está medindo um construto relacionado a processamento auditivo musical (Ga), visto que, para todos os subtestes, os sujeitos com conhecimento musical apresentaram melhor desempenho que os outros participantes. Esses dados vão no sentido esperado, isto é, os sujeitos com melhor desempenho no instrumento são os que compõem o grupo de músicos.
Destaca-se também que os subtestes que apresentaram maior poder de discriminação foram Analogias 1 e 2, com destaque para Analogias 2. Esses dois subtestes são os de maior dificuldade do RAu (Cunha, 2007), sendo Analogias 2 o que se apresenta como mais complexo por conter um maior número de estímulos a serem analisados durante o processo de resolução de problemas. Também esse dado configura-se como evidência de validade para o instrumento, já que os subtestes que teoricamente são mais intensos no construto latente (Ga) foram aqueles que melhor discriminaram os grupos.
Resultados semelhantes foram encontrados por Schellenberg e Moreno (2009) em uma pesquisa que buscou verificar a relação entre habilidade musical e o coeficiente de inteligência (QI). Para a avaliação das habilidades musicais, foram apresentados estímulos sonoros nos quais os sujeitos deveriam discriminar entre diferentes frequências. Os resultados demonstraram que os músicos obtiveram escores superiores, configurando-se em grupos distintos referentes ao nível de conhecimento musical.
Na continuidade, com a finalidade de verificar a relação entre os testes, foi realizada a correlação de Pearson entre as pontuações dos subtestes (Tabela 4). De acordo com os critérios estabelecidos por Hemphill (2003), os dados obtidos demonstraram magnitude moderada para o subteste Analogias 2, tanto com RV quanto com RE. O subteste Analogias 1 apresentou correlação baixa com RV e RE. Obtiveram-se ainda correlações com maiores magnitudes entre os subtestes do RAu em relação às demais.
As magnitudes encontradas entre os escores do RAu sugerem que os subtestes do instrumento estão medindo um mesmo construto. Além disso, as relações desses subtestes com RV e RE apontam que o construto avaliado é relacionado com Gf, mas não é o mesmo construto. Assim, retomando a questão da pesquisa, indagando se as tarefas do RAu podem ser consideradas medidas de habilidades específicas (Gkn), os resultados favorecem a interpretação dessas tarefas como medindo a habilidade musical, associada ao Ga, ainda que relacionada ao raciocínio geral (Gf), em conformidade com os resultados de Peretz et al. (2003) acerca do modelo de processamento cognitivo musical.
Ainda, os resultados apontaram correlação significativa e positiva de RV e RE com os subtestes Analogias 1 e 2, e o subteste Séries não apresentou correlação significativa com as provas da BPR-5. Os subtestes Analogias 1 e 2 demandam maior desempenho cognitivo do respondente em relação ao subteste Séries, o que pode estar relacionado com os dados encontrados. Esses dados sugerem que os indivíduos com estudo musical apresentam maior nível de habilidade em outros tipos de raciocínio, como RV e RE, corroborando os estudos de Billhartz et al. (1999) e Helmbold et al. (2005), apresentados anteriormente, em que os sujeitos inseridos no estudo musical ou com conhecimento musical prévio obtiveram maiores escores em outros tipos de raciocínio.
Conforme descrito, este estudo teve como objetivo verificar se as tarefas de processamento auditivo do RAu eram uma medida de habilidade específica de processamento auditivo ou outra tarefa distinta de inteligência fluida. Os resultados encontrados demonstraram maiores magnitudes de correlação entre os subtestes do RAu do que com as provas da BPR-5 e, ainda, que os músicos apresentaram maiores escores do que os não músicos no RAu e nos subtestes RA e RV da BPR-5. Esses dados sugerem evidências de validade do instrumento, em ambos os casos por meio de variáveis externas, ou seja, os subtestes RV e RE da BPR-5 e o nível de conhecimento musical.
Nesse sentido, os resultados possibilitam observar que o RAu avalia competências ligadas à habilidade musical, portanto associadas ao Ga, baseado no nível de conhecimento em música. Ainda assim, o nível de conhecimento em música associa-se tanto ao Gkn, já que se trata de um conhecimento específico, quanto à capacidade de resolver os problemas apresentados pelo teste, isto é, Gf. Essa relação é ressaltada na literatura (McGrew, 2009) e sugere que, embora seja possível inferir que o processamento das informações ocorre por intermédio de Ga, também Gf e Gkn estão ligados ao nível de desempenho no teste.
Vale ressaltar que este estudo contou com uma amostra relativamente pequena, sobretudo para o grupo de músicos profissionais, e que o aumento do número de sujeitos pode impactar nos dados evidenciados. Nesse sentido, as informações apresentadas nesta pesquisa devem ser consideradas em uma perspectiva exploratória utilizando o RAu. Apesar disso, houve uma clara diferença entre os grupos, no geral, no sentido esperado a priori. Além disso, é importante que futuros estudos utilizem delineamentos distintos da presente pesquisa com a finalidade de demonstrar evidências de validade para o RAu, isto é, estudos que corroborem que o instrumento avalia predominantemente o Ga. Exemplo disso seria o uso de desenhos longitudinais, permitindo que o pesquisador acompanhe o desenvolvimento das habilidades musicais de diferentes indivíduos.
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Endereço para correspondência:
Fernando Pessotto
Universidade São Francisco, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia
Rua Alexandre Rodrigues Barbosa, 45, Centro
Itatiba - SP - Brasil. CEP: 13251-040
E-mail: fernandopessotto@gmail.com
Submissão: 15.09.2010
Aceitação: 06.09.2013
* Apoio financeiro: CNPq e Fapesp.