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Revista Psicologia Política
versão On-line ISSN 2175-1390
Rev. psicol. polít. vol.22 no.55 São Paulo dez. 2022
ARTIGO ORIGINAL
Psicologia cisgênera: notas sobre uma patologização cordial
Cisgender psychology: notes on a cordial pathologization
Psicología cisgénera: notas sobre una patologización cordial
Sofia FaveroI; Marine MariniII
IMestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). E-mail: sofia.favero@hotmail.com
IIGraduada em Psicologia pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). E-mail: marinibataglin@gmail.com
RESUMO
Pretendemos analisar como tentativas de reposicionar a psicologia nem sempre foram acolhidas sem disputas intensas. Ao mover pressupostos dos transfeminismos para a saúde mental, observamos uma colisão com o que permanece sendo entendido por ciência, indicando resistências a perspectivas que não cumpram com exigências ditas mensuráveis, como se, acerca de gênero e sexualidade, as discussões precisassem ser apenas nesses termos. Assim, propomos outras leituras ao paradigma da diversidade na saúde mental, reconhecendo que, quando essa "diversidade" se refere somente a homossexualidades e transexualidades, fixa-se a norma como uma ordem invisível. Contrariamente, desejamos emergir investigações capazes de reconhecer essa "invisibilidade" enquanto eixo passível de nomeação, ou seja, conforme uma psicologia também adjetivada. Espera-se que tais considerações teórico-políticas nos levem a repensar quais epistemologias nos guiaram até aqui e quais podem surgir em nossos projetos éticos, caso abandonemos a nostalgia que impede a psicologia de se comprometer com diálogos com as margens.
Palavras-chave: Psicologia; Cisgeneridade; Transfeminismo; Epistemologia.
ABSTRACT
We aim to analyze how attempts to reposition psychology have not always been welcomed without intense disputes. By moving assumptions from transfeminisms to mental health, we observe a collision with what remains understood by science, indicating resistance to perspectives that do not comply with so-called measurable requirements, as if, regarding gender and sexuality, discussions needed to be in these terms. Thus, we propose other readings to the diversity paradigm in mental health, recognizing that, when this "diversity" refers only to homosexuality and transsexuality, the norm is established as an invisible order. On the contrary, we want to emerge investigations capable of recognizing this "invisibility" as an axis that can be named, that is, according to a psychology also called adjective psychology. It is hoped that such theoretical-political considerations will lead us to rethink which epistemologies have guided us here and which ones may arise in our ethical projects, if we abandon the nostalgia that prevents psychology from committing itself to dialogues with the margins.
Keywords: Psychology; Cisgenderness; Transfeminism; Epistemology.
RESUMEN
Nos proponemos analizar cómo los intentos de reposicionamiento de la psicología no siempre han sido acogidos sin intensas disputas. Al trasladar los supuestos de los transfeminismos a la salud mental, observamos un choque con lo que queda entendido por ciencia, indicando resistencia a miradas que no cumplen con los llamados requisitos medibles, como si, en materia de género y sexualidad, las discusiones debían ser solo en estos términos. Así, proponemos otras lecturas del paradigma de la diversidad en salud mental, reconociendo que cuando esta "diversidad" se refiere únicamente a homosexualidad y transexualidad, la norma se establece como un orden invisible. Por el contrario, queremos que surjan investigaciones capaces de reconocer esa "invisibilidad" como un eje que puede r nombrado, es decir, gún una psicología también llamada adjetiva. Es de esperar que tales consideraciones teórico-políticas nos lleven a repensar qué epistemologías nos han guiado hasta aquí y cuáles pueden surgir en nuestros proyectos éticos, si abandonamos la nostalgia que impide a la psicología dialogar con los márgenes.
Palabras clave: Psicología; Cisgeneridad; Transfeminismo; Epistemología.
INTRODUÇÃO
Ao longo da última década, muitas discussões sobre "diferença" passaram a desafiar uma psicologia mainstream em relação a seus limites e alcances. Essa psicologia - que aqui chamamos de convencional - pretendia, por um lado, compreender o que estava sendo discutido quando se falava em uma prática diferente, mas, resistia, por outro lado, à difusão desses "novos" saberes no âmbito da saúde mental. Ao invés de articular o que seriam, então, os saberes dos estudos afroperspectivistas, subalternos, queer, e de que forma eles poderiam contribuir na construção de outros currículos, o que observamos é uma relutância ao diálogo com o conhecimento produzido a partir de outras epistemologias.
Assim, em um primeiro momento, a percepção desses horizontes críticos tem estado emparelhada à desconfiança que a profissão permanece tendo com o desvio, impossibilitando vê-lo como um veículo potente para a projeção de novas éticas. De todo modo, esse debate costuma situar o ato de "estar com a diferença" como uma questão tipicamente especial, secundária, desimportante. Falam-se, assim, de psicologias trans, pretas, feministas, decoloniais, dentre tantas outras, enquanto âmbitos underground, como se fossem variações, de interesse específico, e não proposições éticas e políticas sobre o que entendemos por sujeito, por sociedade e por conhecimento.
Levada à radicalidade, essa recusa da psicologia em pensar de forma crítica suas concepções acerca dos marcadores raciais, sexuais, corporais e de gênero faz com que eles sejam situados conforme desdobramentos de um eixo, ou seja, existiria uma "matriz" psicológica e as outras questões seriam lidas enquanto intercorrências. Em outros termos, pertenceriam ao campo da diversidade, conforme aponta Milton Moura (2010), visto "por um lado, como coletivo de particularidades e, por outro lado, como expressão de uma unidade complexa e problemática" (p. 344). No entanto, quem é esse sujeito do qual os outros devem sempre ser tributários? Por que essa matriz permanece invisível para nós? Em movimento paralelo ao fortalecimento de terapias nagô (Sodré, 2017), por exemplo, não estamos também deslocando nosso olhar para uma saúde mental pálida, branca, descomprometida com pensar a subjetivação de pessoas negras? Qual seria a razão de apostarmos grandes fichas em uma clínica LGBT sem, ao mesmo tempo, elaborar críticas aos assujeitamentos dentro dos discursos psi (psiquiátricos, psicanalíticos e psicológicos) que recaem sobre tais identificações?
