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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.22 no.54 São Paulo maio/ago. 2022

 

ARTIGO ORIGINAL

 

O direito à convivência comunitária nos serviços de acolhimento institucional: um estudo documental

 

The right to community coexistence in institutional shelter services: a documental study

 

El derecho a la convivencia comunitaria en instituicón de acojida: un estudio documental

 

 

Dalízia Amaral CruzI; Lília Iêda Chaves CavalcanteII; Elson Ferreira CostaIII

IUniversidade Federal de Pará. Belém/PA, Brasil. liz.amaralcruz@gmail.com
IIUniversidade Federal de Pará. Belém/PA, Brasil. liliaccavalcante@gmail.com
IIIUniversidade Federal de Pará. Belém/PA, Brasil. elsonfcosta@gmail.com

 

 


RESUMO

Objetivou-se refletir sobre o direito à convivência comunitária de crianças e adolescentes em acolhimento institucional, a partir da discussão de como o documento "Orientações Técnicas para os Serviços de Acolhimento de Crianças e Adolescentes" aborda o tema. Trata-se de uma pesquisa documental, com caráter descritivoexploratório e abordagem quanti-qualitativa dos dados. A análise foi realizada a partir do processamento dos dados pelo software IRaMuTeQ para posterior aplicação da técnica de análise de conteúdo. Entre os principais resultados, a convivência comunitária é apresentada como um direito fundamental, imperativa à convivência familiar. Também a utilização dos equipamentos comunitários pelas crianças e adolescentes e as ações de fortalecimento dos vínculos e interação com a comunidade são destacadas no documento. O documento se firma como instrumento do direito e da política em prol da convivência comunitária, o que significa considerar aspectos cognitivos, emocionais e comportamentais dos sujeitos envolvidos em qualquer decisão nessa área.

Palavras-chave: Crianças; Adolescentes; Comunidade; Serviços de Acolhimento; Direito.


ABSTRACT

The aim of this paper was to reflect on the right to community coexistence of children and adolescents under institutional care, based on the discussion of how the document "Technical Guidelines for Children and Adolescents Shelter Services" addresses the issue. This is a documentary research, with a descriptive-exploratory character and quantitative-qualitative approach to the data. The analysis was performed from data processing by the IRaMuTeQ software, for later application of content analysis technique. Among the main results, community coexistence is presented as a fundamental right, imperative to family coexistence. The use of community facilities by children and adolescents and actions to strengthen ties and interaction with the community are also highlighted in the document. The document establishes itself as an instrument of law and policy in favor of community coexistence, which means considering cognitive, emotional and behavioral aspects of the subjects involved in any decision in this area.

Keywords: Children; Teenagers; Community; Institutional Shelter Services; Right.


RESUMEN

El objetivo fue reflexionar sobre el derecho a la convivencia comunitaria de niños y adolescentes en recepción institucional, basado en la discusión del documento "Directrices técnicas para los servicios de recepción de niños y adolescentes". Es una investigación documental, descriptivo-exploratorio y cuantitativa-cualitativa de los datos. El análisis se realizó a partir del procesamiento de datos por el software IRaMuTeQ, para la aplicación posterior de la técnica de análisis de contenido. La convivencia comunitaria se presenta como un derecho fundamental, imperativo para la convivencia familiar. En el documento se destaca el uso de equipos comunitarios por parte de niños y adolescentes y acciones para fortalecer los lazos y la interacción con la comunidad. El documento demuestra ser un instrumento de ley y política a favor de la convivencia comunitaria, ya que considera los aspectos cognitivos, emocionales y de comportamiento de los sujetos involucrados en cualquier decisión en esta área.

Palabras clave: Niños; Adolescentes; Comunidad; Instituicón de Acojida; Derecho.


 

 

INTRODUÇÃO

A cultura da institucionalização de crianças e adolescentes remonta ao período do Brasil Colônia, onde as primeiras iniciativas asilares foram apoiadas em valores caritativo- religiosos, mas se propaga e se atualiza com o advento da República e a emergência de instituições calcadas no modelo filantrópico de ação social e política. Nesse cenário, em que a política de atendimento infantojuvenil era baseada na segregação social, a doutrina da situação irregular de proteção à infância reforçou a estruturação de um sistema de internação-correcional-preventivo (Amin, 2018; Arantes, 2013), apoiado em um conjunto de crenças e valores sociais em torno desses sujeitos consolidados historicamente, a partir da propagação de concepções depreciativas de crianças e adolescentes, conforme afirmam Irene Rizzini e Irma Rizzini (2004). Segundo as autoras, as crianças e os adolescentes atendidos pelo dispositivo da internação traziam consigo o peso de adjetivos estigmatizantes, que os descreviam como desvalidos, abandonados, órfãos, delinquentes, entre outras denominações. Veja-se que o principal mecanismo de atendimento, à epoca, era a internação em espaços fechados (internatos, educandários, orfanatos), uma das características da dimensão política de controle dos corpos.

Destaca-se, portanto, que a sociedade assimilou a institucionalização infantojuvenil, sustentando o seu pensamento no contexto macrossistêmico político da época. O macrossistema, de acordo com Urie Bronfenbrenner (2011), diz respeito a um padrão global de características de determinada cultura, subcultura, ou contexto social mais amplo, onde circulam crenças, recursos, estilos de vida, opções de curso de vida, diluídos no microssistema, mesossistema e exossistema (Bronfenbrenner, 2011)1. A exemplo, pode-se dizer que na década de 1960, a consistência macrossistêmica era a Política Nacional do Bem-Estar do Menor, que tinha como ambiente imediato as unidades de internação. As relações mesossistêmicas eram frágeis e se estabeleciam entre as famílias e as unidades, enquanto que o exossistema abrangia os gabinetes de juízes e políticos/militares, onde as decisões eram tomadas.

Nessa perspectiva, com o Código de Menores (1927/1979) edificou a imagem do menor, categoria estigmatizante que acompanhou qualquer menção feita à população infantojuvenil em situação de pobreza até a Lei n. 8.069/90, quando foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Esta legislação resultou de crescentes movimentos sociais no início dos anos de 1980. Estes movimentos, que solicitavam mudanças na política de atenção à infância e juventude, acompanharam o momento de abertura política no Brasil, que se consolidou com a Constituição de 1988. Tais movimentos se valeram da pressão de organismos internacionais, como o Fundo das Nações Unidas para a Infância - UNICEF (Souza, 2016), para pressionar o legislador constituinte a considerar como primordial a causa já abraçada por vários países (Amin, 2018; Cruz, Cardoso, & Matos, 2018).

Assim, a doutrina da situação irregular começa dar lugar à doutrina da proteção integral, nova configuração macrossistêmica, fundamentada na Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, da Organização das Nações Unidas (Amin, 2018; Salum, Oliveira, & Moreira, 2016). O ECA (Lei n. 8.069/1990) apresentou-se como paradigma para a construção de uma política pública, onde crianças e adolescentes deixaram de ser tomados como objetos de tutela e passaram a ser considerados sujeitos de direitos.

