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Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva

versão impressa ISSN 1517-5545

Rev. bras. ter. comport. cogn. vol.6 no.1 São Paulo jun. 2004

 

ARTIGOS

 

Relatar emoções transforma as emoções relatadas? Um questionamento do paradigma de Pennebaker com implicações para a prevenção de transtorno de estresse pós-traumático

 

To report emotions transforms the reported emotions? Questioning Pennebaker’s paradigm as to its implications for the prevention of post-traumatic stress

 

 

Luc Vandenberghe1

Universidade Católica de Goiás

 

 


RESUMO

Pessoas muitas vezes sentem um alivio depois de ter compartilhado emoções relacionadas a um trauma. Porém não há dados claros que indicam que estas emoções realmente são transformadas por este ato de compartilhar. A pesquisa empírica acerca dos efeitos do compartilhamento verbal de emoções gerou resultados contra-intuitivos e dificilmente interpretáveis. Isto é o caso tanto na psicologia experimental social quanto na pesquisa clínica acerca da prevenção de estresse pós-traumático. Uma releitura critica desses resultados realça lacunas que merecem atenção da pesquisa. Questões referentes à relação entre esquiva experiencial e compartilhamento de emoções e principalmente ao que a pessoa aprende enquanto relatando as suas emoções, precisavam ser examinadas em mais detalhe.

Palavras-chave: Emoção, Comportamento verbal, Compartilhamento social.


ABSTRACT

Although people often feel relieved after having shared emotions related to a trauma, there are no clear data showing that trauma-related emotions really are transformed by such act of sharing. Empirical research concerning the effects of verbally sharing emotions, led to contra-intuitive results that are difficult to interpret. This is the case both in experimental social psychology as in clinical research on the prevention of post-traumatic stress disorder. A critical appraisal of these results points out a few vacuums that deserve more attention from research. Questions about the relation between experiential avoidance and sharing of emotions and principally about what a person learns when reporting his or her emotions should be examined more carefully.

Keywords: Emotions, Verbal behavior, Social sharing.


 

 

Muitos conhecem o alivio proporcionado pelo fato de encontrar alguém com quem falar sobre seus sofrimentos, mesmo que esta pessoa não possa oferecer solução alguma. Há os que escrevem num diário o que não podem falar com ninguém. Tudo isto faz parte da vivência de muitas pessoas. Depois de haver relatado o que se sente, o insuportável se torna suportável e o inadmissível admissível. Parece que no ato de relatar emoções, algo mudou.

Neste artigo, pretende-se analisar a literatura cientifica acerca deste efeito. Existem indicações de que relatar emoções transforma, de algum modo, as emoções relatadas? E quais poderiam ser os processos envolvidos em tal transformação? No texto que segue, uma releitura dos dados empíricos provenientes de diferentes tradições de pesquisa é efetuada a partir de um ponto de vista comportamental.

Na análise do comportamento (Haydu, 2001), como em várias outras abordagens da psicologia (p. ex. Gonçalves, 1998), os esforços do indivíduo para entender sua própria experiência e dar sentido aos eventos da sua vida, são compreendidos como um processo de construção social. A simbolização da vivência só tem sentido e só é possível a partir da inserção do indivíduo em uma comunidade verbal. Isto significa que o relato da experiência e as seqüências de interações com outras pessoas, têm um papel essencial na determinação do sentido que a vivência terá para a pessoa.

Tais seqüências de trocas foram estudadas por psicólogos sociais. Eles mostraram, por exemplo, que relatos de emoções decorrentes de vivências intensamente negativas, provocam no ouvinte que pertença ao círculo íntimo do falante, reações emocionais aversivas e paradoxalmente, comportamentos interpessoais de fascínio, redução de distância e verbalizações de teor positivo (Christophe e Rimé, 1993). A inibição de expressão emocional, pelo contrario, além de causar modificações fisiológicas aversivas no ouvinte e no falante, também atrapalha a interação social e influencia negativamente o desejo relatado pelo ouvinte de se relacionar no futuro com o falante (Butler; Egloff; Wilhelm; Smith; Erickson e Gross, 2003).