Mais especificamente, interessa-nos pensar a razão de tanto desenvolvimento a uma psicologia "trans" que não tem dado conta de uma questão central: a que ela se contrapõe? Sem querer fortalecer uma ideia prematura de "nós" e "eles", convém considerar como a psicologia transfeminista também produziria embates e divergências dentro do campo da saúde mental. Afinal, falar em patologização ainda não é o suficiente, pois, de fato, a patologização se tornou um termo esvaziado ao longo dos anos. Todos e todas estão (des)patologizando em suas práticas, ou pelo menos gostam de acreditar que assim estejam. Tornou-se vergonhoso assumir que está partindo de um pressuposto psicopatológico, embora isso não signifique bastar. Para além da nomeação, a despatologização das identidades trans e travestis requer um engajamento, uma prática atenta aos postulados hegemônicos.
Nossa proposta, aqui, é descrever alguns desses postulados, na esperança de mobilizar o antagonismo que a psicologia dá indícios de estabelecer com produções transfeministas, dificultando que enxerguemos as cisnormatividades que são constitutivas de nossas práticas. Afinal, caso assumamos que a formação psicológica está localizada em um contexto cortado por diferentes desigualdades, convém se preocupar com as repercussões mortíferas em não trazer tais desigualdades ao campo da visibilidade. Objetiva-se, portanto, elaborar algumas pistas sobre isso que denominamos de "psicologia cisgênera" - com a proposta de dar elementos à seguinte questão: quais são os efeitos dessa "saúde mental" que tem como premissa uma noção de corpo linear, em que genital e gênero têm uma suposta relação de correspondência?
UM PSIQUISMO ON-LINE
A metáfora do psiquismo surge com uma dupla função. Se é útil para darmos início à tarefa de pensar uma subjetivação pretensamente universal, também aparece enquanto uma forma de dizer que para compreender o termo "cis" talvez seja preciso navegar por camadas mais profundas. No campo digital, local em que fez suas primeiras aparições, diversos portais citam o homem trans Carl Buijs como criador da expressão no ano de 1995 - é assim que tanto Donna Matthews (1999) quanto Emi Koyama (2002) organizam. Teríamos, portanto, uma construção ainda recente a respeito do conceito, de menos de três décadas.
Em direção aos primórdios dos ativismos trans, as discussões sobre cisgeneridade são impulsionadas pela web. É no blog de Matthews (1999) que o holandês Buijs aparece pela primeira vez como o responsável pela difusão do termo, ainda que apropriado a partir da clássica diferenciação química (cis versus trans), algo que abordaremos adiante, não fazia referência ao estudo das matérias e das substâncias. O cisgênero significaria "deste lado dos traços comportamentais, culturais ou psicológicos comumente associados a um sexo" (n.p, tradução nossa, online). Poucos anos mais tarde, Koyama (2002) atualiza a definição de Donna, introduzindo a noção de "cissexual", reprisando as disputas que haviam entre os termos "transexual" e "transgênero". Outras mudanças na terminologia poderiam ser observadas, pois, ao passo que Matthews (1999) definiria Carl como um female to male, Koyama (2002) passava a situá-lo enquanto um homem trans.
Mudanças que, embora pareçam dizer respeito a um aspecto estritamente relativo ao vocabulário, inauguraram um processo de releitura sobre os paradigmas da natureza no que diz respeito ao gênero. Pessoas trans, em geral, foram sendo cada vez menos referidas por meio de uma gramática biologizante, demandando que suas identidades se descolassem dos pressupostos "macho" e/ou "fêmea" - embora isso não seja o mesmo que dizer que tais categorias, FTM ou male to female (MTF), tenham caído em total desuso, pois o que está em discussão é como outras disputas enfraqueceram as noções tácitas em que essas siglas se apoiavam. Assim, o transfeminismo começa a dar seus primeiros passos em direção a um descompromisso com expressões geralmente ligadas à tradição médica, segundo apontam os trabalhos de Simone Ávila (2014) e Rafaela Freitas (2014).
Discutindo essas heranças, Julia Serano (2007) se insere no debate de Donna e Emi, apontando que a entrada em cena dos termos "cissexual", "cissexismo" e "cisgênero" disse respeito a uma virada de mesa. A utilização de tais categorias estaria circunscrita na possibilidade de descentralizar o cisgênero de sua hegemonia, de pensá-lo conforme uma alternativa no lugar de situar um "gênero normal" opositivo a um "gênero anormal". A autora toma o conceito de "cisgeneridade" como central para o transfeminismo, reconhecendo que a palavra não entraria em uso rapidamente, mas que ela apontava para um tratado com a diferença que não mais a classificava enquanto uma falsificação da norma.
Cis passa a ser uma expressão disseminada, em síntese, pelo ciberativismo de pessoas trans e travestis (Serano, 2007), com a proposta inicial de designar aqueles que "permanecem" se identificando com o gênero designado no momento do nascimento. Contudo, essa definição ao longo do tempo passou a não ser o bastante, principalmente devido ao fato do termo não ter nascido exatamente com Carl Bujis, mas com a professora de biologia Dana Leland Defosse, que em 1994 expôs a necessidade de um termo que fosse capaz de localizar aqueles que não eram trans. Em um email direcionado à comunidade acadêmica, a pesquisadora cis divide com os destinatários da mensagem o objetivo de encontrar trabalhos teóricos que abordassem questões sistemáticas sobre transgêneros.
Neste mesmo correio eletrônico, Defosse (1994) compartilha que está tentando avaliar o clima do campus para pessoas trans. Na ausência de uma vasta bibliografia sobre o tema, traz que gostaria de ter acesso a organizações, coletivos, testemunhos pessoais e experiências que fossem capazes de ilustrar as violências institucionais acionadas por meio do gênero e da sexualidade. Seus temas de interesse eram transfobia, hostilidade, bem como atitudes e comportamentos da comunidade queer e das pessoas "cisgenerizadas" (Defosse, 1994). O termo utilizado pela autora é cisgendered people - algo que também foi sendo modificado ao longo do tempo, pois atualmente se fala, em línguas anglofônicas, cisgender. Por fim, sua mensagem afirma a proposta de construir coalizões e redes de informação sobre essas questões que a estavam mobilizando.
