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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.21 no.51 São Paulo maio/ago. 2021

 

ARTIGO

 

Atividades pedagógicas não presenciais em tempo de pandemia: contribuições a partir da psicologia histórico-cultural

 

Non-attendance teaching activities in times of pandemics: contributions from historical-cultural psychology

 

Actividades de enseñanza no presencial en tiempo de pandemia: contribuciones de la psicología histórico-cultural

 

 

Maria Fernanda DiogoI; Neiva de AssisII

IDoutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), professora Adjunta do Departamento de Psicologia da UFSC, pesquisadora do Laboratório de Psicologia Escolar e Educacional (LAPEE/CFH/UFSC) e do grupo do Grupo de Estudos Trabalho e Conhecimento na Educação Superior (TRACES/CED/UFSC) / mafediogo@gmail.com
IIDoutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), professora Adjunta do Departamento de Psicologia da UFSC, pesquisadora do Laboratório de Psicologia Escolar e Educacional (LAPEE/CFH/UFSC) / neiva.assis@ufsc.br

 

 


RESUMO

A suspensão das aulas presenciais em virtude da pandemia de Covid- 19 atingiu todos os sistemas de ensino e, a partir de então, algumas instituições têm adotado as chamadas atividades pedagógicas não presenciais (APNP). O objetivo deste artigo foi analisar, a partir da Psicologia Histórico-Cultural, as mediações relacionadas às APNP no contexto do distanciamento social. Problematizamos o uso dos termos ensino e aula, pois ambos configuram atividades relacionais, dialéticas e dialógicas, experiências coletivas que se materializam no encontro. Realizamos um caminho de análise tendo a categoria mediação como escopo para pensar os processos de aprender e ensinar. Tecemos considerações sobre o lugar da escola na contemporaneidade e sobre o conjunto de relações que permeiam o trabalho com o conhecimento, inclusive na sua forma remota. Apontamos algumas pistas para avaliar este momento em que instituições de ensino adotaram as APNP e apresentamos implicações e perspectivas sobre o retorno à situação presencial.

Palavras-chave: Atividades Pedagógicas Não Presenciais; Ensino Remoto Emergencial; Psicologia Histórico-Cultural; Pandemia; Covid-19.


ABSTRACT

The suspension of in-person classes due to the Covid-19 pandemic affected all education systems and, since then, some institutions have adopted the so-called non-attendance pedagogical activities (NAPA). The aim of this article was to analyze, from the Historical-Cultural Psychology, the mediations related to NAPA in the context of social distancing. We problematize the use of the terms teaching and class, as both configure relational, dialectical and dialogic activities, collective experiences that materialize in the encounter. We carried out an analysis path having the mediation category as a scope to think about the processes of learning and teaching. We make considerations about the place of the school in contemporaneity and about the set of relationships that permeate the work with knowledge, even in its remote form. We point out some clues to assess this moment when educational institutions adopted NAPA and present implications and perspectives on the return to the presential situation.

Keywords: Non-Attendance Pedagogical Activities; Emergency Remote Learning; Historical-Cultural Psychology; Pandemic; Covid-19.


RESUMEN

Suspender las clases presenciales debido a la pandemia de Covid-19 afectó a todos los sistemas educativos y, desde entonces, algunas instituciones Adoptaron las actividades pedagógicas no presenciales (APNP). El objetivo de este artículo fue analizar, desde la Psicología Histórico-Cultural, las mediaciones relacionadas con APNP contextualizada por la distancia social. Problematizamos el uso de los términos enseñanza y clase, porque ambos configuran actividades relacionales, dialécticas y dialógicas, experiencias colectivas que se materializan en el encuentro. Realizamos una ruta de análisis con la categoría de mediación como ámbito para pensar sobre los procesos de aprendizaje y enseñanza. Hacemos consideraciones sobre el lugar de la escuela en los tiempos contemporáneos y el conjunto de relaciones que impregnan el trabajo con el conocimiento, incluso en su forma remota. Señalamos pistas para evaluar este momento cuando las instituciones educativas adoptaron el APNP y presentan implicaciones y perspectivas sobre el regreso a la situación presencial.

Palabras clave: Actividades de Enseñanza no Presencial; Enseñanza Remota de Emergencia; Psicología Histórico-Cultural; Pandemia; COVID-19.


 

 

Introdução

A suspensão das aulas presenciais em virtude da pandemia de Covid-19, desde meados de março de 2020, atinge todos os níveis de ensino em todas as redes, públicas ou privadas. Estima-se que 81,9% dos estudantes da Educação Básica deixaram de frequentar a escola (Fundação Carlos Chagas, 2020). Desde então, algumas instituições têm adotado as chamadas atividades pedagógicas não presenciais (APNP), conforme nomenclatura usada no Parecer nº 5 do Conselho Nacional de Educação (CNE, 2020), também denominadas pela mídia como ensino remoto emergencial, a distância, virtual ou digital. Refutamos neste artigo o uso do termo ensino associado ao fenômeno em tela pois, de acordo com a Teoria Histórico-Cultural, ensino é uma atividade1 relacional, dialética e dialógica, exigindo interações humanas que, nesse momento, encontram-se obstaculizadas ou dificultadas em decorrência da pandemia. Igualmente contestamos o uso do termo aula associada aos complementos remota ou a distância, pois consideramos que aula é um tempo-espaço de encontro pedagógico entre as professoras e os estudantes.

Optamos pelo uso do substantivo professoras, no feminino, posto elas serem a maioria do corpo docente, principalmente na Educação Básica, conforme o Censo Escolar realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP, 2019).

O novo formato pedagógico tem fomentado racionalidades diversas: algumas contrárias às APNP, sustentadas por argumentos didáticos e políticos; discursos que apontam sua inviabilidade, os quais destacam que nem todos os envolvidos - educadoras, educandos e, por vezes, pais/responsáveis - detém os requisitos tecnológicos básicos, os conhecimentos ou as condições psicossociais para acessar plataformas digitais; outras narrativas louvam o "heroísmo docente" frente à pandemia, ponto de vista problematizado por aqueles que denunciam a sobrecarga de trabalho atribuída às professoras. Assim, a polarização entre argumentações que priorizam o cumprimento dos conteúdos programáticos e do calendário letivo e aquelas que defendem a suspensão das APNP inundam esse já turbulento cenário social no qual vidas se tornam números assustadores nos dados estatísticos da pandemia. No momento em que finalizamos a escrita deste texto, o Brasil passava de um milhão, oitocentos e setenta mil contaminados, sessenta e dois mil mortos e um milhão, cento e vinte mil casos recuperados (Painel Coronavírus, 2020).

