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versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito v.9 n.9 Salvador  2008

 

PSICANÁLISE E ARTE

 

As configurações do corpo na cena artística contemporânea

 

 

Eliana Rodrigues Silva*

 

 


RESUMO

A autora faz aproximação entre o corpo e a alma em sua dualidade inseparável. Sendo o corpo o reflexo da alma, a história pessoal, social e da cultura tornam-se também possibilidades de expressão artística. Temos, então, o corpo na pintura, na escultura, na poesia e na dança.
Passando por uma visão histórica da arte, com especial ênfase na dança, desde a antiguidade ao moderno, chega à questão da exploração artística na virada do século..

Palavras-chave: História da arte; Estética; Corpo; Dança.


 

 

Começo a minha fala citando o filósofo Alan: Todos os estados da alma se passam no corpo e em concordância com a forma corporal. Não existe então alma separada do corpo. (Alan)

Mais que isso, podemos dizer que o corpo é fenômeno que funda o humano e é marcado, modelado pela experiência social, através de aprendizagem complexa que envolve todos os domínios da experiência humana, seja ela física, mental, espiritual e emocional.

O corpo não só é reflexo dos estados da alma, mas da história pessoal e social, do ambiente e num contexto maior, da cultura. Como o espírito do tempo está inscrito na arte, podemos facilmente afirmar que as imagens corporais representadas ao longo da história nos dão sinais importantes dessa contextualização.

Consideremos arte pré-moderna como toda manifestação artística registrada desde os primórdios da Era Paleolítica até a revolução artística denominada de modernismo na virada do século XX. Até essa época podemos facilmente observar que a unicidade e a continuidade seriam suas características mais marcantes.

A harmonia da obra — fosse ela uma pintura rupestre, uma estátua grega ou um quadro barroco —, seguia estratégias especificamente definidas de seqüência, equilíbrio ou perspectiva, por exemplo, acompanhando cânones de uma beleza ordenada e tranqüila. A obra, então, completava-se em si mesma e poderia ter uma função prática, como no caso da cerâmica pré-histórica, uma finalidade ritualística como nas civilizações antigas, ou era produzida com o simples intuito de ser contemplada.

A arte nas sociedades primitivas tinha características ritualísticas. Desenhar um bisão e uma figura humana na pedra, provavelmente, não conotava interesses estéticos, mas práticos. Presume-se que caçadores realizavam essas pinturas para adquirir poder sobre elas.

Essa arte de características rituais continua a manifestar-se em civilizações posteriores como, por exemplo, no Egito. O corpo representado aí combinava uma aguda observação do homem, embora numa regularidade geométrica, representada principalmente em túmulos e na estatuária.

No entanto, é a partir do século VII a.C. que a Grécia, ainda sob o domínio de Creta, vai provocar uma profunda revolução na filosofia, nas ciências e especialmente nos ideais de beleza artísticos. O corpo era representado na sua plenitude. Diferentemente da pintura chapada dos egípcios, os artistas gregos aprenderam a confiar nos seus próprios olhos e permitiram-se desenhar e esculpir o corpo humano em qualquer posição e sob qualquer ângulo.

Belíssimas esculturas do homem são produzidas com todos os ideais de força majestosa, grandeza, sabedoria e dignidade incorporadas não apenas na sua forma, mas também na sua expressão. É o reino do belo que começa a delinear-se, expresso, por exemplo, pela magnífica escultura O Discóbolo de Myron e no Hermes Com o Jovem Dionísio, de Praxíteles. Segundo Sócrates, “Era o corpo e seus movimentos que esses mestres usavam para expressar a atividade da alma...”.

A civilização grega foi de fato o berço da cultura ocidental. Foi uma civilização que procurou os ideais de liberdade, de otimismo, de glorificação tanto do corpo como do espírito e de grande respeito pela dignidade e mérito do indivíduo.

Em torno de 311 d.C., o Imperador Romano Constantino instituiu a Igreja Cristã com poder de Estado e a arte, presente nos murais dos templos e basílicas, toma uma feição mais rigorosa. As imagens do corpo na época, principalmente na pintura, obedeciam regras rígidas e apenas representavam a vida de santos, dos mistérios e dos milagres da religião. Um bom exemplo da arte praticada nessa época é O Milagre dos Pães e dos Peixes, mosaico da Basílica de Santo Apolinário, em Ravena, cerca de 520 d.C. Certamente este exemplo não pode ser comparado ao brilhantismo que alcançou a arte grega em relação à representação do corpo.

