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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.20 no.49 São Paulo set./dez. 2020

 

DOSSIÊ - ESTUDOS SOBRE CONTEXTOS DE DESIGUALDADE SOCIAL E A PSICOLOGIA SÓCIO HISTÓRICA

 

Lei e sociedade: tensões e contradições sobre o lugar da criança

 

Law and society: tensions and contradictions about child's place

 

Ley e sociedad: tensiones y contradicciones sobre el lugar del niño

 

Droit et société: tensions et contradictions sur la place de l'enfant

 

 

Jordana de Carvalho PinheiroI; Sônia Margarida Gomes SousaII

IMestre em Psicologia Social pela PUC GO, professora em cursos de especialização jurídica, estuda as relações entre criança, família, sociedade e justiça / contato@jordanapinheiro.com
IIMestre e doutora em Psicologia Social pela PUC SP, professora titular e pró-reitora de graduação da PUC GO, estuda os aspectos psicossociais da infância, adolescência e juventude / smgsousa2@gmail.com

 

 


RESUMO

Alçadas, no plano da lei, da condição de objeto de direito para a condição de sujeito de direitos, a criança e a infância ainda enfrentam a severa distância que as separa da elaboração e realização de efetivas políticas públicas e da garantia plena de seus direitos. Assim, este artigo parte da proposta de aprofundar a problematização e contribuir para a construção do conhecimento necessário para se apreender e compreender cientificamente o fenômeno psicossocial das relações entre a sociedade, a justiça e as crianças. Também se propõe a apresentar uma análise crítica da distância que as construções legais mantêm com a realidade fática, de efetiva proteção destas crianças, tendo como referência de análise e alicerce teórico a Psicologia Sócio Histórica de Vigotski, perspectiva crítica que supera a neutralidade, o positivismo e o idealismo das psicologias tradicionais.

Palavras-chave: Psicologia; Infância; Políticas Públicas.


ABSTRACT

In terms of the law, from the point of view of the law as a subject of rights, children still face the severe distance that separates them from the elaboration and implementation of effective public policies and the full guarantee of their rights. Thus, this article proposes to deepen the problematization and to contribute with the construction of necessary knowledge to grasp and scientifically understand the psychosocial phenomenon of relations between society, justice and children. Also proposes to present a critical analysis of the distance that legal constructions maintain with the factual reality, of effective protection of these children, having as a reference of analysis and theoretical basis Vygostky Socio-Historical Psychology, a critical perspective that surpasses the neutrality, positivism and idealism of traditional psychologies.

Keywords: Psychology; Childhood; Public Policies.


RESUMEN

Alzadas, en el plano de la ley, de la condición de objeto de derecho para la condición de sujeto de derechos, el niño y la infancia todavía enfrentan la severa distancia que los separa de la elaboración y de la realización de efectivas políticas públicas y de la garantía plena de sus derechos. Así, este artículo parte de la propuesta de profundizar la problematización y contribuir a la construcción del conocimiento necesario para comprender científicamente el fenómeno psicosocial de las relaciones entre la sociedad, la justicia y los niños. También propone presentar un análisis crítico de la distancia que las construcciones legales mantienen con la realidad objetiva, de la protección efectiva de estos niños, teniendo como referencia de análisis y cimiento teórico la Psicología Socio-Histórica de Vygostky, perspectiva crítica que supera la neutralidad, el positivismo y el idealismo de las psicologías tradicionales.

Palabras clave: Psicología; Infancia; Políticas Públicas.


RÉSUMÉ

Elevés, du point de vue du droit, de la condition d'objet de droit à la condition de sujet de droits, les enfants et l'enfance font encore face à la grave distance qui les sépare de l'élaboration et de la réalisation de politiques publiques efficaces et de pleine garantie leurs droits. Ainsi, cet article part de la proposition d'approfondir la problématisation et de contribuer à la construction des connaissances nécessaires pour appréhender et comprendre scientifiquement le phénomène psychosocial des relations entre société, justice et enfants. Il propose également de présenter une analyse critique de la distance que les constructions juridiques maintiennent avec la réalité factuelle, d'une protection effective de ces enfants, ayant comme référence d'analyse et fondement théorique la psychologie socio-historique de Vigotski, une perspective critique qui dépasse la neutralité, le positivisme et l'idéalisme des psychologies traditionnelles.

Mots-clés: Psychologie; Enfance; Politiques publiques.