É possível às professoras fazerem mediações bem-sucedidas no atual cenário de distanciamento social decorrente da pandemia? Tendo essa pergunta como bússola, o objetivo deste artigo foi analisar mediações possíveis relacionadas às APNP desde o escopo da Psicologia Histórico-Cultural. Em decorrência dessa análise, buscamos, também, refletir sobre o retorno às atividades presenciais, mesmo em formato sazonal, parcial ou num futuro distante, lançando um segundo questionamento: como proceder para reduzir possíveis danos às aprendizagens dos estudantes resultantes da adoção das APNP e diminuir a evasão escolar? Esperamos com isso contribuir para a construção de perspectivas pedagógicas para um futuro retorno às aulas presenciais.

Sabemos que não existem respostas simplistas às questões lançadas no parágrafo anterior, essas resultam pífias, frágeis e contribuem pouco. Como método, tomamos o cenário educacional como o foco de nossas análises e propusemos reflexões que entrelaçam a mediação docente às vivências das APNP. Seguimos um caminho traçado por Vygotski e outros autores alinhados à perspectiva Histórico-Cultural, tendo a categoria mediação como escopo teórico para pensar os processos de aprender e ensinar de modo distanciado.

Iniciamos o texto debatendo de que forma a Psicologia Histórico-Cultural teoriza a mediação da aprendizagem dos estudantes. Na sequência, tecemos apontamentos sobre o lugar da escola na contemporaneidade, refletindo sobre o conjunto de relações que permeiam o trabalho com o conhecimento. Apontarmos, nesta sessão, algumas pistas e possibilidades para avaliar o momento atual, no qual muitas instituições de ensino adotaram as APNP. Finalizamos tecendo considerações sobre a volta a uma situação presencial, implicações e perspectivas sobre um horizonte que precisamos (ad)mirar desde já para melhor planejarmos nossa postura pedagógica diante do retorno. Longe de tentarmos adivinhar futuros, buscamos iluminar possíveis caminhadas, trajetos que sejam inclusivos e que não deixem nenhum estudante pelo caminho. Essa perspectiva pode parecer utópica em um cenário tão distópico como o atual, mas, como aponta Eduardo Galeano (2011), citando Fernando Berri, a utopia serve para sustentar a caminhada.

Antes de iniciarmos a proposta traçada acima, faremos uma digressão para distinguir as APNP de outras duas modalidades: a Educação a Distância (EaD) e o homeschooling.

Educação a Distância, Homescholling e Atividades Pedagógicas Não Presenciais

A EaD pressupõe a separação físico-espacial entre docentes e discentes e representa uma "modalidade educacional na qual a mediação didático-pedagógica nos processos de ensino e aprendizagem ocorre com a utilização de meios e tecnologias de informação e comunicação, com estudantes e professoras desenvolvendo atividades educativas em lugares ou tempos diversos" (Guarezi & Matos, 2009, p. 20). No Ensino Superior, a EaD está regulamentada pela Resolução do CNE, nº 1/2016 (CNE, 2016) e, na Educação Básica, pelo artigo 36, parágrafo 11, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDBEN, (Lei nº 9.394/1996), conforme alteração realizada pela Lei nº 13.415/2017, conhecida como Reforma do Ensino Médio.

Edméa Santos (2009) destaca que a EaD se iniciou por meio do envio de materiais impressos ou fitas de áudio/vídeo e por programas de rádio e televisão. Gradativamente a modalidade se apropriou do computador por meio dos chats e videoconferências, até incorporar múltiplas tecnologias e sistemas de respostas automatizadas. Ainda segundo a autora, atualmente a EaD possui projeto, planejamento de ensino, público alvo, recursos didáticos e avaliativos específicos para o ensino e a aprendizagem com o suporte das tecnologias digitais (TD). Baseadas em Rafael da Cunha Lara (2016), optamos pelo uso do termo tecnologias digitais (TD) ao invés de tecnologias da informação e da comunicação (TIC), pois as últimas se relacionam a quaisquer tecnologias remotas, incluindo jornais impressos, correios, telégrafos etc. A escolha se justifica, pois, na atualidade, a EaD se apropriou das TD produzidas na convergência de diferentes mídias (Santos, 2009).

A mediação didático-pedagógica nesta modalidade de ensino exige a garantia do acesso às TD e o desenvolvimento de metodologias, materiais e recursos pedagógicos que considerem as especificidades da distância física entre os sujeitos, acolhendo-as em suas dimensões política, ética e estética. Estudiosa da cibercultura, Santos (2014) defende que o ensino mediado por TD apresenta-se como um meio válido de educação sistematizada que visa acessar sujeitos geograficamente dispersos. A autora defende uma educação online de formato interativo, na qual o conceito de distância se diluiria, os sujeitos circulariam por diferentes interfaces, relacionando-se de forma síncrona e assíncrona em ambientes virtuais compostos por múltiplas linguagens de autoria colaborativa (sons, imagens, vídeos, textos, infográficos etc.). Esta interface possibilitaria uma ambiência formativa e a emergência de um sentimento de pertença ao espaço virtual.

Não obstante a relevância das argumentações em prol do ensino mediado pelas TD realizadas por Santos (2009, 2014), concordamos com um alerta proposto por Lara (2016): devemos refutar discursos fundados no paradigma da "sociedade da informação", tão difundido pela mídia, que, por vezes, fetichizam as TD como meios e fins em si mesmas. O fetichismo tecnológico é uma corruptela do conceito fetichismo da mercadoria marxiano, "utilizado por Feenberg em 1999 para denunciar a forma aparentemente isenta com que a tecnologia perpassa os discursos da sociedade: de forma neutra, a-histórica e não permeada por lutas sociais" (Lara, 2016, p. 64).

Assim, dada a complexidade do projeto, da proposta pedagógica, das pré-condições e a necessidade de investimentos em formação docente, fatores que, de modo geral, têm sido negligenciados neste momento atual, consideramos que a denominação EaD não é adequada para denominar a forma como se objetivam as atividades remotas durante o período de afastamento social.

Uma segunda diferenciação precisa ser feita: APNP não é homeschooling. Para Simone Novaes (2017, p. 11), "o homeschooling é uma modalidade de ensino que sugere que a educação seja ministrada em casa, com a família". O termo escola no gerúndio (schooling) propõe a ideia de um ensino contínuo. Em que pese a não regulamentação da prática no Brasil, a autora aponta que o interesse no fenômeno vem aumentando de forma considerável e elenca processos judiciais de famílias brasileiras que desejam educar seus filhos em casa. Novaes enfatiza a possibilidade de diferentes formas de educação em casa, mas todas têm por base o princípio de desescolarização2, ou seja, a substituição do ensino escolar pela educação oferecida no núcleo familiar. Assim, homeschooling - tema polêmico, contemporâneo e que merece estudos aprofundados em um país que ainda não conseguiu garantir a escolarização às futuras gerações - também não é uma denominação adequada para esse momento de distanciamento social.

