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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.21 no.51 São Paulo maio/ago. 2021

 

ARTIGO

 

Trabalhar para viver? O trabalho enquanto mecanismo da necropolítica no contexto pandêmico

 

Work to live? Work as a necropolitical mechanism in the context of the pandemic

 

¿Trabajar para vivir? El trabajo como un mecanismo de necropolítica en el contexto de la pandemia

 

 

Maria Teresa Ruas Coelho

Mestrado em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB) e doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal de Sergipe (UFS) / mariateresaruascoelho@gmail.com

 

 


RESUMO

Vivemos um momento de ameaça global e coordenada de adoecimento e morte pelo novo coronavírus. Mais do que nunca, a morte espreita e subordina a vida humana, determinando nossos hábitos de higiene, nossa rotina, nosso trabalho, nosso psicológico, nossa liberdade de ir e vir. Para algumas pessoas esta não é uma realidade completamente nova: aquelas alocadas do lado de lá da linha que divide quais vidas devem ser resguardadas de quais vidas são descartáveis. A desigual proporção e severidade com que a pandemia afeta alguns grupos sociais, que se localizam em uma encruzilhada entre raça e classe facilmente identificável, é, na verdade, consequência da necropolítica neoliberal que antecede o atual contexto. São mortes anunciadas. Sob a ótica do trabalho, procuramos oferecer algumas observações preliminares sobre os pontos de contato entre necropolítica, neoliberalismo e o novo coronavírus.

Palavras-chave: Coronavírus; Pandemia; Neoliberalismo; Necropolítica; Trabalho.


ABSTRACT

We live in a time of global and coordinated threat of illness and death by the new coronavirus. More than ever, death lurks and subordinate human life, determining our hygiene habits, our routines, our works, our psyche, our freedom to come and go. For some people this is not a completely new reality: those placed on the other side of the line that divides which lives must be protected from which lives are expendable. The unequal proportion and severity with which the pandemic affects some social groups, which are located at an easily identifiable crossroads between race and class is, in fact, a consequence of the neoliberal necropolitics that predates the current context. These are announced deaths. From the perspective of work, we seek to offer some preliminary observations on the points of contact between necropolitics, neoliberalism and the new coronavírus.

Keywords: Coronavirus; Pandemic; Neoliberalism; Necropolitics; Work.


RESUMEN

Vivimos en um momento de maenaza global y coordenada de enfermidade y muerte debido al nuevo coronavírus. Más que nunca, la muerte acecha y subordina la vida humana, determinando nuestros hábitos de higiene, nuestras rutinas, nuestros trabajos, nuestra psicologia, nuestra libertad de ir y venir. Para algunas personas, esta no es una realidade completamente nueva: aquellas ubicadas em el outro lado de la línea que divide qué vidas deben protegerse de qué vidas son desechables. La proporción desigual y la gravedad com que la pandemia afecta a algunos grupos sociales, que se encuentram em uma encrucijada entre raza y classe que es facilmente identificable, es, de hecho, uma consecuencia de la necropolítica neoliberal que precede al contexto actual.

Palavras clave: Coronavírus; Pandemia; Neoliberalismo; Necropolítica; Trabajo.


 

 

Introdução

No dia 31 de dezembro a Organização Mundial de Saúde (OMS) emitiu o primeiro alerta do que seria o surto de uma doença, então desconhecida, em Wuhan, na China. No dia 6 de janeiro foi confirmada a primeira vítima fatal da doença. Em fevereiro o novo coronavírus foi renomeado pela OMS como covid-19 e em março a epidemia passou a ser categorizada como uma pandemia mundial. Agora, já no fim do ano de 2020, o número de casos confirmados no mundo passa de 60 milhões e o número de mortes chega a quase 1,5 milhão.

Experimentamos, dessa forma, uma rara situação de ameaça global e coordenada da doença e da morte, de modo que, aqui e ali, surgiram afirmações sobre o caráter "democrático" do vírus, indiferente à nacionalidade, indiferente à classe, ao gênero, à raça e à orientação sexual: como a morte em si, igualando-nos em nossa condição humana. Entrementes, muito já foi dito em reação a essa afirmação1. Obviamente, doenças, epidemias e pandemias não acontecem em um vácuo social. Elas acometem pessoas, localizadas em posições de desigual vulnerabilidade de acordo com diferentes marcadores sociais e suas intersecções. Nem mesmo a morte é democraticamente distribuída no mundo em que vivemos, com ou sem uma doença a se alastrar.