Relatos de emoções em relação a traumas envolvem muitas vezes padrões de interação positiva e aprofundamento do relacionamento entre a pessoa traumatizada e seu ouvinte. Estes padrões podem ter, de acordo com o trabalho do grupo de Rimé, uma função importante para o indivíduo pois assim este recebe apoio para refletir sobre o que aconteceu e dar sentido ao trauma, mas também para a coletividade que, acolhendo e apoiando as tentativas de um membro debilitado por uma vivência traumática de falar o que ele sente, recupera o mesmo para o grupo (Rimé; Noël e Philippot, 1991).

Para interpretar dados de pesquisas de tradições tão diversas quanto a etologia e a psicologia social, Skinner (1966) propõe um processo estocástico complexo em que variações de comportamentos do indivíduo e práticas de grupos são selecionadas pelas suas conseqüências nos contextos em que ocorrem. Esta seleção acontece no nível filogenético (padrões de comportamento da espécie), ontogenético (aprendizagem operante do indivíduo) e cultural (desenvolvimento de padrões sociais próprios da comunidade). Em cada nível, qualquer mudança pode ter efeitos benéficos ou danosos que influenciarão a evolução dos padrões relevantes. Assim, variações de práticas coletivas ou comportamentos de indivíduos são selecionadas pelas suas conseqüências.

Padrões de expressão emocional, ligados a um trauma vivenciado, numa linguagem socialmente compartilhada, foram estudados em culturas de todos os continentes. Pessoas falam e escrevem sobre o que sentem e relatam sentir-se melhor depois. Nas mais diversas regiões, práticas coletivas, culturais e religiosas apóiam tais comportamentos. A presença generalizada desses padrões sustenta a hipótese do grupo de Rime, que o compartilhamento social é uma parte integral da resposta emocional. Ela seria uma maneira adaptativa da espécie humana de lidar com eventos aversivos (Rime, Noël e Philippot, 1991).

1. Expressão emocional e bem-estar físico.

O impacto de eventos aversivos e de como a pessoa lida com eles, sobre a saúde é uma área de intensa investigação (O’Leary, 1990). O nosso ponto de interesse, o comportamento verbal acerca desses eventos, é uma subárea particularmente frutífera. Experimentos em laboratório mostraram que o relato de uma vivência traumática evoca emoções e respostas fisiológicas particularmente aversivas na hora, mas pode ter efeitos benéficos bem definidos em longo prazo (Pennebaker, 1989).

O paradigma de Pennebaker foi proposto nos anos 1980 para a investigação experimental dos efeitos deste compartilhar. O delineamento é padronizado: um grupo de sujeitos escreve sobre os eventos mais estressantes ou traumáticos da sua vida, enquanto o grupo controle escreve sobre assuntos banais. Geralmente as sessões têm uma duração entre 15 a 30 minutos e são repetidas três, quatro ou cinco vezes em um intervalo de uma semana. Depois de um período de semanas ou meses, as mudanças na saúde são avaliadas e comparadas entre os dois grupos. Muitas vezes a mudança é operacionalizada em termos de freqüência de uso de serviços médicos ou ausência no trabalho por motivos de saúde antes e depois das sessões ou em termos de listas de sintomas avaliadas pelo próprio sujeito. Nas mais diversas populações, o grupo experimental evidenciou melhoras significativamente maiores do que o grupo controle (Pennebaker, 1989).

Pennebaker e Bael (1986) verificaram que escrever sobre aspectos emocionais afeta a saúde positivamente enquanto escrever somente sobre aspectos factuais do episódio traumático não resultou neste efeito. Este dado estabeleceu a ligação do paradigma de Pennebaker com os trabalhos do grupo de Rimé, apoiando a noção de que o compartilhamento das emoções (e não das vivências factuais) constitui um comportamento de recuperação depois de uma vivência aversiva.

