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Cógito
versão impressa ISSN 1519-9479
Cogito vol.11 Salvador out. 2010
Sigmundos: potência e poder1
Sigmundos: potency and power
Wagner de Angeli Ferraz*
RESUMO
A partir do contexto de criação da psicanálise, o texto pretende analisar o deslocamento do olhar freudiano que rompeu com o discurso médico e possibilitou ver-ouvir a denúncia do corpo erógeno na histeria contra as formas de controle social da Viena fin-de-siècle, o que revela as relações entre desejo e política, já há algum tempo menosprezadas na clínica. Em seguida, toma a passagem da sociedade disciplinar à sociedade de controle para situar a clínica psicanalítica enquanto prática de resistência micropolítica do desejo frente às formas de servidão capitalistas, que hoje produzem novos modos de sofrimento e adoecimento psíquico. A experiência da análise é uma aposta na potência de criação do homem e na possibilidade de conquistar novos territórios existenciais.
Palavras-chave: clínica; política; desejo; criação.
ABSTRACT
From the context of creation of the psychoanalysis, this text intends to analyze the displacement of the Freudian perspective that broke with the medical speech and enabled see-hear the denunciation of the erogenous body in the hysteria against the forms of social control of the fin-de-siècle Vienna, and that reveals the relationship between desire and politics, already there is some time less esteemed in the psychoanalytical practice. Next, takes the passage of the disciplinary society to the society of control for situate the psychoanalytical practice as micropolitics resistance of the desire facing the forms of capitalistic servitude, that today produce new ways of suffering and psychological illness. The psychoanalyse experience is a bet in the potential of creation of the man and in the possibility of conquer new existential territories.
Key words: clinical; politics; desire; creation.
ergo sum, aliás, Ego sum Renatus Cartesius, cá perdido, aqui presente, neste labirinto de enganos deleitáveis, - vejo o mar, vejo a baía e vejo as naus. Vejo mais. […] As tripas podres do Eu: monstruosidades se escondem por trás do eufemismo, deixando cacofonias transpirarem, delícias. […] Queimo tudo isso aí, teimo em ficar irreconhecível. Quem me busca entre as cinzas de mim? Soletra que te soterro. Brasília, enlouqueceste Cartesius? Sou louco logo sou.
Paulo Leminski, In Catatau 2.
No fim do século XIX, movido por um desejo revolucionário, Freud criou algo que gerou efeitos sociais, políticos e clínicos — a despeito de certo cinismo barroco da era Vitoriana —, o que torna possível dizer que produziu uma dobra no mundo ocidental, que até hoje se desdobra. Mas, o que criou Freud? Se, por um lado, obviamente, podemos dizer que inventou o inconsciente, a psicanálise, por outro, podemos pensar que foi capaz de escutar o que ninguém mais, naquele momento, pôde fazê-lo, a saber: a denúncia do corpo erógeno na histeria contra as formas de controle social da Viena fin-de-siècle. Foi a histérica quem o ensinou a escutar, tendo inclusive mandado que se calasse, ao que atendeu e entendeu, demonstrando que podia declinar do saber-poder, deslocamento essencial para a criação. Mas em nada isso foi fácil para Freud, e lhe custou caro, ao bolso e à saúde. Sobre a saúde de Freud, Regina Neri (2005) disse algo interessante:
Tomando de empréstimo algumas formulações de Deleuze em A literatura e a vida (1997), parece-nos que Freud, esse médico-escritor, ‘não goza de uma saúde de ferro, mas de uma frágil saúde irresistível que provém do fato de ter ouvido coisas demasiado grandes para ele, fortes demais, irrespiráveis, cuja passagem o esgota, dando-lhe, contudo, devires que uma gorda saúde dominante tornaria impossíveis’ (NERI, 2005, p. 102).
Pouco mais de um século depois, mais precisamente hoje, ocasião em que a psicanálise avançou em teoria e técnica e se constitui como um legítimo campo de saber, além de gozar de razoável prestígio social, é também o corpo erógeno o enunciador de novas denúncias contra as requintadas formas de controle na contemporaneidade — isso remete à passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de controle. Então, temos uma questão: a psicanálise é, hoje, capaz de escutar as novas formas de adoecimento?
No ambiente cientificista do fim do século XIX, e seu agravante acadêmico metodológico, Freud foi sensível ante o desconhecido, ousou se lançar em empreitada arriscada, sem bússola ou mapas, e foi justamente por isso que conseguiu cartografar o corpo desejante na histeria que escorregava entre os dedos da medicina. Ainda hoje, a medicina confunde o corpo com o organismo, menos por ignorância que por escusas relações do saber-poder no mercado da farmacologia, aliás, ciência que rende muitos dividendos.