Realizadas estas diferenciações preliminares, utilizaremos no artigo a nomenclatura atividades pedagógicas não presenciais (APNP) para designar a adoção de medidas emergenciais - por vezes improvisadas, compulsórias, compensatórias, sem amplo debate entre o corpo docente e a comunidade escolar e sem sustentação teórica ou estudos pregressos - para o ensino de crianças, jovens e/ou adultos nesse momento de afastamento social em função da pandemia de Covid-19.

Não existem ainda pesquisas acadêmicas que analisem de forma aprofundada as APNP, pois essa é uma experiência extremamente nova. Estudo recém-publicado realizado pela Fundação Carlos Chagas (2020) analisou 14.285 questionários aplicados a docentes de todas as 27 Unidades da Federação, entre 30 de abril e 10 de maio de 2020 - pesquisa respondida, principalmente, por mulheres (80,5%). O estudo lança algumas luzes sobre o atual cenário educacional brasileiro, contudo, para um diagnóstico mais fidedigno, ainda são necessárias pesquisas mais aprofundadas e abrangentes, pois o Censo Escolar de 2019 registrou 2,2 milhões de docentes na Educação Básica brasileira (INEP, 2019), o que indica que a pesquisa da Fundação Carlos Chagas tenha atingido um número reduzido de professores/as.

Boletins divulgados por centros de estudos e posicionamentos de universidades, grupos de pesquisa ou associações de pesquisadores em Educação também debatem o atual cenário. A Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) apresentou análise sobre as medidas que foram sendo tomadas com relação a educação escolar diante do afastamento social (Anped, 2020). O documento aponta ausência de condições necessárias para a materialização das APNP, o modo como as professoras são submetidas a formas improvisadas de trabalho sob as TD e reforça que a calamidade pública causada pela pandemia "não pode ser utilizada como pretexto para ferir os princípios constitucionais e, em especial, o direito à educação de qualidade de todas as crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos" (Anped, 2020, s.p.). Outra iniciativa da associação para o período da pandemia foi a criação de uma série de Lives denominadas Anped presente na quarentena, nas quais vem compondo, por meio de uma programação de temas relativos à Educação, um arquivo para análises futuras. De modo geral, estes grupos e associações apontam as implicações e prejuízos das APNP para o ensino e para a aprendizagem e não consideram que este é um modelo desejável para a educação escolar brasileira, o que aponta para a relevância de produzirmos mais conhecimentos e reflexões sobre o assunto.

Passados quatro meses do distanciamento social em função da pandemia no país, ainda são confusas e pouco eficientes as diretrizes educacionais emergenciais. Muitas instituições de ensino começaram a adotar as APNP com base na Portaria nº 343/2020, publicada em 17 de março (Ministério da Educação, 2020a), que autorizou no artigo 1, em caráter excepcional, a substituição das aulas presenciais por atividades em meios digitais durante um período de até 30 dias, respeitando-se "os limites estabelecidos pela legislação em vigor". Atualmente vigente, a Portaria nº 544/2020, de 16 de junho (Ministério da Educação, 2020b), prorrogou até o dia 31 de dezembro de 2020 a autorização para a substituição do ensino presencial pelas APNP. A Medida Provisória n. 934/2020, publicada em 1º de abril, liberou as escolas do cumprimento dos 200 dias letivos previstos na LDBEN, contudo manteve a carga horária de 800 horas anuais obrigatórias - essa é considerada o marco regulatório nacional da flexibilização dos calendários escolar e acadêmico. As instituições de ensino viram-se obrigadas, portanto, a cumprir a carga horária mínima e começaram a propor APNP como modo de dar continuidade às atividades educacionais. Vale a pena mencionar um terceiro documento: o Parecer do CNE nº 05/2020, de 28 de abril, que destaca "as fragilidades e desigualdades estruturais da sociedade brasileira que agravam o cenário decorrente da pandemia em nosso país, em particular na educação" e afirma ser necessário "considerar propostas que não aumentem a desigualdade ao mesmo tempo em que utilizam a oportunidade trazida por novas tecnologias digitais de informação e comunicação para criar formas de diminuição das desigualdades de aprendizado" (CNE, 2020, p. 3, grifos nossos). Percebemos nos destaques que o Parecer pressupõe o acesso de todos, docentes e discentes, às TD. O documento ainda sugere alternativas presenciais, assim que essas forem possíveis, mescladas às APNP, como forma de reorganização das atividades educacionais para atender aos objetivos de aprendizagem previstos nos currículos.

As normativas citadas e os diferentes entendimentos, tensionamentos e discursos em torno das possibilidades de educação escolar no contexto da pandemia, convocam-nos a pensar e reafirmar uma perspectiva de educação que valorize o ensino e as práticas docentes - é sobre esse aspecto que dedicamos o próximo tópico.

 

A Psicologia Histórico-Cultural e a Mediação da Aprendizagem

Para a Psicologia Histórico-Cultural, a relação não dicotômica entre a objetivação e a subjetivação é o processo que caracteriza o humano e a singularidade. Uma pessoa se constitui humana na relação com outros sujeitos, em um universo semiótico ou de processos de significação (Barros, Paula, Pascual, Colaço, & Ximenes, 2009; Góes & Cruz, 2006; Pino, 2000; Vygotski, 1992). Por meio da atividade mediada os sujeitos apropriam-se das significações sociais e transformam seus contextos e a si mesmos.

Janette Friedrich (2012) aponta que o conceito de mediação em Vygotski reforça a artificialidade dos processos psicológicos e postula a natureza histórico-cultural do psiquismo humano, imbricada entre a história individual e social dos sujeitos. Assim, o psiquismo humano seria produzido pelos sujeitos com base na mediação dos instrumentos psicológicos (signos, palavras, conceitos - instrumentos que possuem natureza sócio-histórica). Ao priorizar o social na constituição do sujeito e refutar noções essencialistas, biologizantes e positivistas, esta perspectiva reforça a tarefa humanizadora da educação para crianças e jovens, pois essa cria condições para o pleno desenvolvimento das potencialidades humanas por meio do acesso aos bens culturais.

