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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148versão On-line ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. v.1 n.1 Fortaleza set. 2001

 

ARTIGOS

 

A prostituição infanto-juvenil sob o prisma do mal-estar e da subjetividade

 

 

Francisca Helena Rocha

Assistente Social e Mestre em Psicologia pela UNIFOR. E-mail: cmps@unifor.br

 

 


RESUMO

A problemática da prostituição infanto-juvenil, nas grandes cidades brasileiras, vem suscitando debates e concentrando esforços de variados segmentos ligados à esfera jurídica, institucional, bem como à sociedade de forma geral. Tentando inscrever as instâncias da subjetividade e do mal-estar no bojo dessas discussões, constitui objetivo deste trabalho tecer algumas considerações acerca de tais instâncias, por entendê-las imprescindíveis à análise e compreensão do fenômeno em foco.

Palavras-chave: adolescência, mal-estar, prostituição, sociedade, subjetividade


ABSTRACT

The problem of juvenile prostitution in the big Brazilian cities has been generating debates and focusing a great deal of effort from various areas connected to the law and to the society in general. Trying to include subjectivity and hard feelings in those discussions is the main purpose of this project, as well as weaving some insights about the subject, since such insights are vital to the analysis and understanding of the phenomenon of juvenile prostitution.

Keywords: adolescence, discontent, prostitution, society, subjectivity


 

 

1. Uma viagem ao território da subjetividade

A temática da subjetividade, apesar de vir sendo abordada nas duas últimas décadas com maior freqüência nas ciências sociais e humanas, não constitui uma terminologia nova, ou mesmo uma palavra de etimologia desconhecida. Diferentes áreas do conhecimento, tais como a Religião, a Filosofia, a Economia, a Sociologia, a Psicologia e a Psicanálise, dentre outras, foram responsáveis pela formulação conceitual da subjetividade, que, embora tendo fundamentos teóricos peculiares a cada área, possibilitaram a utilização do termo subjetividade em mais de um dos campos assinalados.

A noção de subjetividade encontra-se presente não apenas nas áreas de conhecimento citadas, como também, tornou-se recentemente objeto de análises históricas na construção de variados contextos, tais como a família, a sexualidade, a violência, as relações de poder e outros.

Figueiredo (1997, p. 9), ao lado de autores que se preocupam com a subjetividade, entende-a como "morada ou campo de experiências", definindo, conseqüentemente, os processos ou modos de subjetivação como processos de constituição dos campos e modos da experiência humana.

Naffah Neto (1997, p. 198), também interessado nas questões subjetivas, através de sua atividade clínica como psicanalista, foi percebendo a necessidade de correlacionar a noção de subjetividade com a noção de espaço interior, de vazio, capaz de acolher, dar abrigo e morada às experiências de vida: percepções, pensamentos, fantasias, sentimentos. Segundo ele, sem esse espaço psíquico, as experiências humanas não podem ser registradas, muito menos encontrar seus territórios de expressão.

Dessa forma, a instância da subjetividade veio ao encontro da abordagem do tema que envolve as discussões em torno da prostituição infanto-juvenil, uma vez que, no contato com a literatura existente sobre o assunto, comumente enfocam-se as causas atribuídas ao fenômeno, que, freqüentemente, vêm de sistemas externos à adolescente que se encontra envolvida com a prostituição. São geralmente apresentadas, como fatores determinantes, a questão econômica, cultural de gênero, familiar e a violência doméstica, que aparecem de forma isoladas ou articuladas. Entretanto, percebe-se ser coerente abordar, também, os aspectos subjetivos da adolescente que se encontra nessa condição, uma vez que a subjetividade é impossível de ser explicada por determinismos causais exteriores ao próprio sujeito, ao mesmo tempo em que também não pode ser explicada exclusivamente pela biologia humana. Isto significa dizer que, ao seguir a trajetória da subjetividade humana, mais especificamente, os aspectos ligados à prostituição infanto-juvenil, não seria concebível visualizá-la exclusivamente pelo prisma socioeconômico-cultural, nem muito menos pela ligação com a genética ou hereditariedade. O lugar que o genético ocupa, no fenômeno subjetivo, não está apenas ligado diretamente à sua condição biológica, hereditária. Vincula-se, também, à expressão genética, às condições externas, que, de acordo com a predisposição herdada, podem ou não ser processadas na construção da subjetividade humana.