No texto Um olhar sobre a clínica das neuroses, Carlos Pinto Corrêa (1996), buscando compreender porque Charcot teria se tornado tão importante para Freud, cita o trabalho de Antônio Ribeiro intitulado Freud e o corte no discurso médico, onde diz o seguinte:
Ele (Antônio Ribeiro) nos lembra que o sintoma petrificado apresentado pelo doente e exposto não falava. Quem falava era Charcot e era para ele que se dirigia o olhar, o olhar de todos. A pulsão escopofílica da platéia já não se encontrava só e isolada neste espetáculo, pois já tinha a companhia da pulsão invocante representada por seu objeto a: a voz. A importância não está pois no que se poderia aprender naquela clínica, mas em tentar ver Freud vendo Charcot. A relação fundamental é feita com o mestre de quem esperava a palavra final definitiva. Ele proferia do lugar do saber um discurso oficial e se exibia 'dando a Freud a oportunidade de ver-ouvindo, pois anteriormente ele apenas via' (CORRÊA, 1996, p. 56).
Ao olhar para a histérica ouvindo o discurso do mestre, ou seja, a partir deste deslocamento do olhar, efeito de um desejo subversivo, Freud rompeu com o saber institucionalizado, provocando uma fissura, uma dobra, uma abertura. Um pouco mais adiante no texto, prossegue Carlos Pinto Correa:
A experiência de ver o doente, ouvindo o discurso sobre a doença, revelou a Freud a opção de deixar o discurso do saber e se colocar na posição do objeto que escuta aquele suposto saber sobre o outro. Na verdade, a fundação da psicanálise só foi possível quando Freud pôde, ao ver o paciente, ver a si mesmo como impotente. Daí, ao se colocar na posição do paciente, abriu as possibilidades para tudo que passou a ocorrer na clínica psicanalítica. É por tudo isso que o psicanalista se constitui como clínico através da experiência de antes ter estado na condição de paciente (Ibid., p. 57).
O olhar de Freud se deslocou do ponto para onde convergiam todos os olhares, tomando o rumo do desconhecido, o desconhecido do outro e de si mesmo, território inquietante, de muitos estranhamentos, e, por isso, prenhe de novas possibilidades. Essa ruptura produziu uma abertura para novos campos de possível, criando condições para o nascimento da psicanálise e, de alguma maneira, pré-enunciava uma política do desejo.
As condições de criação da psicanálise apontam para a relação entre política e desejo, ainda que, posteriormente, desde quando os psicanalistas já dispunham de muitos mapas, determinadas práticas clínicas fossem um exercício de cisão desta relação, motivo pelo qual os marxistas sempre acusaram os psicanalistas de reacionários — a alienação do setting e o problema da clínica burguesa. Mas acontece que, enquanto uma parte dos psicanalistas estava trancafiada nos consultórios ou entrincheirada nas disputas institucionais, a terra se movia, porque a terra é viva, e sobre ela se moviam as populações. É interessante a relação entre marxismo e psicanálise, porque, se os marxistas excluíram o desejo da análise política, a psicanálise, especialmente no âmbito das instituições, durante algum tempo excluiu a política da clínica, o que instalou um problema, já que a clínica psicanalítica tem um compromisso com o desejo. Foi preciso que Michel Foucault construísse o conceito de micro política para clarear nossas idéias sobre as operações de poder nas relações, portanto, tornando evidente a indissociabilidade entre desejo e política.
O compromisso da psicanálise com o desejo torna inseparáveis a clínica e a política, impondo a necessidade de pensar as formas de exercício do poder na contemporaneidade. Mas essa investigação é complexa, posto que o capitalismo tem uma potência de recuperação. Sempre que algo descodificado flui sobre o corpo social, a máquina capitalista produz um axioma a mais, codifica e territorializa. Os fluxos desterritorializados oferecem risco à sociedade porque não respondem a nenhum código, entretanto, logo são decodificados e absorvidos, engolidos pela máquina. Neste processo, o desejo é capturado, mas capturado ao mesmo tempo em que as subjetividades são produzidas incessantemente na máquina capitalista. Sobre isso, disse Deleuze:
[...] mais que marcar as pessoas (pois esse é o meio aparente), para a função mais profunda, que é: uma sociedade só teme uma coisa, o dilúvio. Ela não teme o vazio, nem a penúria, nem a escassez. Sobre seu corpo social, alguma coisa flui e não se sabe o que é, alguma coisa que não é codificada, e que, em relação à sociedade, aparece como não codificável. Alguma coisa que fluiria e arrastaria esta sociedade a uma espécie de desterritorialização, que faria fundir a terra sobre a qual ela se instala... (DELEUZE, 1971, p. 2).