 

 

Introdução

Este estudo é resultado de um recorte da pesquisa intitulada A escuta das crianças em juízo: uma análise dos significados atribuídos pelos profissionais do Direito à luz da Psicologia Socio-Histórica (Pinheiro, 2018), sustentada nas construções teóricas de Vigotski. Recortou-se, para este artigo, uma das reflexões emergentes da pesquisa: as tensões e as contradições sobre o lugar da criança entre a lei e a sociedade.

Não obstante tenha sido a criança alçada à condição de sujeito de direitos no plano da lei, na transição entre as décadas de 1980 e 1990, pela Constituição Federal de 1988, pelo Decreto n. 99.710, que promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança (1990), e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), observa-se que ainda persiste severa distância que a separa de efetivas políticas públicas e da plena garantia de seus direitos, de modo que sua objetificação revela-se aos olhos daqueles que se dedicam a uma análise crítica de seu lugar social.

Assim, embora ostente condição de sujeito na forma reconhecida pela lei, especialmente pela Constituição Federal, pela Convenção e pelo ECA - desde o fim da década de 1980 -, a criança permanece em situação de assujeitamento, em posição análoga à da objetalização com a qual se buscou romper a partir da transição da doutrina menorista para a doutrina garantista (Amin, 2015; Bernardi, 2015).

A partir dessa compreensão, afirma-se que a busca pela criança do lugar legítimo de sujeito de fala, de direitos e de ação (Sousa, 2012) ainda se encontra em construção, a despeito do reconhecimento que já lhe fora outorgado pela letra fria da lei, evidenciando-se assim a primeira e grande contradição da dialética lei e sociedade.

A busca da compreensão dessa dialética inspirou, neste trabalho, o estudo das dimensões social e histórica que norteiam as práticas sociais que se veem multiplicadas. Para além das simplificações e reducionismos, a pesquisa que se propõe a dar visibilidade à criança impõe a reflexão sobre o significado que a criança e a infância têm no desvelamento do mundo, da sociedade e da própria história.

Da análise intentada emergiu uma forte reflexão concernente à aqui denominada confluência de exclusões que as crianças pobres sofrem (exclusões sociais e jurídicas, impostas pela pobreza, que se somam e agravam o processo de exclusão por elas vivenciado). Com o fito de apresentar ao leitor a prevalência desta subcategoria, optou-se pelo relato da entrevista realizada com certo defensor público atuante em processos judiciais que envolvem crianças e adolescentes, profissional integrante da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente, entrevistado na fase empírica da pesquisa.

 

Metodologia de Pesquisa

Este artigo, como delineado em linhas anteriores, é resultado do recorte de dissertação de mestrado de temática mais ampla. Naquele trabalho, foram realizadas oito entrevistas individuais com oito profissionais atuantes nos Direitos da Infância e das Famílias (dois membros do Poder Judiciário, dois membros do Ministério Público, dois membros da Defensoria Pública e dois representantes da advocacia) que responderam positivamente ao envio de cartas-convite. O objetivo geral era o de apreender os sentidos e significados atribuídos por estes profissionais do Direito acerca da escuta das crianças em juízo e analisá-los à luz da Psicologia Sócio Histórica.

Definiu-se que os profissionais entrevistados seriam aqueles que, de alguma forma, fossem responsáveis pelo processamento em juízo das causas relacionadas à criança e à família, e que compusessem o chamado Sistema Judiciário da denominada Rede de Proteção e Atendimento à Criança e ao Adolescente. Referida amostra, de caráter intencional, teve seus participantes selecionados em razão das funções que desempenham, da localidade em que atuam e o tempo de experiência com que contam. Todo o processo seguiu rigoroso sigilo, a exemplo da adoção de nomes fictícios aos participantes desde a realização da entrevista.

As entrevistas dos oito participantes que manifestaram sua devida e expressa concordância, lendo e assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido a eles apresentados, foram gravadas transcritas e armazenadas em computador. O projeto que originou a aludida pesquisa de mestrado foi devidamente aprovado pelo Comitê de Ética da universidade.

A pesquisa empírica foi precedida e sustentada por densa pesquisa bibliográfica, que seguiu em paralelo. A partir da coleta do material empírico, as informações foram sistematizadas e analisadas, considerando as falas dos participantes, por meio de análise qualitativa denominada de núcleos de significação, designação proposta por Aguiar e Ozella (2006).