Talvez a lógica do "cisgenerizado" venha a partir da própria "coerência" dos termos "transgenerizar" ou "transgenitalizar" (Processo Transexualizador, Portaria n° 1.707/2008), como se a forma de se ver, desde a diferença, fosse sempre uma ação estrangeira sobre o corpo imaculado, mas essa seria apenas uma aposta. Perseguindo os paradoxos do surgimento do termo, pode ser observado como os seus diferentes nascimentos, seja através da narrativa que o descreve como originado pelo movimento social ou criado por uma bióloga que entendia "cis" como uma referência a grupos de átomos que se moviam na mesma direção (Bonassi, 2017), percebe-se que a tensão entre natureza e cultura está dada desde o começo. Entretanto, o que nos interessa aqui é indagar quais são as formas de se relacionar com esse dualismo, que alguns setores da saúde mental deram indicativos de propagar sob a ótica do cuidado.
Sendo inata ou aprendida, a transexualidade deveria obedecer a um núcleo inicial que selecionamos para ilustrar uma psicologia cisgênera: o "saber". Era e continua sendo imperativo que o sujeito atendido saiba quem ele é, mas que, sobretudo, a equipe responsável, geralmente composta por endocrinologistas, psiquiatras e psicólogos, consiga registrar esse desvio. Desde O Fenômeno Transexual, de Harry Benjamin (1966), a ideia de um transexual verdadeiro passou a fundamentar os protocolos internacionais de atendimento direcionados a tais sujeitos. Nestes protocolos, chamava-se de "true transsexual sentiment" (Benjamin, 1966, p. 53), ou verdadeiro sentimento transexual, a negação do genital e das características primárias e secundárias do próprio sexo. Passa a emergir, a partir daqui, um arquétipo, uma identidade replicável.
O sentimento a que se refere seria melhor diagnosticado através da diferenciação entre transexuais e travestis; as últimas, que, para o endocrinologista, tratariam-se de pessoas que mobilizavam suas transições por motivos fetichistas. Diferente do transexual "completo", categoria defendida por Benjamin (1966), que não veria seu sofrimento ser aliviado apenas pelo uso de vestimentas do sexo oposto, mas na possibilidade de uma transição entendida por ele como "total". Ainda nesse segmento, o médico afirma que em sua prática teve acesso a dez ou mais pacientes, que estiveram sendo analisados por ele pelo período mínimo de três anos. Seus estudos, todavia, desencadearam na criação da HBIGDA (Harry Benjamin International Gender Dysphoria Association), que passaria a se chamar WPATH (World Professional Association for Transgender Health) anos mais tarde.
Ainda enquanto HBIGDA, a associação passou a divulgar um próprio guia, atualmente denominado de Standards of Care (SOC), com grande influência da obra de Benjamin, ou seja, a partir da observação de uma dezena de sujeitos. Embora a pequena amostra nos cause espanto, como também questionam Berenice Bento e Larissa Pelúcio (2012), a questão que nos mobiliza não está resumida ao pequeno número, mas à crença de que seria possível traçar um perfil generalizante a respeito do gênero. Ora, se reconhecemos que os papéis entre homens e mulheres são fruto de convenções sociais, históricas e culturais, de que forma seria possível agrupar essa variedade de aspectos em uma única referência?
O que passamos a notar, portanto, é que a própria patologização não é mensurável, embora se dirija aos campos dos estudos de gênero, e à própria psicologia social, como ciências menores. De todo modo, continuando com o paradigma filosófico que embasa a noção de doença às identidades trans e travestis, outro agente importante foi o psiquiatra Robert Stoller (1982), responsável por escrever o livro "A Experiência Transexual". O autor também elaborou uma teoria para afirmar um tipo diferente de transexualidade verdadeira, que não se daria somente pela repulsa ao genital ou às características primárias e secundárias do próprio sexo, mas por meio de uma gênese que situaria a transexualidade nos primeiros anos de vida.
Assim, Stoller (1982) discorre sobre um suposto "transexual oficial", que seria fruto de uma relação primitiva com o gênero, na qual o papel da mãe adquire centralidade acerca da formação dos distúrbios ligados ao desenvolvimento. A transexualidade, como até aquele momento eram reduzidas as identidades trans e travestis, ilustraria o desvio de uma socialização dita correta, segundo aponta Rafael Cavalheiro (2019). Enquanto isso, o sujeito transexual, compreendido como desprovido de agência, estaria inscrito em um jogo familista, órfão de um suposto desinvestimento (Cavalheiro, 2019). Se assumirmos que esse é um diagnóstico que encontra amparo em postulados sociais sobre o gênero, seria preciso reconhecermos, então, que o que está em discussão não é somente o verdadeiro transexual, mas a verdadeira "mulher" e o verdadeiro "homem".
Com propostas paralelas, Henry Frignet (2002) divulga em seu livro, denominado "O Transexualismo", uma atualização dessas diferenciações. Ao autor, tal síndrome seria repartida pelo dualismo: transexual versus transexualista, ao invés de transexual primário versus transexual secundário. Todavia, o transexual "frignetiano" apresentaria algumas continuidades, relacionadas principalmente à leitura que o psiquiatra fazia do que chamava de transexualismo: um indivíduo que confirma, através da própria história, ter sido sempre feminino ou masculino, como se houvesse uma linearidade acerca da sexuação. Ao contrário do transexualista, que, por ter o falo reconhecido, permitiria que a identidade sexual fosse assegurada, fazendo com que os transexuais passassem a ser entendidos como foracluídos, ou seja, com uma suposta incapacidade de apreender o imaginário e o registro do real do corpo - assim, ao recusar tal identificação, ela faz seu retorno (de caráter originário) na demanda por pertencer ao outro sexo.
Síndrome, estrutura, transtorno, problema do desenvolvimento, não foram poucas as expressões hostis empregadas a pessoas trans ao longo da tradição médica, embora, presentemente, essas categorias estejam pouco a pouco caindo em desuso. Ainda assim, termos como "verdadeiro", "oficial", "total", "primário" e "completo" seguem fazendo companhia à transexualidade nas práticas de saúde. Nossa questão, portanto, está inscrita da seguinte forma: as disposições diagnósticas reservadas a pessoas trans e travestis podem revelar um modo de compreensão do gênero a partir da cisgeneridade? Em outros termos, as instâncias de procura por uma "autenticidade" denunciariam um funcionamento projetivo de ordem cisgênera? Se sim, a exigência que o outro "saiba quem ele é" estaria produzindo uma alteridade que assegura ao próprio sujeito cisgênero a possibilidade de não pensar sobre si?