Após a queda do Império Romano de 500 até 1000 d.C., a Europa mergulha no que se chamou de Idade das Trevas, devido às muitas guerras, privações, migrações e pestes vividas pelo povo. Foi um período bastante longo onde se observa o declínio das civilizações antigas e conseqüentemente da sua arte.

Nessa época, como a Igreja reinava absoluta, toda a arte que porventura se desenvolvesse, estava ligada diretamente a ela. A arte escultórica, por sua vez, perdera a leveza e as figuras religiosas que decoravam os templos lembravam um pouco a rigidez das formas egípcias.

A simbologia intrínseca na forma vertical das construções góticas nos indica com clareza a idéia do poder absoluto da Igreja. Aos homens era necessário sempre aspirar ao reino dos céus, buscando enaltecer-se pela virtude e afastar-se dos prazeres e pecados terrenos. A forma das igrejas com seus tetos altíssimos, suas ogivas em ponta e a luz celestial que entrava através dos seus belíssimos vitrais, remetiam a toda essa ideologia religiosa, que dava aos fiéis a impressão de um mundo diferente, longe das misérias cotidianas. Esse ideal está belamente exemplificado na Catedral de Köln na Alemanha.

O pintor florentino Giotto di Bondonne (1266-1337) conseguiu quebrar o conservadorismo dos murais e afrescos sobre a vida de Cristo nas igrejas góticas e conferiu emoção na expressão corporal das figuras, o que foi uma grande inovação. A Lamentação de Cristo, belíssimo mural da Capella dell’Arena em Pádua, mostra figuras com uma expressão pungente.

A partir do século XI, um interessante fenômeno começou a mudar substancialmente o caráter das danças populares praticadas entre os camponeses. Na ocasião dos funerais de alguém, subitamente as pessoas começavam a cantar e dançar freneticamente, perturbando os serviços religiosos. O frenesi era contagioso e, aos poucos, um bando de pessoas estava como que em êxtase, formando enormes procissões onde gritavam, cantavam, atiravam-se ao chão e autoflagelavam-se, como uma forma de expurgar os seus demônios. Fatos como esse começaram a acontecer na Alemanha, na Inglaterra e na Itália, alastrando-se posteriormente por quase toda a Europa, prolongando-se até meados do século XIV, com registros históricos e pictóricos abundantes.

As danças macabras ou danças da morte, como eram chamadas, não eram graciosas, não tinham caráter de entretenimento nem de espetáculo. Eram manifestações com participação direta dos camponeses e o que é revelado nessas danças não é o paganismo, mas um pedaço da vida extática interior, que desde a Idade da Pedra tinha sido disfarçada e ocultada através de inúmeros influxos raciais, mas que na verdade nunca foram extintos, e que deviam explodir no momento que fosse favorável. E, sem dúvida, nada mais favorável do que um tempo em que a Inquisição, as pragas, a miséria, as cruzadas e longas guerras eram parte do cotidiano.

No século XIV, as cidades já se haviam transformado em centros comerciais, mais independentes da Igreja e dos senhores feudais, especialmente no norte da Itália, proporcionando o desenvolvimento de uma burguesia com preferências artísticas mais refinadas, surgindo assim o Renascimento.

O movimento proporcionou uma nova visão humanística da realidade em oposição à glorificação do divino, voltando seu interesse para os princípios da cultura greco-romana, identificando a arte como propósito moral além de estético e, naturalmente, o corpo volta ser representado com padrões de beleza nobre.

Um bom exemplo dessa ideologia está presente nas obras de Sandro Botticelli (1446-1510), que escolheu misturar fantasia e realidade pintando mitos clássicos e criando a técnica da transparência com rara beleza, como é o caso, por exemplo, de O Nascimento de Vênus (1485). É notável nessa obra a representação do corpo dentro dos ideais de beleza clássica grega.

Sem dúvida é Leonardo da Vinci (1452-1519) o grande gênio intelectual e artístico desse período. Pesquisador e estudioso por excelência, Da Vinci nos deixou um surpreendente legado de conhecimentos através dos seus manuscritos sobre anatomia, geofísica, geologia, ótica, astronomia, metalurgia e naturalmente pintura e desenho.

