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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. vol.11 no.2 Fortaleza  2011

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

O feminino como metáfora do sujeito na psicanálise*

 

The feminine as a subject metaphor in psychoanalysis

 

Le femínea como una metáfora del sujeto en psicoanálisis

 

Le féminin comme une métaphore du le sujet en psychanalyse

 

 

Jacqueline Reis DemesI; Daniela Scheinkman ChatelardII; Luiz Augusto M. CelesIII

IPsicóloga. Especialista em Teoria Psicanalítica pela Universidade de Brasília. End.: QRSW 4 Bl.A2, AP.205, Sudoeste. CEP: 70675-402 - Brasília - DF. E-mail: demes78@gmail.com
IIPsicanalista. Professora do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília. Membro da Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano. Doutora em Filosofia pela Université de Paris 8. End.: PCL-Instituto de Psicologia, Campus Darcy Ribeiro. CEP 70910-900 - Brasília - DF. E-mail: dchatelard@gmail.com
IIIPsicanalista. Pesquisador Colaborador do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura. Professor Titular aposentado do Departamento de Psicologia Clínica. Pesquisador Bolsista do CNPq. End.: SHLN, Bloco L, Sala 207, Ed. Centro Clínico Norte II. CEP: 70770-905 - Brasília - DF. E-mail: lamceles@gmail.com / celes@unb.br

 

 


RESUMO

Muito se diz sobre a mulher desde as brechas deixadas por Freud. É extensa a literatura, assim como as faces e as versões assumidas pelo feminino. Introduzida na psicanálise, desde a sua origem nos estudos sobre a histeria, a busca por uma resposta sobre o tornar-se mulher ganhou um lugar central na teoria e na prática psicanalítica. Seja pelos impasses antes colocados pelo próprio Freud acerca do tema, seja por outros instituídos pelo avançar das investigações pós-freudianas, algo parece insistir na clássica pergunta "o que quer uma mulher?" e um entrever parece acompanhar as produções teóricas elaboradas até aqui. Contudo, desde "o continente negro", de Freud, à lógica do não-todo, de Lacan, uma impossibilidade de saber (dizer) sobre o feminino acompanha todo o entrançar conceitual da psicanálise. Quais os sentidos do feminino na psicanálise? Que relações são traçadas entre esse conceito e o ser mulher? Pretende-se, neste trabalho, percorrer algumas concepções que contornam e compõem o enigma da feminilidade. Um recorte que apresenta o feminino ora como qualificador do ser mulher, ora radicalizado em um novo conceito, no qual a noção de alteridade e de limite o constituem. Assim, um deslocamento de sentido se operou na palavra em questão ao longo do seu curso na psicanálise. Hoje, sua carga semântica é outra. Nesses caminhos, a figura da mulher se multiplica. Transita da lógica fálica à Outra, podendo ser uma e muitas, como uma daquelas bonecas russas, a babuska.

Palavras-chave: Histeria, mulher, enigma, feminino, psicanálise.


ABSTRACT

Much is said about the woman since the gaps left by Freud. The literature about this subject is vast, as well as the profiles and versions assumed by the feminine. The concept was introduced in psychoanalysis since the beginning of hysteria studies and the search for an answer about how to become a woman won a central role in psychoanalytic theory and its practice. Something seems to insist in the classical question "What does a woman wants?", be it because of the impasses pointed by Freud about the subject, or others that were presented in the development of post-Freudians investigations, and only a glimpse seems to appear in theoretical works developed so far. However, since the Freud's "dark continent" to Lacan's "not-all" logic, an inability to know (or say) about the feminine follows the conceptual interweave of psychoanalysis. What are the meanings of feminine in psychoanalysis? What are the relationships between this notion and to be a woman? The aim of this work is to discuss some concepts that outline and compose the feminine enigma. It is a cutout that introduces the feminine sometimes as a qualifier of being a woman, sometimes as a new concept in which the notions of otherness and limits establish it. Thus, a displacement has occurred in the sense of the word in question throughout its course in psychoanalysis. Today, it has another semantic load. In these ways, the woman figure multiplies. It moves from a phallic logic to the logic of the Other, it can be one or many, like one of those Russian dolls, the babushka.

Keywords: Hysteria, woman, enigma, feminine, psychoanalysis.


RESUMEN

Muy se dice sobre la mujer desde las brechas dejadas por Freud. Es extensa la literatura, así como las vertientes y las versiones asumidas por lo femenino. Introducido en el Psicoanálisis, desde su origen en los estudios sobre la histeria, la búsqueda de una respuesta sobre lo hacerse mujer ganó un lugar central en la teoría y en la práctica psicoanalíticas. Sea por los impasses antes considerados por el propio Freud acerca del tema, o por otros instituidos por el avance de las investigaciones post-freudianas, algo parece insistir en la clásica pregunta "I qué quiere una mujer?", y cierto vislumbrar parece acompañar a las producciones teóricas elaboradas hasta aquí. Pero, desde "el continente negro", de Freud, a la lógica del no- todo, de Lacan, una imposibilidad de saber (decir) sobre lo femenino acompaña todo el entrelazar conceptual del Psicoanálisis. Cuáles los sentidos de lo femenino en el Psicoanálisis? Qué relaciones son trazadas entre ese concepto y el ser mujer? Se pretende, en ese trabajo, recorrer algunas concepciones que rodean y componen el enigma de la feminidad. Un recorte que presenta lo femenino, bien como calificador del ser mujer, bien radicalizado en un nuevo concepto, en el cual la noción de alteridad y de límite lo constituye. Así, un desplazamiento del sentido se operó en la palabra en cuestión a lo largo de su curso en la Psicoanálisis. Hoy, su carga semántica es otra. En esos caminos, la figura de la mujer se multiplica. Transita de la lógica fálica a la Otra, pudiendo ser una y muchas, como una de aquellas muñecas rusas, la babuska.