Pensar a subjetividade nessa perspectiva pressupõe romper os limites tradicionais do pensamento da cultura ocidental, no qual o racionalismo e o positivismo exerceram forte influência no nosso século, uma vez que tais correntes filosóficas se recusam a reconhecer os aspectos da singularidade, da flexibilidade, da integração e de outros semelhantes, imprescindíveis nessa nova noção de subjetividade.

Dentre os autores que reiteram essa concepção, encontra-se um aporte significativo em Rey (1998, p. 4), quando afirma que:

A subjetividade é a expressão qualitativa diferenciada do aparelho psíquico do ser humano frente às condições culturais em que este vive, a qual, pressupõe que o sujeito humano tem que produzir respostas e construções que não estão contidas fora dele, senão, que são parte de uma produção criativa de sua história social e cultural.

Ao enveredar pela temática da subjetividade, pretende-se edificar toda uma trajetória reflexiva de forma a não ancorar as discussões em torno da prostituição infanto-juvenil em invariantes genéricas, mas, sim, ampliar o marco teórico de reflexão em direção a pontos pertinentes ao sentido que tem a prostituição para cada adolescente contatada, o que vai depender de histórias singulares, individuais, não se podendo, pois, eleger parâmetros universais, em se tratando da discussão em torno da subjetividade.

Segundo Rey (1997), pensar a subjetividade, nesses termos, pressupõe-se, no terreno ontológico, que a compreendamos sob uma dupla condição: como processo e como constituição do sujeito, no qual o histórico e o social se combinam permanentemente na constituição da subjetividade humana. Para tanto, propõe, ao referir-se a essa abordagem de subjetividade, que sejam superadas algumas unidades conceituais e metodológicas tradicionais para que se avance na reflexão teórica do plano subjetivo.

Dentre tais unidades, destaca-se a importância de ultrapassar os limites da convencional demarcação entre a estrutura psíquica e o ambiente interativo do sujeito. De maneira geral, somos acostumados a pensar a subjetividade como um perfil de um modo de ser, de pensar, de sonhar, de agir, de amar, etc., que, por sua vez, ocupa um espaço, formado de um interior e de um exterior. Esse raciocínio reduz esse perfil a uma espécie de imutabilidade, tal como o interior e o exterior que ele divide. Entretanto, tem sido percebida, na realidade atual, a necessidade de redirecionar esse pensamento para um ângulo maior de reflexão. Rolnik (1997) utiliza, para esse fim, um artifício explicativo bastante interessante. Ressalta ela ser esse perfil recoberto por uma "pele" (tecido vivo, móvel, de densidade ilusória), por onde passam os diversos elementos que compõem tudo o que habita a subjetividade, como o ambiente profissional, afetivo, familiar, econômico, social, cultural, etc. Como esses meios variam e intercruzam-se constantemente, forçosamente essa "pele" passará a movimentar-se ou "dobrar-se" de forma diversificada, tendo que, em certos momentos, curvar-se, e em outros estender-se de acordo com a seguinte dinâmica:

Cada modo de existência é uma dobra da pele que delineia o perfil de uma determinada figura da subjetividade ... o dentro detém o fora e o fora desmancha o dentro. Vejamos como: o dentro é uma desintegração do movimento das forças do fora, cristalizadas temporariamente num determinado diagrama que ganha corpo numa figura com seu microssomo; o fora é uma permanente agitação de forças que acaba desfazendo a dobra e seu dentro, diluindo a figura atual da subjetividade até que outra se perfile (ibid., p. 27).