É com base nesse entendimento que o presente artigo oferece uma discussão preliminar das desiguais capacidades de diferentes grupos sociais enfrentarem a pandemia. A partir da ótica do trabalho, argumentamos que a necropolítica do Estado neoliberal, anterior ao avanço da Covid-19, já operava uma divisão entre vidas a serem preservadas e vidas descartáveis, a normalização da morte de alguns, além de uma subordinação da vida à morte que atua no atual contexto de forma ainda mais violenta. Essa necropolítica, conceito do filósofo camaronês Achille Mbembe (2018), pode ser muito bem representada na fala do presidente Jair Bolsonaro, que questionado sobre o recorde de mortes pelo novo coronavírus no Brasil respondeu com um despretensioso "E daí?"2.

Tal banalização da vida humana (ou de algumas vidas humanas), característica do projeto neoliberal e conservador do qual Bolsonaro é mandatário, excede o atual governo e a pessoa do presidente, de modo que a desigualdade na distribuição dos efeitos da doença sobre a população compõe uma tragédia anunciada. As alterações na legislação trabalhista e as políticas de austeridade aprovadas entre os anos de 2016 e 2019 já atuavam como mecanismos necropolíticos que se perpetuam com ainda mais violência no momento. Após rápida introdução aos conceitos de biopolítica, de Michel Foucault, e de necropolítica, de Achille Mbembe, passamos por uma revisão dessas alterações legais, que expressam a associação existente entre a política de morte e a atual hegemonia neoliberal no capitalismo, para, enfim, oferecer algumas evidências já existentes do papel central desempenhado pelo trabalho na desigual distribuição da capacidade de aderir ao isolamento social e de sobreviver à pandemia.

 

Da biopolítica à necropolítica, a morte como política de Estado

As desiguais condições de vulnerabilidade de alguns grupos sociais em relação a outros neste contexto pandêmico deixam ainda mais evidente a hierarquização promovida pelo Estado entre vidas descartáveis e vidas a serem preservadas. O poder de fazer viver, que na visão de Foucault (1999) é o substrato da soberania a partir do século XIX, configura-se naquilo que ele chamou de biopoder. Esse exercício do poder sobre a vida inclui a disciplina dos corpos, mas toma a forma também de uma tecnologia que gere de forma calculada os diversos elementos que contribuem para preservar e prolongar a vida humana (Foucault, 1999).

Centra-se, portanto, em uma biopolítica, por vezes usada pelo autor como sinônimo de biopoder, traduzida na intervenção do Estado, por exemplo, na garantia do fornecimento de serviços de saúde, de saneamento básico, assistenciais; na pressão exercida sobre a sexualidade, sobre as regras de higiene, sobre o cuidado com as crianças e os idosos; e na produção de dados demográficos e estatísticos, capazes de conferir previsibilidade e a capacidade estatal em produzir e administrar a vida (Foucault, 1999). É, pois, um poder tanto disciplinar quanto regulamentador:

Uma técnica que é, pois, disciplinar: e centrada no corpo, produz efeitos individualizantes, manipula o corpo como foco de forças que é preciso tomar úteis e dóceis ao mesmo tempo. E, de outro lado, temos urna tecnologia que, por sua vez, é centrada não no corpo, mas na vida; uma tecnologia que agrupa os efeitos de massas próprios de uma população, que procura controlar a série de eventos fortuitos que podem ocorrer numa massa viva; uma tecnologia que procura controlar (eventualmente modificar) a probabilidade desses eventos, em todo caso em compensar seus efeitos. É uma tecnologia que visa portanto não o treinamento individual mas, pelo equilíbrio global, algo como uma homeostase: a segurança do conjunto em relação aos seus perigos internos. (Foucault, 1999, p. 297)

Igualmente constitutivo do poder do Estado, para Foucault, é o poder de deixar morrer. Como uma moeda de duas faces, o biopoder é constituído como o poder de fazer viver e de deixar morrer. Mas, questiona o autor, como um Estado cujo poder se trata essencialmente de prolongar a vida e multiplicar suas possibilidades pode, ao mesmo tempo, dar a ordem de matar ou expor à morte não somente seus inimigos como seus próprios cidadãos? (Foucault, 1999, p. 304). A resposta é direta: com base no racismo.

Ele define o racismo, de um lado, como um meio de fragmentar a espécie humana - domínio biológico para o qual o biopoder se direciona - em subgrupos racializados (Foucault, 1999). A população passa a ser um conjunto de diferentes raças que são classificadas de maneira hierarquizada. De outro, o racismo atua como um meio de estabelecer uma relação positiva com a morte alheia, e o faz com base em uma relação que não é política, nem militar ou guerreira, mas estritamente biológica (Foucault, 1999). Isto é, a morte do outro é positiva não porque ele representa um risco à minha vida e para que eu sobreviva o inimigo tem de morrer, mas porque a eliminação da raça biologicamente inferior, degenerada, anormal, permite uma purificação da espécie humana e contribui para a melhoria da saúde e da vida da população.