Palabras-clave: Histeria, mujer, enigma, femenino, psicoanálisis.


RÉSUMÉ

Beaucoup de choses sont dites au sujet de la femme depuis le vide laissé par Freud. La littérature est abondante, ainsi que les côtés et les versions quassument le féminin. Introduite dans la Psychanalyse dès ses débuts par les études sur lhystérie, la recherche d'une réponse sur le devenir-femme a gagné une place centrale dans la théorie et la pratique psychanalytique. Que se soit par les impasses introduites par Freud lui-même sur le sujet ou instituées par dautres dans lavancée des recherchespostfreudiennes, une chosesemble revenir de façon insistante dans la question classique: «que veut une femme?» et un aperçu semble accompagner les productions théoriques élaborées jusquà présent. Toutefois, du «continent noir» de Freud à la logique du «pas-tout» de Lacan, une possibilité de savoir (parler) sur le féminin accompagne toute la trame conceptuelle de la psychanalyse. Quelles sont les significations du féminin dans la psychanalyse? Quels liens sont établis entre ce concept et lêtre femme? Il est prévu dans ce travail de passer en revue certains concepts qui entourent et forment lénigme de la féminilité. Un découpage qui présente le féminin parfois comme un qualificatif de lêtre femme, parfois radicalisé en un nouveau concept intégrant la notion daltérité. Un glissement de sens sest donc produit dans le mot en question au long de son parcours dans la psychanalyse. Actuellement sa charge sémantique est une autre. Au long de ces chemins, Umage de la femme se multiplie. Elle passe de la logique phallique à l'Autre, pouvant être une et plusieurs, comme une de ces poupées russes, la babouchka.

Mots-clés: Hystérie, femme, énigme, féminin, psychanalyse.


 

 

Introdução

Desde o seu nascimento, a psicanálise defronta enigmas. A histeria é o primeiro deles. O sexo feminino, pode-se dizer, é o Segundo1 ou, simplesmente, o Outro2. A mulher, portando em seu corpo a histeria, é um ponto de origem. É esse encontro que funda a psicanálise e seu longo percurso em busca de um sentido para as coisas do psíquico, para o feminino e suas representações. Desde então, muito se produziu sobre o tema, o que não foi suficiente para desvelar sua substância enigmática. Curiosamente, o que se percebe, ao analisar a história da psicanálise, é que o enigma se mantém (ou é mantido?). A clássica pergunta "o que quer uma mulher?" conduziu, e ainda conduz, elaborações para decodificá-la, mais do que respondê-la, dado ao esperado caráter nebuloso das possíveis respostas. Ainda assim, muitas respostas foram dadas, negadas e questionadas, desde Freud. Novas concepções foram criadas. Contudo, algo persiste. Qual a natureza do enigma? O que foi vislumbrado pela psicanálise e que é materializado no corpo da mulher? Sabe-se que, definitivamente, não é sobre ela, mas por ela que ele se presentifica.

Sexo feminino, sexualidade feminina, feminilidade, mulher, histeria3. Noções distintas. Contudo, sabe-se, pela própria história do movimento psicanalítico, dos dissabores vividos pela teoria ao se manifestar sobre o feminino, exatamente por amparar concepções indiferenciadas e estereotipadas dos termos. Coisas do passado? Talvez. De fato, versões contemporâneas sobre o assunto reconhecem uma nítida linha demarcadora de cada um dos campos citados, principalmente a partir da inserção de uma nova categoria: o gênero. Contudo, dissonâncias internas e externas à psicanálise, ainda recorrentes, apontam para uma zona escura, na qual tais delimitações se perdem. Com base nisso, não se questiona aqui uma diferença visivelmente consagrada entre os termos pela sua evolução ou interlocução com outros saberes, e sim onde escapam, onde se fragilizam. Lá, no momento em que elementos conceituais e semânticos de um e de outro fundidos, numa ou noutra leitura, possibilitaram um entendimento no sentido de uma sinonímia. Um paralelismo original interligava tais conceitos. E a força dessas imagens sobrepostas ainda nos ofusca, apesar dos avanços e dos giros interpretativos dados sobre o ser mulher. Seja pelo radical linguístico que as forma (não é necessário ser especialista para perceber isso), seja na origem de sua apreensão enquanto conceito psicanalítico, médico ou social, um enlaçamento dos termos se perpetua. Reconheçamos. Dessa forma, de início, propõe-se uma reflexão sobre essas intersecções que ainda hoje parecem justificar um uso indiscriminado de um termo pelo outro. Nesse sentido, vale destacar que, num primeiro momento, a proposta é transitar nessa faixa de congruência historicamente mantida entre os termos para, em seguida, particularizá-los. Ranço que convive com outras interpretações, seus novos sentidos. Uma razão provável para as múltiplas contradições e ambiguidades dos discursos, inclusive o psicanalítico, sobre o feminino.