Nesse período, no entanto, surge na Holanda um pintor que não se enquadraria em qualquer estilo: Hieronimus Bosch (?- 1516), artista considerado surrealista avant la lettre (antes do seu próprio tempo). Foi ele o único artista que conseguiu expressar os horrores e medos que povoavam a mente dos homens da Idade Média. É o precursor do surrealismo, movimento que só viria de fato surgir muito tempo depois no século XX, com Salvador Dali, que representa imagens oníricas e todo poder do automatismo inconsciente. Seu famoso tríptico Jardim das Delícias (1510) faz de Bosch o fotógrafo do apocalíptico, da alquimia e da feitiçaria. Nesta obra misturam-se enigmas e hieróglifos, monstros e seres híbridos, justaposições irreais e símbolos da obsessão sexual, enfim, tudo aquilo que perturbava o espírito religioso. Esse é um excelente exemplo da representação do corpo nos seus aspectos inconscientes, o que era inconcebível para a época.

A partir do momento em que as danças populares foram trazidas para a corte no século XV na França e Itália, passando a ser entretenimento de nobres, a dança começa a tomar feições de espetáculo. O termo “ballet” do italiano ballare, (que significa bailar, dançar) começava a ser usado. O Ballet de Corte era uma fórmula de mídia mista na qual a poesia, a pintura, a música e a dança desempenhavam papéis iguais. A arte era considerada uma manifestação de poder e majestade e não se poupavam esforços ou dinheiro para preservar esse status.

O mais famoso dançarino dessa época, sem dúvida, o vaidoso Rei Louis XIV, que tinha duas grandes paixões: a dança e si próprio. Apenas aos treze anos já dançava diante da corte e em 1653, apresentou-se como estrela do suntuoso Ballet de la Nuit (Balé da Noite), vestido de sol, sendo, daí em diante, denominado Le Roi Soleil (o Rei Sol). Em 1661 o Rei Sol criou a Academia Real de Dança, uma organização profissional, que originou a Opéra de Paris.

O antropocentrismo, o homem fechado em si e dono do seu destino, o otimismo sem excessos, a arte minuciosa e a técnica do Renascimento são substituídos pela natureza transitória, pelo excesso festivo, pelo teocentrismo e maneirismo como estética estilizada do Barroco.

A Igreja Católica tentava recuperar o espaço perdido para os protestantes e usava a arte para seduzir seus fiéis. Por isso, as igrejas eram cobertas de anjos rechonchudos e tetos folheados a ouro.

Lorenzo Berini (1598-1680) criou uma das mais belas obras barrocas na pequena capela romana de Santa Maria Vitória que é A Visão de Santa Teresa, provavelmente concluída em 1647. Essa maravilhosa obra descreve o momento de êxtase celeste, quando um anjo trespassa o coração da santa com uma flecha e ela se vê sendo lançada para o alto em direção aos raios dourados, numa magnífica expressão de dor e sensualidade.

O barroco marcou o início das artes plásticas no Brasil e da construção de uma identidade luso-brasileira. Aqui, o estilo moldou-se pelas mãos dos mestiços, que criaram imagens de santos com olhos puxados, lábios sensuais e feições morenas. A estética progrediu no rastro dos ciclos econômicos. Começou na antiga capital, Salvador, estendendo-se para Pernambuco, Minas Gerais, Rio de Janeiro e finalmente transferindo-se para São Paulo.

Na Europa, após a Revolução Francesa no final do século XVIII, abre-se um leque de possibilidades primoroso para a criação artística, podendo a arte versar sobre temas de cunho político, heróico, social e propagandista. Um belo exemplo deste espírito está retratado no quadro Marat Assassinado de Jacques Louis David (1748-1825), considerado então o artista oficial da Revolução Francesa.

A expressão da individualidade é Paris, o centro difusor de criatividade para a Europa. O romantismo, que se estabelece a partir de 1820, tem como características mais evidentes a ênfase em valores emocionais e nacionalistas e profunda admiração pela natureza.

O contexto histórico do balé romântico teve na poesia, na literatura, na música e na pintura uma moldura perfeita para o seu desenvolvimento. O etéreo e o exótico encontraram no palco o lugar perfeito para expressar-se. A morte, particularmente o suicídio, a morte por amor ou por doenças como a tuberculose era a forma preferida para o final trágico dos heróis da literatura e da ópera.

A grande musa do balé romântico foi Marie Taglioni (1804-1884), bailarina italiana. Alva, de figura frágil, cabelos negros e mãos expressivas, tornou-se a figura suprema do ideal romântico na dança e para ela foi criado o balé La Sylphide (1831).