O racismo é entendido por Foucault, desse modo, como uma tecnologia que permite o exercício do poder de matar do Estado moderno, que passa não somente pelo assassinato direto, mas também pela exposição da vida de alguns a maiores riscos ou, ainda, pela morte política, a expulsão, a rejeição (Foucault, 1999; Mbembe, 2018). Para o autor, a emergência do biopoder em si inseriu o racismo nos mecanismos de exercício do poder estatal de forma generalizada.

Diferentemente de Foucault, que toma o Estado nazista como o exemplo mais acabado de um Estado que exerce o direito de matar, Achille Mbembe (2018) olha para as experiências coloniais e parte da construção foucaultiana do biopoder e da biopolítica para elaborar o que entende por necropoder e por necropolítica. Mbembe afirma que o colonialismo, o apartheid e a escravidão não operaram com base em tecnologias de poder voltadas a fazer viver e a deixar morrer, como na noção de biopoder, mas em uma forma original de terror que conjuga o biopoder, o estado de exceção e o estado de sítio, a que chama de necropolítica (Mbembe, 2018, p. 32).

A necropolítica, resumidamente, dá nome às formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte (Mbembe, 2018). Essa forma de poder, essencialmente racista, tem como base a construção de um inimigo que está sempre à espreita, de modo que a "paz" só pode ser alcançada em uma "guerra sem fim", em que a minha vida depende da aniquilação inesgotável de um inimigo que jamais é derrotado (Mbembe, 2018, pp. 32-33). Na necropolítica, portanto,

O estado de sítio, longe de ser exceção, será a regra, e o inimigo, aquele que deve ser eliminado, será criado não apenas pelas políticas estatais de segurança pública, mas pelos meios de comunicação de massa e os programas de televisão. Tais programas servirão como meio de constituir a subjetividade adaptada ao ambiente necropolítico em que impera o medo.

O racismo, mais uma vez, permite a conformação das almas, mesmo as mais nobres da sociedade, à extrema violência a que populações inteiras são submetidas, que se naturalize a morte de crianças por "balas perdidas", que se conviva com áreas inteiras sem saneamento básico, sem sistema educacional ou de saúde, que se exterminem milhares de jovens negros por ano, algo denunciado há tempos pelo movimento negro como genocídio. (Almeida, 2019, p-. 122-123)

Com essa passagem, é possível perceber que a necropolítica não se restringe ao período do colonialismo clássico, mas se perpetua no atual estágio neoliberal do capitalismo (Almeida, 2019, p. 124). Feita essa introdução preliminar dos conceitos de biopoder, biopolítica, necropoder e necropolítica, a próxima seção é reservada para essa associação da política de morte com o Estado neoliberal, que implanta um estado de exceção permanente e fornece as bases sociais sobre as quais o novo coronavírus avança.

 

Morte Anunciada

A partir do discutido na seção anterior, torna-se essencial ter em mente que a pandemia do novo coronavírus se instala em um mundo estruturado sobre tecnologias de poder que submetem a vida à morte e que separam aqueles corpos descartáveis dos que devem viver com base em uma hierarquização biológica/racial de níveis de humanidade que banaliza a morte de muitos. Ainda que o vírus em si, de fato, não opere com base em tal distinção "biológica" da humanidade, ele acomete pessoas, corpos humanos localizados de um lado ou de outro dessa linha que separa quem deve viver e quem deve morrer. Sendo assim, acaba por afetar de forma desigual diferentes grupos sociais de acordo com os graus de vulnerabilidade a que estão submetidos.

Alguns estudos já apontam que a pandemia afeta desproporcionalmente os mais pobres3 e pessoas negras. Na verdade, existem evidências de que esses marcadores confluem no Brasil em um perfil de vítima-padrão: homens negros e pobres4. Ainda que seja um fenômeno em curso, é possível conferir a validade desses apontamentos preliminares com base no fato de que são os mais pobres os que enfrentam as maiores dificuldades em manter o isolamento social, seja porque precisam sair de casa para trabalhar, sob o risco de não garantir a renda necessária para a reprodução da sua vida e da sua família, seja porque suas habitações tendem a ter menos cômodos e um maior número de moradores (Pires et al., 2020). Também os mais pobres são os que contam com menor acesso a serviços de saneamento básico e de saúde, o que se traduz na maior incidência de comorbidades (doenças crônicas que contribuem para uma manifestação mais violenta da doença) e em menores chances de recuperação da doença por falta de recebimento do tratamento devido (Pires et al., 2020).