 

Feminino, Mulher, Histeria

É indiscutível o peso do contexto sócio histórico, filosófico e cultural nas interpretações realizadas sobre o feminino pela psicanálise4. É imbuído desse Zeitgeist que Freud propõe as matizes constitutivas do seu pensamento, sobretudo no que se refere àquilo qualificado como obscuro, enigmático, "o continente negro da psicanálise" (a título de exemplo, pois, bem antes dele, estes já eram alguns dos adjetivos associados à inconstância das mulheres). A partir daí, mitos seculares relacionados ao ser mulher e ao sexo feminino são delineados sob a ótica de uma teoria do psiquismo nascente. Uma leitura psicanalítica para as disposições socioculturais entre homens e mulheres é dada - herança patriarcal da psicanálise. Mais do que isso, uma teoria sobre o feminino é construída. Neri (2002), em seu artigo diz:

A relevância do feminino no psiquismo e na obra freudiana está diretamente ligada à entrada do feminino na cena social, já que o interesse dos médicos pela histeria se deu num momento em que a mulher saiu dos bastidores para se tornar objeto de investigação. (p. 18)

É sob a sintomatologia histérica que a mulher ousa falar e é ouvida. Um grito lhe escapa das entranhas, frente às limitações impostas por uma vida dominada pela repressão social e psíquica. O contexto, até então, ameaçador dava sinais de uma disposição para escuta. Estava instaurada a crise do masculino, do paradigma do sujeito clássico da razão, do sexo Único. Anunciava-se um saber científico limitado (Neri, 2002). As certezas desmoronavam. A modernidade se apresentava sob novos paradigmas, nos quais a figura do feminino-mulher ganhava um lugar central. Segundo Neri, "a mordenidade vienense, ao proclamar o 'eu da emoção criadora' em oposição ao eu do cogito e do positivismo, transformou-o (o feminino) em figura emblemática do questionamento da racionalidade metafísica e científica" (Neri, 2002, p. 16).

O mistério sobre as bases regulatórias do sujeito é percorrido nas silhuetas do corpo de uma mulher. Histeria e mulher se fundem numa só imagem - Anna O., a primeira. Esse é o marco no qual o feminino (por meio da histeria) ingressa na teoria portando seu vernáculo universal: um qualificador do sexo caracterizado pelo ovário nos animais, próprio das mulheres5. Logo, é o sexo feminino sua primeira referência. Por enquanto, o feminino é aquele derivado do feminiu, do latim, adjetivo relativo às mulheres. Associado a essa noção, um componente social emerge para dar sentido a algo já impregnado pelo natural. Uma tensionalidade se construirá e se manterá até os dias atuais.

Versões filosóficas, culturais, sociais e biológicas dão o tom e os rumos psíquicos seguidos pelo feminino. O ser mulher surge a partir de um jogo oposicional com o masculino6 (Birman, 2001). Sob a ótica de uma masculinidade originária, na qual a diferença sexual é constituída pelo operador fálico, são traçados seus destinos. Esse é o paradigma que guia boa parte das construções teóricas sobre o dito Outro sexo e é o eixo de algumas das suas modalidades de figuração até hoje. Como num movimento pendular, o pensamento psicanalítico ora avança, rompendo com o naturalismo dos sexos (por exemplo, ao formular os conceitos de sexualidade infantil e pulsão), ora retrocede, ao atualizar imagens parcializadas e preconcebidas no percurso da menina em buscado tornar-se mulher (visualizadas no curso dito complicado da sexualidade feminina, e nas suas três possibilidades no Édipo, sendo apenas uma considerada "normal": a maternidade). Em 1931, em seu artigo sobre a sexualidade feminina, Freud desabafa e diz não estar capacitado a distinguir o que é rigidamente fixado por leis biológicas e o que se acha aberto ao movimento e à mudança sob a influência acidental (Freud, 1931/1996a, p. 250). Uma dificuldade que já apontava para a natureza inapreensível e, por isso, enigmática do feminino.

É sob esse primeiro signo que a mulher surge para o criador da psicanálise. A histeria encontra, no corpo da mulher, o hospedeiro perfeito. Adoecimento pela supressão de caminhos para uma singularidade. Insatisfeita, ela sucumbe e fala - a trama do sujeito do inconsciente é gradativamente elaborada. Na figura de Anna O., a histeria é sujeito da enunciação e corpo da verdade do discurso psicanalítico (Neri, 2002, p. 24). Enuncia um sujeito descentrado, desnaturalizado e inscrito pela intensidade e variedade pulsional. Assim, a mulher, ao encarnar a histérica, dá voz ao inconsciente, ao que está por detrás do seu desejo mais íntimo, à mercê de um excesso pulsional. Na verdade, essa noção da sexualidade feminina vista como excesso, enigma, já compunha os discursos médicos e filosóficos desde o século XIX. Todavia, é Lacan, principalmente em seu Seminário 20: Mais, ainda (1972-1973) que essa ideia é desenvolvida e consagrada.

Mesmo sob a orientação recente de que a enfermidade não era restrita ao mundo das mulheres, a teoria psicanalítica constituiu a histeria como identificada com as desditas da feminilidade. (Birman, 2001) Tais construções acerca do recém-criado "sujeito do inconsciente" eram transmutadas ao elaborarem o vir a ser "sujeito mulher".

Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905/1997) revelam o descompasso entre a formulação freudiana da plasticidade da pulsão sexual em ruptura com qualquer determinismo anatômico e sua concepção da diferença sexual, impregnada de teses essencialistas. (...) (Nunes citado em Neri, 2002, pág. 28)

E antigas insígnias são recuperadas, como as funções de mãe e de esposa, ou, para aquelas indisciplinadas, as de prostituta, feiticeira, mística... Ou, de outra maneira, "ora à maternidade, ora à morte". (Mannoni, 1999, p. 79) Várias outras imagens derivam desses signos básicos, sempre regidos por um dualismo existencial: ora boa, ora má; ora santa, ora demoníaca, erotizada; ora remetida ao primitivo, ora ao civilizado. Ou ainda, considerando a questão da diferença sexual, ora marcada por uma igualdade primordial, ora considerada de maneira desigual (seja por um "a menos" ou por um "a mais"). Nesse sentido, sob a lógica fálica, uma primeira resposta ao "o que quer uma mulher?" é dada: "elas desejam o que lhes falta, o pênis; é o que será chamado Penisneid, inveja do pênis" (Mannoni, 1999, p. 90).