CORDIALIDADES PATOLÓGICAS
Ao analisar o raciocínio biomédico, a psicóloga Tatiana Lionço (2009) demonstra que ele trabalha por meio de uma bifurcação entre corpo e alma. Esse processo exibiria a pretensa marca diferenciadora do sexo, tendo em vista que a construção de um "verdadeiro" transexual se daria pelo reconhecimento de que a conexão entre corpo (somato) e alma (psiquíco) havia sido rompida. Entrando em cena, o fundamento da nosologia estaria em dizer que tal erro pode ser localizado no corpo, fazendo com que a reparação seja de sua competência, ou seja, é um encargo médico corrigir o transexual. Assim, alguns campos da medicina se encarregaram de propor estratégias na lógica do conserto, que visam adequar o corpo à alma e endossam um dimorfismo constitutivo da cisheterossexualidade - onde a questão de "saber" a qual gênero se pertence está ligada a aspectos como temperamento, traços fossilizados, personalidade, emoções, dentre outros.
Da década de 1960 para os dias atuais, muitas transformações puderam ser observadas no campo da patologização. Alterações mais institucionais, como aquelas que estiveram impressas na Classificação Internacional de Doenças (CID) e no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), mas também alterações na prática, que se deram a partir da irrefutável presença de pessoas trans e travestis em disputas de poder, espaços de formação, coletivos e organizações políticas. De todo modo, o paradigma da despatologização não pode ser narrado apenas através dos deslocamentos diagnósticos, quando o "transexualismo" (CID-9; DSM-III) passou por reformulações, sendo referido como "transtorno de identidade de gênero" (CID-10, DSM-IV), em seguida "disforia de gênero" (DSM-5) e "incongruência de gênero" (CID-11).
Por certo, o paradigma a que nos referimos tem sofrido atualizações intensas, especialmente porque a Associação Norte Americana de Psiquiatria (APA), a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a própria WPATH têm indicado um especial interesse na despatologização das identidades trans e travestis, embora não abram mão da avaliação psicológica, conforme apontam os trabalhos de Guilherme Almeida e Daniela Murta (2013). Dessa forma, não é com facilidade que encontraremos afirmações contemporâneas que sejam abertamente psicopatológicas, uma vez que toda a hostilidade (nosológica) vem sendo substituída por uma cordialidade (também nosológica). Dito de outro modo, as diferentes despatologizações reposicionam o vocabulário médico, mas não reposicionam a noção de cuidado e as epistemologias que lhes dão base (Almeida & Murta, 2013).
Patricia Porchat e Maria Ofsiany (2020), abordando de quais maneiras pessoas trans e travestis são referenciadas em relação à categoria "corpo" na psicanálise, medicina e no transfeminismo, refletem o "dispositivo da transexualidade" - conceito também discutido por Berenice Bento (2009) e Fátima Lima (2010). Esses três campos do saber se acoplam na produção de verdade no que tange tais identificações. No caso da medicina, o sofrimento emerge enquanto algo que valida o saber sobre a transgeneridade, assim como algo que, de certa forma, irá defini-la. As autoras apontam, então, que não importaria se a causa eventual do sofrimento fosse de ordem social, pois, inserida na dicotomia saúde/doença, a presença de sofrimento viria para justificar a expertise no manejo desses sujeitos por parte da medicina, de maneira a restabelecer o estado de bem-estar e saúde (Porchat & Ofsiany, 2020). Portanto, caberia aos médicos indicar um itinerário terapêutico, de modo a amenizar o sofrimento "inerente" a essa modalidade de experiência generificada.
O próprio acesso institucionalizado a esse itinerário, todavia, está condicionado ao sofrimento: o sujeito trans é convocado a narrar sobre um determinado sofrimento reconhecido pelo discurso do saber, caso queira acessar certos procedimentos. "Determinado" sofrimento, como lembram Porchat e Ofsiany (2020), tendo em vista que nem toda pessoa trans sofre da mesma forma, embora pareça existir um esforço homogeneizante por parte dos discursos psicopatológicos. De maneira similar, é comum na psicanálise um certo tipo de sofrimento enquanto balizador no entendimento, seja na concepção stolleriana ou a concepção lacaniana, das experiências trans, reduzidas a "um quadro conceitual previamente estabelecido, vazio, sem sujeito falante" (Porchat & Ofsiany, 2020, p. 9).
As autoras continuam essa discussão ao afirmarem que a condição tanto de doença quanto de bem-estar estaria atribuída à obrigatória renúncia do próprio corpo, uma vez que só poderia ser possível chegar a ele - o corpo - através da permissão médica, que se configura enquanto uma alternativa uníssona de acesso ao desejo (Porchat & Ofsiany, 2020). Assim, o paradoxo de noções como "sofrimento" está em fazer a terapia servir como tentativa de sanar um débito negativo. Afinal, embora esteja mais ou menos acordado que a saúde é um complexo bem-estar, como seria possível viver uma vida considerada "boa" se as condições para torná-la vivível estão atravessadas pela produção social da doença (Butler, 2019)? Não pensamos, aqui, uma vida "boa" apartada da patologização, mas a possibilidade de construção de formas vivíveis para além dela.
Abandono familiar, evasão escolar, ausência de empregabilidade formal, altos índices de violência urbana, dentre tantos outros fatores que não parecem mobilizar a psicologia ao "meio", mas, sobretudo, ao indivíduo. Caberia aos "discursos psi" a incorporação acrítica do cartesianismo (corpo versus alma) biomédico? Ora, Porchat e Ofsiany (2020) consideram a divisão opositiva entre saúde e doença uma contradição, tendo em vista que "o conflito psíquico é constitutivo da existência humana, não sendo possível livrar-se dele" (p. 9). Todavia, o transfeminismo estaria mais interessado em reescrever a concepção de "corpo aprisionado" para uma ideia de corpo de direitos, estabelecendo diálogos que ultrapassem o âmbito da saúde e convidem a esfera dos direitos humanos a participar. Teríamos, então, como dizer que o transfeminismo advoga por uma cidadania situada além dos moldes nosológicos?
Somando-se a esse debate, Thamy Ayouch (2016) situa que o transfeminismo articula seus princípios de agência e autonomia com uma agenda formada por outros elementos, como o combate à violência cissexista, a defesa dos direitos reprodutivos e da livre sexualidade. De maneira geral, desenvolve-se uma crítica a pressupostos essencialistas que subordinam o gênero ao aparato biológico. Ayouch (2016) aponta, também, como os estudos de gênero estariam abrindo espaço para a possibilidade da fixidez da identidade ser colocada em xeque, pois se trataria de um campo envolvido com outras apostas. Dessa forma, haveria a construção de uma lacuna entre um corpo biológico da medicina, com interesse centrado no genital, e um corpo "que possui história e marcas, que habita um determinado contexto e espaço social, que possui cor de pele, que se comporta de diferentes maneiras e exerce diferentes sexualidades" (Ayouch, 2016, p. 6).