A estrutura psíquica do sujeito não é unicamente definida a partir de reflexos oriundos do meio externo, mas a partir das diferentes formas de relacionamento, sendo que o sujeito constantemente atualiza suas potencialidades em cada momento específico de sua vida social, e é, através desse processo, que se constitui e organiza a subjetividade individual. Assim posto, entende-se que constituição da subjetividade individual é um processo singular, constituído numa trama dialética entre o sujeito e o seu meio atual de interação, onde as ações do sujeito são determinadas a partir dessa trama. A natureza dinâmica da constituição da história subjetiva de cada sujeito em interação com o seu ambiente social inviabiliza pensar a questão biológica ou a social isoladamente. Dessa forma, uma vez constituída a subjetividade em cada sujeito, o universo exterior atua somente como momento constitutivo dessa subjetividade desse sujeito particular, o que, de certa forma, lhe tira a condição de exterioridade, aparecendo como um novo momento do sistema subjetivo que se expressa. Na verdade, o ambiente externo só atua sobre o interior do sujeito na medida em que é subjetivado por ele e passa a fazer parte da sua constituição subjetiva (Rey, op. cit.).

Em decorrência do aspecto ora enfocado, acreditam os detentores dessa concepção de subjetividade, que esta se constitui em dois níveis simultâneos e contraditórios, quais sejam o social e o individual. Esses dois níveis, aparentemente opostos, integram conjuntamente a subjetividade, como sistema complexo e plurideterminado.

O sujeito é, ao mesmo tempo, um ser que constitui uma subjetividade individual e produz paralelamente o seu universo social. Portanto o social não está fora do indivíduo, ele está dentro, uma vez que o social se constitui em subjetivo no próprio curso da história singular de cada sujeito. Nesse processo histórico individual de cada ser humano, estão integradas permanentemente todas as experiências sociais vivenciadas por esse sujeito, a partir das quais o subjetivo existe como condição processual que, simultaneamente, se confirma e modifica. Dessa forma, o contexto social, apesar de se fazer representar de maneira diversificada em cada sujeito, afeta indiscutivelmente o decurso de vida cotidiana de cada ser humano. O universo social vem caracterizar os diversos espaços de convivência social, espaços esses em que se expressa o sentido subjetivo, aos quais são atribuídas as diferentes formas do comportamento humano, fazendo com que a subjetividade seja uma referência obrigatória em termos de investigação social.

A subjetividade individual, por sua vez, não é apenas reflexo do espaço social compartilhado. Ela é um eixo diferencial que toma parte desses espaços de subjetivação, mas expressa ao nível individual esses espaços de uma maneira diferenciada (Rey, 1998, p. 6). Pressupõe pensar o sujeito concreto num contexto interativo que, em todo momento, está inserido numa dinâmica que vai além do limite estritamente individual.

A subjetividade constitui-se em sujeitos singulares, não comportando generalizações, padronizações. Ela resgata o lugar do particular, que não pode ser confundido com o individual. A singularidade do processo de subjetivação é um princípio da concepção teórica da subjetividade.

Diante do exposto, entende-se que, ao falar de subjetividade, significa pensar, obrigatoriamente, num sujeito compreendido em seus diversos momentos de atuação de sua experiência individual, produto de um processo complexo a partir do qual se estruturam os aspectos de diferentes formas, em face das rápidas transformações vivenciadas por esse sujeito na contemporaneidade.

O processo veloz de mutações, que é notório na atualidade, é enfatizado por Guattari (1986), outro teórico interessado na temática da subjetividade. Ele concorda com que os processos de subjetivação não são centrados, nem só em instâncias psíquicas, nem apenas em instâncias sociais, econômicas, tecnológicas ou de outra ordem externa. Acredita que esses processos são duplamente descentrados e articulados, e que a subjetividade é produzida por "agenciamentos de enunciação", definidos pelo autor como:

Máquinas de expressão que podem ser tanto de natureza extrapessoal, extra-individual (sistemas maquínicos, econômicos, sociais, tecnológicos, icônicos, ecolólogicos, etológicos, de mídia, enfim sistemas que não são mais imediatamente antropológicos), quanto de natureza infra-humana, infra psíquica, infrapessoal (sistemas de percepção, de sensibilidade, de afeto, de desejo, de representação, de imagens, de valor, modos de memorização e de produção de idéia, sistemas de inibição e de automatismos, sistemas corporais, orgânicos, biológicos, fisiológicos, etc. (ibid., p. 31).