A ascensão da mulher coincidia com o acesso à feminilidade numa complicada operação que envolvia uma troca de objeto e de zona erógena. Até aqui, o que já se sabia é que histeria, sexo feminino, mulher, sexualidade feminina e feminilidade se configuravam como conceitos psicanalíticos diferenciados, mas ainda articulados numa relação de paradoxo e ambiguidade. Inconsistências teóricas acompanharam a elaboração dos quatro conceitos. A teoria do sujeito da psicanálise, sustentada pelo complexo de castração - base de todo pensamento freudiano - encontrava no tornar-se mulher o seu limite. O Édipo produzia o homem, mas não a mulher (Soler, 2005). Uma limitação teórica avistada e anunciada por Freud desde Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905/1997). Frente ao impasse, chega-se ao período pré-edípico, ou seja, às relações da figura da menina com a mãe primordial como decisiva para uma compreensão do sujeito mulher. Ainda assim, um velamento e uma obscuridade marcava seu percurso. É a referência a uma fase anterior como constitutiva da mulher, que lançará meios para a formulação de um novo status do feminino na teoria. Algo que se revelaria como o originário do psiquismo, anterior à ordenação da subjetividade fundada no falo e que, ao mesmo tempo, seria considerado o seu próprio limite.

Frente às reações provocadas pela perspectiva falocêntrica e ao enigma da diferença sexual, inicia-se um longo período de investigação em busca de um outro posicionamento sobre o tema. Foram as tentativas de contornar os limites inscritos pelo desenvolvimento edípico da menina que possibilitaram um avanço do saber psicanalítico. Avanços teóricos que permitiram à psicanálise a formulação de uma teoria geral da sexualidade humana, encarada numa perspectiva absolutamente diferente, sendo, assim, referência para concepções posteriores. Porém, o imperativo de que a estruturação sexual do sujeito não é toda definida pelas características sexuais biológicas era flexibilizado quando a questão era o que constitui uma mulher.

Com relação à distinção entre feminino, sexualidade feminina e feminilidade, um terceiro elemento se acrescenta como mantenedor de uma relação problemática: as falhas na tradução. Uma leitura atenta facilmente identifica o uso indiscrimado desses termos, seja em Freud, seja depois dele. Em Diretrizes para um Congresso sobre a Sexualidade Feminina, Lacan (1960/1998) diz: "(...) a questão da fase fálica na mulher agrava seu problema por ter, depois de fazer furor entre os anos 1927 e 1935, sido, desde então, deixada numa tácita indivisão, ao bel-prazer das interpretações de cada um" (p. 736).

Mas qual é, então, a diferença básica entre eles? Neri (2002) esclarece:

O feminino (weiblich) se refere à posição feminina na dialética fálica que instaura a diferença masculino-fálico-atividade / feminino-castrado-passividade, a sexualidade feminina (weiblich Sexualitat) designa o destino da sexualidade da mulher na lógica fálica e a feminilidade (weiblichkeit) indica um erotismo não mais regulado pela lógica fálica, deixando à mostra um eixo de subjetivação, erotização e sublimação que inaugura novas possibilidades de inscrição do sujeito na cultura como singularidade e diferença. (Neri, 2002, p. 29 e 30)

Uma mínima diferença frente ao já consagrado historicamente entre os termos, dentro e fora da psicanálise. Um sentido sobre o destino do humano havia sido dado, porém, precisamente, o que se diferenciava nos discursos qualificados de "femininos", ainda o problematiza. Um limite real na sua teorização? Não pelo objeto em si, mas pelo contraponto que estabelecia para a ordem (masculina/fálica) à qual era referendado.

 

Feminilidade e Castração: Outra Lógica

Em 1937, a construção de um novo conceito na cena psicanalítica redimensiona suas considerações acerca do feminino. No fim de seu percurso teórico, em seu artigo denominado Análise Terminável e Interminável, Freud (1937/1996b) enuncia o que é a feminilidade, agora radicalizado em outro conceito, não mais restrito à estruturação subjetiva feminina, mas do sujeito, seja homem ou mulher. Ela passa a ser o que há de comum nos dois sexos: uma condição originária do sujeito em relação à qual se contrapõe a ordem fálica. Uma outra lógica, além da operada pelo registro fálico, parece reger o tornar-se sujeito. Algo radicalmente hetero, indisciplinado à lei fálica. É o que Freud vislumbra, e Lacan, posteriormente, desenvolverá. Está dado o estatuto contemporâneo do feminino na psicanálise, cuja noção de alteridade e de limite o constituem - uma experiência de perda dos emblemas fálicos e de falência narcísica. Portanto, segundo Lacan (1972-1973/1985), a conceituação de feminilidade é concebida em oposição àquela operada pelo registro fálico. Ao feminino, são adicionadas novas imagens, outros sentidos.

Que tudo gira ao redor do gozo fálico, é precisamente o de que dá testemunho a experiência analítica, e testemunho de que a mulher se define por uma posição que apontei com o não todo no que se refere ao gozo fálico.