Destacamos a centralidade da escola como responsável pelos processos educativos. De acordo com a Teoria Histórico-Cultural, em nossa sociedade, cabe a esta instituição trabalhar com os conhecimentos espontâneos de modo a atingir processos de complexificação do pensamento e alcançar os saberes sistematizados pela ciência e pela cultura. Vasily Davidov (1988), pesquisador russo da terceira geração da escola de Vygotski, descreve que os conhecimentos espontâneos são construções entrelaçadas às atividades cotidianas, expressão dos órgãos dos sentidos imediata e empiricamente captadas. Já o pensamento teórico é constituído pela experiência mediatizada. Resultado do trabalho refletido, este opera por meio de métodos e conceitos - processos psicológicos histórica e socialmente constituídos - e revela as condições e as contradições das informações sensoriais por meio da abstração e generalização. Para o autor, o limite entre a experiência sensorial/empírica e o pensamento teórico é o desvelar da essência do movimento ou objeto por meio de conceitos. Assim, a resolução de um problema com base em conhecimentos científicos historicamente acumulados não se encerra somente em uma situação singular, mas permite ao estudante a formação de processos psicológicos para a resolução de problemas semelhantes. Podemos destacar, nessa direção, a importância da escola para a formação dos processos psicológicos, tais como: cognição, emoção, imaginação, atividade criadora, memória, atenção, vontade e afeto (Pino, 2000). As ações pedagógicas que visam desenvolver o pensamento teórico dos estudantes

não são aquelas que meramente reproduzem as ações da vida cotidiana e do funcionamento espontâneo, assistemático, mas aquelas que visam à conquista das capacidades intelectuais, das operações lógicas do raciocínio, dos sentimentos éticos e estéticos, enfim, de tudo que garanta ao indivíduo a qualidade do ser humano. (Martins, 2015, p. 275, grifo no original)

Como já abordado, o desenvolvimento humano é um processo construído pelos estudantes sob engajamento ativo e sob determinada qualidade de mediação (Friedrich, 2012). Dessa forma, não basta que eles frequentem a escola para que se apropriem dos conceitos científicos: é preciso que as professoras criem situações de ensino sistematizadas e adequadamente planejadas que levem em conta a diversidade de sujeitos aí inseridos. A atividade docente deve visar à transformação dos estudantes por meio do desenvolvimento do pensamento teórico e da apropriação dos conhecimentos historicamente acumulados pela humanidade. E, para buscar melhores resultados, as professoras precisam articular teoria e prática, de forma planejada e sistematizada, usando recursos metodológicos e didáticos adequados ao contexto. Davidov (1988) descreve que as educadoras não devem somente comunicar saberes, precisam percorrer o caminho do pensamento científico (ou seja, reproduzir o processo de criação dos conceitos) e tornar os estudantes co-participantes do movimento dialético do conhecimento. Assim, a atividade docente precisa provocar nos/as estudantes um querer aprender, ou seja, criar motivos de aprendizagem (Moura, Araújo, Souza, Panossiam, & Moretti, 2016).

O ensino realizado nas escolas pelos[as] professores[as] deve ter a finalidade de aproximar os estudantes de um determinado conhecimento. Daí a importância de que os[as] professores[as] tenham compreensão sobre seu objeto de ensino, que deverá se transformar em objeto de aprendizagem para os estudantes... Para a teoria histórico-cultural, isso só é possível se esse mesmo objeto se constituir como uma necessidade para eles. Assim, os conhecimentos teóricos são ao mesmo tempo objeto e necessidade na atividade de aprendizagem. (Moura et al., 2016, p. 105, grifo nosso)

Qual o sentido da atividade docente? A partir da Psicologia Histórico-Cultural é provocar a atividade de estudo dos educandos. Para Davidov (1988), a atividade de estudo fomenta o pensamento teórico. Em outras palavras, a atividade de estudo é um processo ativo, que exige que as professoras planejem atividades que elevem o nível teórico dos estudantes. Para esse engajamento ativo, é preciso superar o formalismo dos conteúdos, posto que a atividade de estudo não é somente uma manifestação cognoscitiva. "Esse modo de conceber o ensino pressupõe que seja criada nos/com os estudantes a necessidade de se apropriar de conceitos, o que se concretiza na situação desencadeadora da aprendizagem" (Moura et al., 2016, p. 116, grifo nosso).

Uma última menção a esse tópico: as professoras precisam avaliar continuamente se suas atuações estão sendo mediadoras e têm provocado saltos qualitativos no desenvolvimento dos estudantes - só assim é possível refletir sobre a qualidade da atividade de ensino. Pois, "a avaliação constitui-se parte do planejamento e da realização da atividade, tendo em vista que essa se concretiza no processo de análise e síntese da relação entre a atividade de ensino do[a] professor[a] e a atividade de aprendizagem do estudante" (Moura et al., 2016, p. 121).

A seguir, resgataremos a função da escola e as bases nas quais se objetivam a sua migração para o formato remoto neste período de isolamento social e se este tem dado conta da ambiência formativa, da mediação docente e do aprendizado dos estudantes, seguindo os pressupostos lançados no presente tópico.

 

O lugar da Escola na Contemporaneidade e a sua Faceta Não Presencial

A escola, tal qual a conhecemos hoje - com salas de aula, currículos, carteiras e cadeiras, lousa, professoras e estudantes, notas e calendário - foi produzida ao longo de um percurso histórico. No livro A invenção da sala de aula, Inés Dussel e Marcelo Caruso (2003) traçam a genealogia da instituição escolar, assumindo-a como invenção do ocidente cristão e da modernidade, construção histórica tensionada por disputas de poder. A massificação do ensino, no século XX, é um triunfo da burguesia liberal e, desde então, impera uma pedagogia normalizadora/disciplinadora baseada num coletivo de estudantes que aprendem as mesmas coisas, ao mesmo tempo, sob a supervisão de uma professora.

A escola transcende o prédio físico como lócus de educação para as novas gerações e se caracteriza como uma instituição central na manutenção e construção social. Por meio de uma suspensão do espaço e tempo, propicia aos estudantes um contexto apartado do convívio social que, de alguma forma, permite elementos materiais e simbólicos não disponíveis no ambiente doméstico e vinculações com sujeitos diversos. Assim, a escola constitui o primeiro espaço de cidadania do estudante, no qual a família não adentra (Dussel & Caruso, 2003).

Toda instituição educativa configura um espaço balizado por contradições, mas, também, gesta a possibilidade de uma sociedade mais igualitária, potencializando processos emancipatórios (Guzzo, Mezzalira, Moreira, Tizzei, & Silva, 2010). Mais do que ações voltadas ao saber/conhecer, a escola sustenta um conjunto de relações interpessoais, dispositivos de produção subjetiva, de ordenamento social ou de criação de novas práticas culturais. Assim, estamos assumindo nesse texto a coexistência de diferentes concepções e intenções da/sobre a escola: desde constituir-se como aparato ideológico do Estado até ser um espaço transformador da realidade social. Consideramos que esta instituição se encontra atravessada por disciplinamentos e ordenamentos sociais e, também, pela criatividade e pela reinvenção da existência.