Esses agenciamentos de enunciação, segundo Guattari, são os responsáveis por conectar as instâncias interiores e exteriores ao ser humano. Ressalta, porém, a importância de se observar a forma como estão sendo estruturadas, nos dias atuais, essas máquinas de expressão, as quais põem em articulação essas diferentes instâncias.

Alerta o autor para o fato de que o indivíduo está cercado de múltiplos componentes de subjetividade e supõe existir uma forma de subjetividade bem mais ampla, que denomina de subjetividade capitalista. A produção de subjetividade, uma vez entendida como matéria-prima de toda e qualquer produção, vem incidir no capitalismo como uma potente produtora de outros modos de subjetivação bastante adversos dos existentes nas sociedades tradicionais. A explicação encontrada para tal fato é que as forças sociais controladoras do capitalismo entenderam que investir na produção de uma subjetividade característica desse modelo seria mais lucrativo do que qualquer outro tipo de produção. Reitera, ainda, que aquilo que chama de produção de subjetividade do capitalismo mundial integrado - CMI - não incide apenas em estratégias de poder para controlar as relações sociais e as relações de produção. Incide, principalmente, em delinear "modelos" referentes ao comportamento, à memória, à sensibilidade, às relações sociais e sexuais, enfim, à própria percepção de mundo. Dessa forma, ao conceber a subjetividade como produção, considera que uma das principais características dessa produção nas sociedades capitalistas seria, precisamente, a tendência a bloquear processos de singularização e instaurar processos de individualização (ibid., p. 38).

Ao tentar reduzir os processos de singularização e incentivar a individualização, a produção de subjetividade atrelada ao capitalismo ameaça esmagar todo o potencial criativo do ser humano, fazendo com que passe a organizar-se segundo padrões universais.

Rolnik (1996) enfatiza essa organização da subjetividade em torno de "modelos identitários", na sua concepção acerca da temática.

Segundo a autora, habituamo-nos a pensar a subjetividade como um traçado de formas, de um perfil através do qual as pessoas se reconhecem e são reconhecidas pelos outros (formas como andam, expressam-se, vestem-se, trabalham, amam, etc.). Seria a subjetividade da "ordem das representações". Entretanto, esse conceito, de acordo com a diversidade e a velocidade das mutações ocorridas na atualidade, precisa ser redirecionado para o reconhecimento de outra dimensão de subjetividade, qual seja, a subjetividade da "ordem das sensações". Esta é, por sua vez, invisível e irrepresentável, porém igualmente material e real (ibid., p. 10). Cada subjetividade vive mergulhada em universos culturais, políticos, sexuais, domésticos etc. Tais universos estão presentes tanto na subjetividade da ordem das representações como na subjetividade da ordem das sensações. Esses universos de subjetividades estão em constante transformação, alguns confrontando-se, alguns desaparecendo, outros permanecendo e alguns se integrando. Esse processo acontece incessantemente até o ponto em que há uma dificuldade em reconhecer-se e em ser reconhecido pelo outro. É nesse momento que entra em cena a sensação de estranhamento, porque há uma inequação entre sua realidade sensível e sua realidade expressiva. Esse colapso de sentido produz mal-estar (ibid., p. 11).

 

2. O mal-estar na contemporaneidade

Freud (1930), em seu célebre texto "Mal-estar na civilização", nos proporciona a base de entendimento para a compreensão do que é o mal-estar vivido na contemporaneidade.

Nessa obra, a "felicidade" é enfocada como o grande propósito da vida humana. Esforçar-se para ser feliz e assim permanecer constitui o grande objetivo do programa do princípio do prazer perseguido pelo homem. Entretanto, Freud (op. cit., p. 95), ao referir-se à felicidade, assim se expressa:

O que chamamos de felicidade no sentido mais restrito provém da satisfação (de preferência, repentina) de necessidades represadas em alto grau, sendo por sua natureza, possível apenas como uma manifestação episódica. Quando qualquer situação desejada pelo princípio do prazer se prolonga, ela produz tão somente um sentimento de contentamento muito tênue.