Vou um pouco mais longe - o gozo fálico é o obstáculo pelo qual o homem não chega, eu diria, a gozar do corpo da mulher, precisamente porque o de que ele goza é do gozo do órgão. (Lacan, 1972-1973/1985, p. 15)

Segundo Nunes (1997), duas ideias básicas podem ser apreendidas no último período da obra de Freud. São elas: a passagem pelo complexo de castração como processo de elaboração de uma identidade sexual, e a feminilidade como reposicionamento frente à castração. Quais as implicações teóricas trazidas a partir daí à teoria? Inúmeras. Uma é que, de maneira definitiva, fica desvinculado do biológico o que caracterizará as categorias sexuais. A diferença sexual é associada a uma construção psíquica, na qual a virilidade em homens e a maternidade em mulheres se tornam um dos caminhos possíveis. Assim, disposições psíquicas são inscritas pela anatomia, não mais determinadas.

Ninguém nasce homem ou mulher, tornamo-nos homem ou mulher ao fim de um percurso que exige de cada um o abandono das disposições bisssexuais primárias, das potencialidades polimorfas, da indiscriminação infantil. O inconsciente, se é todo sexual, não é sexuado; se para Freud, "a anatomia é destino", isso significa que a partir da "mínima diferença" inscrita em nossos corpos temos de nos constituir homens e mulheres à custa de tudo que, do ponto de vista do inconsciente, é indiferenciado. (Kehl, 1996, p. 13)

Mantém-se a referência central do tempo da castração no devir sexual e a inscrição do falo no psiquismo como ordenador das sexualidades masculina e feminina. Os destinos frente a uma opção entre os sexos são delineados a partir das identificações operadas pela castração. Nesse estágio teórico, a feminilidade realiza um deslocamento conceitual: de saída "normal" para o Édipo da menina, transforma-se em representante da falta, da ausência, do desamparo originário do sujeito, pelo qual este se insere culturalmente. Surgem novas considerações sobre o termo, cuja experiência é marcada pelo horror para ambos os sexos: horror à condição incompleta, imperfeita, faltante. Agora, ela se torna a origem e uma referência à castração ao apontar para a existência de outro registro psíquico, em contraposição ao anterior, centrado no falo. Um período anterior, não operado por insígnias fálicas, marcará o tornar-se sujeito e se posicionará no centro de sua concepção. Uma inversão significativa se opera: a masculinidade primordial dá lugar à feminilidade, origem fundante de toda subjetividade. Nessa nova perspectiva, a feminilidade coincide com a problemática da castração, apontando, então, para a própria condição de sujeito.

O discurso freudiano sobre a feminilidade estaria, enfim, nessa derivação teórica de alguma maneira, na sua ordenação conceitual sempre recomeçada da fragmentação e do despedaçamento tanto psíquico quanto corpóreo, ramificações eloquentes da condição originária da feminilidade. (Birman, 2001, p. 234)

São essas formulações teóricas - que seguem do desenvolvimento da sexualidade feminina ao registro da feminilidade - o ponto do qual Lacan parte para elaborar sua leitura sobre o feminino.7

 

Outros Sentidos, Feminilidades ou Subjetividades

Frente à visível constatação feita por Freud da insuficiência teórica do Édipo, "onde encontrar um significante por onde se revele o próprio do feminino se nessa ordem fálica ela não é toda?'' (Birman & Nicéas, 1986, p. 78). Pode-se supor que uma reflexão desse tipo permeou as elaborações posteriores sobre o tema, o que consagrou Lacan como seu autor mais expressivo. É ele que, depois de Freud, dará o passo seguinte rumo à construção de outra teoria psicanalítica sobre o feminino, na qual novos sentidos serão acrescentados. São essas teorizações, ocorridas após os anos 70, que levarão Lacan, no seu último ensino, a elaborar sua Segunda Clínica, a Clínica do Real. Uma clínica borromeana, do gozo, do além Édipo, cujo paradigma se sustenta na experiência e no encontro com o Real. Conclui-se, nesse momento, a fase do estudo de Lacan denominada Retorno a Freud e avança na construção de uma genuína teoria lacaniana sobre a feminilidade. A partir daí, nasce a clínica do gozo, cujas elaborações vão identificá-lo como substância do ser, ou seja, aquilo de mais estranho e, ao mesmo tempo, de mais particular ao sujeito, localizado fora da linguagem, em outro registro, aquele nominado o Real. Outra dimensão de subjetividade é formulada por Lacan exatamente ao percorrer os não ditos acerca do feminino (pensa-se aqui, por exemplo, nas noções de sinthoma e falasser desenvolvidas a posteriore). Sobre isso, porém, vale uma observação: para fins deste trabalho, delimitar-nos-emos a tratar daquele sujeito-falasser mulher, tendo como referencial teórico as proposições contidas sobre ele no Seminário 20: Mais, ainda (Lacan 1972-1973/1985).

Com a elevação do falo - mantido como único operador a ordenar a subjetividade e a diferença sexual - ao status de significante da metáfora paterna e a assunção da importância do Outro na estruturação psíquica dos sujeitos, Lacan organiza suas duas lógicas: a fálica, em sua essência já delineada por Freud; e a do não todo fálico, com seu correspondente, o gozo outro, a mais, suplementar. Sistematizadas a partir da publicação do Seminário 20, intitulado Mais, ainda (Lacan, 1972-1973/1985), no qual Lacan tece suas últimas formulações sobre o gozo, tais formulações irão congregar o denominado campo lacaniano, cuja repercussão será decisiva na construção de um novo estatuto para o feminino na psicanálise.