Com base nos apontamentos traçados até aqui - sobre o lugar da escola no processo de formação humana e do trabalho docente no planejamento das mediações escolares - buscamos neste texto refletir sobre a migração dos fazeres escolares para a "tela do computador, celular ou tablet" durante o período de pandemia. Nosso discurso parte do princípio, já exposto, que as mediações no processo de escolarização devem ser planejadas, realizadas e avaliadas pelas professoras. Elas são as profissionais responsáveis pela sistematização do ensino, construíram seus saberes a partir de conhecimentos teórico-metodológicos adquiridos ao longo da formação e da experiência profissional. As famílias são partícipes do processo de ensino-aprendizagem, atuando como coadjuvantes e não podem, portanto, ser responsabilizados pela educação de seus filhos, inclusive porque muitos pais ou responsáveis se sentem vulneráveis diante do papel de ensinar os conteúdos escolares.

Dussel (2012) aponta que, de modo geral, a apropriação de TD pelas escolas é permeada por resistências por parte dos diferentes personagens que a compõe. Aqui cabe uma ressalva: algumas instituições particulares já usavam TD nos processos educativos cotidianos e, nelas, houve maior consenso em torno da adoção das APNP. Além disso, a relação ensino-aprendizagem nestes espaços é atravessada por contratos comerciais de prestação de serviço e pelo pagamento das mensalidades. Estes aspectos contratuais aceleraram a adoção de alternativas educativas virtuais.

Ainda de acordo com Dussel (2012), estão em jogo modos distintos de lidar com o conhecimento: a escola tem como tarefa a reflexão e o pensar na interação, na sincronia e no trabalho lento e simultâneo, seja individual ou coletivo; os meios digitais, por outro lado, promovem a aceleração, a instantaneidade, a interação fugaz e a tela individual - na qual cada um decide o ritmo e o que explorar. Assim, as TD representam um contraponto à escola moderna, pois incitam o fazer por si mesmo (do it yourself), que se materializa na criatividade e na pluralidade de produções que podem ser visualizadas no YouTube, Facebook, Instagram e em outros aplicativos ou redes sociais, assim como em atividades de bens e serviços. A autora reforça que a incorporação de tecnologias no espaço escolar é um desafio mais amplo que a mera aquisição de equipamentos - não obstante esses serem imprescindíveis -, sendo necessário evitar o "determinismo tecnológico", isto é, a confiança plena na capacidade nas tecnologias e que sua inserção produzirá per se uma outra relação com o conhecimento. Dussel (2011) aponta, ainda uma importante fratura nas formas tradicionais de ensinar: as telas individuais e a conexão em rede propiciam uma nova economia da atenção dos estudantes, o que dificulta o controle das sequências e ritmos de aprendizagem por parte das professoras. "Es difícil sostener la enseñanza frontal, simultánea y homogénea, en un contexto de tecnologías que proponen una fragmentación de la atención y recorridos más individualizados según el usuário" (Dussel, 2011, p. 17).

Para lidar de modo consciente e crítico com as distintas formas de acessar o conhecimento, apontadas por Dussel (2011, 2012) no parágrafo anterior, seria necessário que as professoras se apropriassem da tecnologia e linguagem digital. Isso se efetiva? Pesquisa realizada por Alaim Souza Neto (2016) revelou que a apropriação pedagógica das TD resulta pouco consistente, mal relacionada ao ensino dos conteúdos disciplinares e se objetiva em um padrão instrumental de "apoio ao trabalho dos[as] professores[as], suporte às tarefas educativas realizadas pelos alunos ou ainda como diversificação e ocupação do tempo da aula com pouco compromisso curricular" (pp. 33-34). O autor destaca que é preciso que as professoras passem do aprender ao ensinar com as TD, ou seja, é preciso, primeiramente, que elas se apropriem dos instrumentos tecnológicos e desenvolvam capacidades relacionadas a esses saberes, visando a aquisição de fluência digital. Só assim as professoras se sentirão confiantes e seguras para aplicar as TD ao ensino, utilizando-as enquanto instrumentos culturais. "A fluência digital serve como uma nova possibilidade didática e com novos modus operandi do[a] professor[a] para promover o uso pedagógico das TD na escola [...] com domínio sobre o que fazer, para quê fazer e como fazer" (Souza, 2016, p. 241).

As TD não são neutras, mas carregadas de valores e modos de uso. Refletindo sobre suas potencialidades pedagógicas, ou seja, "aquilo que com elas se pode fazer diferente", Fernando Albuquerque Costa (2007, p. 274, grifos no original) enfatiza que cabe às educadoras articular o tripé estudantes, currículo e tecnologia. A última pode sustentar a criação de conteúdos que impliquem os estudantes do ponto de vista afetivo e cognitivo, propiciando novos aprendizados, de forma diferente do habitual, estimulando o pensamento crítico na resolução de problemas - mas isso só ocorre se forem efetivadas mudanças entre o currículo que a escola oferece com relação ao potencial das tecnologias. O trabalho pedagógico deve, pois, se transformar para criar ambientes, situações e oportunidades de aprendizagem significativa por meio das TD.

As ferramentas usadas para desenvolver as APNP durante a pandemia têm sido variadas. Algumas escolas já ofertavam à comunidade escolar plataformas de aprendizagem virtual antes do afastamento social, tais como o Moodle, AVA, Google Education, Google Meets, Microsoft Teams. Nas escolas que não as possuíam, as professoras têm usado canais de televisão dedicados a atividades educacionais, divulgado conteúdos no Facebook, sites pessoais, canais do Youtube, proposto conversas pelo Skype, Hangout, Zoom dentre outros meios. Algumas redes de ensino também têm entregado materiais impressos aos estudantes pela impossibilidade de acesso virtual.

Interessa-nos especialmente discutir algumas características das interações virtuais, posto que elas não pertencem, ao menos em seu conjunto, à dinâmica professora-estudantes e dos estudantes entre si, intrínseca às aulas presenciais, como já abordamos com base em Dussel (2011, 2012). Raquel Recuero (2014) se dedica ao estudo das redes sociais, compreendidas pela autora como espaços discursivos da contemporaneidade. Ela descreve algumas características do espaço virtual:

(a) a presença de audiências invisíveis, ou seja, o fato de que os participantes não estão completamente visíveis/discerníveis na rede; (b) o colapso dos contextos, marcado pela permeabilidade das fronteiras temporais da Rede; (c) o frequente "borramento" das fronteiras entre o público e o privado. (Recuero, 2014, p. 291, grifos nossos)

Refletir sobre estes aspectos levantados por Recuero (2014) é fundamental para pensarmos o que define um ambiente escolar, até recentemente permeado por sons, silêncios, cheiros, toques, olhares e percepções forjadas pelas relações ali entretecidas. Mudanças substanciais certamente ocorreram quando o ensino presencial se transmutou em APNP. Em face do exposto, questionamos: é possível às professoras planejarem situações de ensino virtual que sejam mediadoras aos estudantes, mesmo em face da distância prescrita ao atual cenário? É possível fazer em casa o que se faz na escola?