A maioria dessas obras descreve estórias fantásticas com personagens reais, camponeses e príncipes que contracenam com seres etéreos, fadas, elfos e cisnes, sempre expressando a dualidade real versus ideal, carnal versus espiritual, vida versus morte. A Morte do Cisne, um simples solo de 2 minutos, coreografia de Michel Fokine e música de Saint Saens, é o melhor exemplo do ideal romântico no balé.

O movimento corporal que imita um cisne, eleito pelos poetas como símbolo romântico, o timbre melancólico de um violoncelo, o figurino alvo e com plumas e o cenário esfumaçado, dando a impressão que a bailarina flutua, e a interptretação apaixonada da bailarina contribuem para a imagem do ideal romântico, onde o etéreo, a melancolia e a morte dimensionavam o verdadeiro conceito de beleza artística da época.

Com o advento da fotografia, o mundo da arte começou a ver a vida e a figura do corpo de uma forma diferente, especialmente nas possibilidades infinitas de ângulos inesperados. Auguste Rodin (1840-1917) extraía tremenda expressividade da escultura sem acabamento, como se as figuras emergissem da própria pedra.

A temática escolhida pelas artes que vigorava até então, tornou-se inútil para expressar as agruras de um mundo moderno, com suas guerras, seus avanços científicos e sua urbanização. Não era mais possível, na virada do século, perante tantas mudanças sociais, científicas e econômicas, produzir uma arte ilustrativa, com finalidade apenas de fruição estética.

O impressionismo pode ser considerado como o primeiro movimento modernista da arte que vem, a partir desta época, buscar novos padrões de expressão. O cubismo, que a partir de 1907 foi um dos mais importantes movimentos modernistas, iniciou a fase de destruição da figura humana, reduzindo-a a uma geometrização, exprimindo solidez e volume, como na obra de Picasso e muitos outros. Sem dúvida foi o cubismo, pela sua representação de idéias, o movimento impulsionador da estética do século XX.

O surrealismo, a partir de 1924 em Paris, desenvolvido por Salvador Dalí e René Magritte, enfatizava o automatismo psíquico puro, numa franca desobediência aos ditames da razão ou de qualquer estilo anterior, de certa forma procurando insultar a sensibilidade burguesa, com suas figuras grotescas e conotações abertamente sexuais. As configurações corporais nesse período são ficcionais e oníricas como podemos observar na obra de Dali e mais adiante nas imagens criadas por Frida Kahlo.

O expressionismo, surgido em Berlim em torno de 1910, movimento que congregou um grande número de artistas, procurava evocar a condição humana na sua plenitude, com tudo que pudesse expressar de amarguras, dramas e sofrimentos. Um exemplo claro desta corrente é o quadro O Grito de Edvard Munch (1863-1944).

A Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, introduziu na cultura artística brasileira uma concepção vanguardista que abria espaço ao novo e ligava-se a uma corrente nacionalista de mensagem social. Na pintura destacaram-se Anita Malfatti (1889-1964), Emiliano Di Cavalcanti (1897-1976), Tarsila do Amaral (1897-1973), Cândido Portinari (1903-1962) que pontuavam nas suas obras importantes aspectos da corporeidade brasileira, como vemos num do quadros da série Trabalhadores Rurais do Café de Portinari.

E o corpo na dança moderna, como se configurava? Por volta do início do século XX, indo de encontro à insipidez e ao academicismo da escola clássica. O mundo enfrentava a 1a grande guerra e já não era mais possível dançar sobre um mundo de fantasias, fadas e príncipes, mas sim sobre a verdadeira condição humana, suas vitórias, fracassos e angústias.

O vocabulário de movimentos muda. O uso do centro do corpo como propiciador do movimento, os pés descalços, o uso do chão não apenas como suporte, mas onde os dançarinos podiam sentar ou deitar e principalmente a utilização de uma dramaticidade mais direta oriunda do movimento, da temática e dos personagens, em oposição ao lirismo considerado superficial do balé clássico, foram alguns dos traços que definiram a filosofia criativa.

Isadora Duncan (1878-1927) foi a primeira artista a rebelar-se contra a estética e os princípios rígidos da dança clássica. Duncan abriu o caminho para várias gerações de coreógrafos e dançarinos, até hoje, cujo objetivo artístico tem permanecido o mesmo: expressar através do movimento a verdade interior do ser humano, distanciando-se de toda fantasia e artificialidade da expressão clássica.