Isso consiste em dizer que, a partir da fala dos sujeitos, se empreendeu busca por temas, núcleos de significação e/ou questões centrais. A referida busca não se deu apenas pela frequência com que os temas apareceram, mas também, e não menos relevante, pela importância que a eles se dava, pela carga emocional que carregavam, pelas ambivalências ou contradições que provocavam, pelo silêncio e desconforto que geravam (Aguiar & Ozella, 2006).

Optou-se, neste artigo, pela exploração da densa e longa (de mais de três horas) entrevista realizada com representante da Defensoria Pública, com atuação voltada, exclusivamente, à defesa dos direitos atinentes às crianças e às famílias, em razão, sobretudo, dos significados encontrados em sua fala. Significados estes possivelmente motivados pela carga social presente na atuação da instituição, nos termos estabelecidos no artigo 134 da Constituição Federal, o qual recebeu nova redação por força da Emenda Constitucional n. 80/ 2014, decorrente da chamada Proposta de Emenda à Constituição Defensoria Para Todos.

A missão da Defensoria pós Emenda Constitucional n. 80 traduz-se em expressão e instrumento do regime democrático, de promoção de direitos humanos e defesa de direitos dos hipossuficientes em todos os graus, individual e coletivo.

É importante, neste trabalho, a compreensão da função institucional desempenhada pela Defensoria, em razão, especialmente, do referencial teórico aqui adotado, a Psicologia Sócio Histórica. O olhar da Defensoria possibilita uma reflexão comparativa do tratamento dispensado às crianças ricas e às crianças pobres pelo Estado e pela Justiça brasileira e justifica, aqui, a prevalência da subcategoria encontrada, a já citada confluência de exclusões reunidas pelas crianças das classes populares.

Além disso, importa destacar que a Defensoria Pública é a instituição que melhor tem defendido, no Brasil, a infância como grupo social que merece especial atenção. Como afirmam Vieira e Radomysler (2015), algumas das práticas institucionais da Defensoria têm favorecido o reconhecimento da diferença de certos grupos, dentre eles o grupo da infância. São elas: (a) a criação de núcleos especializados; (b) a propositura de ações afirmativas; (c) a coleta, a análise e a divulgação de dados obtidos em relação aos grupos sociais; d) os mecanismos de participação popular; (e) o encargo de promoção da educação em direitos.

Para entrevistar os participantes da pesquisa empírica que subsidiou a dissertação de mestrado já citada, aí incluída a entrevista do defensor público recortada para confecção deste artigo, elaborou-se, a partir dos objetivos de pesquisa, um roteiro de entrevista, não fechado, que possibilitasse que os sujeitos se expressassem mais livremente e acessassem seus repertórios de compreensão a respeito dos temas propostos para discussão, como os significados de infância e criança, sua participação social e sua escuta no processo, as dificuldades de concretização dessa escuta e as razões pelas quais ela não se dá.

A delicadeza do tema discutido nesta pesquisa exigiu uma leitura dialética do objeto de estudo e dos referenciais teóricos, abarcando as visões de um estudo interdisciplinar construído a partir de uma interface entre o Direito e a Psicologia, mas que acabou por agregar o conhecimento de diversas outras ciências, como a História e a Sociologia, voltadas ao estudo da infância.

Dessa forma, vale ressaltar que, na perspectiva vigotskiana (Vigotski, 1989, 2000), é por meio da linguagem que o homem é constituído e constituinte de outros indivíduos, sendo fundamental o registro bem como a análise da linguagem falada. De forma que não só o que se diz importa, mas também como se diz, de que se diz e o que deixa de ser dito.

Foi na escuta do sujeito entrevistado, concretamente tomado, com todas as suas singularidades, que se buscou escutar, também, aquilo que de mais amplo ele representa: o próprio sistema de garantias de direitos, seus avanços e seus retrocessos, seus acertos e seus erros, suas conquistas e suas falhas. Essa proposta de análise se fortaleceu por meio da adoção do conceito de sujeito representante: o sujeito não se expressa sozinho, mas expressa sua instituição, bem como toda a rede de proteção e atenção que representa (Sousa, 2001).

A escolha deste caminho e, mais do que isso, a exigência do próprio caminho trilhado, foi pelo enfrentamento das contradições, das tensões entre lei e sociedade, entre objetividade e subjetividade, entre particularidade e universalidade, entre o concreto e o abstrato que constituem, dialeticamente, o sujeito e o mundo.

 

As Tensões e as Contradições sobre o lugar da Criança: Sujeito de Direitos?