Para pensar essa dimensão política do gênero como uma categoria de análise histórica, Joan Scott (1985) começa a refletir acerca de nossos interesses em identificar os sentidos das palavras. Aponta, então, que os significados do termo "gênero", apesar de parecerem quase que autoevidentes, comumente faziam referência a um "belo sexo" - ou seja, aos traços sexuais atribuídos no âmbito social às mulheres. Gênero havia se tornado, assim, sinônimo de "mulher", fazendo com que, quando utilizado, incluísse sem incluir, como se contássemos uma história paralela à história central: a dos homens. Quando a autora começa a advogar pela possibilidade do "gênero" ser enxergado enquanto uma categoria útil à produção de análises que nos levem a mudanças, perde o interesse de identificar um sentido intrínseco ao termo (Scott, 1985).
Por esse ângulo, não nos mobiliza reiterar a lógica de que falar sobre gênero é falar sobre o transgênero, mas, sim, pensar de que forma a política se projeta no gênero. O que significa assumir que nossas proposições só serão compreendidas caso a cisgeneridade possa estar situada no tempo e no espaço. Essa tomada de posição exigiria que refletíssemos sobre as relações desiguais que posicionam pessoas cis acima das demais, visando entender o que ocorre que faz com que pessoas trans e travestis sejam invisíveis como sujeitos históricos. Ao tentar responder à invisibilidade feminina, Scott (1985) aponta para as políticas natalistas, onde o gênero seria um veículo de apoio a guerras, uma vez que o Estado sacrificaria vidas jovens para sua própria proteção. E as mulheres, excluídas da esfera pública, teriam seus destinos condensados à reprodução.
Se o feminino está para a "sexualidade" tal como o "trabalho" está para o marxismo, desde uma perspectiva scottiana, seria possível assumir que a "linearidade" está para a psicologia cisgênera de maneira igualmente correlata? A noção de um sujeito que segue uma sequência, que não é contraditório e que organiza o próprio gênero de modo contínuo nos parece ser um dos principais fundamentos que sustenta a patologização das identidades trans e travestis. Scott (1985) questiona: qual foi o lugar do feminino ao longo da história? Aqui, queremos produzir uma torção em sua pergunta, fazendo-a da seguinte forma: qual foi o lugar da diferença na psicologia?
Reconhecendo o modelo de compreensão da transexualidade, que em Frignet (2002) seria o da loucura (transexuais) ou o do engano (transexualistas), como podemos falar de uma história sem partir de uma proposição esvaziada, onde o problema estaria delimitado à "ausência" dessas figuras na literatura, mas não à "presença" das violações frequentes de direitos humanos que foram e permanecem sendo propagadas pela saúde mental? Nossa aposta é, portanto, que a não-historicização da cisgeneridade é capaz de manter o seu poder soberano protegido, invisível, inquestionável. Do mesmo jeito que o gênero enquanto categoria de análise significa pensar como ele produziu distinções sociais, aproximar a psicologia das discussões sobre cisgeneridade implica reconhecer que o cisgênero não é um campo apenas de produção de "eu", mas uma posição identitária capaz de estabelecer o que é e o que não é natural.
O que fez com que pessoas cis se posicionassem enquanto "avaliadoras" e pessoas trans fossem colocadas no lugar de "avaliadas"? As relações de poder estão ilustradas na saúde a partir do momento em que a cisgeneridade passa a ser uma política do sofrimento, e o sofrimento começa a ser a política da clínica. Assim, a realidade social não pode ser colocada de maneira ingênua, naturalizando nosso olhar para uma dominação que não é natural, mas histórica. De outro modo, teríamos o cisgênero (ciência) e o transgênero (política), ou seja, uma história "sobre a diferença" solidária com a invisibilidade da norma.
Parafilia, perversão sexual, histeria, sexualidade antipática, orientação egodistônica, as boas práticas contemporâneas aparentam não recorrer mais a categorias explicitamente psicopatológicas, mas isso não é o mesmo que dizer que a psicopatologia deixou de se envolver com nossas práticas atuais. Discutindo essas amarrações, o sociólogo Jorge Leite (2011) situa como os ideais de uma "cuidadosa avaliação clínica" permanecem sendo colocados pela saúde mental, que continua apostando, agora de maneira sofisticada, nesse imaginário estável, firme e sólido, que aqui seriam as "normas sadias" definidas pela cisgeneridade: crescer e se desenvolver conforme o sexo atribuído no nascimento.
Todavia, Leite (2011) brinca com essa questão ao trazer, em "Nossos Corpos Também Mudam", que os sólidos edifícios da existência humana estão constantemente se alterando, embora, quando direcionada ao "diferente", essa perspectiva de "mudar" soe quase que como se fosse pejorativa. Talvez por isso observemos tantas discussões dos ativismos bissexuais em relação às exigências para que se enquadrem em um paradigma restrito sobre o desejo; pode-se amar/desejar apenas homens ou mulheres. Igualmente, pode-se ser somente aquilo que foi decidido pela natureza - contudo, essa natureza é também fruto de nossa intervenção sobre ela (Butler, 2016).
Prosseguindo, quando falamos sobre um princípio cumulativo, segundo o qual o genital indica o gênero, estamos falando de um tratado normativo sobre o corpo. Meninas se tornam mulheres, assim como meninos se tornam homens. Todavia, não é como se essa leitura desenvolvimentista estivesse aberta a mudanças, pois ela informa a retórica de um acordo civilizatório que tanto mantém quanto é mantido pela cisgeneridade. Em outros termos, um movimento circular que retroalimenta projeções sobre uma suposta linearidade da constituição física, onde o dimorfismo teria garantida a sua maior legitimidade, e o desvio, visto como negativo, precisaria de alguns recursos terapêuticos que fossem capazes de aliviar seu "sofrimento" - tido como um dado a priori - e lhe preparar para uma vida em sociedade.