O primeiro ponto a ser levantado é que, conforme apontado por Dussel e Caruso (2003), a escola detém um tempo/espaço definido e a adoção de APNP operaram um "colapso dos contextos" e o "borramento das fronteiras" entre os espaços público (relacionado ao encontro da coletividade) e privado (relativo à casa, às relações íntimas) (Recuero, 2014). A escola adentrou na sala, na cozinha, no quarto, ocupou tempos e espaços que lhe eram alheios. A domesticação da escola em muitos lares está entretecida por sons, silêncios, cheiros, toques, olhares e percepções de ordens diversas. Em outras palavras: o enquadramento da ação pedagógica mudou e essa alteração tem que ser considerada no planejamento das novas proposições pedagógicas.

Além disso, ao postarem atividades on-line as professoras passaram a acessar "audiências invisíveis" (Recuero, 2014). Seria o espaço virtual capaz de configurar uma nova ambiência escolar, mesmo pulverizada em telas individuais e sem seus protagonistas, professoras e estudantes, terem adquirido fluência digital? - como já discutimos com base em Dussel (2012) e Souza Neto (2016). Pesquisa já citada, desenvolvida pela Fundação Carlos Chagas (2020, s. p.), lançou pistas sobre a dificuldade que a interface tecnológica impõe à ação pedagógica: "49,3% das professoras acreditam que somente parte dos alunos consegue realizar as atividades. A expectativa em relação à aprendizagem diminuiu praticamente à metade". Somente 33,4% das professoras indicam que a maioria dos estudantes tem realizado as APNP. A comunicação e os afetos envolvidos nos processos de ensino e de aprendizagem possivelmente se encontram dificultados ou obstruídos na nova interface.

Observamos que muitas escolas fizeram a transposição direta do conteúdo programático das aulas presenciais para as APNP, não obstante estarmos vivenciando impedimentos e implicações de várias ordens em decorrência da pandemia e do afastamento social. Poucas alterações ou adaptações foram efetuadas, geralmente de forma aligeirada ou improvisada e, muitas vezes, sem a devida reflexão didático-pedagógica, como se todos os conteúdos pudessem ser trabalhados de forma remota. Algumas notícias divulgadas pela imprensa nacional durante a pandemia vão ao encontro desta afirmação: desde a implantação das APNP, em março, ocorreram dificuldades de adaptação ao novo modelo, inúmeros problemas de acesso aos aplicativos e, consequentemente, ao conteúdo remoto, e, mais recentemente, reportagens passaram a dar visibilidade à baixa adesão às APNP, à sobrecarga de atividades que atinge docentes e estudantes e às dificuldades de adaptação dos conteúdos e das avaliações (Pinho, 2020; O Globo, 2020). O saldo desta experiência pode ser a simplificação dos conteúdos programáticos visando ao cumprimento do currículo escolar. Se compreendemos que a educação escolar tem a função de humanizar os estudantes por meio da socialização de conhecimentos teóricos sistematizados pela ciência e pela cultura, instrumentalizando-os no uso desses saberes para que compreendam, reflitam e possam transformar o meio onde vivem, poderemos enfrentar problemas em relação ao domínio de alguns destes conhecimentos por parte dos estudantes no médio e longo prazo.

A segunda reflexão relaciona-se às filiações e desfiliações provocadas pelo ensino remoto mediado por TD. Ao contrário da perspectiva que subjaz ao Parecer do CNE nº 05/2020 (CNE, 2020), é preciso ter presente que nem todos os estudantes e suas famílias detém tecnologias, conexão e/ou condições para, de fato, realizarem as APNP. Os moldes como essas têm sido implementadas possuem potencial para catalisar processos excludentes, pois nem sempre são fornecidos os meios, as condições ou a conectividade, produzindo um movimento perverso que retroalimenta desigualdades, exclusões e o abandono escolar. O Parecer desconsidera que as APNP poderão contribuir para o agravamento das desigualdades sociais e para a intensificação dos problemas que a escola conhece há muito tempo: dificuldades de acesso, permanência e evasão escolar (Anped, 2020).

Este movimento perverso provoca um sofrimento nos sujeitos diante de um processo que, embora faça referência à inclusão, tem em sua base a exclusão e a injustiça social. Com base em Espinosa, Bader Sawaia (2001) descreve uma categoria que pode auxiliar nossas análises: o sofrimento ético-político. Fundado na falta de apoio social e subjetivo, este transcende ao sujeito e dificulta ou impossibilita que ele transforme as condições que causaram o sofrimento, cristalizando a angústia ou gerando um estado de apatia. Considerando a inclusão e a exclusão um par dialético, a autora enfatiza suas dimensões social, histórica, política e econômica, que variam de modo quali-quantitativo, de acordo com diversos marcadores sociais (classe, gênero, idade, possuir ou não deficiência etc.).

Processos educativos inclusivos não podem deixar nenhum estudante de fora. Amparados nessa perspectiva e iluminando a implantação das APNP com a categoria desenvolvida por Sawaia (2001), ponderamos que a falácia de que todos os estudantes têm possibilidade de estudar de forma remota pode produzir sofrimento ético-político para muitas famílias e alimentar uma exclusão com verniz includente, gerando naquelas que não possuem esta possibilidade sentimentos de desvalor e deslegitimidade.

Além disso, ao afirmar que as TD podem gerar a "... diminuição das desigualdades de aprendizado" (CNE, 2020, p. 3), o Parecer do CNE nº 05/2020 abona a tese que a tecnologia em si ou o acesso à internet propicia igualdade educacional, perspectiva refutada por Dominique Wolton (2007). Para essa autora, o simples acesso às TD não reduz as desigualdades sociais e a conectividade não sustenta uma utopia igualitária, mesmo diante de uma quantidade incalculável de informações. Este é um apelo sedutor exercido pelas TD, que reforçam um caráter democrático que encanta, principalmente, os jovens.

O terceiro aspecto que gostaríamos de destacar - talvez o mais incômodo quando pensamos, especificamente, nas dinâmicas de ensino e aprendizagem - é que as educadoras, de modo geral, não têm formação profissional para planejar e implantar alternativas eficientes para o formato digital nem se apropriaram pedagogicamente das TD (Souza, 2016), dificultando que consigam articular os estudantes, o currículo e a tecnologia (Costa, 2007). Os cursos de licenciatura geralmente apresentam uma ou duas disciplinas isoladas que discutem as mídias digitais e poucas professoras possuem formação continuada que lhes dê autonomia pedagógica para planejarem conteúdos de forma crítica, qualificada e propositiva. A fluência digital, de modo geral, não é observada entre as professoras no ensino presencial (Souza, 2016), mesmo assim, elas estão tendo que usar as TD para ensinar aos estudantes de forma remota. Ou seja, precisam/precisaram se reinventar... em meio a uma pandemia!