Passados mais de vinte anos da publicação de O século perdido: raízes históricas das políticas públicas para a infância no Brasil (originalmente escrito em 1997) - livro em que Irene Rizzini, tendo como base sua tese de doutorado, anterior a essa data, elabora "um pleito para que não se perdesse mais um século entre discursos e promessas que se esvaem e retóricas que não se afinam com as ações" (Rizzini, 2011, p. 16) -, observa-se que a enorme distância entre o que se diz, especialmente na lei, e o que se faz inviabiliza a garantia efetiva de direitos às crianças e aos adolescentes, historicamente esquecidos no Brasil, país marcado por uma perversa cultura de fortes raízes menoristas.

Da escuta atenta da fala do defensor público entrevistado, percebem-se as tensões e as contradições sobre o lugar da criança entre a previsão da lei e a realidade social:

Apesar de toda evolução, em termos da rede de proteção, do sistema de proteção, ainda vejo a criança sendo tratada não como um sujeito de direitos, como deveria ser, e, às vezes, negligenciada na sua condição peculiar enquanto pessoa em desenvolvimento. Assim, ainda hoje, a gente encontra índices altíssimos de trabalho infantil, mortalidade, subnutrição, evasão escolar, o que evidencia que, da parte do Estado, a sua obrigação de garantir o desenvolvimento, tratar a criança como prioridade absoluta não tem sido feita. (Defensor Público)

Nota-se que sua fala é permeada por constatações de profunda desigualdade social (trabalho infantil, mortalidade, subnutrição, evasão escolar), marca contundente da contradição analisada. Isso, inclusive, é dito por ele diretamente:

Acredito que o acentuado índice de desigualdade social contribui para esse processo. De modo que há ainda uma distinção de crianças de famílias pobres e crianças de famílias ricas. As crianças de famílias pobres continuam à margem dos direitos mais fundamentais - direito à saúde, direito à educação, direito ao respeito, à dignidade -, enquanto as crianças de famílias de melhores condições, essas sim, já são vistas com uma certa prioridade. (Defensor Público)

O defensor coloca, portanto, a desigualdade social associada à marginalização das crianças pobres no que diz respeito à consecução de seus direitos fundamentais, os mais diversos: o direito à saúde, à educação, ao respeito e à dignidade.

Perguntado sobre onde via a criança mais protegida, mais considerada e mais bem tratada em nossa sociedade, ele respondeu reiterando sua percepção a respeito da diferença de classes:

A gente acaba sendo obrigado a fazer distinção entre crianças de classes mais favorecidas e de classes menos favorecidas. Eu vejo essas crianças de classes mais favorecidas recebendo um tratamento digno, um tratamento de proteção, em suas escolas particulares e muitas também no âmbito familiar e comunitário. É aquela noção de que "aquele menino tem um grande futuro pela frente". (...) Isso em regra. Agora essas crianças das classes menos favorecidas, pertencentes às famílias que a Defensoria Pública assiste, são negligenciadas em todos os lugares onde estão. São negligenciadas pelas famílias, nas comunidades. (...) por exemplo, elas são utilizadas, desde pouca idade, para tráfico de drogas; elas são corrompidas, sofrem violência e negligência nas escolas, em algumas escolas, mas acontece com frequência. (Defensor Público)

Ele particulariza essa significação social do lugar da criança ao âmbito do Poder Judiciário, especificamente estudado na pesquisa que originou este artigo.

Muitas vezes, vê-se isso no âmbito da própria Rede de Proteção. E aí a gente chega ao Poder Judiciário, a nossa área, onde essas crianças também sofrem. Onde elas teriam que ser protegidas, mas onde elas têm que ser afastadas, de qualquer forma, da "família pobre dela", porque se não tiverem oportunidade de serem colocadas em uma família rica o futuro delas é incerto e elas estão fadadas ao fracasso. Dentre os processos nos quais atuei, ressalta-se essa distinção e como essa questão de classe social, de pobreza é trazida para dentro dos processos judiciais. (Defensor Público)

Percebe-se que a noção de criança pobre vem carregada de estigmas. Diz-se que elas são utilizadas e corrompidas, adjetivações próprias dos objetos e dos sujeitos assujeitados, e não dos sujeitos de direitos! São associadas à violência, à negligência e até mesmo à prática de crimes.