E com a finalidade de tornar concreta a doutrina da proteção integral, o ECA, reúne um conjunto de medidas governamentais, por meio de políticas públicas sociais para as crianças e os adolescentes, vítimas de qualquer forma de violação de direitos. Entre tais medidas, preconiza a reconfiguração de instituições para crianças e adolescentes, afastados do ambiente familiar. O acolhimento institucional, assim, tornou-se medida de proteção, de caráter excepcional e provisório. E ao contrário da legislação menorista, com suas práticas de internação, exclusão e controle, o artigo 92 do ECA (Lei n. 8.069/90) preconiza que os serviços de acolhimento devem adotar, entre outros princípios, a preservação dos vínculos com a família, promover a reintegração familiar, participação na vida da comunidade local e participação das pessoas da comunidade no processo educativo. A privação de liberdade, que antes era uma prática comum, caracterizando a comunidade como exossistema, deu lugar, entre outros, ao direito fundamental à convivência familiar e comunitária.

Nesse sentido, com a Constituição de 1988 e a promulgação do ECA, foram criadas as bases para a reconfiguração do macrossistema até então vigente. Dessa forma, em 2006, foi aprovado o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (MDS, 2006), que entre seus eixos de atenção tem-se o plano de ação de reordenamento dos programas de acolhimento institucional, que se coloca dentro do novo paradigma na política social e deve ser incorporado por toda a rede de atendimento do país.

Dentro desse panorama, em 2009, foram aprovadas as "Orientações Técnicas para os Serviços de Acolhimento de Crianças e Adolescentes", que trazem parâmetros de funcionamento e orientações metodológicas para que os serviços de acolhimento possam cumprir com a função protetiva e de restabelecimento de direitos, organizados em uma rede de proteção que favoreça o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários (Lei n. 8.069/90). Destaca-se que as Orientações Técnicas (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome [MDS], 2009) têm importância histórica e social, pois representam um avanço na política de atendimento infantojuvenil, ao focalizar, especificamente, o trabalho desenvolvido nos serviços de acolhimento, na perspectiva da proteção integral e da convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes.

O presente estudo mostra-se como grande desafio, no sentido de contribuir no âmbito acadêmico, profissional e social. As pesquisas desenvolvidas a partir da temática do acolhimento institucional, especialmente sobre a convivência comunitária da população atendida pelos serviços de acolhimento, até o presente momento, não focalizaram a publicação de ordem analítica das "Orientações Técnicas para os Serviços de Acolhimento de Crianças e Adolescentes" (MDS, 2009). Não são encontrados na literatura sobre o tema, estudos que se debrucem sobre a reflexão crítica dos aspectos conceituais e dos parâmetros que estão subjacentes ao referido documento. Nesse sentido, considera-se importante fornecer aos operadores desses serviços reflexões teórico-críticas que possam subsidiar e fortalecer suas práticas, que devem ser guiadas para a garantia de direitos e superação da cultura da institucionalização. O presente estudo, diante de tais considerações, tem como objetivo refletir sobre o direito à convivência comunitária, a partir da discussão de como o documento "Orientações Técnicas para os Serviços de Acolhimento de Crianças e Adolescentes" (MDS, 2009) aborda o tema.

 

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa documental, com caráter descritivo-exploratório e abordagem quanti-qualitativa dos dados. Estes foram obtidos a partir da análise textual do conteúdo das "Orientações Técnicas para os Serviços de Acolhimento de Crianças e Adolescentes". Trata-se de um documento elaborado, em conjunto, pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) - atual Ministério da Cidadania, Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) e Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), no sentido de orientar profissionais da área da proteção social especial de alta complexidade para crianças e adolescentes no Brasil.

O documento está organizado em três capítulos. O capítulo um traz uma síntese histórica para a compreensão do aprimoramento de atendimento infantojuvenil em serviços de acolhimento e reitera os marcos regulatórios e normativos vigentes, apresentando os princípios que devem respaldar o atendimento de crianças e adolescentes em situação de acolhimento. O capítulo dois trata das orientações metodológicas, com diretrizes para a melhoria dos atendimentos nos serviços de acolhimento e, por fim, o capítulo três apresenta os parâmetros de funcionamento para as diferentes modalidades de serviços de acolhimento e a proposta de regionalização da prestação desses serviços para garantir atendimento em municípios de pequeno porte e a crianças e adolescentes ameaçados de morte.

 

PROCEDIMENTOS

Embora o documento traga uma subseção intitulada "Preservação e Fortalecimento da Convivência Comunitária", ressalta-se que foi realizada a leitura completa e atenta das 168 páginas que compõem o documento, visando à identificação, seleção e reunião de trechos, ao longo do texto, que remetessem ao tema convivência comunitária para a análise proposta. Assim, foram separados 48 trechos, organizados em uma tabela para a preparação do corpus textual de análise.

A partir da utilização do software IRaMuTeQ (Interface de R pourles Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires), como ferramenta auxiliar no processo de codificação dos elementos trazidos por meio da coleta de dados (Mutombo, 2013), foi realizada a técnica da análise de conteúdo (Bardin, 2011), com base em procedimentos descritos em estudos anteriores (Fernandes, Montiel, Andrade, Bartholomeu, Cecato, & Martinelli, 2015; Sousa, Queiroz, Oliveira, Moura, Batista, & Andrade, 2016). Nesse sentido, os dados foram estruturados em categorias semânticas, que emergiram a partir do processamento de dados, por meio do Grafo de Similitude, que mostrou a ligação entre as palavras do corpus textual, sendo possível inferir a estrutura de construção do texto, bem como sobre temas importantes para discussão e Classificação Hierárquica Descendente (CHD), na qual os segmentos de textos e seus vocabulários foram relacionados, de modo a formar um esquema hierárquico de classes de vocabulários, sendo possível inferir o conteúdo do corpus, nomear as classes e compreender grupos de discursos/ideias.

Ressalta-se que o processamento feito pelo software IRaMuTeQ propicia uma abordagem quanti-qualitativa dos dados, uma vez que o conteúdo do documento analisado foi processado a partir da frequência e do método estatístico de Qui-Quadrado (Silva & Enumo, 2017). Além disso, as classes foram discutidas a partir da ordem dos subcorpus formados (A, B e C).

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Por meio do processamento por Grafo de Similitude, foi possível identificar as ocorrências entre as palavras e a indicação da conexidade entre elas, verificada por meio da espessura dos troncos que as ligam, o que auxilia na identificação do conteúdo de um corpus textual. Observa-se que há quatro palavras (Figura 1) que mais se destacaram no texto: familiar, família, comunidade, comunitário com 43, 42, 39, 37 menções respectivamente. Delas, se ramificam outras que apresentam expressão significativa: atividade, vínculo, adolescente, convívio, criança, com 24, 23, 23, 18, 16 menções respectivamente.