Ao que parece não se trata apenas de um número mais alto de casos confirmados, mas também de um índice maior de severidade desses casos. Em outras palavras, para além de estarem mais sujeitos à contaminação, os mais pobres estão desenvolvendo quadros mais graves da doença. (Pires et al. 2020, p. 3)

Dado o contexto brasileiro, a pobreza é indissociável da questão racial. As pessoas negras predominam nas camadas de renda mais baixas5, nas periferias, no uso dos transportes públicos, nos postos de trabalho precários e superexplorados, ao modo da biopolítica foucaultiana de omissão estatal (deixar morrer) e da necropolítica de Mbembe (subsunção da vida à morte e permanente estado se exceção). Estado de exceção que se configura como exigência do neoliberalismo, "meio de neutralizar a democracia através da criação pelo mercado de um inimigo que deve ser combatido pelo Estado, inimigo do qual se retira a própria con ocracia conduziria, necessariamente, à má gestão orçamentária, resultando na deterioração das receitas públicas e endividamento soberano ascendente, numa palavra, em crise fiscal. A economia deveria ficar, pois, ao encargo do mercado, detentor de racionalidade própria e livre das pressões irracionais e insustentáveis a que o Estado democrático estaria inevitavelmente sujeito. "O problema, portanto, não estaria no fato de que o Estado precisa aumentar ou liberar uma maior parcela de suas receitas para arcar com os encargos da transferência cada vez maior de excedentes arrecadados para as mãos de uma classe financeira, mas na gastança desenfreada que a democracia supostamente implica" (Shäfer & Streeck, 2013, p. 9).

Aí reside a lógica da austeridade de que o equilíbrio das contas públicas passa pelo corte de gastos sociais, onde é possível identificar uma decisão política de que algumas vidas são cambiáveis pelo lucro financeiro e a reprodução do sistema sem maiores empecilhos. A política austera é, dessa maneira, também uma política de sacrifício. De acordo com Wendy Brown (2015), a transição da democracia liberal para a democracia neoliberal implica a reformulação do exercício da cidadania em um sacrifício compartilhado, solicitado por governantes e pelo mercado em nome de um bem maior, "no qual estamos todos integrados, mas do qual a maioria não deve esperar qualquer benefício pessoal (Brown, 2015, p. 219, tradução própria)6".

Nos termos da autora, essa "cidadania sacrificial" submete as pessoas a uma situação de insegurança e privação generalizadas, que normaliza o desemprego, o corte nos salários, a precarização do trabalho, o corte de benefícios assistenciais, a privação de serviços anteriormente ofertados pelo Estado na forma de direitos democráticos, universais e públicos, que passam a ser privatizados ou a funcionar de acordo à lógica de mercado (Brown, 2015).

Comunicadas, via de regra, como decisões técnicas, sem que qualquer debate seja realizado juntamente à população mais ampla, as políticas de austeridade e as reformas trabalhistas são, na verdade, decisões políticas. Ou melhor, mecanismos da necropolítica, que normalizam o sacrifício de alguns e traçam a linha divisória entre quem vive e quem morre:

A necropolítica, portanto, instaura-se como a organização necessária do poder em um mundo em que a morte avança implacavelmente sobre a vida. A justificação da morte em nome dos riscos à economia e à segurança torna-se o fundamento ético dessa realidade. Diante disso, a lógica da colônia materializa-se na gestão praticada pelos Estados contemporâneos, especialmente nos países da periferia do capitalismo, em que as antigas práticas coloniais deixaram resquícios. Como também observa Achille Mbembe, o neoliberalismo cria o devir-negro no mundo: as mazelas econômicas antes destinadas aos habitantes das colônias agora se espalham para todos os cantos e ameaçam fazer com que toda a humanidade venha a ter o seu dia de negro, que pouco tem a ver com a cor da pele, mas essencialmente com a condição de viver para a morte, de conviver com o medo, com a expectativa ou com a efetividade da vida pobre e miserável. (Almeida, 2019, p. 125)

No contexto brasileiro mais recente, as aprovações do Novo Regime Fiscal (EC 95/2016), mais conhecido como Teto de Gastos, da Reforma Trabalhista (Lei n. 13.467/2017), da Terceirização Irrestrita (Leis n. 13.429/2017 e 13.467/2017) e da Reforma da Previdência (EC 103/2019) sinalizaram a implantação acelerada de um novo projeto de país, de cunho violentamente neoliberal, antidemocrático e conservador, que chegou à sua forma mais brutal na atual gestão de Jair Bolsonaro.