Uma das suas seguidoras foi Martha Graham (1894-1991). Seu senso de teatralidade, a vontade de tornar visível o mundo interior do ser humano unido a uma técnica apurada, tornaram-na um mito da dança moderna. No curso de sua longa carreira Graham, criou trabalhos com forte conteúdo psicológico, sempre a partir de temas e lendas gregas como Medeia, Clitmenestra e outras. O corpo na sua dança era intenso e de expressão facial pungente.

O movimento pós-moderno nas artes, a começar pelo seu nome, já indica uma série de questionamentos de peso. O debate abriga inúmeras posições definidas: as que combatem a existência do movimento, as que o julgam como um desdobramento do modernismo, outras que defendem a idéia de que é uma reação à corrente anterior, outros que o definem como combinação de conceitos de várias épocas e ainda as que insistem em classificá-lo como um intervalo, como preparação para o movimento que ainda está por acontecer. Não há consenso de opiniões.

O pós-modernismo estabelece-se não apenas no domínio estético mas instala suas influências também nas áreas intelectual, acadêmica, cultural e especialmente na esfera do comportamento e práticas cotidianas.

A percepção da realidade sob o domínio constante da imagem, onde a velocidade, o vídeo-clip e a informática determinam soluções visuais ininterruptas e fragmentadas, de fato traduz o surgimento de uma forma nova de pensar. A velocidade da imagem por si mesma consegue atingir resoluções que nem as estruturas de pensamento ou linguagem são capazes de acompanhar. Somos bombardeados diariamente com imagens descontextualizadas e em grande velocidade. A arte pós-moderna reflete essa realidade.

Na trajetória da dança, nessa época observa-se que, a dramatização excessiva dos enredos na Dança Moderna e seus conteúdos marcadamente psicológicos, findaram por exaurir tanto a platéia como os criadores. Em meados dos anos 40, Merce Cunningham, ex-solista da companhia de Martha Graham, afastava-se do drama e da narrativa e começava a trabalhar com manipulações do movimento puro.

Não havia naquele momento sequer a intenção de tornar a dança expressiva, pois o que realmente importava era exibir o corpo e seus movimentos cotidianos, sem virtuosismos. Este era o objetivo principal: chamar a atenção para o corpo, mais especificamente para como o corpo se movimentava.

Yvonne Rainer, coreógrafa americana contestou de forma radical os conceitos da dança clássica e moderna. Suas coreografias ficaram famosas por mostrar sempre o corpo cotidiano. Uma de suas coreografias, Room Service (1963), consistia em dançarinos carregando um grande colchão de um lado a outro do palco no intuito de mostrar como o corpo reagia e se comportava numa ação funcional e simples. Esse trabalho foi uma elegia à inteligência corporal e às suas ações, normalmente automáticas e ignoradas no dia a dia. Dessa forma, o dançarino tornava--se facilmente espelho do seu espectador e a impressão que se tinha era a de estar assistindo à vida cotidiana não uma coreografia.

A década de oitenta, fase denominada era do bricolage, sustentou a interdisciplinaridade e a ousadia na experimentação, quando coreógrafos e dançarinos buscaram no teatro, na mímica, na acrobacia, na esgrima ou no canto, por exemplo, técnicas de enriquecimento para suas performances. Além disso, acontece também uma abertura interessante para os valores morais, culturais e estéticos da cultura oriental. A busca pelo conhecimento de filosofias e práticas como o Taoísmo, o Budismo, das artes marciais, do Tai Chi Chuan, da meditação e do I Ching, abriu uma imensa rede de possibilidades para o corpo e sua representação.

Pina Baush, coreógrafa alemã, foi uma figura importante que se firmou nesse período, e como um dos marcos da dança do nosso XX que continua atuando e surpreendendo. Bausch vem desenvolvendo um repertório rico, com peças de conteúdo marcadamente psicológico, versando sobre a condição humana, construindo cenas a partir das experiências reais dos dançarinos. Bausch tem afirmado em entrevistas que seu interesse primário não é em como o corpo se movimenta, mas sim O QUE movimenta o seu corpo, vindo do seu interior. Seu processo de trabalho sustenta perfeitamente esta idéia. Longos ensaios e laboratórios onde a coreógrafa faz perguntas aos seus dançarinos que vão respondendo através de suas próprias histórias, referências e gestos, são o material básico para suas criações: os dançarinos estão ali interpretando a si mesmos.