De acordo com a Figura 1, as palavras se agrupam em torno de quatro eixos organizadores (familiar, família, comunidade, comunitário) no Grafo de Similitude. No extremo superior do Grafo, destacam-se as palavras criança e adolescente, fortemente ligadas, o que se justifica pelo fato de o documento ser um dos norteadores da prática profissional nos serviços de acolhimento de crianças e adolescentes.

o presente documento visa estabelecer parâmetros de funcionamento e oferecer orientações metodológicas para que os serviços de acolhimento de crianças e adolescentes possam cumprir sua função protetiva e de restabelecimento de direitos, compondo uma rede de proteção que favoreça o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários. (Orientações Técnicas, MDS, 2009, p. 23)

Os eixos familiar e comunitário ligam-se expressivamente na representação gráfica apresentada pela Figura 1. Evidencia-se, assim, a compreensão da convivência familiar e comunitária como direito fundamental e sua relevância para o desenvolvimento da criança e do adolescente. Focaliza-se a família e a comunidade como contextos importantes para estabelecimentos de vínculos.

a convivência familiar e comunitária é um direito fundamental e deve pautar as políticas públicas voltadas para promoção e garantia de direitos de crianças e adolescentes. O tema é prioritário para o Governo Federal, e pede envolvimento de todas as esferas de governo ... e da sociedade civil, conselhos, dentre outros. (Orientações Técnicas, MDS, 2009, p. 15)

Todos os esforços devem ser empreendidos para preservar e fortalecer vínculos familiares e comunitários das crianças e dos adolescentes atendidos em serviços de acolhimento. Esses vínculos são fundamentais, nessa etapa do desenvolvimento humano, para oferecer-lhes condições para um desenvolvimento saudável. (p. 26)

Verifica-se nos trechos acima a mudança de perspectiva em torno da comunidade, que passa a ser considerada como importante microssistema das crianças e adolescentes. As Orientações Técnicas (MDS, 2009), portanto, chamam a atenção para que os serviços de acolhimento preservem e fortaleçam os vínculos familiares e comunitários das crianças e dos adolescentes atendidos, o que vai de encontro à perspectiva do isolamento praticado durante longos anos da história da institucionalização da infância e juventude brasileiras. É chamada a atenção para a valorização do papel da família, das ações locais e das parcerias no desenvolvimento de atividades de promoção desse direito, vislumbrando mudanças no contexto de funcionamento dos serviços de acolhimento (Rizzini & Rizzini, 2004).

Ressalta-se que a palavra convívio se liga ao eixo familiar, reforçando que o convívio familiar é um direito fundamental, dentre outros, previsto na legislação nacional - ECA (Lei n. 8.069/90). O Plano Nacional (MDS, 2006) reconhece e postula a família como estrutura vital, lugar fundamental para a humanização e socialização da criança e do adolescente.

O reconhecimento, na legislação vigente, do direito à convivência familiar e comunitária, da excepcionalidade e provisoriedade do afastamento do convívio familiar e dos princípios que qualificam o atendimento nos serviços de acolhimento está fundamentado, dentre outros aspectos, no próprio desenvolvimento científico e nas diversas investigações que mostraram que um ambiente familiar saudável é o melhor lugar para o desenvolvimento da criança e do adolescente. (Orientações Técnicas, p. 19)

Do eixo comunitário, ainda, enraízam-se palavras (serviço, local, rede, vínculo, fortalecimento) que enfatizam algumas diretrizes a serem seguidas pelos serviços de acolhimento para a garantia do direito à convivência comunitária.

O acolhimento não deve significar, ainda, privação do direito à convivência comunitária. Nesse sentido, o serviço de acolhimento, em parceria com a rede local e a comunidade, deverá empreender esforços para favorecer a construção de vínculos significativos entre crianças, adolescentes e comunidade. (Orientações Técnicas, MDS, 2009, p. 57)

No entanto, apesar de o trecho acima chamar a atenção para a importância da convivência comunitária, a partir da articulação com a rede local e a comunidade, as palavras que se conectam ao eixo família (origem, encaminhamento, substituto, reintegração, adoção) enfatizam a importância da família como ambiente ideal e privilegiado para o desenvolvimento integral das pessoas (MDS, 2006). Observa-se, nesse sentido, que o direito à convivência comunitária de crianças e adolescentes em acolhimento institucional está estreitamente ligado ao contexto da família e, por isso, entre os principais objetivos dos serviços de acolhimento tem-se a reintegração da criança e do adolescente na família de origem ou encaminhamento à família substituta.

O Plano de Atendimento Individual e Familiar deve orientar as intervenções a serem desenvolvidas para o acompanhamento de cada caso, devendo contemplar, dentre outras, estratégias para: encaminhamento para adoção quando esgotadas as possibilidades de retorno ao convívio familiar ... uma estratégia que pode ser empreendida também pelos serviços de acolhimento, em parceria com Grupos de Apoio à Adoção ou similares, diz respeito à busca ativa de famílias para a adoção de crianças e adolescentes com perfil de difícil colocação familiar. (Orientações Técnicas, MDS, 2009, p. 35)

Quando ... for detectada a necessidade do afastamento da criança e do adolescente da família de origem ... os mesmos deverão ser atendidos em serviços que ofereçam cuidados e condições favoráveis ao seu desenvolvimento saudável, devendo-se trabalhar no sentido de viabilizar a reintegração à família de origem ou, na sua impossibilidade, o encaminhamento para família substituta. (p. 67)

Diante disso, de acordo com Kátia Maciel (2018), ao lado da convivência familiar, tanto os legisladores constituintes, quanto os estatutários, estabeleceram o direito à convivência comunitária como uma adição imperativa à convivência familiar, de modo que apenas com a presença de ambas a pessoa em processo de formação terá desenvolvimento positivo e saudável. E quanto ao extremo inferior do Grafo, o imperativo continua evidenciado entre o eixo comunidade em conexidade com o eixo família. Ao eixo comunidade, ligam-se palavras (pessoa, atividade, escola, autonomia, desenvolvimento) com significados importantes para o desenvolvimento de crianças e adolescentes em acolhimento institucional, como a autonomia e a participação em atividades comunitárias, onde a escola aparece como importante microssistema de promoção do desenvolvimento.

Devem ser planejadas ações que favoreçam a interação das crianças e dos adolescentes entre si e com os contextos nos quais frequentam, como a escola, a comunidade, e as instituições religiosas. O desenvolvimento da autonomia deve levar em consideração, ainda, a cultura de origem da criança e do adolescente e fortalecer a elaboração de projetos de vida individuais e o desenvolvimento saudável, inclusive após o desligamento e a entrada na vida adulta. (MDS, p. 29)

É importante, ainda, promover a inclusão de crianças e adolescentes ... nas atividades propostas pelo Programa Mais Educação, em ações complementares à escola, ações comunitárias, arte e educação, esporte e educação e de atendimento individualizado a cada aluno. (p. 48)

No que concerne à CHD, o corpus geral foi constituído por 48 textos, separados em 96 segmentos de texto (ST), com aproveitamento 90 STs (93,75%)2. O conteúdo analisado foi categorizado em quatro classes, que foram divididas em três ramificações (A, B e C) do corpus total em análise. O subcorpus A é composto pela Classe 4 (Centralidade na Família), com 28 ST (31,1%); o subcorpus B contém os textos correspondentes à Classe 3 (Dispositivos Comunitários), com 24 ST (26,7%) e o subcorpus C é referente às Classes 2 (Interação com a Comunidade), com 19 ST (21,1%) e 1 (Princípios Norteadores), com 19 ST (21,1%). O dendrograma (Figura 2) apresenta a lista de palavras componentes de cada classe, com respectiva frequência (f) e a indicação da associação do qui-quadrado (X² > 3,80) das palavras em maior afinidade com a classe e nível de significância dessa associação pelo p-valor.