O Teto de Gastos, promulgado em 15 de dezembro de 2016, instituiu um limite das despesas primárias do governo federal para os vinte exercícios financeiros subsequentes ao seu ano de aprovação, fixado de acordo com as despesas do exercício financeiro imediatamente anterior corrigido pela inflação, medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), tendo por base o exercício de 2016. Sua constitucionalização sinalizou o rompimento com os princípios sociais da Constituição Federal de 1988, apelidada de Constituição Cidadã, e foi apontada por alguns como a "mais intensa, rígida e longeva medida fiscal de austeridade da história do modo de produção capitalista (Tavares & Benedito, 2018, p. 192)", ou ainda como "[a] política fiscal contracionista mais severa da história recente do capitalismo, quiçá a maior já proposta na história da humanidade" (Tavares & Ramos, 2018, p. 450).

Sob sua vigência, os gastos com a saúde, assistência social e educação permanecem, pois, congelados, e, como apontaram diversos estudos, seus efeitos para a população que conta com a oferta desses serviços públicos são absolutamente devastadores. Quatro anos já se passaram desde sua aprovação e o enfrentamento da crise sanitária generalizada que se agrava desde o início do ano depende desses mesmos serviços cujo sucateamento se tornou uma política de Estado. A necessidade de acesso a um atendimento público de saúde, por causa do contágio por covid-19 ou por outros fatores, torna-se neste contexto a faceta mais evidente da política de morte empreendida pelo Estado7.

Mas também a Reforma Trabalhista atua decisivamente em benefício da necropolítica e reverbera atualmente, dificultando o isolamento social adotado para impedir o colapso do sistema público de saúde, que serve principalmente aos mais afetados pela reforma. A nova legislação trabalhista incluiu um novo "cardápio" de opções de contratação para os empregadores na legislação trabalhista, cada vez mais nebulosas, intermitentes, esporádicas, eventuais (Antunes & Druck, 2015, p. 59).

Aumentou, dessa forma, o arbítrio patronal na determinação das condições de contratação, uso e remuneração do trabalho, já que, ao contrário do que pressupõem as instituições liberais, o contrato de trabalho não é estabelecido entre duas partes iguais, mas funda-se sobre uma assimetria fundamental: o trabalhador precisa vender sua força de trabalho para garantir sua própria reprodução. Em contrapartida, "o trabalhador foi colocado em condição de alta instabilidade, incerteza e insegurança e vem se submetendo a formas cada vez mais intensas e menos mapeáveis de intensificação e extensão da sua jornada de trabalho, agora variável, e de rebaixamento de sua remuneração" (Krein, 2018, p. 108).

Nem mesmo no contexto trágico atual a lógica mórbida que orientou a aprovação da reforma cedeu. Basta olhar para a oposição feita entre a saúde da economia brasileira e a adoção do isolamento social8 pelo próprio presidente do país, que convoca de maneira incansável a população trabalhadora a desrespeitar as recomendações de distanciamento e uso de máscaras. As políticas neoliberais que já vinham sendo implementadas no Brasil com renovada brutalidade desde o ano de 2016 oferecem, portanto, o substrato no qual a pandemia pelo novo coronavírus se instala no país, traduzindo-se no enorme número de pessoas contagiadas e de mortes confirmadas oficialmente.

Feita essa conexão entre os conceitos de Foucault e Mbembe ao capitalismo neoliberal e às recentes reformas implementadas no Brasil, a próxima seção é reservada para a aplicação desse anteparo teórico ao no atual contexto pandêmico. O argumento de que as políticas neoliberais contribuem diretamente para a desigualdade de proporção e intensidade com que a doença afeta diferentes grupos da população tem por base a compreensão de que a necropolítica permanece como mecanismo fundamental do Estado sob a hegemonia do neoliberalismo.

 

O trabalho enquanto fator de desigualdade na distribuição da capacidade de sobreviver à pandemia

Em um contexto em que circular por espaços públicos e entrar em contato com outras pessoas significa colocar em risco de forma sistemática sua saúde e mesmo sua vida, a capacidade de obedecer ou não ao regime de isolamento é desigualmente distribuída entre diferentes grupos sociais. Para uma parcela significativa da população, permanecer confinado significa não ter uma fonte de renda para sua subsistência e/ou não ter segurança de manutenção do seu emprego.

As medidas adotadas pelo governo brasileiro com o argumento de manutenção do emprego e da renda são, no mínimo, controversas. Duas medidas provisórias, a MP 927, de 22 de março, e a MP 936, do dia 1 de abril, foram editadas nesse sentido. Ambas privilegiaram os acordos individuais entre empregadores e empregados, reforçando o ataque às negociações coletivas e sindicatos que já vinham acontecendo muito antes da pandemia.