O corpo social se define pelos fluxos que correm sobre ele, sempre codificando o que escapa aos códigos, o que requer uma capacidade de remanejamento dos códigos para açambarcar os fluxos perigosos. Rarefação das condições de vida a sociedade pode suportar, mas o estranho - o inquietante3 - abala o aparelho repressivo, em um primeiro momento, para logo em seguida se produzirem novos axiomas que permitem a codificação4 . Mas Deleuze identifica um paradoxo fundamental no capitalismo como formação social, vejamos:
[...] se é verdadeiro que o terror de todas as outras formações sociais foram os fluxos descodificados, o capitalismo, por sua vez, se constituiu historicamente sobre uma coisa inacreditável, sobre o que fazia todo o terror das outras sociedades: a existência e a realidade de fluxos descodificados dos quais fez seu negócio (Ibid., p.4).
Neste sentido, o capitalismo se constituiu justamente a partir daquilo que as formações sociais que o antecederam tentaram evitar. O que para elas significava pânico, terror, ruína, é justamente o que está na base do capitalismo.
O capitalismo tem, inicialmente, uma forma ibérica, ultramarina, expansionista, um investimento no desterritorializado do mar, e no desconhecido do além mar5 , balizado no princípio da conquista e domínio do desconhecido para agregar maior valor à metrópole. Entretanto, hoje, o capitalismo contemporâneo se mantém na variação infinita, modulações que transcendem a noção de estado-nação6 , um desejo do ilimitado que se realiza nas “redes infinitas, hiperconectivas e paradoxais, porque, ao mesmo tempo, comportam esperança e perigo” (PASSOS, 2004, p. 159). É a questão da passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de controle.
Em Vigiar e punir Michel Foucault (1987) mostra, basicamente, duas formas de poder, o poder soberano, no escravismo e no feudalismo, e o poder disciplinar, no capitalismo. O soberano extrai, retira algo do servo sem nada dar em troca e mostra seu poder na forma da violência explícita sobre o coletivo. Já a partir da constituição da sociedade disciplinar - depois que o rei ficou nu -, no capitalismo, o poder é descentralizado, invisível e onipresente, e controla o tempo, o corpo e a vida das pessoas. A sociedade disciplinar produziu saberes-verdades, não só para se justificar, mas para a docilização dos corpos, e o fez produzindo tecnologias de controle, operadas pelas instituições (escola, fábrica, família, hospital7 etc).
O fundamento da sociedade disciplinar era o enclausuramento, mas hoje, na contemporaneidade, há controle contínuo e comunicação instantânea, uma época das máquinas cibernéticas e dos computadores. Cláudia Neves (1997), no texto Sociedade de controle, o neoliberalismo e os efeitos de subjetivação, disse:
Uma das engenhosidades das sociedades de controle é operar por um tipo de controle que nunca destrói as coisas completamente, mas, ao contrário, não as deixa jamais terminar. É o que Deleuze chama de um poder de modulação contínua. Pois se nas sociedades disciplinares o empenho se dirigia para moldar os corpos a determinados modelos e verdades, nas sociedades de controle os moldes não chegam nunca a se constituir totalmente. Transformam-se contínua e rapidamente em outros moldes, impedindo a identificação dos modelos de moldagem (NEVES, 1997, p. 86).
Pensar os modos de produção de subjetividades capitalistas é pensar as formas de adoecimento na contemporaneidade, o que pode tornar possível escutar as denúncias do corpo erógeno contra essas novas formas de controle e servidão. A psicanálise nasceu no movimento — o deslocamento essencial da criação — de tentar dar conta da crise do sujeito clássico da razão, a crise das identidades fixas da modernidade. A psicanálise pôs em cheque o Iluminismo, mostrou que o homem não é senhor em sua própria morada, ao produzir o deslocamento do sujeito da consciência para o inconsciente. Entretanto, na contemporaneidade, onde o regime de produção se mantém na variação contínua, onde o capitalismo construiu sua máxima, sua axiomática de desterritorializar integrando, recompondo incessantemente, não permitindo nenhuma exterioridade, é essencial compreender as formas de controle do corpo erógeno, que mesmo capturado, adoecido, pulsa... para além das categorias psicopatológicas, e também para além das categorias da psicopatologia psicanalítica8 .