Provocado a apresentar um exemplo sobre o que chamou de "viés preconceituoso que infelizmente consta de alguns relatórios", contou:

Houve um caso em que atuei, de uma disputa de guarda entre avó e mãe. Foi realizado um estudo social, na casa de ambas, e a conclusão foi no sentido de que seria melhor que a criança permanecesse na casa da avó, uma vez que a casa da mãe não tinha muro. Faltava um muro na parte da frente. Aquilo, portanto, seria a razão para que a criança permanecesse com a avó. Em audiência, essa mãe trouxe que o muro era questão de tempo. Afirmou que esse muro iria ser construído. Dentro da realidade da pessoa e das dificuldades que estavam sendo enfrentadas, claro. (Defensor Público)

Ora, quais são os muros que verdadeiramente separam a criança de seu lugar de sujeito de direitos já demarcado pela lei? Por que é que as políticas públicas voltadas às crianças e à infância não se efetivam, a despeito da existência de um emaranhado de previsões legais?

Constata-se que a falência do estado brasileiro, como propositor e realizador de políticas públicas eficientes, tem resultado no recrudescimento do sistema de garantias, mediante a adoção de práticas restritivas de direitos sob o argumento de descontrole social. Nessa perspectiva, perdem sempre os mais vulneráveis: as crianças e o adolescentes (como se percebe na ânsia de parte da sociedade em criminalizar suas condutas), os negros (cada vez mais encarcerados), os pobres (dizimados em suas comunidades de forma cada vez mais cruel).

A respeito da ausência do Estado, Shecaira (2014) bem coloca:

Afinal, quando as instâncias informais de controle social falham ou são ausentes, entram em ação as agências de controle formais. Assim, se o indivíduo, em face do processo de socialização, não tem uma postura em conformidade com as pautas de conduta transmitidas e aprendidas na sociedade, entrarão em ação as instâncias formais que atuarão de maneira coercitiva, impondo sanções qualitativamente distintas das reprovações existentes na esfera informal. Este controle social formal é seletivo e discriminatório, pois o status prima sobre o merecimento. Ademais, é ele estigmatizante, desencadeando desviações secundárias e carreiras criminais. (Shecaira, 2014, pp. 59-60)

Da elaboração de Shecaira (2014), destaca-se a convergência de três aspectos do aludido controle social formal: seletividade, discriminação e estigma. Este contexto, por certo, remete à necessária análise do processo histórico.

Ao tratar do processo histórico de exclusão (e de inclusão perversa, no processo dialético da exclusão e da inclusão), Sawaia (2017, p. 8) busca "compreender as nuances das configurações das diferentes qualidades e dimensões da exclusão, ressaltando a dimensão objetiva da desigualdade social, a dimensão ética da injustiça e a dimensão subjetiva do sofrimento". A respeito da exclusão, a autora segue mostrando o destaque que também é dado à contradição que a constitui:

a qualidade de conter em si a sua negação e não existir sem ela, isto é, ser idêntico à inclusão (inserção social perversa). A sociedade exclui para incluir e essa transmutação é condição da ordem social desigual, o que implica o caráter ilusório da inclusão. Todos estamos inseridos de algum modo, nem sempre decente e digno, no circuito reprodutivo das atividades econômicas, sendo a grande maioria da humanidade inserida através da insuficiência e das privações, que se desdobram para fora do econômico. (Sawaia, 2017, p. 8)

Dentro desse contexto, percebe-se, então, a figura daquele sujeito que reúne todas essas condições de exclusão e marginalização social, pelo que se destaca a subcategoria que neste artigo se busca analisar, a da confluência de exclusões. Assim, pode-se afirmar que a criança pobre reúne uma confluência de exclusões, processo que muito interessa à Psicologia Sócio Histórica, sobretudo a latino-americana.

Por confluência de exclusões, compreenda-se o processo, que não ocorre ao acaso, de sobreposição de exclusões sociais e jurídicas duramente impostas às crianças pobres. Exclusões estas que se somam e se justapõem, catalisando-se, umas às outras, recursivamente.

Ora, à criança pobre que vivencia conflito familiar grave capaz de lhe gerar danos irreversíveis é imposto um rito, uma marcha, um trâmite processual ainda mais burocrático e moroso do que aquele imposto às crianças de famílias mais protegidas financeira e socialmente. Muito embora se reconheça o trabalho engajado e técnico que vem sendo realizado pelas Defensorias Públicas ao redor do país, não se pode negar o imenso número de ações em que os defensores precisam atuar e o consequente tempo de espera para atendimento. Também importante sublinhar que muitas cidades brasileiras não contam com a assistência da Defensoria, que ainda tem trabalhado para a ampliação e interiorização geográfica de sua atuação. As aludidas espera e burocracia, por sua vez, tendem a agravar os quadros familiares vivenciados, atuando na justaposição recursiva descrita em linhas anteriores.