A observação, muitas vezes repetida, de que escrever sobre emoções acerca de acontecimentos traumáticos, traz benefícios à saúde, permanece enigmática. A hipótese inicial de Pennebaker (1989; Pennebaker e Bael, 1986) era de que expressar emoções que foram guardadas durante muito tempo, constitui o encerramento de um trabalho ativo e desgastante de inibição, que estava prejudicando a saúde do sujeito. A relação entre estresse crônico e diminuições de uma variedade de indícios de imunidade já foi estabelecido há muito tempo (O’Leary, 1990). A eliminação da inibição como fonte permanente de estresse foi assim proposta como possível mecanismo do efeito das resenhas sobre a saúde.

O pensamento mais recente dentro da área sugere que qualidades específicas da produção escrita são relacionadas com o efeito. Evidência para esta idéia será discutida abaixo. Neste caso, as resenhas são consideradas oportunidades para o participante reorganizar seu relato ou sua interpretação do que aconteceu com ele (Campbell e Pennebaker, 2003). Mudanças nas emoções, frente a um evento, mudam a nossa resposta fisiológica em relação a este mesmo evento. Diferentes emoções podem ser relacionadas com contextos bioquímicos nos quais o sistema imunológico reconhece como relevante certos antígenos inofensivos, gerando alergias e outros problemas. Mudanças na maneira de a pessoa responder emocionalmente a um trauma, podem mudar estes contextos, assim que certos antígenos não desencadeassem mais as mesmas respostas imunológicas deletérias (Booth e Petrie, 2002).

Nos dois casos, a recuperação emocional deveria antecipar a melhora da saúde. Se a pessoa abandonou a inibição de emoções e pensamentos relacionados ao trauma ou se ele modificou a sua compreensão e a sua atitude frente ao evento, as suas respostas emocionais à evocação do trauma deveriam ser diferentes depois da intervenção. Quando variáveis da saúde mudam, mas a pessoa continua reagindo emocionalmente da mesma forma quando confrontado com lembranças do evento, os efeitos físicos não podem ser atribuídos a mudanças emocionais.

2. Expressão emocional e bem-estar psicológico.

Na psicologia clínica, floresce no seio das linhas teóricas mais diversas, a idéia de que processar intensamente vivências traumáticas de forma simbólica, tem um efeito terapêutico. No seio das terapias cognitivas e comportamentais, existem, entre muitas outras, explicações de cunho neo-pavloviano (Rachman, 1998; Drobes e Lang, 1995), cognitivo-construtivista (Gonçalves, 1998) e behaviorista radical (Wilson e Blackledge, 2000) que sustentam esta idéia. À primeira vista, uma similaridade com o que acontece no paradigma de Pennebaker ocorre, sugerindo que um mesmo processo pode ser responsável para a melhoria na saúde e nas variáveis de bem-estar psicológico.

Zech (1999; 2003) examinou os efeitos específicos da expressão emocional sobre a recuperação emocional do trauma. Esta recuperação é definida como a mudança, através do tempo, na intensidade das emoções evocadas por lembranças ao trauma. Ela conduziu uma série de trabalhos nos quais a recuperação emocional era medida como a evolução da intensidade das emoções ou das respostas fisiológicas evocadas pela lembrança de um evento aversivo. Ela pediu aos sujeitos para relembrar um episódio emocional negativo específico que eles tivessem vivenciado. Na condição experimental, os participantes relataram durante uma entrevista as emoções sentidas em relação a estes eventos. Na condição de controle, os sujeitos verbalizaram outros assuntos.

Em quatro estudos diferentes, os resultados se revelaram muito robustos. A intensidade emocional ao relembrar-se do evento, depois da entrevista, não diminuiu mais do que na condição controle. Sensações físicas, pensamentos intrusivos ou avaliações subjetivas de recuperação emocional também não diferiram entre os grupos experimental e controle. Paradoxalmente, apesar de não diminuir a intensidade da resposta aversiva à evocação do trauma, os participantes que tinham compartilhado emoções avaliaram a sessão como muito mais benéfica do que os que tinham relatado aspectos objetivos. Este benefício não corresponde com nenhum outro variável verificado no estudo. Assim continua sendo misterioso a que benefício se refere a satisfação que os participantes relatam.