Acrescentamos, ainda, o reconhecimento de que a categoria docente é composta, em grande sua maioria, por mulheres, conforme aponta o Censo Escolar (INEP, 2019) e que, em nossa sociedade patriarcal, elas são as principais responsáveis pelo cuidado da prole e dos idosos, bem como das demais atividades domésticas. Assim, podemos considerar então que as APNP atingiram as professoras de modo peculiar.

Ao domesticar a escola, professoras e estudantes migraram para o espaço virtual - espaço já navegado e conhecido por (quase) todos/as, mas que não detinha o status de escola. Já debatemos as dificuldades em lidar com as audiências invisíveis, o colapso dos contextos e o borramento das fronteiras (Recuero, 2014), bem como a nova economia da atenção relacionada à enorme quantidade de informações e distratores online, fazendo com que os estudantes se dispersem com frequência (Dussel, 2011). Queremos deixar uma (incômoda) interrogação para finalizar estas argumentações: as metodologias empregadas nas APNP têm conseguido um engajamento ativo dos/as estudantes diante da forte concorrência da web? Ou, formulando a questão de outra maneira, os estudantes têm se envolvido em atividades de estudo? No decorrer do texto refutamos o uso do termo ensino relacionado às APNP, pois esta é uma atividade relacional, dialética e dialógica, realizada pelas professoras com o objetivo de fomentar nos estudantes um querer aprender (Moura et al., 2016), ou seja, engajá-los na atividade de estudo (Davidov, 1988; Vygotski, 1992). Assim, consideramos que nem toda APNP pode ser considerada ensino - quando não satisfaz a condição de um engajamento discente ativo. Já descrevemos que não basta aos estudantes frequentarem a escola para se apropriarem dos conceitos científicos e, da mesma forma, não basta que realizem atividades virtuais para que aprendam conteúdos.

Gostaríamos de encerrar esta sessão com uma metáfora desenvolvida por Carolina Pichetti (2020). A autora afirma ser possível realizar uma visita virtual a um museu quando se detém alguns recursos tecnológicos, mas questiona se é desejável que as pessoas passem a visitar museus virtualmente. Ela argumenta que o principal impedimento é se o sujeito que vai fazer a visita virtual não se apropriou, ao longo da sua vida, da atividade que se faz em um museu, que é a apreciação artística. Assim, se o sujeito não aprendeu a apreciar uma obra de arte, ele dificilmente vai encontrar sentido em visitar um museu virtual. Correlacionando essa metáfora às APNP, se os estudantes, em frente aos seus computadores, tablets ou celulares, não se engajarem na atividade de estudo, dificilmente atribuirão sentido às aprendizagens virtuais, mesmo possuindo tecnologias de ponta.

 

E quando o "novo normal" voltar ao normal? Considerações sobre possibilidades deste processo

O presente estudo dedicou-se a problemática da suspensão das aulas presenciais em virtude da pandemia de Covid-19 e a adoção das chamadas atividades pedagógicas não presenciais (APNP). Objetivamos analisar, a partir da Psicologia Histórico-Cultural, as mediações relacionadas às APNP no contexto do distanciamento social. Problematizamos o uso dos termos ensino e aula, considerando que ambos configuram atividades relacionais, dialógicas e experiências coletivas que se materializam no encontro e, portanto, tornam-se inviáveis no atual formato. Realizamos um percurso de análise tendo a categoria mediação - central à Psicologia Histórico-Cultural - como escopo para pensar os processos de aprender e ensinar. A partir disso, tecemos algumas considerações sobre o lugar da escola na contemporaneidade e sobre as complexas relações envolvidas no trabalho com o conhecimento, também na sua forma remota.

Ao findar este texto, acrescentamos algumas considerações que avaliam as implicações com a decisão de muitas instituições e órgãos de ensino terem adotado as APNP e apresentamos perspectivas sobre o retorno à situação presencial.

Não é o caso de argumentar contra a adoção das APNP, encontros virtuais de estudos ou outras estratégias emergenciais usadas nesse momento de pandemia. Muito menos questionar a atuação das professoras, pois é visível o esforço dessas profissionais para a manutenção de uma relação pedagógica com os estudantes em suas casas. É imperioso reconhecer este trabalho dedicado e lutar para que o saldo deste esforço seja uma maior valorização social do fazer docente - ataques e acusações precisam ceder lugar para o reconhecimento e para a devida valorização profissional por meio de melhores condições de trabalho, renda e garantia de espaços de formação continuada.

Gostaríamos, finalmente, de reafirmar que as APNP são uma solução temporária e emergencial para a manutenção de algumas atividades educativas durante o afastamento social provocado pela pandemia de Covid-19. Assim, é preciso que toda a sociedade esteja atenta para que essas não sejam naturalizadas como uma nova modalidade ensino - especialmente em um momento no qual vivemos o desmonte das políticas públicas de educação (dentre outras), abrindo uma grande oportunidade para que as empresas privadas que detém os direitos sobre as plataformas digitais ganhem ainda mais força nas redes de educação. Assim, temos que estar vigilantes para que o ensino virtual não se consolide no cenário educacional como uma alternativa pedagogicamente democrática, pois isso resultaria no aprofundamento de desigualdades sociais. Matéria publicada pelo site UOL denuncia as graves dificuldades de parcela da população escolar para acompanhar as APNP, o que pode incidir no aumento da evasão escolar. Sustentada em dados da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), a reportagem estima que dos 16 milhões de estudantes matriculados nas 5.570 redes municipais, cerca de 5 milhões estejam completamente desconectados durante a pandemia (Pontes, 2020).

Mesmo entre aqueles que se encontram conectados, a qualidade da aprendizagem pode ter sido afetada pela virtualidade. Resgatamos uma ideia de Wolton (2007) referente às relações online. Para a autora, a web forja um espaço de "solidões interativas".

Não apenas a multiconexão não garante uma melhor comunicação, como expõe ainda mais a questão da passagem da comunicação técnica à comunicação humana. Na realidade, sempre chega o momento em que é preciso desligar as máquinas e falar com alguém. Todas as competências que se têm diante da técnica não induzem em nada uma competência nas relações humanas. (Wolton, 2007, p. 101)

Acreditamos que isso também ocorre nas atividades pedagógicas online, pois essas não têm a centralidade na relação entre as pessoas envolvidas nos processos de ensino e aprendizagem, tão nodais às teorias pedagógicas de modo geral, podendo gerar o que Wolton (2007) denominou "solidões interativas". Seguindo esse raciocínio, não consideramos as APNP como aula. A aula se nutre e se sustenta no contato face a face em um contexto interativo e enunciativo próprio. É o encontro entre sujeitos que aprendem e que ensinam, numa partilha de conhecimentos. É uma experiência que permite a produção de sentidos e a formação de processos psicológicos nos estudantes - vivência central para as novas gerações. É um evento que permite às professoras possibilidades de realizarem trocas, produzirem e consolidarem novos saberes docentes.