Dessa forma, a felicidade é contrastada pelo sofrimento que, por sua vez, é muito mais fácil de ser experimentado. O sofrimento, segundo ele, é uma ameaça constante ao homem, sendo originado basicamente pelo próprio corpo humano, condenado à decadência e à velhice pelo mundo externo com sua terrível força esmagadora e pelo relacionamento entre os homens.

Diante da diversidade de fontes de que emana o sofrimento e da potência de seus efeitos, o homem vem, cada vez mais, inibindo suas reivindicações de prazer, de felicidade. A tarefa de encontrar estratégias para evitar o sofrimento passou, então, a ser mais valorizada do que a própria busca do prazer. Assim, surge o cenário em que o indivíduo situa-se, qual seja, entre a estrutura biológica, sociocultural, política e econômica e a sua estrutura libidinal-pulsional e psíquica. Na medida em que esta última não pode ter todas as pulsões contempladas em função da realidade, são operados bloqueios, recalques no fluxo da libido que, por sua vez, condiciona a sublimação da sexualidade.

A civilização, na medida em que restringe a vida sexual, amplia a unidade cultural. O pressuposto dessa afirmação parte da idéia de que a civilização visa a unir os diversos membros da comunidade e, quando um relacionamento amoroso acontece, a relação destes com os outros seres humanos torna-se desnecessária. Daí por que se faz presente a necessidade de inibir a libido do homem para fortalecer o vínculo comunal através da amizade. Reside aí a explicação para a incompatibilidade entre civilização e sexualidade.

Entretanto, a civilização não atingiu, em seu curso, apenas a sexualidade do homem, mas também a sua agressividade. Com o que se expôs sobre as restrições impostas às pulsões do homem "civilizado", permite-se pensar que o homem primitivo se encontrava em melhor situação em relação à felicidade do que o atual. Porém, se a felicidade era conquistada com maior facilidade, a possibilidade de desfrutá-la era restrita em face de forte agressividade do homem primitivo, fato que sugere entender que o homem contemporâneo trocou parte do prazer por uma parcela de segurança, através da repressão dessa agressividade. Freud argumenta, ainda, que a agressividade do homem primitivo, reprimida através da civilização, liga-se a um tipo de pulsão, que contraria a preservação da vida, tendo, portanto, o mesmo grau de importância na constituição do ser humano. Dito de outra forma, ele aponta que, paralelamente à pulsão de vida, existe também a pulsão de morte, de onde deriva a agressividade do homem. Dessa maneira, com a evolução da civilização, representa o tempo todo o conflito entre a pulsão de vida e a pulsão de morte, uma analogia com a evolução da própria espécie humana.

A estratégia utilizada pela civilização para restringir a agressividade do homem foi introjetá-la, internalizá-la, ou seja, enviá-la para o seu lugar de origem, dirigi-la ao próprio ego que, por sua vez, está submetido à autoridade do superego, que atormenta o ego pecador com o mesmo sentimento de ansiedade e fica à espera de oportunidades para fazê-lo punido pelo mundo externo (ibid., p. 149). A civilização, portanto, consegue dominar o instinto agressivo do indivíduo, enfraquecendo-o, desarmando-o e criando, em seu universo interior, um sensor para ocupar-se dele, no caso, o superego.

Entretanto, a trajetória empreendida obedece a uma seqüência cronológica, que assim se explicita:

Em primeiro lugar, vem a renúncia ao instinto, devido ao medo de agressão por parte da autoridade externa. Depois, vem a organização de uma autoridade interna e a renúncia ao instinto devido ao medo dela, ou seja, devido ao medo da consciência. Nessa segunda situação, as más intenções são igualadas às más ações e daí surgem sentimento de culpa e necessidade de punição (ibid., p. 151).

O sentimento de culpa é, nesses termos, enfocado como uma espécie de ansiedade, de insatisfação, de mal-estar, através do qual, as pessoas terão que buscar outras motivações para suas vidas.