A MP 936 melhor especificou as estratégias disponibilizadas pelo governo e criou um benefício emergencial. Abriu as possibilidades de redução da jornada de trabalho nas faixas de 25%, 50% e 70%, com proporcional redução salarial, e de suspensão total das atividades. Nos dois casos, o Estado se comprometeu a ressarcir os empregados com a respectiva porcentagem de redução salarial, mas aplicada ao seguro-desemprego. Isto é, uma redução de 25% na jornada de trabalho e no salário confere o direito de reivindicar o pagamento de uma parcela de 25% do seguro-desemprego ao Estado, e da mesma forma acontece com os outros percentuais.

Vinculando benefício ao seguro-desemprego, que varia de acordo com a faixa de renda do trabalhador entre R$ 1.045,00, o valor do salário mínimo, e R$ 1.813, 03, a medida previu grandes reduções salariais, sobretudo para aqueles que se situam nas faixas salariais médias. Os que contaram com reduções de jornada e de salário inferiores a 25%, ainda, estarão excluídos do direito de receber este benefício. Ao mesmo tempo, a medida conferiu ao empregador o poder de decisão sobre o momento de retorno às atividades normais, mesmo que antecedesse o que foi acordado.

É importante ressaltar que na primeira versão da MP 927 incluía-se, no artigo 18, a possibilidade de suspensão total de contratos de trabalho por até 4 meses no curso do período de calamidade pública, sem que fosse estabelecida qualquer obrigação ou contrapartida salarial por parte do empregador ou do Estado de amparo ao trabalhador. Esse artigo enfrentou forte oposição e acabou por ser retirado no dia posterior à edição da medida provisória, mas escancara a posição do atual governo, de cunho neoliberal e conservador, no tocante à questão do trabalho.

Ao modo neoliberal, existe uma tentativa continuada de retirar o Estado do papel de mediador das relações trabalhistas e confere-se largo arbítrio aos patrões tanto por vias legais quanto por omissão. Constrói-se um clima de permissividade, que abre brechas para que as empresas flexibilizem "a frio", nas margens da lei, os direitos dos trabalhadores, com a segurança de que a fiscalização e punição dessas ilegalidades não estão entre as prioridades do governo (Cardoso & Gindin, 2017). Deixa espaço, por conseguinte, para que o efetivo cumprimento da redução da jornada de trabalho em relação à redução da renda, a manutenção de postos de trabalho que normalmente já possuem alta rotatividade e o cumprimento das normas do fornecimento de máscaras e de álcool para os trabalhadores possam se transformar em detalhes perfeitamente contornáveis.

De fato, de acordo com dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)9 desde o mês de maio, foram 9,7 milhões de pessoas afastadas do trabalho sem remuneração, de um total que variou de 16, 6 milhões de pessoas afastadas na primeira semana de maio a 11,1 afastadas na terceira semana de julho por causa do distanciamento social. O instituto de pesquisa ainda estimou que 36,4% das pessoas ocupadas no Brasil, ou seja, mais de 33,5 milhões de trabalhadores tiveram rendimento menor do que o normalmente recebido. Haja vista que, de acordo com os resultados da PNAD contínua referente ao primeiro trimestre de 2020, a média de rendimento real habitualmente recebido pela população é de R$ 2.323, pouco mais de dois salários mínimos, e que considerados raça e gênero esse número é ainda menor10, quaisquer diminuições salariais representam violentos golpes sobre a capacidade de manutenção dos trabalhadores e de suas famílias.

Um dado extremamente relevante, organizado na Gráfico 1, refere-se ao fato de que o maior índice de afastamento foi o de trabalhadores domésticos sem carteira assinada, trabalho ocupado em larga medida por mulheres negras de baixa renda e baixa escolarização. Quando conjugada a questões como a possibilidade de home office e escolaridade, resumidos no Gráfico 2 e no Gráfico 3, a imagem das violentas desigualdades dos efeitos da pandemia adquire maior definição. Dentre as pessoas afastadas do trabalho presencial e em regime de trabalho remoto, os empregados do setor público somados aos militares e servidores estatutários são 64,1%, e predominam em larga medida os que possuem pelo menos o nível superior completo.

Isso significa que existe uma chance maior de que os trabalhadores do setor privado e com menor escolaridade sejam afastados sem a remuneração, sofram reduções na mesma ou mesmo que sejam demitidos neste período. Na semana de referência da pesquisa do IBGE (do dia 06 de junho à 13 de junho), eram 18, 2 milhões de pessoas que pararam de procurar trabalho em decorrência da pandemia, de maioria negra e nível de escolaridade inferior ao nível superior. Considerando a Reforma Trabalhista, que legalizou um novo "cardápio" de opções de contratação precárias e de alta rotatividade, os reflexos observados com a pandemia não são surpreendentes e poderiam ser suavizados, não fosse a lógica predominante que orienta essas medidas e estrutura o necroestado neoliberal.