Felix Guattari (1981) denominava de capitalismo mundial integrado a operação de integração desterritorializada a partir de uma constante remodelagem do sentido e da existência das coisas, o que produz novas formas de segregação. Por exemplo, a remodelagem do “gosto” através da incessante desterritorialização na moda, a questão da culinária9 , como também a corpolatria, a remodelagem do corpo e o fisiculturismo, que desterritorializa as referências de gênero e vai anexar os corpos em sua indiferenciação (PASSOS, 2004, p. 162). Trata-se da máquina capitalista produzindo uma subjetividade social na cultura de massa, produzindo individuações serializadas e capturando o desejo a partir da infraestrutura produtiva. A produção de subjetividades se dá na relação de co-existência entre o micro e o macro, entre a micropolítica do desejo e a macro estrutura social.
Se entendemos que o deslocamento que Freud produziu instalou uma micropolítica do desejo, e isso quer dizer que a psicanálise vai na direção oposta a esses processos de produção de subjetividades capitalistas, porque pode gerar processos de singularização, então, podemos pensar que a psicanálise pode ajudar o homem contemporâneo a se libertar dos seus senhores pós-modernos, ajudar o sujeito a construir linhas de fuga consistentes para constituir um território existencial mais alegre, mais potência de criação, território de reinvenção de si mesmo, que é reinvenção dos mundos.
O Anti-édipo não é anti-psicanálise10 , apesar de provocar mal-estar em muitos psicanalistas, especialmente aos que ainda hoje se mantém nas trincheiras institucionais e cuja prática clínica tem no édipo anteparo e clausura para interpretação no teatro das representações, ou, mais ainda, a redução do inconsciente ao regime de significantes, ignorando a potência maquínica inconsciente, que é potência de criação no caosmos. Bem ao contrário, a análise crítica do anti-édipo contribui para que a psicanálise não incorra no equívoco11 de se colocar no lugar daquilo que ela desconstruiu, para que a psicanálise não se territorialize como um saber-verdade em um jogo incessante entre poderes, mas que, a partir da subversão produzida por Freud, a psicanálise seja uma possibilidade de construção de novos saberes, novas formações discursivas, uma clínica política onde podem ser gestadas subjetividades mais libertárias. No texto A clínica como política de resistência da vida, Regina Neri diz:
Se o poder sobre a vida atingiu uma dimensão nunca vista anteriormente, a clínica enquanto empreendimento de saúde pode configurar-se como uma das formas políticas de resistência da vida, não dissociando sua prática das demais esferas da experiência coletiva. Oferecendo-se como um espaço que possa acolher as novas formas de sofrimento face aos processos homogeneizadores da cultura, possibilita a emergência de sentidos que possam libertar e reinvestir os desejos que foram capturados pelos dispositivos do biopoder (NERI, 2005, p. 106).
A clínica pode ser um espaço de afirmação da vida, e a experiência da análise uma forma de libertação do desejo para um reencontro com a potência de criação, um reencontro com a arte — um devir criança 12—, uma leveza ética-estética de estar no mundo, expressão singular que ressoa a coletividade. Esta clínica subversiva, protestos do inconsciente, maquinarias do desejo, é a clínica psicanalítica em sua forma nascendi, em sua potência de se recriar, justamente para manter-se fiel ao princípio.
Referências
CORRÊA, Carlos Pinto. Um olhar sobre a clínica das neuroses. In Estudos de psicanálise, nº 19, Belo Horizonte: Círculo Brasileiro de Psicanálise, 1996. [ Links ]
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997. [ Links ]
_______. Transcrições dos seminários sobre o anti-édipo. Tradução do excerto por Maurício Rocha, Vincennes, 1971. [ Links ]
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O anti-édipo. Tradução de Georges Lamazière. Rio de Janeiro: Imago, 1976. [ Links ]
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Lígia M. Ponde Vassalo. Petrópolis: Vozes, 1987. [ Links ]
GUATTARI, Félix. Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo: Brasiliense, 1981. [ Links ]
LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso da servidão voluntária. São Paulo: Brasiliense, 2008. [ Links ]
LEMINSKI, Paulo. Catatau. Curitiba: Edição do autor, 1975. [ Links ]
MILLER, Jacques-Alain. Efecto de retorno sobre la psicosis ordinaria. In Freudiana, nº 8, Barcelona: La Escuela Lacaniana de Psicoanalisis, 2010. [ Links ]
NERI, Regina. A clínica como política de resistência da vida. In Lugar Comum, nº 21, Rio de Janeiro: Rede Universidade Nômade, 2005. [ Links ]
*Psicólogo, com estudos em psicanálise. Salvador.