Na realidade, Freud tenta mostrar que, se a civilização se impõe ao desenvolvimento da humanidade, passa obrigatoriamente pelo conflito inato entre os instintos de preservação de vida e de morte, o qual implica um aumento do sentimento de culpa, sentimento esse reconhecido pelo autor como o mais importante problema no desenvolvimento da civilização.

Vale salientar que essa visão enfocada por Freud tem todo um referencial psicanalítico acerca do mal-estar na cultura, mas, a partir de seus trabalhos clínicos, ele próprio deixou bem clara a importância de sua inserção no quadro geral da civilização, sendo, portanto, universalmente válido para diversas áreas e épocas.

O texto citado deixa claro que o estado de mal-estar compreende essencialmente a categoria do conflito como eixo norteador.

Porém, quase setenta anos após essa proposição, numa era tecnológica e cultural avançada, diante do processo de "complexificação" das condições socioeconômicas e pulsionais da vida humana, inerentes ao final do milênio, o mal-estar como sintoma, conforme o próprio Freud previa, deve ser recontextualizado de acordo com a era atual, muito embora se deva preservar a instância da conflitividade como questão de base.

Nessa redefinição e atualização do estado de mal-estar, evidencia-se que, nesse final de século, não seria mais viável pensar em um mal-estar na cultura, mas numa cultura do mal-estar (Trivinho, 1997, p. 30). Em outra abordagem, significa dizer que tal mal-estar deixou de ser um elemento, ao mesmo tempo constitutivo e opositor da civilização, para se estabelecer na atualidade como condição própria de tal civilização. Explicita-se no presente como um mal-estar estrutural que se incorporou ao próprio ser humano na sua dimensão individual e social.

Na construção teórica e no âmbito onde se desenrola o fenômeno da prostituição infanto-juvenil, percebe-se claramente a dinâmica que envolve o mal-estar e a subjetividade de acordo com o que aqui se expôs.

 

3. A prostituição e a subjetividade da adolescente

A trajetória casa-rua percorrida pela adolescente em situação de prostituição segue, de forma geral, uma trilha que envolve um cenário submerso numa violência doméstica, que traz marcas profundas no universo subjetivo de quem a vivencia. São experiências cotidianas permeadas por abusos e maus-tratos de várias formas, inclusive abusos sexuais, na maioria das vezes silenciados. A rua se descortina, inicialmente, como a alternativa mais viável para a busca do prazer, da liberdade, do lúdico, da felicidade. Ao chegar a esse espaço, inicialmente é submetida à prática da mendicância, do furto/roubo e da prostituição, como maneiras disponíveis para prover sua subsistência.

Entretanto, de acordo com o próprio processo decorrente do desenvolvimento da civilização, que impõe ao homem estabelecer vínculos de amizade com os seus semelhantes, a menina, ao ingressar no mundo da rua, necessita, para poder nela permanecer e se estabelecer, agregar-se aos diversos companheiros que com ela compartilham aquele espaço conquistado. Acontece, então, gradativamente, a sua entrada na turma de amigos da rua. Tornar-se integrante da turma traduz-se na única possibilidade de conseguir aceitação e, principalmente, proteção. Outra decorrência dessa espécie de pertença é a iniciação da adolescente às atividades da prostituição, nas quais, dependendo da idade e do período de permanência na rua, ela ascende gradativamente. Acompanhar a amiga mais experiente apresenta-se como o rito de iniciação ao mundo da prostituição, o que consiste em proteger tal amiga, no sentido de assegurar o pagamento previamente acertado pelo "cliente", favorecer o programa com sua parcial participação ou, até mesmo, ajudá-la a furtar o parceiro, caso ele "vacile".

No entanto, esse percurso empreendido também traz marcas dolorosas. A adolescente, na condição de sujeito, constituída de uma subjetividade individual, na qual o social se subjetiviza permanentemente na história singular de cada uma, não pode deixar de ser afetada pela forma como a sociedade vigente visualiza a prostituição, que, por sua vez, desencadeia, a partir de tal pensamento, a incorporação de um elevado sentimento de culpa.