Além das medidas provisórias citadas, foi aprovado também o pagamento de um auxílio emergencial no valor de R$ 600, 00 para trabalhadores autônomos, informais e microempreendedores individuais (MEIs) a ser recebido mensalmente por três meses, recentemente estendido o valor equivalente a duas vezes o valor do auxílio distribuído em três parcelas. No máximo duas pessoas de uma mesma família podem receber o auxílio e, no caso de uma mulher que seja a única responsável pelas despesas da casa, ela poderá receber o valor dobrado. Existe, portanto, um teto de R$ 1.200 por família. Mas o processo de recebimento do auxílio tem se mostrado dificultoso, apresentando desde falhas no cadastro no aplicativo da Caixa até as imensas filas absolutamente contraditórias ao avanço da doença que se formam em frente aos bancos para sacar o valor11.

Outro fenômeno de extrema relevância neste cenário pandêmico é a alavancagem dos aplicativos de delivery, tendência que já era extremamente forte: no ano passado, o número de trabalhadores autônomos que utilizavam aplicativos de serviços tais como Uber, iFood, 99, Rappi, como fonte de renda já chegava quase aos 4 milhões12. Enquanto uma parcela da população permanece em isolamento social, esses aplicativos são utilizados como um meio mais cômodo e seguro de garantir a subsistência durante a pandemia. Adicionadas as opções de que o pagamento seja feito online e de que os pedidos sejam deixados à porta de casa, do prédio ou do apartamento, faz-se possível efetuar compras sem que o cliente estabeleça qualquer contato pessoal.

Do outro lado da porta e expostos ao contágio pelo novo coronavírus, estão os entregadores, dependentes da circulação nas ruas para garantir sua fonte de renda. Em contrapartida, as empresas que gerenciam esses serviços mostram inconsistência na tomada de medidas para a proteção de seus empregados. Essa inconsistência13 revela, na verdade, a precariedade das relações de trabalho que são estabelecidas por meio dos aplicativos. As empresas que gerenciam os aplicativos rejeitam a existência de vínculos empregatícios com os entregadores e a existência de relações hierárquicas que caracterizam as relações entre empregadores e empregados, de modo que se desvinculam das obrigações trabalhistas legalmente estabelecidas.

São relações e condições de trabalho precárias e inseguras que nem mesmo chegam a ser visivelmente ou legalmente categorizadas enquanto relações de trabalho. São milhões de pessoas que fazem parte do grupo de trabalhadores por aplicativos, de trabalhadores autônomos e informais que cresce freneticamente, de acordo aos incentivos neoliberais, e estão em posição de extrema vulnerabilidade no contexto pandêmico. Basicamente, coloca-se a essa significativa parcela da população a "liberdade" de escolher qual risco prefere correr: enfrentar o desemprego, a fome, o despejo, ou o risco de pegar a Covid-19. Compõe-se, então, um círculo vicioso em que a necropolítica estatal atua rotineiramente na separação dos corpos que podem ser submetidos a situações de risco, de sofrimento extremo, de adoecimento, mutilação ou morte, que em momentos críticos como o que vivemos agora só fazem piorar.

 

Considerações finais

Em um mundo social construído sobre estruturas de desigualdade que servem como mecanismos de uma política de morte, dificilmente existe um fenômeno que consiga promover a equalização de experiências para toda a humanidade - e o novo coronavírus não conseguiu. Obviamente esta crise sanitária é uma tragédia para todos e todas nós, coletivamente experimentada, mas a partir de posições extremamente heterogêneas. Desde moradores de rua e presidiários, para os quais a opção do isolamento não está colocada, passando por aqueles que vivem em condições precárias de moradia, parte de um grupo ainda maior de pessoas que dependem da circulação nas ruas para garantir sua sobrevivência imediata14, até aqueles que podem efetivamente permanecer em suas casas e apartamentos com a segurança de um salário, existe um enorme abismo.

Nos termos de uma necropolítica existe, na verdade, uma hierarquização de quais corpos e vidas são descartáveis e quais devem ser protegidas, estruturada decisivamente por identificadores raciais. Alocados do lado de lá da linha que divide quais vidas devem ser resguardadas de quais vidas são descartáveis, estão os que convivem com a possibilidade diária de entrar para estatísticas que já não provocam indignação na maioria de nós. Estatísticas que não nos remetem a um rosto, a carne ou sangue.