Ao assumir um compromisso com uma leitura crítica sobre relações de poder entre pessoas cis e pessoas trans e travestis, devemos, simultaneamente, admitir a existência de uma dimensão relacional periférica, que não necessariamente nos parecerá óbvia, nítida, esgotada. É com isso em mente que empreendemos uma investigação que persegue a forma que a patologização se atualiza, reconhecendo que, nos dias atuais, os avanços, naquilo que diz respeito ao campo dos direitos humanos (Yogyakarta, 2007), têm impedido que a nosologia se apresente como costumava se apresentar em sua origem. O que não significa um total desligamento, mas uma discreta continuidade: a cisnormatividade inaugura a passagem de uma patologização categórica para uma patologização silenciosa.
Leite (2011) coloca que, embora termos como "verdadeiro transexual" estejam deixando de ser utilizados, a categoria "disforia de gênero" (DSM-5) e, agora, a "incongruência de gênero" (CID-11), reescreve a gramática da "verdade" como uma gramática do "sofrimento" - que surge na cena da nosologia enquanto um critério diagnóstico, ou seja, abandona-se a fragilidade epistêmica da "verdade", mas ainda há uma aposta em uma substância intrínseca à transexualidade: a dor. Sem a dor, não haveria comprovação. O que tudo isso evidencia é que existe um imperativo decisional cisgênero que solicita do indivíduo: traga-me uma escolha que prove que não houve escolha. A condição estabelecida pelos postulados hegemônicos de gênero é a de que o "sofrer" retira toda e qualquer chance da transição ser algo que cause dúvida ou incerteza.
AGLUTINANDO FORÇAS
Terapeutas são os oráculos do diagnóstico, mas não fazem previsões do futuro. Dedicam-se a encontrar, no passado, algo que Jaqueline de Jesus (2013) chamou de "momento de epifania" - o dia em que o "eu" foi perturbado de sentido, em que foi possível perceber quem se era, em que "tudo" pareceu se encaixar. Essa busca por um marco-zero na história do sujeito faz com que a diferença seja encarada com desconfiança. Ora, apenas se procura saber a gênese quando ela informa um desvio, pois não se busca, ao menos não na mesma frequência, saber quando alguém se "percebeu" ser hétero ou cis. A alguns, inclusive, essa pergunta pode soar completamente impensável, tendo em vista que a heterossexualidade seria, desde uma perspectiva butleriana, conhecida como matriz de inteligibilidade, o que se espera para a coerência entre sexo, gênero e desejo.
Ao refletir as miudezas da patologização, Marco Prado (2018), traz à análise sua experiência no Centro de Referência em Atenção Integral à Saúde Transespecífica (CRAIST). Prado (2018) relata que ter trabalhado como psicólogo em um campo ambulatorial o fez repensar sua vida não-trans. A partir da possibilidade de atender pessoas que, notava, eram cobradas uma autenticidade identitária, passou a afirmar que: "a fúria classificatória de gênero é parte do modo de pensarmos sobre nós mesmos! O desejo de encontrar um terreno para fixar o gênero é sempre uma corrida desenfreada" (p. 25). Sua discussão se inscreve no reconhecimento de que o exercício da "identidade" recai sobre pessoas trans de maneira desproporcional.
Evidentemente, haveria uma qualidade comum ao gênero, que exigiria dos indivíduos algum grau de compromisso com os domínios da masculinidade ou feminilidade, mas nosso entendimento é que, justamente quando tal pacto é quebrado, ou seja, quando a inteligibilidade perde força (Butler, 2016), as tecnologias psis surgem em cena, propondo uma ressocialização do sujeito travesti/transexual. Essa "ressocialização", apontada nos trabalhos de diferentes pesquisadoras (Arán, 2009; Bento, 2006; Teixeira; 2009), visava àquilo que Matthews (1999) cunhou como ideal cisgênero: a confiança em um mecanismo binário em que sexo e gênero estão alinhados. Assim, todos os homens são homens e todas as mulheres são mulheres. Por isso, a crença em "homens que são mulheres" ou "mulheres que são homens" não encontra amparo social, é ininteligível, fazendo com que a ciência se encarregue de categorizar pessoas trans e travestis como doentes (Matthews, 1999).
A partir do ideal cisgênero, o transgênero não existe. Ele é apenas um homem ou uma mulher que está confuso ou enlouquecido (Matthews, 1999), sendo essa uma proposição que nos ajuda a entender as associações entre verdade e sofrimento: responsáveis por constituir um saudosismo na saúde mental. Essas duas categorias se articulam de modo a reintegrar a cisgeneridade ao corpo, uma vez que a suposta coerência entre genital e gênero havia sido rompida. Quando falamos saudosismo, estamos pensando o termo por meio de sua capacidade irônica: protocolos de saúde que lidam com pessoas trans e travestis como se elas fossem ser resgatadas do próprio desvio.
Essa reintegração de posse, que a cisgeneridade busca realizar, parece-nos saudosista por meio das proposições butlerianas (2017), em "Vida Psíquica do Poder", quando a autora traz que haveria uma renúncia à homossexualidade que exigiria uma identificação com a própria homossexualidade condenada: "não como seu objeto externo, mas como sua fonte de sustento mais preciosa" (p. 126). Ao renunciar a homossexualidade, paradoxalmente, ela seria fortalecida enquanto poder de renúncia, ou seja, uma perda não pranteada, incorporada pela mesma heterossexualidade que não a deixaria ir. A aposta de Butler (2017) é que o gênero poderia ser compreendido como a atuação de um "luto" não resolvido.
Se o gênero masculino se formasse "a partir da recusa de prantear o masculino como possibilidade de amor" (p. 129), seria possível afirmar que a cisgeneridade, ao renunciar à "mentira" do gênero, preserva as identidades trans como uma memória-esquecida de sua própria falsidade? Ao exigir que aqueles que rompem o sistema sexo/gênero comprovem suas autenticidades existenciais, com laudos, perícias e processos jurídicos, há, em algum nível, uma atitude fóbica em relação ao caráter opaco do gênero? Essa identificação feita e renegada, que Butler (2017) chamou de lógica do repúdio, assegura que os resíduos heterossexuais sejam mantidos justamente pela defesa de uma identidade gay apreensível e bem delimitada.