Para que se possa melhor entender a sociedade contemporânea, torna-se necessário enfocar a moral do trabalho, inserindo-a na discussão do fenômeno da prostituição infanto-juvenil na atualidade. O pano de fundo dessa moral do trabalho gira em torno de uma mecanização e uniformização que impõe limites ao potencial criativo do homem, onde o próprio corpo passa a ser "disciplinado" e "ordenado", basicamente para o trabalho.

Fazendo-se uma analogia à sociedade burguesa do século XIX, é como se pudesse supor que todo o aparato educacional direcionado para o servilismo do Estado, naquela época, houvesse sido transportado, nos dias de hoje, para uma moral do trabalho, que, por sua vez, passa a direcionar a vida dos indivíduos, rumo ao que se considera produtivo, ou seja, rentável do ponto de vista econômico.

O que de diferente dessa moral surge passa a ter uma conotação de "estranheza", de "marginalidade", o que induz os diversos segmentos da sociedade a guiarem-se por uma "moral", onde torna praticamente impossível articular, numa mesma plataforma, a esfera do trabalho e a esfera do prazer.

Diante disso e, ainda, seguindo a linha de pensamento da filósofa Hannah Arendt (1987), de que só adquire visibilidade o que se explicita na esfera pública, o prazer, ao ausentar-se do mundo público, viabiliza-se no mundo do privado, submetendo-se, então, ao espaço da ocultação, da invisibilidade, da inexistência.

Dessa forma, o prazer inserido na esfera privada passa a ser "ordenado" por uma moral que remonta à sociedade burguesa do século XIX e, conseqüentemente, fruto do próprio processo de civilização que tornava incompatível a conciliação do processo civilizatório com a sexualidade, sendo apenas concebido em face da necessidade de procriação e preservação da espécie humana (Freud, op. cit.).

A prostituição, por contrariar todo esse quadro, surge como um segmento que precisa ser "banido", "segregado", uma vez que teria toda uma possibilidade de desordenar as relações sociais estabelecidas por essa moral.

De acordo com esse pensamento, as cidades passaram a seguir uma espécie de zoneamento, de forma a destinar determinados lugares para os segmentos considerados "nocivos" à ordem da sociedade vigente.

Uma pesquisa realizada com mulheres que atuam nos prostíbulos da capital cearense ressalta que:

Em Fortaleza, não muito diferente do que ocorreu em outras cidades estrangeiras, a onda de higienização baseou-se nas mudanças de costumes através das reformas urbanas e sociais, tornando-se necessária e imperante a localização do meretrício como forma de separar duas morais que não podiam prescindir uma da outra: a moral da casa e a moral do prostíbulo (Sousa, 1996, p. 66).

Dentro da perspectiva de uma sociedade regida por uma moral e uma ética, que inviabiliza a conciliação entre o trabalho e o prazer, onde o primeiro assume lugar de destaque em detrimento do último que é tido como transgressor da normalidade, a prostituição vem romper com o arraigado pensamento dominante.

Diógenes (1998), ressalta que o grande incômodo causado pela prostituição é que ela, ao "se tornar campo de explicitação do caráter mercadoria do corpo e do prazer", "vitriniza" o que deve ser escondido para não perturbar a ordem social.

É como se pudesse supor um mesmo campo, uma sociedade funcionando como uma máquina de unificação poderosa, e a prostituição, segmento considerado "maldito", atuando num sentido inverso, como uma espécie de força dispersiva, em contrapartida à homogeneização que se pretende instaurar.

O estigma que permeia o mundo da prostituição adulta, que faz com que os seus modos de subjetivação sejam o tempo todo delimitados entre dois tipos distintos de territórios simbólicos de conduta moral, ou seja, a nítida divisão entre o que representa ser prostituta no "mundo de fora" e o no "mundo de dentro" (Castro, 1993), como mecanismo de defesa ou estratégia de sobrevivência quanto ao mal-estar que experiencia, também se faz presente na adolescente em situação de prostituição. Habita o espaço subjetivo da menina envolvida com a prostituição um arraigado conceito de desvalor, de vergonha, de baixa-estima ao deparar-se com o seu envolvimento em tais atividades. Nesse estágio entra em cena "o sentimento de culpa", advindo de suas duas fontes originárias: o sentimento de culpa originado pelo medo da autoridade externa, representado nesse contexto pela figura da sociedade e o derivado do medo do superego, através do que foi subjetivado individualmente como conduta desviante, pecaminosa.