Nessa obra, ao se utilizar das proposições básicas da lógica aristotélica, ele anuncia um novo quadro de oposições, no qual uma assimetria delineia cada um dos conjuntos (lado masculino e lado feminino). Um posicionamento frente ao sexual é tomado a partir da escolha de uma das duas modalidades de gozo (o fálico e o Outro). Assim, a divisão do sujeito na sexualidade far-se-á em função desses dois gozos e não mais entre dois sexos. É conhecendo de onde (qual posição) o sujeito fala ou ama que se insere o homem ou uma mulher, diz Lacan ao longo das explanações compiladas no Seminário 20. Logo, diante das duas lógicas descritas pelas fórmulas de sexuação, "quem quer que seja ser falante se inscreve de um lado ou de outro" (Lacan, 1972-1973/1985, p.107).

Com base nisso, ao se posicionarem no quadrante masculino, homens e mulheres se inscrevem na lógica do todo, na qual a significação fálica é o eixo de estruturação do desejo. Atentos ao jogo simbólico (dialética do ser ou ter) e totalmente limitados à linguagem, eles respondem ao gozo fálico, também conhecido como gozo do sentido, finito (Prates, 2001). São exemplos típicos desta posição: o homem que utiliza o objeto causa de desejo como suplência da falta no Outro; sua correspondente, a mulher, que, querendo ser uma, atende ao apelo do homem; e a histérica, que recusa a posição de objeto sexual de um homem. Nesse sentido, pode-se dizer que foi pela via fálica que, historicamente, tentou-se apreender o impossível, o universal do feminino. Porém, ao se buscar respostas sobre seu mal-estar estrutural, algo sempre escapava.

Diante desse resto ou excesso não simbolizado, é no outro quadrante, dito feminino, que está localizada a lógica não toda. Com ela, Lacan problematizou o alinhamento histeria/feminino/ mulher e deslocou a feminilidade de uma vez por todas para Outro lugar (Prates, 2001), conferindo ao termo novos sentidos. O gozo associado a essa lógica particular é caracterizado por um gozo suplementar, sem limites, nonsense, fora da linguagem, não simbolizado. Aqui, o gozo feminino passa a se referir a um tipo de gozo que emerge do Real, ou seja, que indica, em algum lugar, uma ausência de si: "O real, eu diria, é o mistério do corpo falante, é o mistério do inconsciente." (Lacan, 1972-1973/1985, p.178)

Assim, dividida, a sexualidade humana é agora regida por dois gozos, um simbolizado, outro não. E a diferença entre os sexos é compreendida por uma oposição entre tais lógicas, na qual uma mantém a referência fálica, enquanto a outra adiciona um novo registro, o Real. "A ordem fálica organiza o desejo, mas não fixa necessariamente o gênero à sexualidade" (Kehl, 1996, p.13). Com a formalização do registro do Real, Lacan evidencia uma dimensão que, ao longo dos processos de subjetivação, permanece fora da linguagem. Dessa maneira, o feminino é interpretado para além da ordem fálica e da castração, e a feminilidade é definida como a marca imaginária pela qual o Real se presentifica. A especificidade do feminino, anunciada por Freud como obscura e enigmática, de alguma maneira, é retomada por Lacan. Só que, em vez de signo da falta, ela passa a signo de uma falha, um furo, uma perda (Prates, 2001, p. 100). No semblante de algo da ordem do impossível, inominável, para sempre perdido, diz-se compreender o feminino. Algo da ordem do Real, sem lei, que não cessa de não se inscrever. A mulher como ser complementar, emblema da mãe primordial, não existe mais (a não ser fantasticamente). Ela se torna o significante da diferença, da alteridade; e a feminilidade, seu conceito.

Essa é a coordenada para pensar o feminino em seus outros sentidos. A descoberta desse território parece ampliar conceituações posteriores sobre o ser mulher, que não passam apenas pelos jargões (por exemplo, da maternidade) como única forma de inscrição no código e/ou como possibilidade de identificação feminina. Vale ressaltar, mais uma vez, que a teoria lacaniana não associa o gozo do Outro como um traço exclusivo do feminino e o gozo fálico como um traço exclusivo do masculino, e sim como esses dois tipos de gozo se encontram no homem ou na mulher.

Quando um ser falante qualquer se alinha sob a bandeira das mulheres, isto se dá a partir de que ele se funda por ser não todo a se situar na função fálica... a mulher justamente, só que A mulher, isto só se pode escrever barrando-se o A. Não há A mulher, artigo definido para designar o universal. Não há A mulher, pois (...) por sua essência ela não é toda. (Lacan, 1972-1973/1985, p. 98)

Dessa forma, reservadas as devidas particularidades da obra de Lacan, uma distinção básica entre os sexos ainda é sustentada pelo complexo de castração, como em Freud. Porém, seus desdobramentos sobre o ser mulher mudam. Numa tentativa de reparar o "escândalo"8 do discurso analítico, o valor dado ao efeito da castração é modificado: em vez de obstáculo à feminilidade (ao condenar o sujeito mulher à inveja do pênis), passa a servir como condição para toda feminilidade possível - função criadora do significante (André, 1998). De um ser "hipnotizado" pelo falo à menina-mulher, é, finalmente, aplicada a teoria do sujeito.