A Classe 4 trata do contexto familiar como microssistema central de atenção para a garantia da convivência comunitária e provisoriedade do serviço. As principais palavras relacionadas a esta classe foram: família, adoção, substituto, reintegração, extenso, colocação, retorno, esgotado, dentre outras. Os trechos, a seguir, ilustram seu conteúdo.

esforços devem ser empreendidos para viabilizar, no menor tempo possível, o retorno seguro ao convívio familiar, prioritariamente na família de origem e, excepcionalmente, em família substituta (adoção, guarda e tutela), conforme Capítulo III, Seção III do ECA. (MDS, 2009, p. 25)

a preparação para o retorno deverá incluir uma crescente participação da família na vida da criança e do adolescente ... Nesse momento é importante, ainda, que sejam fortalecidas as redes sociais de apoio da família, fundamentais para o exercício de seu papel de cuidadora. (MDS, 2009, p. 42)

Por muito tempo, crianças, adolescentes e suas famílias foram alvos de políticas fundamentadas na doutrina da situação irregular e viveram à margem da sociedade por sua condição de pobreza. Estas crianças e adolescentes carregaram consigo, e ainda carregam, a imagem de abandonados, infratores e perigosos em potencial. No entanto, a partir do estabelecimento de uma nova doutrina, a da proteção integral, documentos nacionais foram constituídos, como forma de pautar as práticas profissionais dentro da lógica da assistência social como política pública. Nesse sentido, em 1988, constituiu-se a convivência familiar e comunitária como direito fundamental, sendo considerada pelo ECA (Lei n. 8.069/90), em seu artigo 19, estratégia de superação da cultura da institucionalização e de valorização da família.

O Plano Nacional chama a atenção para a flexibilidade que se deve ter no entendimento do que é a instituição familiar. Trata-se de desmistificar a idealização de determinada estrutura familiar como natural e reconhecer a diversidade das organizações familiares no contexto histórico, social e cultural, no sentido de suplantar a ênfase na estrutura da família e considerá-la nos seus diversos arranjos (MDS, 2009) e em sua funcionalidade (Bronfenbrenner, 2011) na proteção e socialização dos filhos. Observa-se, então, que embora as Orientações Técnicas sejam direcionadas aos serviços de acolhimento, o foco não mais recai sobre a institucionalização, em termos de uma política com vistas à higienização, controle e segregação, mas sobre o trabalho de fortalecimento do sistema familiar para o cuidado continuado de seus filhos.

Os serviços de acolhimento, assim, têm o compromisso pelo resgate e fortalecimento dos vínculos entre crianças, adolescentes e suas famílias, bem como pelo limite de tempo para sua concretização (Silva & Arpini, 2013) e caso não seja possível a reintegração para a família de origem ou extensa, que o empenho seja na colocação em família substituta. Segundo as autoras, tal medida parece se constituir em uma das ações importantes para a efetivação dos princípios da brevidade e da excepcionalidade que devem caracterizar os serviços de acolhimento. Para tanto, é fundamental fortalecer o mesossistema família/serviço de acolhimento, em que a relação entre os familiares e os profissionais deve ser pautada no fortalecimento dos vínculos rompidos. Desta forma, é necessário uma atuação próxima, empática e respeitosa entre os envolvidos (Biasoli-Alves, 2005; Fonseca & Koller, 2018).

Entende-se, porém, ser importante que a equipe técnica dos serviços de acolhimento e órgãos gestores tenham cuidado na interpretação das diretrizes apontadas pelas Orientações Técnicas. Pois, na urgência de se cumprir com as ações estabelecidas e devido à relação imperativa entre os termos familiar e comunitário (Maciel, 2018), pode-se incorrer em processos de reintegração familiar inadequados e mal sucedidos, conforme apontam os resultados da pesquisa realizada por Siqueira, Massignan e Dell'Aglio (2011), que identificaram ausência de avaliação prévia da situação e a falta de acompanhamento sistemático no período de reintegração. Os resultados do estudo realizado por Maria Aparecida Penso e Patrícia Moraes (2016) evidenciaram a falta de rabalho integrado em rede entre Conselho Tutelar, Centro de Referência de Assistência Social - CRAS, Centro de Referência Especializado de Assistência Social - CREAS, que pareceram trabalhar de forma isolada e desarticulada. Diante disso, as Orientações Técnicas recomendam a elaboração do Estudo Diagnóstico, conforme o extrato a seguir.

Nessa perspectiva, recomenda-se que o estudo diagnóstico contemple ... mapeamento dos vínculos significativos na família extensa e análise da rede social de apoio da criança ou adolescente e de sua família ... investimento nas possibilidades de reintegração familiar: fortalecimento dos vínculos familiares e das redes sociais de apoio; acompanhamento da família, em parceria com a rede, visando à superação dos motivos que levaram ao acolhimento. (Orientações Técnicas, MDS, 2009, pp. 31-35)

A partir do Estudo Diagnóstico, o trabalho deve ser realizado no sentido de fortalecer os vínculos familiares e as redes sociais de apoio da criança/adolescente, em parceria com a rede (Sistema de Justiça, CRAS, CREAS, Conselho Tutelar, entre outros). O fortalecimento das redes sociais de apoio também aparece como estratégia para aquelas crianças e adolescentes com "perfil de difícil colocação em família substituta".

Nas situações em que se mostrar particularmente difícil garantir o direito à convivência familia ... de crianças e adolescentes com perfil de difícil colocação em família substituta, faz-se especialmente necessário o esforço conjunto dos atores envolvidos no sentido de buscar o fortalecimento da autonomia e das redes sociais de apoio das crianças e adolescentes que aguardam adoção, e perseverar no desenvolvimento de estratégias para a busca ativa de famílias para seu acolhimento. (Orientações Técnicas, MDS, 2009, p. 26)

O perfil de crianças/adolescentes com dificuldades de serem adotados relaciona-se, geralmente, à idade (as crianças menores de dois anos tem mais chances), cor da pele, sexo e condições de saúde física e mental (Vargas,1998). Identifica-se, aqui, alguns valores sociais que sugerem elementos culturais, éticos e políticos impeditivos da concretização da Lei de Adoção. Ou seja, a escolha de crianças/adolescentes a serem adotadas está permeada por elementos socioculturais e étnicos da nossa história (Queiroz & Brito, 2013). Isso contribui com um acolhimento institucional prolongado, de modo que o sonho de ter uma família fica distante. Trata-se, nesse ponto, de uma situação crítica e cara para a reflexão da convivência comunitária dessas crianças e adolescentes, pois, até aqui, tem-se discutido o tema da convivência comunitária de forma contígua e imperativa à convivência familiar, por meio de ações que envolvam o fortalecimento da rede social de apoio da família (Silva & Arpini, 2013).