Desde a década de 30, Freud (op. cit., p. 158) já preconizava o sentimento de culpa na seguinte dimensão:

... corresponde fielmente à minha intenção representar o sentimento de culpa como o mais importante problema do desenvolvimento da civilização, e de demonstrar que o preço que pagamos por nosso avanço em termos de civilização é uma perda de felicidade pela intensificação do sentimento de culpa.

Recontextualizando o pensamento de Freud na sociedade atual, as possibilidades de o homem contemporâneo sucumbir a uma mistura de variadas patologias simultâneas multiplicaram-se e fortaleceram-se, disseminando-se tanto de forma individual como coletiva.

Para parte do contingente das crianças e adolescentes que vivenciam o cotidiano das ruas, o objetivo de busca de felicidade foi trocado pela simples expectativa de permanecer existindo no dia seguinte. Quando indagados sobre o que esperam do futuro, normalmente respondem: o futuro é amanhã, é permanecer vivo. Viver ou morrer não faz muita diferença. Nesse ritmo estabelecido, o confronto entre os companheiros é levado às últimas conseqüências. Sai lucrando quem consegue sobreviver. Cada dia a mais é contabilizado como um saldo positivo. Nessa realidade, os conflitos entre os instintos de vida e de morte também se estabelecem.

Entretanto, esse mal-estar, hoje vivenciado, encontra-se também envolto em ambigüidades, uma vez que, visto de um outro ângulo, é apontado como desencadeador de uma força produtiva potencial, que, por sua vez, pode vir a desencadear surpreendentes conseqüências na sociedade tecnológica atual.

É a partir desse mal-estar ou dessa certa insatisfação que o ser humano busca outros tipos de motivações para suas vidas e a subjetividade ou as construções subjetivas são as formas encontradas pelo homem para se posicionar frente a tal mal-estar ou para criar novas formas de existência.

A esse respeito Rolnik (1997, p. 33) assim se reporta:

O modo pelo qual os indivíduos vivem essa subjetividade oscila entre dois extremos: uma relação de alienação e opressão, na qual o indivíduo se submete à subjetividade tal como a recebe, ou uma relação de expressão e de criação, na qual o indivíduo se reapropria dos componentes da subjetividade, produzindo um processo de singularização.

Na dinâmica de vida da adolescente em situação de prostituição, a sua entrada na turma reflete o primeiro extremo de oscilação da subjetividade acima enfocado. A adesão a roupas de "marca", o uso constante de drogas são, dentre outros, os elementos utilizados para anestesiar os sentimentos e sustentar uma ilusão identitária. Ao configurar-se a partir de comportamentos "massificados", a subjetividade não escutará seus estados sensíveis, individualizados, para criar uma nova forma de existência, apenas buscará modelos para "guiar-se" a partir deles (Rolnik, 1996, p. 11).

Da mesma forma em que o desenvolvimento da civilização impôs ao ser humano o sofrimento, numa escala bem maior do que a felicidade, a sociedade, posta nesse final de século, proporciona, em abundância, estratégias responsáveis por essa adesão a comportamentos "massificados", deixando de considerar, por completo, a subjetividade enquanto objeto de estudo no trato das crianças e adolescentes, frente a variável do mal-estar na perspectiva aqui abordada.

As alternativas possíveis de desencadeamento de suas singularidades e desenvolvimento de seus ricos potenciais criativos ainda são muito tênues, fato bastante comprometedor.

Acredita-se que o mal-estar, enquanto sintoma de uma época, não pode ser limitado apenas ao conhecimento de suas nuanças mas deve, sim, acima de tudo, ser esmiuçado e reciclado continuamente para que se possa compreendê-lo, tendo por base explicações consistentes e atualizadas, para, quem sabe, num futuro próximo, a situação de grande parte das crianças e adolescentes brasileiras não seja a mesma de agora.

 

Referências Bibliográficas

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