1A expressão Sigmundos é criação do poeta baiano Marçal Barreto, no poema Anti-fábula fálica (revelações pós viagra), ainda não publicado.
2Sobre o romance-idéia Catatau, no Jornal do Escritor, nº 6, de 1969, Rio de Janeiro, Leminski escreveu “REPUGNATIO BENEVOLENTIAE. Me nego a ministrar clareiras para a inteligência deste catatau que, por oito anos, agora, passou muito bem sem mapas. Virem-se”.
3A tradução de Paulo Cézar de Souza do texto de Freud (1919) Das unheimliche por “O inquietante” é muito interessante, especialmente porque alcança novas zonas de sentidos.
4Um simples corte de cabelo ou um modo de se vestir imprevisto já é o bastante para provocar algum reboliço.
5Para nós, brasileiros, isso tem um sentido particular, e talvez bem íntimo, a ponto de sobreviver na oralidade das cantigas populares. Cf. “gente que vem de Lisbôa / gente que vem pelo mar / laço de fita amarela / na ponta da vela / no meio do mar / eis nós, que viemos / de outras terras, de outro mar / temos pólvora, chumbo e bala / nós queremos é guerrear”, cantiga do folclore Gente que vem de Lisboa, na versão de Pena Branca e Xavantinho.
6Globalização, planetarismo etc.
7O caso do hospital psiquiátrico é um capítulo à parte – a história da loucura - , a passagem da exclusão à reclusão, o saber-poder da psiquiatria que fez do louco um doente mental ao tornar a loucura seu objeto e, assim, assujeitar o louco, bem no sentido de “des-subjetivá-lo”.
8No texto Efecto de retorno sobre la psicoses ordinaria, Jacques-Alain Miller faz importantes considerações sobre a necessidade de ultrapassar a rigidez binária neurose-psicose, além de bem observar que a perversão foi desbancada pelo movimento gay e pela clínica, já que o “perverso” não se analisa. Entretanto, Miller sustenta um arco de círculo no binômio NP inscrito sob a rubrica de psicose ordinária, o que me parece ainda manter a rigidez que o incomodava. Por que não avançar para um novo conceito? Não seria o regime de significantes, então, o amálgama deste endurecimento?
9O caldo knorr que tende a homogeneizar a cozinha das 'mamães' de norte a sul.
10Marcelo Veras, em A loucura entre nós (2010), discute relações entre psicanálise e Saúde Mental, onde faz algumas críticas à reforma psiquiátrica e, segundo ele, a alguns de seus autores de referência, e inclui neste rol Foucault, Deleuze, Guattari, Basaglia, e ainda Joel Birman e Jurandir Freire. Sobre o Anti-édipo, diz que a “edipianização da psicanálise” foi superada por Lacan. Entretanto, ao ler o texto percebe-se que o autor não levou em consideração os textos do Mil Platôs - Tomo II do Tratado Capitalismo e esquizofrenia, do qual O Anti-édipo é primeira parte -, onde é retomado e desenvolvido o conceito de corpo sem órgãos, um plano intensivo para além do regime de significantes, ou, dito melhor, aquém da linguagem, mas bem no sentido da anterioridade, do subterrâneo das forças e do afeto. Posteriomente, o texto de Veras, quando sai da crítica e se propõe a construir, ganha velocidade e consistência, sobretudo porque tem na base a experiência da clínica das psicoses.
11No texto O paciente das 50.000 horas, Rodrigué diz: “A psicanálise envelheceu. Perdeu algo com sua respeitabilidade: perdeu o caráter, a meta e até o exagero revolucionários. Já os teve outrora. Não falo da ingênua idealização da psicanálise transformando o mundo radical e vertiginosamente. […] Aviltamos o divã, sem dúvida. Confesso, contudo, que chego a lamentar as loucas ilusões perdidas. […] Freud fala de um estado inédito, de uma FORMA DE SER insuspeitada. Vai muito além do mero enriquecimento, da cura, de uma ajuda existencial. Postula, simplesmente, a transformação do homem pela psicanálise.”
12O devir criança em Nietzsche, o dizer sim à vida, esse devir que está fora de moda na contemporaneidade, apagado pelo endurecimento e pela infantilização do adulto. Mas o devir criança permanece como uma brasa por debaixo das cinzas. Um vento, um sopro e essa chama reacende forte e vigorosa, é o fogo dos ancestrais que é repassado, por exemplo, nas cantigas de roda, que constituem uma espécie de 'espaço transicional', lugar de encontro. Cf. Das três fases da transmutação do homem (NIETZSCHE, 1978).