Porém, é preciso refletir, sobretudo, a respeito de discursos e posturas que sustentam concepções negativas sobre o abrigo institucional. Discursos estes que ainda consideram os serviços de acolhimento como antigas e grandes instituições, lugares onde crianças e adolescentes perdem algo, que estão abandonados e acordam todos os dias e esperam a mesma sorte dos que já foram adotados (Rodrigues & Hennigen, 2014). As autoras refletem que se as crianças e adolescentes forem pensados apenas pela ótica do abandono, perde-se de vista a reconsideração dos serviços de acolhimento como parte de uma política pública no contexto da proteção integral.

Na pressa em reintegrar a criança ou o adolescente em uma família, esquece-se da convivência comunitária e sua potência em estabelecer outros laços afetivos e de cuidado, os quais podem ser tecidos entre os serviços de acolhimento e a comunidade imediata, como por exemplo, a vizinhança dos serviços. Os profissionais devem estar atentos para seus modos de pensar a instituição e o público que atendem, ao buscarem, a qualquer custo, efetivar o direito à convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes apenas pelo viés da colocação em alguma família, pois isso afeta as práticas exercidas (Rodrigues & Hennigen, 2014).

Nesse sentido, a comunidade, nos termos de Bronfenbrenner (2016), que antes era exossistema para os chamados menores em unidades de internação, pois viviam segregados desta, desponta como possibilidade microssistêmica para crianças e adolescentes em situação de acolhimento. Assim, enquanto se persevera na busca por famílias que acolham crianças e adolescentes, deve-se buscar a autonomia e as redes sociais de apoio (participação na vida diária da comunidade - vizinhança, escola, espaços de lazer, cursos profissionalizantes), no sentido de fortalecer o mesossistema comunidade/serviço de acolhimento.

A experiência do acolhimento, nestas situações, não deve ser marcada pela suspensão da vida, da alegria, do encontro, das possibilidades de amizade, como se só pudessem ser garantidas pela via da reintegração familiar. Os serviços de acolhimento, nesse sentido, devem encontrar sua identidade como um lugar, onde viver também é possível, para além da espera e do sofrimento e podem ser pensados como um lugar de boas lembranças e de convivência para além dos muros institucionais (Rodrigues & Hennigen, 2014).

Por sua vez, a Classe 3 aponta para a importância da utilização dos equipamentos disponíveis na comunidade pelas crianças e adolescentes. As principais palavras que se relacionaram a esta classe foram: atividade, escola, lazer, esporte, saúde, cultura, interação, dentre outras. O trecho a seguir ilustra seu conteúdo.

Sempre que possível, deve-se procurar manter a criança ou adolescente na mesma escola em que estudava antes da aplicação da medida protetiva, de modo a evitar rompimentos desnecessários de vínculos de amizade e de pertencimento e modificações radicais em sua rotina, além de prejuízos acadêmicos. Do mesmo modo, deve ser propiciada a participação em atividades de formação, cultura, esporte e lazer, ofertadas pela escola. (Orientações Técnicas, MDS, 2009, p. 48)

Observa-se que a escola aparece como importante microssistema de socialização e constitui dispositivo fundamental para assegurar o direito à convivência comunitária de crianças e adolescentes. E com o intuito de preservar os vínculos de amizade e pertencimento já estabelecidos pelas crianças e adolescentes, que precisam do serviço de acolhimento como medida protetiva, orienta-se a mantê-los na mesma escola que frequentavam antes do acolhimento. No entanto, nem sempre é possível cumprir com essa diretriz, sendo necessária a transferência da criança/adolescente para uma instituição de ensino mais próxima do serviço de acolhimento. Quando isso ocorre, é fundamental que os serviços de acolhimento aproveitem a proximidade para aperfeiçoar a articulação que deve ser feita com a escola de forma sistemática.

É fundamental, assim, o acompanhamento sistemático do serviço de acolhimento (Calheiros & Patrício, 2014), que deve estabelecer uma relação mesossistêmica (Bronfenbrenner, 1996) integrada com a escola, a partir de ações de conscientização e sensibilização dos profissionais da escola, para que atuem como agentes facilitadores da inclusão das crianças e adolescentes no contexto escolar. Tais ações podem ser materializadas, por meio de capacitações, com proposta de formação continuada de profissionais da educação básica e da rede de proteção integral, onde o tema da criança e do adolescente em acolhimento pode ser um dos eixos de discussão.

O Projeto Escola que Protege é indicado pelas Orientações Técnicas (MDS, 2009) para organizar "a formação continuada de profissionais da educação básica e da Rede de Proteção Integral frente às situações de violências vivenciadas na escola e na sala de aula ... e de um fluxo de encaminhamento das situações de violência identificadas na escola junto à Rede de Proteção Social" (p. 48). Contudo, é de fundamental importância que os serviços de acolhimento sejam encorajados a organizar e ofertar aos profissionais da rede de ensino capacitações e palestras, por exemplo, sobre a história da institucionalização de crianças e adolescentes no Brasil, de modo a desmistificar possíveis concepções negativas. E juntos, escola e serviço de acolhimento, possam criar ações de fortalecimento de vínculos entre crianças adolescentes acolhidos e a comunidade escolar.

Em estudo realizado por Joyce Romeiro e Lígia Melchiori (2017) com três adolescentes em situação de acolhimento, a escola aparece como contexto, onde as jovens puderam expandir suas relações afetivas, construindo novos vínculos, tanto com os colegas de sala, quanto com os profissionais. Os resultados ainda apontaram para a melhora das médias escolares das adolescentes. Esse resultado foi atribuído pelas autoras, devido ao acompanhamento da vida escolar pela equipe do serviço de acolhimento.

As relações mesossistêmicas, conforme postuladas por Bronfenbrenner (1996), compõem as inter-relações entre os ambientes, ou seja, atenta-se para as interconexões entre os serviços de acolhimento e a comunidade, por exemplo. Observa-se, assim, a necessidade de os profissionais se empenharem no fortalecimento do mesossistema serviço de acolhimento/escola, de forma a promover as interconexões: Participação Multiambiente - participação de atividades em mais de um ambiente; Ligação Indireta - quando existe um vínculo intermediário, por meio de alguém que interconecta os ambientes; e Comunicação e Conhecimento Interambiente - mensagens e informações transmitidas de uma ambiente para o outro (Bronfenbrenner, 1996). Outra diretriz importante abordada pelas Orientações Técnicas, diz respeito ao acesso das crianças e acolhidos aos serviços socioassistenciais, disponíveis na comunidade.