Para além disso, é inegável reconhecer que os mecanismos jurídicos não bastam! As experiências mais exitosas, no âmbito do Direito das Famílias, tem apostado e investido em abordagens interdisciplinares, que contam com o aporte técnico-científico de profissionais de outras carreiras (psicólogos jurídicos, pedagogos jurídicos, assistentes sociais), profissionais mais tangíveis e acessíveis às crianças cujas famílias dispõem de recursos sociais e financeiros suficientes. Mais uma vez, as sobrepostas exclusões jurídico-sociais impostas às crianças pobres podem ser percebidas.

Não se pode, neste exemplo, ignorar a dimensão de exclusão perversa da sociedade que impede - por diversos processos, como os acima exemplificados - o acesso a uma vida digna tanto material quanto afetiva e emocional (Sousa & Peres, 2002).

As construções de Rizzini (2011) a este respeito permitem que a questão de classe, que sempre permeia a relação entre crianças e sociedade, não seja esquecida, uma vez que aquela criança que reúne diversos estigmas e estereótipos de exclusão sofre mais intensamente a marca da invisibilidade.

Neste ponto, impõe ressaltar o papel de expressivo impacto de efetivas políticas públicas voltadas às crianças judicializadas, que busquem e permitam que as marcas da desigualdade atinjam com menor furor aquelas que, ainda em fase de desenvolvimento e sedentas de proteção, se veem, hoje, soterradas por sobrepostas exclusões.

Sousa e Tavares (2012, pp. 95-96), ao buscarem delinear quais "contribuições a Psicologia Socio-Histórica pode trazer para a efetivação dessas políticas", sobretudo para as políticas voltadas às crianças, destacam que esta psicologia, ao reconhecer a criança como sujeito concreto ativamente inserido em um contexto social que ajuda a produzir para além de ser produzido por ele, leva à compreensão da posição desta criança em uma realidade mais ampla, apreendendo, então, seu processo de formação.

Acerca da propositura e concretização de políticas públicas contundentes e eficientes, muito se explorou durante a entrevista. O defensor reafirmou sua convicção, por algumas ocasiões, de que o Brasil não carece de mais nem melhor previsão legislativa:

Não seria necessária nenhuma alteração, no ponto de vista normativo. Se o que está previsto nos tratados ratificados pelo Brasil, na Constituição, no Estatuto da Criança e do Adolescente, na Lei do Sinase (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo), no Código Civil, tudo o que diz respeito à criança e ao adolescente fosse observado e fosse tratado como prioridade absoluta, nós teríamos uma outra realidade. (Defensor Público)

Questionado sobre suas sugestões no que diz respeito às políticas públicas voltadas às crianças e à infância, o defensor visitou as questões da educação e da saúde, escancarando um ponto que nesta pesquisa se percebe como central: a necessária abordagem interdisciplinar das complexas questões que envolvem crianças e adolescentes, a exemplo dos chamados Estudos da Criança propostos por Sarmento e Gouvea (2008).

Começo falando das políticas relacionadas à primeira infância. Um avanço, uma atualização normativa importante que tivemos: o amparo e o acompanhamento das mães que estão fazendo pré-natal, uma atenção prioritária a essas mães, dentro do sistema público de saúde. A partir do nascimento das crianças, diz a lei que aquelas mães que desejam, manifestam desejo em colocar o filho para adoção, devem receber orientação adequada de profissionais com capacitação nessa área. E isso ainda não ocorre de forma satisfatória. (...) Quando a mãe manifesta desejo em colocar o filho para adoção, muitas vezes ela é julgada e criticada pela sociedade. Então, nessa questão da saúde eu tenho essas sugestões. Na questão da educação, vejo o modelo de CMEIs (Centros Municipais de Educação Infantil) como uma política pública muito boa. Você já inserir a criança ali, na primeira etapa da vida dela, no começo, já com algumas atividades pedagógicas de interação, já é uma política pública fantástica. (Defensor Público)

Reforçando o gap entre a previsão legal e a implantação das medidas previstas em lei, que tensionam a posição da criança na sociedade, ele reafirmou a inobservância dos princípios da proteção integral e da prioridade absoluta da criança, norteadores do Estatuto da Criança e do Adolescente e de toda a sua nova doutrina, e ressaltou o déficit civilizatório que marca o país:

Falta a implantação e a efetivação disso. Na Defensoria nós temos milhares de ações, de mandados de segurança, de ações ordinárias buscando vaga em creche, quando, na verdade, se tem um déficit de 10 mil vagas, aproximadamente, e nenhum empenho do Poder Executivo, em que pese tenha sido firmado Termo de Ajustamento de Conduta para a construção desses centros. Não há nenhuma perspectiva de que essa demanda seja atendida. É uma demanda grande? É. O gasto, o custo disso é um custo alto? É. Mas se essa questão fosse tratada como prioridade absoluta ela poderia ser resolvida, essa questão do déficit das escolas. (...) Então, qual a solução? É tratar a criança e o adolescente e o direito deles à educação como prioridades. Um grande fato que contribui para essa realidade caótica que nós vivemos é a questão do déficit civilizatório, da pouca compreensão das pessoas, como cidadãos que participam, que tomam decisões que afetam a todos. E essa questão da educação, da inclusão das crianças nas creches desde o início já seria um grande avanço. Para a evolução e a superação desse déficit. (Defensor Público)

Questionado para que apresentasse um exemplo prático, próprio de sua vivência profissional, a respeito da aqui chamada reunião, ou confluência, de exclusões, o defensor trouxe à tona o caso de uma criança pobre assistida pela Defensoria, que enfrenta séria situação em decorrência da paralisia cerebral que a acomete, não encontrando respaldo no Estado e na Justiça para a consecução de instrumentos que lhe proporcionariam desenvolvimento e melhor qualidade de vida, dignificando seu cotidiano já tão duro.

No Juizado da Infância e Juventude, eu tenho uma ação para garantia de um andador específico para uma criança que nasceu com paralisia cerebral, que foi atendida no CRER e que teve alta com um mês de atendimento. Sua mãe passou a buscar, mesmo com toda carência de recursos, um andador específico prescrito por alguns profissionais. Nós entramos com a ação, ganhamos a liminar, mas o Estado não a cumpriu. Além de não a cumprir, ele não recorreu. A decisão está lá no papel, mas a criança continua sem o andador, tendo perda de movimentos, atrofia muscular e uma série de dificuldades pela falta daquele equipamento. Ao despachar com a juíza, para que ela efetivasse o bloqueio nas contas do Estado para garantia daquele andador, a resposta que eu obtive foi a de que o Estado não tem dinheiro, que o Fundo da Criança também não tem dinheiro e que ela não teria como impor ao Estado aquele ônus, e que eu teria que buscar outras alternativas. Eu poderia citar inúmeros exemplos de ações em que a Defensoria entra, ganha liminar, mas o Estado não cumpre e o Poder Judiciário não impõe, não efetiva a decisão. (Defensor Público)

Neste contexto de evidentes falências, perguntado se o sistema de garantia de participação falha, o defensor público respondeu afirmativa e enfaticamente.

Falha. Em absoluto. Infelizmente. A rede falha e o que a gente vive, (...) é a consequência dessa falha. É um sistema falido. Se se respeitasse minimamente o que consta do ordenamento jurídico nessa área, a gente conseguiria solucionar vários problemas sociais, problemas da segurança pública, educação, o próprio aprimoramento da democracia, a noção de cidadania. O enxergar esse cidadão, participar das decisões. Acho que a responsabilidade dessa rede é muito grande. E quando ela falha, falha o Estado como um todo, falha o país. É isso. (Defensor Público)

Sobre o direito de ter direitos, mesmo quando a efetivação destes falha, ou, ainda, sobre a exclusão que opera para a inclusão, e assim recursivamente, Gonçalves pontua:

são razões que passam pelo reconhecimento de que diante da negação ideológica do direito de ter direitos; diante da precariedade com que os direitos, quando são reconhecidos, são atendidos; diante de demandas que beiram à necessidade de defesa da própria vida... é preciso compreender que a toda e qualquer necessidade deve corresponder uma política, que inclusive permita transformar a demanda. (Gonçalves, 2010, p. 126)

Neste passo, repetindo as indagações de Rizzini, elaboradas em seu prefácio à segunda edição, ainda é possível perguntar:

Será que se pode afirmar que as crianças de hoje vivem em melhores condições que as de ontem? Se ontem eram acalentados ideais de transformação em busca da identidade nacional, situando a criança como chave para o futuro da nação, hoje o que estamos fazendo com e para as crianças? (Rizzini, 2011, p. 71)

Da análise atenta da realidade social em que estão inseridas as crianças, os questionamentos crescem: terão surtido efeitos todas as cartas, as convenções e os estatutos promulgados nas décadas da esperança? Terá a normatização sido suficiente para garantir os avanços almejados? Terá o império da lei cumprido sua missão no sentido da real efetivação dos direitos das crianças? Será hoje a doutrina da proteção integral, inaugurada no fim da década de 1980, uma realidade perceptível?