A partir daí, os desvios teóricos sobre o feminino e sobre o ser mulher são revisados. Ao feminino, é dada uma nova carga conceitual, propriamente psicanalítica, a partir da relação feminilidade-castração, em Freud, ou feminilidade-real, em Lacan, já que, ao ser articulada ao lado não todo (fálico), algo na mulher sempre escapa ao discurso e sempre aponta para o Real. A correspondência secular entre os termos parece ser, uma vez mais, rompida. Outra subversão se faz: elas - mulher/feminilidade/mãe - são dissociadas, agora de maneira radical (pelo menos teoricamente). A feminilidade é desfigurada pelo pensamento psicanalítico. É transcodificada do seu radical latino para outro, sustentado metapsicologicamente, que a amplia em seus sentidos. Novas leituras são possibilitadas. Feminilidades passam a ser enunciadas, inclusive dentro da própria psicanálise. É o que parece indicar Birman (2001). Nesse texto, ele expõe outra maneira de pensar a experiência da feminilidade - uma realidade plural, que constitui a singularidade propriamente dita. Nessa interpretação, que parte de uma crítica à posição, inicialmente, negativizada e limitada do conceito, para, em seguida, enfatizar a presença de diferentes gramáticas do erotismo no campo da subjetivação, é proposta uma leitura da feminilidade que revela, justamente, a noção de singularidade. Ele afirma:

Não obstante o fato de ter sido este conceito enunciado de maneira indireta, oblíqua e negativa, a feminilidade nos permite ler nas entrelinhas outro ponto de partida para a leitura do sujeito em psicanálise (...). (Birman, 2001, p.230)

O território do feminino, assim, coincide com os caminhos em busca da alteridade. Como figura inicial, a mulher enuncia o sujeito da psicanálise, definido por um significante faltoso, inscrito por uma mobilidade pulsional intensa que o remete à incessante tentativa de inscrição de sua singularidade. Apesar de um percurso conceitual complexo e ambíguo, ao assumir o polo alteritário do sujeito, a psicanálise ajusta suas concepções sobre o feminino, possibilitando que estas se configurem de outra forma na atualidade. Ao mesmo tempo, recupera uma coerência teórica ameaçada por visões limitadas sobre o ser mulher. A estas são oferecidos, de maneira autêntica, novos emblemas. Uma paridade estabelecida como sujeito desejante. Depois de caracterizar o feminino por um bom tempo com um a menos frente aos demais sujeitos, hoje, pode-se localizar nele a fonte de repercussões teóricas tão importantes como as teorizações que convergem aos conceitos de falasser e sinthoma9. Assim, a mulher gera seu objeto e sua teoria. Ao se assujeitar, transita numa e noutra romaria. Ora mãe, ora menina. No final, uma dentre muitas? Ou muitas dentro de uma?

De enigma, ela passa à chave do enigma ao representar as errâncias do sujeito rumo à definição de sua singularidade. Metaforicamente, a psicanálise responde: é a mulher e não o homem a resposta para o enigma da Esfinge, se pensarmos que foi por ela que se chegou ao que há de mais singular no sujeito. Diz Lacan (1972-1973/1985, p. 160), "a palavra sujeito, que eu emprego, toma então um acento diferente". Ainda assim, essa é apenas uma versão possível. Uma dentre outras estabelecidas ou futuramente criadas. Em cada uma, escolhas epistemológicas serão dadas. Singularidades apreendidas e teorizadas, seja do objeto ou do próprio campo teórico que investiga. Ficções criadas. Como diz André (1998):

(...) de Freud a Lacan, a psicanálise chegou a designar na feminilidade a figura maior, e sem dúvida original, desse não todo e, na teoria da castração, a resposta que o inconsciente elabora em face do impossível de dizer o que o sexo feminino encarna. Resposta que, por mais operativa que seja, não deixa de permanecer uma ficção. (p. 10)

 

Conclusão

Como as noções de pessoa, indivíduo e sujeito, as ideias de feminilidade, sexualidade feminina e mulher decorrem de diferentes campos disciplinares. Dentro de cada uma delas, vertentes teóricas diversas dão um tom de reflexão e de problematização. Evoluções conceptivas são, assim, criadas. Ora apontando para o novo, ora retrocedendo à noção primitiva da qual se substantiva. O feminino e suas manifestações se constroem assim na psicanálise. É o que se percebe ao analisar seu curso na teoria. A partir de uma coincidência existencial, seja na referência básica ao sexo feminino embutida no seu radical, seja por uma origem conceitual comum (histeria-feminino-mulher), à primeira vista, carregam um paralelismo original. Foi sustentado nele que Freud escreveu o discurso - o falocentrismo - dito escandaloso da psicanálise. Logo ele foi questionado. Contra ele, teses foram construídas. Algo se modificou ou apenas mudou de feição?

Apesar de uma proibição comum - a lei do incesto -, os caminhos assumidos por homens e mulheres se diferenciam. É o que demonstram análises realizadas por todos os saberes, e não será diferente com a psicanálise. A busca por uma tese essencialmente psíquica sobre essa diferença é encarada como desafio. O trânsito recorrente ora a determinações anatómicas, físicas, ora a sociais e culturais, insere-se como um complicador. O feminino se constitui a partir de tensões. Novos olhares, atravessados pelas dimensões social, psíquica e física, se acrescentam e convivem com velhas insígnias. Estas dão seguimento a uma vertente estereotipada, engessando-a em imagens. Psiquicamente, é dado ao ser feminino um único referencial: um contraponto ao masculino- -fálico. Sustentam-se, inclusive psiquicamente, as funções de mãe e de esposa como únicas "normais" para o registro da feminilidade. Novas versões sob antigos paradigmas surgem, mesmo ao se operar uma distinção entre os termos. Sabe-se que histeria, sexualidade feminina, feminilidade e mulher portam uma diferença. Porém, mínima, já que aos destinos são dadas poucas opções.