A aula, como experiência coletiva, se materializa e sustenta no encontro entre sujeitos. Conforme Espinoza, bons encontros são promotores de afetos, aumentam a alegria, a força de agir e o conatus: desejos e apetites da potência de ser e agir (Chauí, 2005). O conceito de potência de ação em Espinosa atua na "configuração da ação, significado e emoção, coletivas e individuais" e pode ensejar a superação da paralisia causada pelo sofrimento ético-político (Sawaia, 2001, p. 113).

Estudos sobre a pandemia prevêem períodos de intermitência do afastamento social até o ano de 2022 (Stephen, Tedijanto, Goldstein, Grad, & Lipsitch, 2020) - período estimado para a descoberta de uma vacina, sua fabricação em larga escala e a imunização da população. E então, quando voltarmos às aulas presenciais, mesmo que de forma parcial ou intermitente, o que fazer?

Em primeiro lugar, não podemos retomar o calendário escolar e seguir desde a última atividade online. Afinal, os estudantes realmente se apropriaram dos conteúdos? As APNP favoreceram o pensamento, a reflexão, a imaginação e a atividade criadora ou tenderam à repetição e memorização? É preciso oferecer situações de aprendizagem no retorno que revitalizem o querer aprender dos educandos (Moura et al., 2016), sem cair em uma prática espontaneísta ou continuísta. Assim, não podemos apenas seguir com uma espécie de revisão após as férias ou recesso escolar. Igualmente não podemos romantizar situações absolutamente precárias de ensino aprendizagem e tratar com heroísmo estudantes que subiam em muros para usar a internet dos vizinhos, aqueles que fizeram as tarefas dividindo com dois ou três irmãos o celular de seus pais para acessar os conteúdos enviados pela professora ou, ainda, tantos outros que precisaram ir até a escola para buscar materiais impressos. Precisamos acolher os diferentes sentidos produzidos por todos e todas durante a pandemia, reconhecer vivências no período de distanciamento social em meio a uma catástrofe sanitária e humana, criar espaços e tempos para o diálogo, pois cada qual viveu a pandemia de forma peculiar e é preciso escutar, falar, compreender, permitir a circulação de palavras e afetos.

É preciso planejar um retorno gradual guiado pelas orientações da vigilância epidemiológica e cumprir a carga horária curricular exigida por lei. Precisamos reavaliar os processos de ensino e aprendizagem online e de que forma serão recuperadas aprendizagens não realizadas, pois estamos considerando que nem tudo que foi ensinado foi realmente apreendido por todos os estudantes e, principalmente, nem todos acessaram as APNP. O termo todos recebeu destaque na frase anterior pois, desde uma perspectiva radicalmente inclusiva, nenhum estudante deve ser deixado à margem dos processos de ensino e de aprendizagem. Talvez seja preciso replanejar o processo formativo a médio/longo prazo com o coletivo de professoras e com a participação dos estudantes e suas famílias, readaptando os currículos escolares após o fim do afastamento social.

Cabe ao coletivo docente questionar: o que queremos ensinar? Certamente experimentamos, com o distanciamento social e as APNP, situações nunca imaginadas. É um bom momento para acessarmos discussões sobre as interfaces entre ética, saúde, política e tecnologia, tão pujantes neste momento, e alcançarmos outras sensibilidades e reflexões. Reforçamos que as propostas planejadas por cada instituição educacional precisarão ser (re)pensadas de forma coletiva, pelo conjunto de atores que as vivenciam. Estas podem ser objetivadas na forma de projetos interdisciplinares que contemplem uma perspectiva educacional historicizada, iniciativas que permitam problematizar e debater as continuidades e rupturas ocorridas antes, durante e depois da pandemia. Talvez seja o momento de ousarmos projetar uma educação que reconheça a emancipação intelectual e as igualdades como princípio pedagógico. Citando novamente Galeano (2005), precisamos reorganizar nosso mundo, não como era, mas como deveria ser, pois "en la barriga de este mundo hay otro mundo posible".

É também preciso que políticas educacionais atuem rapidamente para diminuir os processos de evasão escolar, que podem se ampliar em função de diversos fatores (originados ou não na crise sanitária). Além disso, precisaremos fortalecer os laços que escolas e famílias formaram no período de pandemia, bem como tecer aproximações com a comunidade escolar e demais setores que impactam nas políticas educacionais.

No retorno, talvez reconheçamos que nem tudo que se faz costumeiramente na escola foi possível de se fazer em casa. A escola é responsável por uma parte central dos processos de singularização e das relações intersubjetivas de estudantes e professoras (Davidov, 1988; Vygotski, 1992) e esses processos ficaram "em suspensão", pois faltou a brincadeira, as pequenas negociações, os olhares e os afetos de carne e osso. Em suma: faltou a interação humana, pois a escola não pode ser encarada como um mero repositório de conteúdos e conceitos. Educar significa compartilhar conhecimentos social e historicamente acumulados pela humanidade, mas os conceitos e as teorias precisam estar atrelados a uma práxis emancipadora em prol de uma sociedade humana, digna, ética. Isso se constrói nas interações, no cotidiano escolar, de modo presencial e dialógico.

Por fim, para que ensino e aprendizagem ocorram, consideramos que os corpos dos atores envolvidos precisam participar desse jogo. Por falar em corpo, se as APNP tivesse um, ele poderia ser personificado por Pandora. A caixa foi aberta e descortinou desigualdades, vulnerabilidades, abandonos sociais - que já existiam e ganharam maior visibilidade nas manchetes e nas redes sociais. Não podemos permitir que a mitológica personagem feche a tampa da caixa antes de a esperança alcançar o espaço público. O único modo de fazermos isso, é refletirmos criticamente sobre o que passou e encararmos as consequências produzidas e reveladas com a pandemia.

 

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Recebido em: 14/07/2020
Aprovado em: 04/09/2020

 

 

1 É preciso fazer uma distinção entre o termo atividade, conforme descrito no Parecer do CNE nº 5/2020, e a categoria atividade utilizada na Teoria Histórico-Cultural por Lev Semyonovitch Vygotski (1992) e Alexei Leontiev (1978), pois ambos os termos não possuem o mesmo significado. Atividade é uma categoria central no Materialismo Histórico Dialético e, conforme desenvolvido por Leontiev (1978), essa permite considerar como a realidade objetiva transforma a subjetividade humana.
2 Conceito baseado nas críticas às instituições escolares estadunidenses desenvolvidas por John Holt e Ivan Illich na década de 1970 (Novaes, 2017).

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