Neste reconhecimento, nota-se que, apesar de devidamente positivados, os direitos das crianças continuam sendo negligenciados, ignorados, suplantados. Direitos os mais diversos, imanentes à criança e à sua altiva existência, como: o direito de ser sujeito, e não objeto, o direito de estudar desde a tenra infância, o direito de receber assistência em relação à saúde física e psicológica, o direito de permanecer ao lado de sua mãe, sem muros.

A lei, embora acerte ao expressar em seus códigos a garantia de direitos (à participação efetiva no processo, à vaga escolar, ao acolhimento institucional digno, e assim por diante), não consegue, de fato, garanti-los. Não se pode negar ser esse um movimento contraditório que muito interessa à Psicologia Sócio Histórica: tem-se um direito, tem-se a expressão dele, sem, contudo, se vislumbrar sua real efetivação.

A respeito da relação socialmente construída, e não naturalmente posta, Sawaia (2014) caminha além, analisando e reforçando o traço perverso da dialética exclusão/inclusão que, por vezes, inebria a todos ao transparecer que o direito posto formalmente existe, quando ele não passa de mera retórica. Esse fenômeno se dá na medida em que, diante da existência da positivação, o Estado e as forças sociais se desresponsabilizam pelo processo de sofrimento que impingem aos excluídos, dentre eles as crianças.

É no sujeito que se objetivam as várias formas de exclusão, a qual é vivida como motivação, carência, emoção e necessidade do eu. Mas ele não é uma mônada responsável por sua situação social e capaz de, por si mesmo, superá-la. É o indivíduo que sofre, porém esse sofrimento não tem a gênese nele, e sim em intersubjetividades delineadas socialmente. Dessa forma, se os brados de sofrimento evidenciam a dominação oculta em relações muitas vezes consideradas como parte da natureza humana, o conhecimento dos mesmos possibilita a análise de vivência particular das questões sociais dominantes em cada época histórica; em outras palavras, da vivência do mal que existe na sociedade. (Sawaia, 2014, pp. 100-101)

Assim, a partir das práticas sociais e jurídicas, vê-se que a perspectiva menorista retorna, cotidianamente, na forma de sua dimensão histórica, não suplantada pela noção de justiça construída nos anais do Judiciário. Explícita está, portanto, a contradição entre o caminho percorrido pela lei e a realidade dos fatos observados.

Pode-se dizer que o Brasil abandonou a doutrina menorista apenas sob o ponto de vista formal. Historicamente, a criança nunca ocupou, e ainda não ocupa, um lugar social de verdadeiro respeito aos seus direitos. Não se pode ignorar o fato de que muito mudou com a transição da legislação menorista para a doutrina da proteção integral. Contudo, escancara-se uma grande distância entre as disposições do ordenamento jurídico brasileiro, que se diz primar pela criança e protegê-la, e as práticas profissionais e institucionais perpetradas pelos órgãos do Estado responsáveis pela observância e cumprimento da ordem jurídico-legal.

 

Considerações finais

Para alcançar tamanha complexidade, necessário se faz o enfrentamento das contradições, das tensões entre objetividade e subjetividade, entre particularidade e universalidade, entre o concreto e o abstrato que constituem, dialeticamente, o sujeito e o mundo, na busca pelo princípio da totalidade, o qual Sawaia (2015, p. 1) menciona.

Neste sentido, mais uma vez, há necessidade de se caminhar. É imperativo que se compreenda e se cumpra, não no futuro mas no presente, o estatuto de sujeito de direitos que as crianças possuem, sobretudo as crianças judicializadas e as crianças pobres, de modo a enxergar a perpetração de injustiças e promover a dignificação do tratamento a elas dispensado, considerando o enorme contingente de ações judiciais que discutem a vida das crianças e tramitam nas Varas de Família e Juizados da Infância do país, e, principalmente, apreciando a premente necessidade de se concretizar - nos planos prático-teóricos, profissionais e institucionais - a legislação da proteção integral da criança, que a consagra como sujeito de direitos, e não mais como objeto, vigente há quase trinta anos e ainda tão desconhecida do cotidiano dos tribunais.

 

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Recebido em: 23/09/2019
Aprovado em: 30/12/2020

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