Não causa surpresa, portanto, descortinar o longo processo de inserção das transexualidades, travestilidades e transgeneridades no rol de patologias mentais, conforme categorias universalizantes, previsíveis e controláveis. Todavia, haveria um certo "custo de articular uma posição de identidade coerente ao produzir, excluir e repudiar um campo de espectros abjetos que ameaçam o campo arbitrariamente fechado das posições do sujeito" (Butler, 2017, p. 132). Tal custo, em determinados aspectos, seriam melhor ilustrados pelo vício etiológico que a cisgeneridade estabelece com a diferença, com sua persecução a um dado de verdade que valide aquele corpo.
Consequentemente, poderíamos arriscar que tal "procura" comunica uma fuga nostálgica dessa hegemonia que, incapaz de se deparar com a própria incoerência, vê na iconografia "trans" um símbolo de perigo: a reminiscência de um conflito não resolvido, não esgotado e não estável que é a própria identidade. Afinal, qual seria a razão para o questionamento etiológico acerca da origem da cisgeneridade ou da heteressexualidade não parecer tão atrativo ou óbvio quanto as buscas por um fator "capturável às escutas" que legitime LGBTs? Enquanto dizem "o corpo é sacro", dizemos "o corpo é perecível" - e isso, aparentemente, denuncia o funcionamento neurótico da patologização.
O ideal cisgênero, embora falhe, não cessa suas tentativas de reintegrar posse. Algo que exige o reconhecimento de que a patologização que observamos agora não é a patologização presente no território estadunidense dos anos 60 e 70. Ora, se a despatologização se tornou um movimento político voltado a pensar questões que, para nós, atualmente, estão mais ou menos assentadas, então seria interessante indagar se estamos apreendendo o fenômeno em sua metamorfose ética. Seria possível, então, reconhecer que dentro dessa própria bandeira despatologizante existiriam questões que seriam de teor psicopatológico? Se sim, quais são as imagens que esse processo dá indícios de querer resgatar? Busca-se a volta do homem másculo e da mulher submissa?
A mirada nostálgica implementada pela psicologia cisgênera se lança em direção aos valores sobre o corpo. Haveria um "eu" ideal localizado no passado, nessa era da pré-medicina, da pré-modernidade, onde o gênero ainda não havia sido intercambiável (Arán, 2006). Esse corpo dimórfico, binário, que é complementado por outro corpo que lhe faz oposição, apesar de ter, sim, relação com as categorias "verdade" e "sofrimento", denuncia também uma suposta "estabilidade" que a saúde mental parece estar recordando com pesar. Exigem, então, que pessoas trans saibam quem elas são, a partir dos processos de avaliação psicológica supracitados, como se "saber quem se é" fosse a garantia de que a cisgeneridade não está sob ataque.
Contudo, pessoas cis passam ciclos inteiros de suas vidas sem pensar sobre si mesmas, mas, ao mesmo tempo, requerem que pessoas trans e travestis pensem constantemente acerca do próprio "eu" - é como se o gênero do "transgênero" representasse a neurose projetiva da cisnorma. Amara Rodovalho (2016) aborda isso ao dizer que "é como se, para as pessoas cis, nunca houvesse de fato esse start, esse estalo" (p. 26). Segundo a autora, às pessoas trans e travestis a possibilidade de "não pensar" sobre a própria condição está negada, pois a sociedade não lhes deixa esquecer disso em momento algum (Rodovalho, 2016). Essa mesma questão já foi apontada também por Jesus (2013), ao pesquisar sobre as marcas deixadas pela lembrança de não se identificar com o gênero atribuído socialmente.
Parece-nos, de certo modo, que esse "momento" não está distribuído igualitariamente no terreno do gênero e da sexualidade, uma vez que somente à diferença é cobrado tal "dar-se" conta. Evidentemente, poderíamos analisar que a força dos discursos médicos, psiquiátricos e psicológicos não pesaram sobre o "normal" da mesma forma que incidiram sobre o "anormal", como aponta Brune Bonassi (2017). Assim, os ideais regulatórios criam efeitos de lisura, responsáveis por fazer com que a cisgeneridade deixe de entrar em contato com seu próprio artifício (Bonassi, 2017). Sem espanto, pessoas trans e travestis foram e continuam sendo classificadas como meias-pessoas, mulheres de mentira, homens falsos, imitações. As violentas repercussões do ideal cisgênero produzem lesões subjetivas (físicas e psíquicas), mas também sociais, por interferirem diretamente na cidadania daqueles a que se referem conforme "anomalias".
Patologização precisa ser um processo compreendido através de suas diversas camadas, não se tratando meramente de um juízo de valor, todavia, sim, de um esboço de humanidade que administra a diversidade como uma subsunção de dada referência principal (Moura, 2010). O autor continua sua crítica, propondo que "uma formulação assim radical de um projeto de reflexão aponta para bem mais que o estabelecimento da diversidade cultural - ou multiculturalismo e interculturalismo - como mais um modismo" (p. 323). Dessa forma, pensar um horizonte despatologizante não é um compromisso que nos situa apenas na retirada do rótulo de doença para dado gênero, em uma lógica panfletária, outdoor, mas que nos convoca a reposicionar as relações de poder entre pessoas cis e pessoas trans/travestis.
Para isso, seria preciso assumir a possibilidade de uma dor não diagnosticada, pois "despatologizar significa compreender o que o outro compreende" (Prado, 2018, p. 52), o que nos coloca o desafio de uma clínica afastada do repertório da nosologia. Entretanto, esse afastamento não tem se dado com facilidade, tendo em vista o caráter ontológico da própria escuta clínica, fazendo com que a psicologia não consiga abrir mão facilmente da sua relação harmônica com a psiquiatria. Em repertórios atuais sobre gêneros, como seria o caso dos Guidelines for psychological practice with transgender and gender nonconforming people da Associação Norte-Americana de Psiquiatria (APA, 2015), é possível entender melhor o que seria essa relação, impressa na ideia de uma "afirmação de gênero".
De acordo com as mesmas diretrizes (APA, 2015), existiria um recente encorajamento à afirmação e aceitação da identidade de gênero da pessoa atendida. O que aparece como afirmativo, em tais diretrizes, é a crença em uma abordagem exploratória capaz de ajudar pessoas trans a desenvolverem "estratégias de enfrentamento e ferramentas emocionais para integrar uma identidade TGNC positiva caso o questionamento sobre o próprio gênero persista" (p. 28). Convém mencionar a atualização de categorias como "disforia" e "incongruência", que passam a atender à expressão "pessoas trans e em não conformidade de gênero" (TGNC).