Para evitar prejuízo ao convívio com a comunidade, espaços públicos e instituições, os serviços de acolhimento não deverão concentrar em suas dependências equipamentos destinados à oferta de serviços de outra natureza, como ... atendimento médico, odontológico ... não deverão concentrar espaços de lazer geralmente não disponibilizados em unidades residenciais, como quadras ... A criança e o adolescente devem participar da vida diária da comunidade e ter a oportunidade de construir laços de afetividade significativos com a mesma. Deve-se propiciar sua participação nas festividades ... da comunidade, além da utilização da rede socioassistencial, de educação, saúde, cultura, esporte e lazer disponíveis na rede pública ou comunitária. (Orientações Técnicas, MDS, 2009, p. 57)

De acordo com Enid Silva (2004), no período vigente da doutrina da situação irregular, as instituições (orfanatos, internatos, asilos, reformatórios) previam a realização, nos seus interiores, de quase todas as atividades atinentes à vida das crianças e dos adolescentes internados: consultórios médicos e odontológicos, enfermarias, salas de aula, capelas, ginásios esportivos. Porém, o ECA (Lei n. 8.069/90), na vigência da proteção integral, elenca como direitos fundamentais para o desenvolvimento de todas as crianças e adolescentes, independentemente da situação que se encontram, o direito à educação, à cultura, à saúde, ao esporte e ao lazer.

No acesso a atividades culturais, esportivas e de lazer deve-se observar o interesse, as habilidades e grau de desenvolvimento da criança e do adolescente. Sendo possível, deve-se propiciar que esse acesso não seja realizado sempre de modo coletivo, ou seja, com várias crianças e adolescentes do serviço frequentando as mesmas atividades nos mesmos horários, a fim de favorecer também a interação com outras crianças/adolescentes da comunidade. (Orientações Técnicas, MDS, 2009, p. 57)

Os profissionais têm a missão de garantir a convivência comunitária, de modo a reconhecer o interesse, habilidades e individualidade das crianças e adolescentes e, assim, evitar que o acesso às atividades culturais, esportivas e de lazer sejam realizadas sempre coletivamente. Ivy Almeida, Nívea Maehara e Maria Clotilde Rossetti-Ferreira (2011) enfatizam a importância de estimular a relação das crianças/adolescentes com a comunidade de maneira mais personalizada e significativa para cada acolhido, para evitar a formação do grupo dos abrigados, devido crianças/adolescentes da mesma instituição frequentarem os mesmos espaços da comunidade e no mesmo horário. Ações como esta contribuem para a formação de concepções mais positivas acerca de crianças e adolescentes em situação de acolhimento e materializam as condições macrossistêmicas da doutrina da proteção integral. Pois, conforme Bronfenbrenner (1996), operacionalmente, o macrossistema se manifesta nas continuidades reveladas nos microssistemas, mesossistemas e exossistemas.

O direito à convivência comunitária, no documento em análise, pode ser também discutido na esteira do direito à liberdade, preconizado no ECA (Lei n. 8.069/90), em seu artigo 16. O inciso I expõe o direito de ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as restrições legais. O trecho a seguir aponta para esse pressuposto.

Na frequência a atividades realizadas na comunidade ... considerar-se-á o estímulo gradativo à autonomia. Nesse sentido, não devem ser impostas restrições injustificáveis à liberdade e conduta, em comparação com crianças e adolescentes da mesma idade e comunidade ... Para ampliar a iniciativa, autonomia e o senso de responsabilidade é importante que as crianças e adolescentes acolhidos possam participar, ainda, de atividades rotineiras como ir à padaria ou ao supermercado, recebendo instruções sobre como lidar com o dinheiro (Orientações Técnicas, MDS, 2009, p. 60)

Utilizar os serviços disponíveis na comunidade pode minimizar os efeitos da institucionalização, uma vez que as crianças e os adolescentes acolhidos, ao entrarem em contato com o mundo exterior à instituição (Siqueira, 2012) podem desenvolver a autonomia, tão importante para os jovens em processo de desligamento institucional. Observa-se que o exercício da convivência comunitária deve ser propiciado de modo que as crianças e os adolescentes sejam encorajados a realizar pequenas atividades de rotina, como ir a supermercados ou padarias, próximos aos serviços, sem a utilização do automóvel particular do serviço, bem como solicitar a ajuda dos vizinhos em situações de emergência, como estratégia para estreitar laços e diminuir a distância entre a comunidade e os acolhidos.

A Classe 2 contempla as ações de fortalecimento dos vínculos sociais por meio do estímulo à socialização e desenvolvimento de vínculos significativos. As principais palavras que se relacionaram a esta classe foram: local, criança, adolescente, equipamento, serviço, utilização, articulação, dentre outras. O trecho que segue ilustra o seu conteúdo.

A criança e o adolescente devem participar da vida diária da comunidade e ter a oportunidade de construir laços de afetividade significativos com a mesma ... essas medidas têm como objetivo propiciar o desenvolvimento da autonomia e da socialização dos mesmos. O acesso aos serviços na rede local tem como objetivo, ainda, inserir a criança e o adolescente em atividades que possam continuar a frequentar após a reintegração familiar. (pp. 57-58)

O trecho aponta para a reflexão sobre a importância da interação das crianças e adolescentes com a comunidade. O ECA (Lei n. 8.069/90) propõe, dessa forma, a participação social, onde os acolhidos participem e integrem a vida comunitária e ampliem a rede de vínculos e proteção (Gulassa, 2010). Contudo, os resultados do estudo realizado por Adriane Negrão e Elizabeth Constantino (2011) em uma instituição evidenciaram que 70% dos acolhidos não recebiam visitas de pessoas da comunidade e dos 30% que recebiam, era de pessoas, famílias, geralmente, da mesma orientação religiosa da instituição. Algumas dessas famílias se tornavam "famílias de apoio"; 86,7% das crianças e adolescentes não realizavam visita às pessoas da comunidade e os 13,3% restantes visitavam as chamadas "famílias de apoio", que os recebiam em suas casas.

Observa-se, conforme a pesquisa acima, que os aspectos da convivência comunitária se restringiam à presença de membros das igrejas parceiras no espaço da instituição, mas não havia critérios definidos para orientar o estabelecimento dessa relação e clareza nos objetivos das ações e atividades desenvolvidas. E, considerando que algumas dessas famílias podiam se tornar referência importante para crianças e adolescentes, seria fundamental que esses contatos fossem orientados com parâmetros claros para evitar expectativas de ambas as partes que não pudessem se concretizar (Negrão & Constantino, 2011).

As Orientações Técnicas (MDS, 2009) chamam a atenção, nesse sentido, para o cuidado que se deve ter na promoção do contato entre crianças e adolescentes e as pessoas da comunidade. A frequência das mesmas nas dependências do serviço de acolhimento deve ter a devida preparação, no sentido de assegurar que as crianças e adolescentes sejam beneficiados e não sejam expostos a vínculos superficiais, que não contribuam para o seu desenvolvimento. Desse modo, Programas de Apadrinhamento Afetivo, ou similares, para serem estabelecidos, precisam dispor de metodologia com previsão de cadastramento, seleção, preparação e acompanhamento das pessoas interessadas e das crianças e adolescentes por uma equipe interprofissional, articulada com a Justiça da Infância e Juventude e Ministério Público.