Em um estudo de Klapow e cols. (2001) um efeito paradoxal similar foi encontrado entre pacientes psiquiátricos idosos. Aqui também, os participantes consideraram a intervenção como muito satisfatória, sem mostrar um efeito diretamente mensurável que poderia justificar esta avaliação. Três sessões de escrita sobre vivências levaram a uma considerável redução de uso de serviços médicos, mas não houve uma diminuição significativa na sintomatologia somática ou psicológica.

Rosenberg e cols. (2002) relatam um estudo com homens que passaram durante os quatro anos anteriores por um tratamento de câncer de próstata. Escrita expressiva levou a melhoras na saúde física em termos de uso de serviços médicos e auto-relato de sintomas, mas não em termos de imunocompetência nem em bem-estar psicológico.

Também contrariando a expectativa, Gallagher e MacIachlan (2002) descobriram, numa amostra de pessoas que sofreram amputação de algum membro, que a escrita expressiva diminuiu significativamente a satisfação dos participantes com a prótese que usavam. Ainda mais difícil para entender é que este efeito era parcialmente mediado por melhoras no estado emocional imediatamente depois das sessões de escrita.

Num estudo sobre luto, pessoas que recentemente perderam o parceiro não mostraram melhoras em termos de ajustamento psicossocial ou de recuperação emocional por falar extensivamente sobre a sua perda, nem por participar de sessões de escrita expressiva (Stroebe e cols., 2002).

Próximo da nossa área de interesse, existe um procedimento conhecido como Critical Incident Debriefing – ou CID (Mitchell e Everly, 1995) que tem como alvo a prevenção do Transtorno de Estresse Pós-traumático (TEPT). Nesta intervenção, pessoas que passaram por uma vivência potencialmente traumática, são reunidas para uma entrevista coletiva o mais rápido possível depois do evento. Eles são convidados a descrever o que aconteceu, a expressar as suas principais idéias acerca do evento e a destacar o que foi mais grave para eles nesta situação.

Zech (2000) apontou numa revisão das meta-análises sobre efeitos de CID que em última análise, nenhuma apoiou a eficácia da intervenção na prevenção de TEPT. Estudos mais recentes também são pouco positivos. Mayou, Ehlers e Hobbs (2000) estudaram o efeito da intervenção em vítimas de acidentes de trânsito. Depois de um intervalo de três anos, eles não encontraram diferenças significativas entre o grupo experimental e um grupo de vítimas que não tinham participado do CID, concernindo comportamento de esquiva ou sintomas intrusivos. O que surpreendeu mais é que o grupo experimental relatou mais dor, hostilidade, ansiedade, depressão e sintomas obsessivo-compulsivos e julgou sua qualidade de vida mais baixa do que o grupo controle.

Rose, Bisson e Wessely (2001) selecionaram estudos publicados que usaram um delineamento experimental onde sujeitos eram encaminhados de forma randômica a um grupo de debriefing ou não. Os resultados destes estudos não evidenciaram menos sofrimento psicológico nem redução nos sintomas de TEPT no grupo experimental comparado com o grupo controle.

A eficácia do procedimento não tem sustentação, o que é um argumento contra a hipótese de que verbalização de emoções leva a uma recuperação psicológica. Trata-se claramente de um paradigma em crise, o que justifica o questionamento dos seus pressupostos subjacentes. Zech (2000) aponta que o raciocínio do CID é apoiado tanto pela visão comportamental clássica quanto pela cognitiva. A fala sobre eventos emocionalmente aversivos, leva à extinção de certas respostas emocionais aos estímulos simbólicos condicionados (teoria neo-Pavloviana) e, tecendo a sua narrativa verbal, é possível que aconteça uma reorganização dos conteúdos relatados (modelo cognitivo).

O modelo contemporâneo da terapia comportamental clássica (Drobes e Lang, 1995; Rachman, 1998), propõe que uma estrutura de conectividade que representa uma vivência traumática numa rede neural é ativada quando a pessoa revive as emoções ligadas ao trauma. Em tal momento, o padrão de ativação neural é necessariamente modificado de acordo com o contexto em que a reativação aconteceu. Assim, falar com emoção intensa e genuína sobre eventos aversivos, num contexto acolhedor, deveria gerar um processamento emocional benéfico.