A década de noventa encontra na dança uma afirmação das narrativas com enredo dramático único e as coreografias apresentam sempre o corpo nos seus limites, sejam eles físicos ou psicológicos. Instala-se assim uma nova corporalidade nas artes cênicas de imensa multiplicidade. Vocabulários ecléticos, estilos dos mais variados, e abordagens muitas vezes chocantes, permitiram um novo jogo de imagens e temáticas. Cada performance tinha uma lógica própria e não há como unificar qualquer conceito ou técnica do corpo. Seria como se cada coreógrafo, a cada montagem, estabelecesse a feitura do corpo de seu elenco de acordo com a sua proposta e, principalmente, de acordo com as singularidades de cada intérprete.

O grupo inglês DV8, que num jogo de palavras quer dizer em inglês deviate (desviar), dos mais atuantes desde o início dos anos 90, reflete nas temáticas escolhidas a crueza e brutalidade da vida contemporânea, em especial dos comportamentos rotulados como desvio de conduta. Imagens chocantes põem em xeque emoções humanas, como solidão, desespero, ódio, inveja, ciúme ou angústia com potente teatralidade e verdade.

Win Wandekeybus, coreógrafo holandês, em Mountains Made of Barking (1996), coloca um cego como solista e explora, nos outros dançarinos, movimentos limítrofes em explosão e velocidade dinâmica.

Se a dança moderna, por exemplo, trazia de bandeja uma série de gestos e posturas expressivas e facilmente identificáveis para a leitura do espectador, a dança pós-moderna, especialmente agora, é mais metafórica, pois isola os elementos do gesto e do corpo em unidades menores de percepção.

O corpo, tal como se apresenta a partir daí em alguns trabalhos coreográficos, perpassa muitas possibilidades. O corpo fragmentado, jogado ao chão, lançado no ar, aparentemente desconexo, a velocidade extrema atingida pelos movimentos frenéticos, o solista cego, dançarinos leigos, a ironia e humilhação psicológica oferecidas nas imagens criadas por Pina Bausch, mostram com clareza uma ampla permissividade.

Quero ressaltar uma das criações mais surpreendentes da permissividade inusitada dos nossos tempos que está representada pelo trabalho do grupo inglês Candoco , que num interessante jogo de palavras, significa a companhia do poder fazer. Este grupo, que trabalha em Los Angeles, tem, no seu elenco, dançarinos paraplégicos, que interagem com outros de maneira surpreendente. A princípio, a visão de um deficiente num trabalho de dança pode chocar, mas devido à qualidade desse trabalho passa-se a perceber o corpo que dança e não o “corpo deficiente” que dança. Essa é a nova permissividade do nosso tempo.

Outra faceta importante da nova corporalidade da dança dos anos noventa é a maneira como as questões sobre a sexualidade são abordadas claramente nas criações artísticas. No balé clássico, a bailarina era um ser etéreo, sem gênero definido, inatingível e conseqüentemente assexuado, sendo o bailarino apenas um suporte técnico para enfatizar essas características.

Na dança moderna, conotações eróticas mais explícitas eram suprimidas das criações. A dança continuava então, sem expressar abertamente a sexualidade, até que os movimentos feministas e gays a liberassem de seus ideais andróginos.

A dança pós-moderna de hoje não se interessa em apresentar corpos perfeitos, unificados pela forma, nem delineados por imperativos estéticos ou sexuais. Tudo é permitido. A dança parece querer, de fato, expressar a multiplicidade corporal feita de músculos, ossos, nudez, imperfeições e qualidades do ser humano, falando de si próprios, para uma platéia que se identifique com o que vê.

Termino minha comunicação com algumas imagens interessantes, que expressam traços importantes da representação do corpo na arte contemporânea: a extrapolação dos limites; a permissividade; a exposição sumária do corpo; a fragmentação; a arte como espelho do cotidiano. Traduzem bem essas características imagéticas as coreografias do Grupo Cena 11 e de Christian Duarte; o corpo tatuado na cena pública; a instalação de Vanessa Bancroft chamada Performance; uma fotografia de David Hockney, Minha Mãe; e as esculturas hiper realistas de Ron Mueck.

Mas, como acredito que a beleza do corpo persiste, deixo vocês com uma bela fotografia de Howard Schatz.

 

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* Pós Doutora, Université de Paris VIII, Doutora em Artes Cênicas, UFBA.
Nota do editor: não foi possível publicar as imagens mencionadas.

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