Veja-se que a interação entre as crianças e os adolescentes acolhidos com pessoas da comunidade, seja a de origem ou a local, ainda se mostra como grande desafio para os serviços de acolhimento (Constantino, Assis, & Mesquita, 2013; Siqueira, Betts, & Dell'Aglio, 2006). No entanto, os profissionais podem criar estratégias para fomentar a convivência comunitária: criar atividades em conjunto com a escola, desenvolver formas de convivência com os vizinhos (participação destes em atividades cotidianas e comemorativas da instituição, como aniversário, sessão de filmes, sob os cuidados dos educadores e vice-versa). Caso contrário, Siqueira et al. (2006) advertem que a falta de interação com pessoas de outros microssistemas pode reforçar os aspectos que estigmatizam adolescente e crianças acolhidos institucionalmente.

Finalmente, a Classe 1 apresenta alguns princípios que devem nortear o trabalho nos serviços de acolhimento no que tange ao direito à convivência comunitária. As principais palavras que se relacionaram a esta classe foram: convivência, comunitário, social, inclusão, vínculo, fundamental, ação. Destacam-se, aqui, três princípios, o primeiro aponta para a excepcionalidade do acolhimento institucional. Trata-se de medida protetiva integral e especial, com caráter excepcional e provisório, estabelecida pelo ECA (Lei n. 8.069/90) em seu artigo 101, a sétima a ser considerada. Os trechos, a seguir, aludem a esse conteúdo.

Para que este princípio possa ser aplicado, é importante que se promova o fortalecimento, a emancipação e a inclusão social das famílias, por meio do acesso às políticas públicas e às ações comunitárias. (Orientações Técnicas, MDS, 2009, p. 24)

Salvo nos casos em que o afastamento de sua comunidade de origem for essencial ... deve-se evitar que a inclusão em um serviço de acolhimento resulte no rompimento ou na fragilização dos vínculos comunitários e de pertencimento preexistentes. (p. 32)

Para que a excepcionalidade possa ser efetivada e garantir o direito à convivência comunitária da criança e do adolescente no contexto familiar, as Orientações Técnicas preconizam o acesso das famílias às políticas públicas e ações comunitárias. Nesse sentido, a atuação do CRAS de referência do território de moradia da família se faz necessária, uma vez que este é considerado "a porta de entrada" na proteção social básica. É responsável pela execução do Programa de Atendimento Integral à Família (PAIF), que deve enfocar, especialmente, a família e os vínculos comunitários no seu desenvolvimento (Neves, 2014). Dessa forma, o documento de Orientações Técnicas, conforme discutido na Classe 1, orienta os operadores competentes no esforço a ser empreendido para manter a criança e o adolescente no convívio familiar (nuclear ou extensa, em seus diversos arranjos). E, caso o acolhimento institucional seja necessário, este deve ter como pressuposto o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários anteriores ao acolhimento e não a sua fragilização.

Outro ponto a ser discutido é o das relações sociais, que configuram aspecto importante para o desenvolvimento humano. A interação interpessoal favorece o desenvolvimento de potencialidades e crescimento psicológico (Cruz, Cardoso, & Matos, 2018). Relacionar-se com outras pessoas, além do microssistema familiar ou institucional, possibilita que as atividades de um indivíduo assumam um nível mais elevado de complexidade. E na medida em que o mundo fenomenológico se amplia, as crianças e os adolescentes serão capazes de participar ativamente do ambiente, de modificá-lo e aumentar sua estrutura e conteúdo (Bronfenbrenner, 1996). O trecho que segue, assim, aponta para o segundo princípio, o da inclusão social.

A articulação dos serviços de acolhimento com o sistema educacional é fundamental, pois a escola constitui importante instrumento para assegurar o direito à convivência comunitária de crianças e adolescentes. Essa articulação pode ser feita por meio da elaboração conjunta de protocolo de ação entre o órgão gestor da assistência social e da educação, garantindo a permanente comunicação entre os serviços, e o acesso das crianças, adolescentes acolhidos e seus familiares à rede de local de Educação. (Orientações Técnicas, MDS, 2009, pp. 47-48)

As Orientações Técnicas, conforme discutido na Classe 3, apontam a escola como importante instrumento de efetivação do direito à convivência comunitária de crianças e adolescentes, portanto, de inclusão social. Contudo, é fundamental ratificar, a partir da discussão realizada por Cruz, Cardoso e Matos (2018), que ampliam a reflexão sobre o direito à convivência comunitária e consideram, além da família, da escola e da comunidade de origem, a comunidade ao redor dos espaços de acolhimento, pois muitas crianças e adolescentes, com difícil perspectiva de retorno à família ou adoção, passam longo período no acolhimento institucional.

Ao direcionar o foco sobre adolescentes com difíceis possibilidades de reintegração familiar e colocação em família substituta, as Orientações Técnicas chamam a atenção para o terceiro princípio, o do fortalecimento de vínculos, que pode ser compreendido como princípio transversal que perpassa todas as ações do fazer profissional no serviço de acolhimento, sejam ações voltadas à convivência familiar e comunitária, bem como às relações estabelecidas entre técnicos, educadores e acolhidos. Os trechos a seguir abordam o tema, considerando os adolescentes com difíceis possibilidades de reintegração familiar ou "colocação em família substituta".

Atenção especial deve ser dada aos adolescentes atendidos em serviços de acolhimento, sobretudo àqueles cujas possibilidades de reintegração à família de origem foram esgotadas e têm reduzidas possibilidades de colocação em família substituta ... Para estes casos, o PPP deve prever metodologia voltada à construção e fortalecimento de vínculos comunitários significativos, à ampliação do acesso à educação, à qualificação profissional. (Orientações Técnicas, MDS, 2009, p. 60)

O apoio técnico também é essencial na organização de espaços de escuta e construção de soluções coletivas por parte dos(as) jovens para as questões que lhes são próprias, na construção de projetos de vida, no incentivo ao estabelecimento de vínculos comunitários fortes e na participação nas instâncias de controle social e espaços de participação social. (p. 94)

A partir dos excetos "fortalecimento de vínculos comunitários significativos" e "estabelecimento de vínculos comunitários fortes", o documento em tela elenca algumas estratégias para favorecer a convivência comunitária dos adolescentes com o perfil apresentado. Há de se abrir as portas para a convivência tanto dos adolescentes com o exterior da instituição, quanto da comunidade (colegas da escola, pessoas da vizinhança) no interior do serviço, conforme discutido na Classe 2.