Uma emoção consiste em um conjunto de comportamentos que não estão necessariamente alinhados uniformemente. Os trabalhos de Lang e colaboradores apontaram falta de sincronia expressa entre uma variedade de dimensões fisiológicas e verbais das emoções. Se durante o tratamento de TEPT, o cliente fala (elaboração semântica) sem emitir respostas fisiológicas congruentes, a eficácia terapêutica é limitada. Pesquisa neste modelo mostrou que tempo e profundidade de elaboração (ativação intensa e geral da parte relevante da rede incluindo diferentes respostas fisiológicos, semânticos e pre-motores) são variáveis importantes em tratamentos de exposição (Drobes e Lang, 1995; Rachman, 1999).

O raciocínio também é compatível com certas teorias pós-skinnerianas, como a teoria dos quadros relacionais que prediz que quando as emoções vivenciadas ao falar são transformadas, a vivência dos próprios eventos sobre os quais se fala se transformará também (Hayes, Pankey & Gregg, 2002; Wilson e Blackledge, 2000). Como no outro modelo de rede, a teoria neo-Pavloviana anteriormente discutida, elementos (respostas fisiológicas, verbais e outras) são transformados em função das relações que tem com os demais elementos.

É importante ressaltar que nenhum destes modelos prediz necessariamente a recuperação psicológica meramente por ter falado sobre o trauma. O modelo de quadros relacionais exige que a função de um elemento (aqui seria a fala) seja modificada, por exemplo, extinção da função evocativa de ansiedade, para que esta mudança possa ter implicações sobre elementos relacionados. Alternativamente, a modificação das relações entre os elementos pode gerar mudanças nas funções de certos elementos (Hayes, Pankey & Gregg, 2002, Wilson e Blackledge, 2000). Pesquisa no modelo neo-pavloviano mostrou que trabalhos de exposição verbal ou ao vivo precisam envolver ativação das emoções mais centrais de forma intensa, genuína e suficientemente demorada. Os resultados terapêuticos são maiores e mais definitivos quando a ativação gradualmente aumenta, até alcançar um platô para depois diminuir e encerrar num nível baixo sem ter interrompido a exposição ao estímulo (Levis, 1995; Rachman, 1999). Estas características não estão necessariamente presentes nas aplicações do paradigma de Pennebaker e nenhum dos dois é garantido no Critical Incident Debriefing.

Se o compartilhamento não ameniza o sofrimento, é preciso identificar qual é a função deste comportamento. Um trauma do qual a pessoa não se recuperou emocionalmente, é tema de muito mais compartilhamento social do que outros traumas. Este dado empírico precisa ser explicado. Foi sugerido que uma função deste compartilhar é a de envolver estes eventos emocionais numa história socialmente construída, com sentido para o grupo e o individuo (Rime, Noël e Philippot, 1991; Pennebaker, Zech e Rime, 2001). Parece mais provável que o compartilhar serve a este fim do que à eliminação de respostas emocionais adquiridas. Uma memória emocionalmente carregada contém informação importante, relevante para situações futuras. Se tivermos a opção de mudar o potencial destas lembranças simplesmente falando sobre elas, perderemos o proveito da nossa experiência (Zech, 2002).

3. Qualidade do relato verbal.

Pennebaker (1997) descobriu que as pessoas que melhoraram mais, eram as que, além de verbalizar emoções intensas, também mostraram uma mudança marcada na interpretação do evento da primeira sessão até a última. Uma evolução na qualidade das resenhas era claramente relacionada com o efeito sobre a saúde.