No ínterim dessa exploração, surgem, então, as cirurgias de afirmação sexual, assim como as terapias hormonais afirmativas, inseridas na lógica de uma intervenção médica que nos leva a considerar que a "afirmação" estabelece um compromisso com a coerência da identidade transexual. Caso tomemos a definição do Dicionário Online de Português (Dicio, 2020), quando afirmamos algo: dizemos com firmeza, assumimos o caráter de verdade daquilo que é dito. Seria uma forma de colocar, em outros termos, pessoas trans e travestis sob suspeita? Afirmar, parece-nos, portanto, similar a corrigir, integrar. Sua utilidade é interessante à atualização cordial que a patologização reivindica, pois o que se afirma é uma vida masculina ou feminina, dimórfica, dual - onde a não-binariedade seria entendida como uma combinação desses dois campos, mas não um campo por si só. Justamente por causa da cordialidade, não se fala mais em um corpo mutilado, mas de um corpo curado, que afirma, controversamente, um gênero cisgênero... só que transgênero, de segunda classe.
O propósito seria evitar que sofram um atraso desnecessário para quem estivesse "pronto" para dar seguimento à sua própria transição, desde parâmetros que ilustram a grave desconfiança das equipes de saúde com as demandas de pessoas trans e travestis. Em contrapartida, o transfeminismo propõe outros tipos de suspeição: desconfiemos da ideia de natureza unívoca, das (auto)atribuições fixas, dessa clínica alarmista, catastrófica, que distingue transições entre as variáveis "sucesso" e "fracasso". Seria possível, ao invés de restringir possibilidades, aglutinar forças que estimulem saídas mais criativas do que a repetição de um arquétipo totalizante? Que sejam capazes de avolumar nossas esperanças em uma cisgeneridade pranteada, ou seja, que não mire a diferença com repúdio. Sobretudo, que não busque fazer com que as coisas voltem a ser como foram um dia, reencenando a discriminação que tem sido combatida por coletivos diversos ao redor do globo.
SABER, ESCOLHER E AFIRMAR: O FIM DE UMA VERDADE?
A passagem feita por pessoas trans e travestis na psicologia, de "terapeutizadas" à posição de terapeutas, têm produzido alguns necessários desconfortos. Conforme buscam fazer debates transfeministas avançarem, setores mais ligados a uma história positivista da profissão indicam situá-los como questões externas à ciência. Assim, fortalece-se um antagonismo epistêmico, incapaz de acompanhar o reposicionamento que perspectivas queer, feministas, negras têm exigido da saúde mental, ao não responder às diferentes demandas dos marcadores sociais.
Consideramos a relutância psicológica em dialogar com tais pontos de vista uma reescrita de lugares de assujeitamento na clínica, pois prolifera a ideia de que o "desvio" só tem um lugar garantido na produção de conhecimento desde que ele esteja localizado enquanto paciente, sujeito passivo, analisado. Assim, a psicologia dá indícios de continuar partindo de um entendimento psicopatológico, tendo em vista a pretensão de pensar uma noção de cuidado que, embora desconectada de uma caricatura psiquiátrica, permanece atualizando crenças sobre uma transexualidade tutelada, avaliada e observada: é a equipe que permanece ditando o momento de estar pronto/a/e.
Somam-se a essas questões os anúncios de boas práticas, geralmente ligadas à "invenção" de novas psicologias, algo que precisaria ser explorado com maior generosidade. Ora, dizer que uma prática é "afirmativa" faz com que ela esteja, de fato, conectada às demandas políticas de pessoas trans? Uma dita psicologia "antirracista" é o suficiente para garantir uma conduta de questionamento às desigualdades raciais brasileiras? Como é que a anunciação de uma psicologia "feminista" sustenta uma crítica aos postulados sexistas de maneira profunda? Ao mesmo tempo, observa-se uma série de ataques a essas psicologias, como se elas fossem "adjetivadas" - logo, mais fracas, insalubres, menos importantes e distantes das discussões centrais. Precisamos (des)aprender os autoritarismos biomédicos, conforme Rodrigo Borba (2016) sugere, para sobreviver ao mundo de agora.
Os ataques a psicologias adjetivadas costumam, todavia, partir de uma psicologia que se considera irrefutável, ahistórica e apolítica. Dessa forma, a necessidade de entendermos a patologização contemporânea da transexualidade, que se dá inclusive pela defesa à despatologização, é fundamental para mobilização de nossos olhares a uma constituição cisgênera dos processos de trabalho clínico. Evidenciar, assim, uma psicologia cisgênera é dizer de uma psicopatologia complacente, capaz de se adaptar aos embates do seu próprio tempo, indicando que a patologização não se dá mais a partir de uma violência conhecida, catalogada por diferentes pesquisas ao longo dos últimos anos. Pelo contrário, denunciar as cisnormatividades psicológicas significa assumir um compromisso com os "pormenores" da tradição biomédica, desde que, evidentemente, tal compromisso nos lance diante da urgência de refletir: como é que o ideal de sujeito "autêntico", "verdadeiro" e "preparado" segue guiando o limiar de uma psicologia mainstream?
Talvez não seja possível atribuir autenticidade ao gênero, e ele seja sempre a imitação de uma repetição imitativa (Butler, 2017). Talvez não exista uma verdade que nos oriente, pois o máximo que conseguiremos é uma posição identitária provisória (Murta, 2007). E talvez não haja mesmo reparação, tendo em vista a existência de coisas impossíveis de serem corrigidas (Lionço, 2009). Por que a mera alternativa de abandonar uma leitura hostil sobre a "diferença" ameaça tanto nossas clínicas? O desafio, caso desejemos enfrentá-lo, está em conjugar novos saberes à difusão de uma saúde mental interessada em paradigmas éticos e políticos menos hierárquicos, considerando que, por trás disso, há um cenário visivelmente nostálgico e nostalgicamente invisível: a visão de "eu" que a cisgeneridade ainda tenta emplacar como universal.
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Submissão: 15/10/20
Revisão: 15/04/2021
Aceite: 17/04/2021
Financiamento: Não houve financiamento.
Contribuição dos Autores:
Concepção: SF; MBM.
Coleta de dados: SF; MBM.
Análise de dados: SF; MBM.
Elaboração do manuscrito: SF; MBM.
Revisões críticas de conteúdo intelectual importante: SF; MBM.
Aprovação final do manuscrito: SF; MBM.
Consentimento de uso de imagem: Não se Aplica
Aprovação, ética e consentimento: Não se Aplica