Dessa forma, ao investirem em encontros geradores de afetos, potencializadores da ação, no âmbito da convivência, os profissionais dos serviços de acolhimento estarão suplantando o antigo paradigma das relações sociais, que geraram dependência, subordinação ou submissão (Torres & Gouveia, 2017) e possibilitarão o estabelecimento de vínculos entre os adolescentes e pessoas da comunidade. Por outro lado, é fundamental estar atento para encontros que despotencializam a ação, pois as diferenças entre as pessoas compõem a convivência, mas podem gerar submissão/subordinação, constrangimentos, sofrimento, que reduzem a capacidade de agir do jovem. E como consequência, "eles aprendem a se 'embotar' em convivências discriminadoras, que reduzem sua capacidade de expandir a vida e formular projetos pessoais e coletivos" (Torres & Gouveia, 2017, p. 23). Por isso, no estímulo à convivência comunitária desses adolescentes, é importante elaborar estratégias para que as diferenças não sejam vividas como desigualdade, produzindo sofrimento ético-político, conforme as autoras citadas.

Ressalta-se, ainda, que apesar de o termo comunitário ser apresentado pelas Orientações Técnicas como imperativo do termo familiar (convivência familiar e comunitária), conforme já discutido, é necessário diferenciá-los. A atuação orientada para os vínculos familiares pressupõe dimensão psicossocial, que pode incluir intervenção terapêutica. Já os vínculos sociais e comunitários requerem metodologia voltada mais para o coletivo e menos intrafamiliar (Bronzo, 2012 citada em MDS, 2017).

Com efeito, o documento de Orientações Técnicas se mostra como importante instrumento de leitura e apropriação, obrigatório para todos os que se ocupam do cuidado de crianças e adolescentes em situação de acolhimento institucional. A concepção de convivência comunitária envolve o combate a processos de segregação, isolamento e confinamento, que contribuem para a exclusão e estigmatização das crianças e adolescentes. Contudo, é necessário que os profissionais que se ocupam do atendimento e acompanhamento desse público problematizem o imperativo entre o familiar e o comunitário. A perspectiva é, portanto, a da inclusão, da participação da vida diária da comunidade e vice-versa. A intersubjetividade humana, conforme Cruz, Cardoso e Matos (2018), se constitui na convivência com as pessoas, a partir de grupos de pertencimento (familiares, escolares, profissionais, de amizade), tão importantes para as trajetórias de si.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A convivência comunitária foi apresentada, a partir da análise de quatro classes de discussão. A classe "Centralidade na Família" trouxe o contexto familiar como primordial para o desenvolvimento da pessoa e é para o trabalho de fortalecimento da família que os serviços de acolhimento devem se debruçar. No entanto, é preciso problematizar a convivência comunitária, uma vez que esta é considerada contígua e imperativa à convivência familiar, de modo que o trabalho profissional tome a convivência comunitária em toda sua potência, promovendo o estabelecimento de outros laços afetivos e de cuidado, que podem ser tecidos entre os serviços de acolhimento e a comunidade imediata (a vizinhança dos serviços, por exemplo).

Na classe "Dispositivos Comunitários", refletiu-se sobre a predição de que as crianças e os adolescentes acessem os equipamentos disponíveis na comunidade. Aqui, chamou-se a atenção para o fortalecimento do mesossistema serviço de acolhimento/contexto escolar, de modo a promover as interconexões: Participação Multiambiente; Ligação Indireta; e Comunicação e Conhecimento Interambiente. Além disso, o fortalecimento mesossistêmico se dá também entre o serviço de acolhimento e os demais dispositivos (unidades de saúde, igrejas, entre outros), que devem ser acessados pelos acolhidos. Quanto à classe "Interação com a Comunidade", foi refletida a importância de os serviços de acolhimento possibilitarem que as crianças e os adolescentes se relacionem com adultos, crianças e adolescentes da comunidade (os vizinhos, colegas da escola). A interação com a comunidade é favorecida, quando o serviço de acolhimento se localiza em áreas residenciais e acompanha a estrutura arquitetônica das outras casas da vizinhança. Por sua vez, a classe"Princípios Norteadores" fecha a discussão dos resultados, reforçando três princípios: (a) da excepcionalidade, (b) da inclusão social e (c) do fortalecimento de vínculos.

No que tange às limitações encontradas na elaboração do estudo, o corpus textual de análise, por ser extenso e por ter tido 93,75% de aproveitamento dos seguimentos de textos selecionados para a análise, dificultou a escolha dos trechos representativos de cada classe, uma vez que não foi possível a utilização de todos os seguimentos selecionados, pois se corria o risco de perder a linha de raciocínio na discussão, tornando-se incoerente com o objetivo proposto. Além disso, houve dificuldade em encontrar estudos específicos sobre o tema da convivência comunit&faacute;ria em serviços de acolhimento, por se tratar de um tema sempre discutido como acessório ao tema da convivência familiar, sendo tomado de forma tangenciada.

Espera-se que este estudo possa clarificar o trabalho realizado por profissionais que se ocupam do cuidado de crianças e adolescentes que por diversos fatores (negligência, abandono, violência, abuso sexual, entre outros) precisaram ser afastados do convívio familiar e comunitário. São esses profissionais que operacionalizam as ações desenvolvidas no âmbito do dispositivo público, que é o serviço de acolhimento. Os resultados, aqui apresentados, mostraram aspectos conceituais subjacentes ao tema da convivência comunitária no documento em tela, pautados no novo paradigma de atendimento à infância e juventude institucionalizadas, o da doutrina da proteção integral.

No âmbito da psicologia política, tais resultados devem ser interpretados a partir de uma perspectiva que reconhece que o direito à convivência comunitária e a política para sua operacionalização não se fazem sem a consideração de aspectos cognitivos, emocionais e comportamentais dos sujeitos envolvidos. E esta perspectiva está apresentada nas Orientações Técnicas, tornando-se, por isso, importante instrumento para reconfigurar e desconstruir um imaginário cristalizado por um contexto político, social e cultural, onde crianças e adolescentes eram objetos de tutela e não sujeitos de direitos, com prioridade absoluta. Sugere-se que estudos atualizados sejam realizados, com o intuito de investigar de que maneira os serviços de acolhimento têm trabalhado e garantido a convivência comunitária de crianças e adolescentes, considerando as Orientações Técnicas (MDS, 2009).

 

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Recebido em: 05/06/2020
Aprovado em: 11/01/2021

 

 

1 O microssistema é o ambiente imediato (família, instituição, igreja etc.) que se organiza partir de um padrão de atividades, papeis e relações interpessoais, experienciados pelas pessoas, que interagem com as características físicas, sociais e simbólicas desse ambiente. O mesossistema, por sua vez, refere-se ao conjunto de microssistemas (família/instituição/igreja etc.) que uma pessoa frequenta e às inter-relações estabelecidas entre eles. E o exossistema compreende ambientes em que a pessoa não frequenta ativamente, mas têm implicações sobre o desenvolvimento.
2 Para que a o material seja consistente para a análise, os manuais indicam que a retenção de segmentos de texto aproveitados seja de no mínimo de 70%.

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