Trabalhos mais recentes mostraram que as pessoas cuja saúde teve mais intensa melhora, passaram de um uso intenso da primeira pessoa do singular na primeira sessão para a primeira pessoa do plural ou até para uma ênfase nas perspectivas de outras pessoas na última resenha. Depois da intervenção, gravação de comportamento verbal espontâneo no dia a dia mostrou que estas pessoas usam mais palavras indicando emoções positivas do que antes da intervenção. Elas também aumentam o tempo que passam na companhia de outras e riam mais (Pennebaker e Graybeal, 2001). Em uma re-análise de dados de estudos anteriores, este achado foi replicado. O uso de pronomes pessoais nas resenhas sobre memórias traumáticas foi também relacionado com melhoras na saúde física. Escrever sobre a experiência pessoal (sobre “eu”) e sobre as relações sociais tem um papel importante (Campbell e Pennebaker, 2003).

King (1997) avaliou o efeito de um outro aspecto importante da recuperação de traumas, a redefinição do futuro, aprender com o que aconteceu. Ela adicionou, no delineamento tradicional de Pennebaker, um terceiro grupo de participantes com a instrução de escrever sobre a recuperação no quadro do projeto de vida deles. Esta nova intervenção tinha efeitos similares ao da expressão emocional das intervenções de Pennebaker. Aqui é possível afirmar que a capacidade de dar sentido ao futuro, beneficia a saúde da mesma forma que a capacidade de dar sentido a um trauma passado.

Lutgendorf, Vitaliano, Tripp Reimer, Harvey, e Lubaroff, (1999) relataram que comparado com um grupo controle, pessoas idosas que mudam para uma casa de repouso mostram uma diminuição em torno de 30 % na atividade de um tipo células que são envolvidos na resposta imunológica a tumores (abreviada na literatura NKA – Natural Killer cel Activity). Idosos que conseguiram ver coerência nesta mudança, isto é que eram capazes de achar um sentido neste evento estressante, não mostraram esta diminuição. Os que tinham o menor senso de coerência sofreram o maior efeito deletério na NKA de toda a amostra. Considerando que as células NK têm um papel importante na prevenção de câncer, a capacidade de construir uma compreensão de vivências que faz sentido, pode ser um preditor importante de saúde..

Num estudo verificando o efeito da escrita expressiva sobre sintomas de disforia e ansiedade social em vítimas de estupro ou tentativa de estupro, Brown e Heimberg (2001) descobriram que um maior detalhamento e um nível moderado de personalização nas resenhas levaram às maiores reduções de sintomas um mês depois da intervenção. Este estudo é também importante porque mostra um efeito das resenhas sobre o bem-estar psicológico.

A literatura mostra assim, que características semânticas da produção escrita são elementos importantes no processo. Vemos também que outros conteúdos além do compartilhar de emoções podem ter efeitos similares. Parece tratar-se de uma compreensão dos conteúdos em termos da vivência ou em termos da elaboração do futuro pessoal.

4. Esquiva emocional.

A hipótese inicial de Pennebaker (1989) de que expressar emoções que foram inibidas durante muito tempo elimina uma fonte de estresse importante para o organismo, não foi descartada. Inibição de pensamentos ou emoções sobre longos períodos de tempo aumenta as probabilidades de uma variedade de doenças, processo esse que parece estar relacionado com variações nos níveis de cortisol e pela atividade do sistema nervoso autônomo em pessoas que inibem emoções (Pennebaker, Zech e Rimé 2001).

Como discutido acima, há um paralelo na psicologia clínica. Segundo as formulações de Hayes (1987) e de Hayes, Pankey e Gregg (2002) tentativas de não vivenciar certas emoções, de não ter certos pensamentos e não lembrar de certos eventos tem um papel central no desenvolvimento de transtornos de ansiedade. Compartilhar emoções pode ser, de forma invertida, relacionado com a esquiva emocional. A literatura empírica sugere algumas direções.

Numa pesquisa de Finkenauer e Rimé (1998), as pessoas precisavam de mais esforço para tentar entender e atribuir sentido a traumas que nunca foram verbalizados. Traumas que já tinham sido verbalizados antes, não exigiam tanto esforço. Os pesquisadores supuseram que este dado apóia a noção de que expressando emoções através da linguagem, as pessoas elaboram a compreensão de eventos traumáticos. Podemos interrogar a direção da causalidade. A dificuldade que a pessoa tem para entender o evento pode dificultar a expressão das suas emoções. Alternativamente a não-expressão pode dificultar a compreensão do evento pelo indivíduo. É possível que se trata de uma causalidade bi-direcional.