Para além das desiguais condições de uma suposta escolha em aderir ao distanciamento social, há uma série de outras questões que envolvem o espaço doméstico e que precisam ser pensadas nesse contexto. Sabemos que esse mesmo ambiente que agora se apresenta como medida essencial de proteção contra o contágio pelo novo coronavírus é também espaço de violência para inúmeras mulheres, crianças, idosos e pessoas LGBTQIs. São vários os problemas que o momento nos apresenta e que são essenciais para pensar alternativas para agora e para o futuro.

O tema do trabalho é, portanto, apenas umas das diversas frentes através das quais essa necropolítica atua dentro e fora do contexto da Covid-19, subjugando a vida das pessoas, geralmente pessoas negras, à morte. O presente artigo tentou ensaiar uma pequena contribuição para pensar essa experiência única e trágica que vivemos, sobre a qual ainda há muito de urgente a ser dito e feito.

 

Referências

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Recebido em: 11/07/2020
Aprovado em: 29/11/2020

 

 

1 Ver: ANPOCS. (2020). Boletim cientistas sociais. <http://anpocs.org/index.php/publicacoes-sp-2056165036/boletim-cientistas-sociais>
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CLACSO. (2020). Pensar la pandemia - observatório social del coronavírus. <https://www.clacso.org/pensar-la-pandemia-observatorio-social-del-coronavirus/>
2 Chaib, Julia & Carvalho, Daniel. E daí? Lamento, quer que eu faça o quê?, diz Bolsonaro sobre recorde de mortos por coronavírus. <https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/04/e-dai-lamento-quer-que-eu-faca-o-que-diz-bolsonaro-sobre-recorde-de-mortos-por-coronavirus.shtml?origin=folha>
3 No maior estudo atualmente em curso no Brasil sobre a covid-19, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) os resultados preliminares mostraram que a doença atinge duas vezes mais os 20% mais pobres comparativamente aos 20% mais ricos no país (Valente, 2020).
4 Soares, Marcelo, Cravo, Alice, & Tatsch, Constança (03/07/2020). Dados do SUS revelam vítima padrão de covid-19 no Brasil: homem, pobre e negro. <https://epoca.globo.com/sociedade/dados-do-sus-revelam-vitima-padrao-de-covid-19-no-brasil-homem-pobre-negro-24513414?utm_source=Twitter&utm_medium=Social&utm_campaign=compartilhar>. Acesso em: 10/07/2020.
5 De acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Trimestral (PNADCT) relativa ao primeiro trimestre de 2020, o rendimento médio real e nominal habitualmente recebido mensalmente por pessoas brancas é de R$ 3.020, enquanto o de pessoas pardas é de R$ 1.726 e o de pessoas pretas é de R$ 1.699.
6 "[...] sacrifice for a greater good into which all are integrated, but from which most must not expect personal benefit (Brown, 2015, p. 219)."
7 Um dado extremamente relevante mostra que a quantidade de leitos de Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) na rede pública é quase cinco vezes menor do que na rede privada (Pires et al., 2020).
8 G1; Globo News. (25/03/2020). Economistas criticam posicionamento do governo Bolsonaro frente à pandemia do coronavírus. <https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/03/25/economistas-criticam-posicionamento-do-governo-bolsonaro-frente-a-pandemia-do-coronavirus.ghtml>
9 IBGE (2020). O IBGE apoiando o combate à covid-19: Trabalho. https://covid19.ibge.gov.br/pnad-covid/trabalho.php>
10 De acordo com dados disponibilizados pelo IBGE, as mulheres ganham uma média de R$ 1.995 reais, enquanto pessoas pardas recebem habitualmente R$ 1.726 reais e pessoas pretas R$ 1.699. Não são fornecidos dados cruzados entre sexo e raça, mas é lúcido afirmar que mulheres negras são as mais prejudicadas nessa hierarquia de renda. https://covid19.ibge.gov.br/pnad-covid/trabalho.php>
11 Rocha, Camilo (03/05/2020). Quais as principais falhas de acesso ao auxílio emergencial. <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/05/03/Quais-as-principais-falhas-de-acesso-ao-aux%C3%ADlio-emergencial>
12 Exame (28/04/2019). Apps como Uber e iFood se tornam "maior empregador" do Brasil. <https://exame.abril.com.br/economia/apps-como-uber-e-ifood-sao-fonte-de-renda-de-quase-4-milhoes-de-pessoas/>.
13 De Lara, Bruna; Braga, Nathália; Ribeiro, Paulo Victor (24/03/2020). Assim os apps de entrega lucram com o covid-19. <https://outraspalavras.net/outrasmidias/assim-os-apps-de-entrega-lucram-com-o-covid-19/>
14 Aqui estão incluídos trabalhadores autônomos, informais, intermitentes ou mesmo formais, mas ocupantes de posições de trabalho de baixa especialização e alta rotatividade.

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