Nesse sentido, uma imagem se faz: a babuska. Uma boneca de madeira, oca. Normalmente, desenhada com traços ditos femininos, ou seja, próprio das mulheres de certa comunidade. No seu interior, há buracos "preenchidos" por miniaturas suas. Várias delas. E dentro de cada uma, há outra, outra e outra. Semelhantes em sua fisionomia, no corpo, diferenciam-se. Ajustes subjetivos que dão a capacidade de assumir posições, sempre modificadas, dentro de si. De mulher, vai à mãe. E, assim, precipitam-se subjetividades.

Mesmo instaurando um discurso radical, no qual o naturalismo é rompido como significante que nomeia a diferença entre os sexos, somente com o deslocamento conceitual operado pela palavra feminilidade é que, de fato, um discurso diferente será evocado. A partir dessa noção e de sua evolução no contexto psicanalítico, é que outras gramáticas são propostas ao feminino. Transita de uma lógica a outra. Nesse caminhar, transmuta-se em categoria metapsicológica do sujeito, não mais da mulher, sendo assim, para sempre, usurpado do seu sentido universal. A ele são dados outros sentidos: "rochedo da castração", originário do psiquismo, o Real. Frente ao impossível de dizer e de saber, buscarão identificações que possam tamponar o vazio inscrito em si mesmo. A feminilidade é, então, compreendida na sua categoria plural, multiplicada. Experiência pela qual se constituem singularidades. Frente à opção entre um dos sexos, agora também são dados vários destinos. A mulher é resgatada ao estatuto de sujeito. Não mais portador de uma essência, e sim feito de pedaços, de busca, de invenção. Pessoas fragmentadas. Originariamente, desamparadas e, por isso, submetidas a regimes de subjetivação. No real do seu corpo é isso que se mostra. Uma falha, um furo a ser contornado.

Nesse sentido, a psicanálise, principalmente com as contribuições do último ensino de Jacques Lacan, constrói uma nova teoria do feminino, que contaminará toda a sua apreensão teórica e prática sobre o humano, delineando novos rumos de uma prática clínica capaz de atender novas configurações do mal-estar e do sofrimento psíquico na cultura. Considerações essas relevantes, inclusive, na própria condução do processo de análise.

Mas e o enigma? O que podemos dizer sobre ele frente a tantas inversões teóricas sobre o feminino? Primeiro, que, obviamente, algo na sua concepção deve ter mudado. Instaurado pelos impasses causados a partir de uma inscrição da sexualidade feminina, exclusivamente na lógica fálica, o enigma circunscrevia um não saber/ver. O que estava coerentemente descrito para o menino-homem, não se aplicava ao ser mulher. Questões contextuais e físicas sobre o objeto investigado contribuíram para construção de uma teoria subjetiva parcializada. Nesse ponto cego, marcado por interrogações sobre a diferença sexual, localizava-se a essência enigmática do feminino. Naquela época, para este não havia uma explicação que não estigmatizasse o seu percurso aos jargões culturais. Uma outra concepção ainda era impossível, mesmo para a psicanálise, que enunciava um outro discurso. Depositária histórica de tudo visto como outro, diferente, estranho, menos ou mais, a figura feminina paga um preço por portar em seu corpo a marca da alteridade.

Uma impossibilidade de dizer acompanha o enlaçar conceitual do feminino na psicanálise. Claro! Como é possível apreender o alteritário sem que sua substância se torne comum? Algo sempre escapa ao se descrever os destinos. Lança-se a tarefa aos poetas. Eles, sim, sabem contemplar os enigmas sem mitificá-los. Será esse o fundamental do enigma?

 

Referências

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Recebido em 27 de julho de 2010
Aceito em 01 de dezembro de 2010
Revisado em 12 de dezembro de 2010

 

 

* Artigo construído a partir da monografia, intitulada "Femilidades: A Babuska e o Feminino como Metáfora do Sujeito na Psicanálise", apresentada no curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Teoria Psicanalítica da Universidade de Brasília, UnB.
1 Referência ao livro "O Segundo Sexo", de Simone de Beauvoir, na qual a autora faz uma análise sobre o papel das mulheres na sociedade.
2 Referência ao conceito Outro sexo de Jacques Lacan.
3 Apesar dos termos grifados se referirem a conceitos psicanalíticos distintos, far-se-á um uso indiscriminado, quando for cabível, com intuito de resgatar a polêmica que marcou o tema, exatamente pela referência semântica que cada um mantinha, em algum momento, com o devir-mulher.
4 São inúmeros os textos que abordam a questão. Esse texto, particularmente, se sustenta nas constatações desenvolvidas pelo conjunto de obras que compõem a bibliografia desse artigo.
5 Adaptação da definição dada pelo Dicionário Mini-Aurélio, (6a. ed., Revista e Atualizada).
6 Aqui, o termo é ampliado e designa diversas concepções filosóficas, culturais, biológicas e psicológicas nas quais se observa uma supremacia ou valoração do sexo masculino.
7 Não se pretende aqui esgotar o vasto e complexo campo teórico lacaniano, mas salientar sua contribuição para uma visão contemporânea do conceito de feminilidade na psicanálise.
8 Segundo Soler (2005), forma como Lacan estigmatizou o discurso analítico até então sobre o feminino.
9 Apesar de reconhecer a relevância dos conceitos de falasser e sinthoma, inclusive, para a discussão e aprofundamento do tema tratado neste artigo, optamos por realizar um corte teórico e metodológico que se limitou às teorizações contidas no Seminário 20.