Lynch e cols. (2001) relataram uma pesquisa em que a inibição de emoções funcionou como mediador da relação entre a intensidade de afeto negativo e sofrimento psicológico agudo. Os dados deles sustentaram também a noção de que a esquiva emocional é uma estratégia usada principalmente por pessoas que sintam emoções de forma mais intensa. Supressão de pensamentos aversivos e inibição de expressão emocional eram associados com sintomatologia depressiva e desespero. O desespero era mais bem predito por tentativas de controlar emoções do que pela intensidade das próprias emoções negativas.

Christophe e Rimé (1993) mostraram que relatos de vivências negativas de intensidade média já evocam, num ouvinte íntimo do falante, respostas emocionais aversivas, mas que os comportamentos públicos do ouvinte, que são potencialmente reforçadores do ato de relatar, têm um limiar bem mais alto. Em termos comportamentais, podemos dizer que este fragmento da comunidade verbal reforça, de maneira discriminativa, relatos de vivências negativas intensas enquanto negligencia relatos de eventos não tão aversivos.

De acordo com várias teorias pós-skinnerianas, a comunidade verbal tem todo motivo para apoiar a expressão verbal do cliente, para facilitar a sua recuperação para a interação social, após ter sofrido um trauma. Mas estas teorias indicam também que a mesma comunidade pode restringir a concentração nas emoções negativas, porque esta deixa o sujeito, do ponto de vista da sociedade, fora de serviço. As emoções negativas transtornam o funcionamento familiar, profissional e mais geralmente social do individuo. Assim contingências sócio-verbais que promovem esquiva de vivências emocionais beneficiam o grupo enquanto prejudicam a longo prazo a pessoa (Kohlenberg e Tsai, 1991/2001; Hayes, Pankey & Gregg, 2002).

Resumindo os resultados desta revisão de literatura, a situação que se mostra é complexa. Inibir eventos privados aversivos tem um efeito maléfico sobre o funcionamento psicológico. Expressar, numa linguagem socialmente compartilhada, emoções decorrentes de vivências aversivas tem um efeito benéfico na saúde física do sujeito. Mudanças de qualidade semântica (entre outras, evolução no uso de palavras que sinalizam compreensão do evento) no decorrer do processo de relatar, são relacionadas com estes efeitos. As relações entre os diferentes efeitos da expressão emocional não são claras. Processos semânticos também são relacionadas com a eficácia de tratamentos de transtornos de ansiedade. Porém, não há indicações de que compartilhar emoções tem um efeito benéfico sobre a recuperação do trauma. Por isso, estudos que avaliam tanto o efeito sobre o bem-estar físico e psicológico, quanto sobre a recuperação emocional do trauma são necessários.

De um ponto de vista comportamental, a pesquisa deveria focalizar assuntos até agora pouco elaborados. O que a pessoa aprende quando expressa as suas emoções? Existem indicações que diferentes aprendizagens são envolvidas na recuperação do bem-estar físico e na recuperação emocional do trauma. Qual é o papel do grupo ou da cultura aos quais a pessoa pertence? Qual é a relação entre enfrentamento e aceitação de emoções e compartilhamento verbal? A intensidade da vivência emocional durante o relato e a qualidade da elaboração semântica tem um papel similar ou diferente na recuperação emocional e nos efeitos sobre a saúde física?

Para entender como os tratamentos psicológicos e trabalhos de prevenção com vitimas de traumas podem ser eficazes, precisamos esclarecer estas questões. O fato de que no tratamento dos resquícios emocionais de vivências aversivas, terapias verbais predominam, justifica mais pesquisa empírica acerca do papel do comportamento verbal na recuperação emocional do sujeito traumatizado.

 

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Recebido em: 20/10/2003
Primeira decisão editorial em: 13/04/2004
Versão final em: 27/06/2004
Aceito em: 28/06/2004

 

 

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