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Revista da SPAGESP
versão impressa ISSN 1677-2970
Rev. SPAGESP v.4 n.4 Ribeirão Preto dez. 2003
ARTIGOS
A arte de coordenar grupos, o aprendiz e a contribuição da SPAGESP
The art of coordinating groups, the apprentice and SPAGESP’s contribution
El arte de coordinar grupos, el aprendiz y la contribución de la SPAGESP
Beatriz Silverio Fernandes 1
Sociedade de Psicoterapias Analíticas Grupais de Estado de São Paulo - SPAGESP
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo apresentar o curso de formação de Grupoterapeutas e Coordenadores de Grupo da SPAGESP.
Inicia comparando a música aos grupos, dentro da história da humanidade. A seguir, expõe algo sobre o curso de formação e a clínica da SPAGESP.
Finaliza mostrando a sociabilidade sincrética existente nas instituições e mostra a ideologia do curso, seu funcionamento dentro do processo de ensino-aprendizagem, e sua inserção dentro da instituição SPAGESP.
Palavras-chave: Ensino-aprendizagem; Coordenação de grupos; Instituição.
ABSTRACT
The aim of this work is to present the SPAGESP’s course of formation of group therapists and group coordinators.
It starts by comparing music to groups inside the human history. Next, it shows something about the course of formation and SPAGESP’s clinic.
It finishes showing the syncretic sociability in the institutions and shows the ideology of the course, how it works in the teaching-learning process and its insertion in the SPAGESP institution.
Keywords: Teaching-learning; Group coordination; Institution.
RESUMEN
EI presente trabajo tiene por objetivo presentar el curso de de formación de Grupoterapeutas y Coordinadores del Grupo SPAGESP.
Comienza comparando la música con los grupos, dentro de la historia de la humanidad.
Luego, expone algo sobre el curso de formación y la clínica de SPAGESP.
Por último, muestra la sociabilidad sincrética existente en las instituciones y también la ideología del curso, su funcionamiento dentro del proceso de enseñanza-aprendizaje, y inserción dentro de la institución SPAGESP.
Palabras clave: Enseñanza-aprendizaje; Coordinación de grupos; Institución.
“Alguns professores de ciências imaginam que o espírito
começa como uma aula, que é
sempre possível reconstruir uma cultura falha pela repetição
da lição, que se pode fazer entender
uma demonstração repetindo-a ponto por ponto.
Não levam em conta que o adolescente entra na aula
de física com conhecimentos empíricos já constituídos:
não se trata, portanto, de adquirir uma
cultura experimental, mas sim de mudar de cultura experimental,
de derrubar os obstáculos já sedimentados pela vida cotidiana”.
(Bachelard, 1972)
INTRODUÇÃO
O que pretendo abordar neste trabalho é um percurso dentro do longo caminho que nos leva ao processo de ensino - aprendizagem, e à relação professor - alunos, no que se refere a um curso de especialização.
Em minha última reflexão (Fernandes, 2002) ressaltei a importância do conceito de “educar” trazido por Zimerman quando fala sobre o educador “permitir que sejam drenadas para fora as capacidades pré-existentes de cada um”.Também ressaltei a importância de um outro conceito que aprendi, agora com a colega Ana Lúcia Pierri, que enfatizou uma idéia de Alicia Fernandez: “o ensinante simultaneamente mostra e guarda o conhecimento. O que aprende poderá entrar em contato com o desejo de conhecer, selecionando de acordo com sua história, os conhecimentos que poderão articular-se com seu saber” (Pierri, 2002) in (Fernandez, 2001).
Partindo dessa ideologia, e dentro dos objetivos do curso da SPAGESP, de uma aprendizagem mais profunda sobre grupos, alguns questionamentos nascem, crescem e se desenvolvem para que, cada vez mais, possamos entender como aproveitar melhor um curso sobre grupalidade e vínculos.
Pensando sobre o assunto, ouvindo os alunos, conversando sobre grupos, sobre a vida, os vínculos, escola, desejos e realidade, e vendo esses mesmos alunos - frente ao trabalho que realizam com grupos, com suas dúvidas sobre atender ou não atender em grupo - surgiu a idéia de um paralelo entre a música e a Psicoterapia de Grupo.
DA HISTÓRIA ATÉ O PRESENTE
Algumas questões muito presentes nos interessados em cursos sobre grupos são: “Por que Grupo, por que estudá-los, por que tantos meses, tantas horas de estudo e prática? Não seria melhor o contato bipessoal? O atendimento individual não é mais importante?"
Não se trata de algo ser mais ou menos importante, não se trata de uma rivalidade ou de modismo, ou ainda “tenho que atender em grupo, sou obrigada”, mas um modo de perceber, de trabalhar, pensar grupalmente.
Uma maneira de se refletir sobre esses aspectos seria recorrer à história da humanidade. O homem agrupava-se nas cavernas, nas hordas, nos grupos de caça, desde que temos registro. Temos visto que o homem e a música estão sempre juntos. Há registros com mais de 5000 anos que mostram homens agrupados e a música (Menuhin, Y.; Davis, C. W, 1979).
O homem fez uso de vários tipos de instrumentos, tanto para a música como para a caça. Utilizou-se de vários ambientes para a música, para a caça, e também para agrupar-se. Ora reunia-se na caverna com o grupo familiar, ora no ambiente social com seu líder; parece não fazer muita diferença a princípio tanto o instrumento como o ambiente para executar algo em grupo, desde que a essência da atividade aconteça.
Seguindo os passos do desenvolvimento da humanidade, a música precisou de instrumentos, e estes foram produzidos a princípio partindo da própria natureza, por exemplo, paus e chifres tocados separadamente ou em conjunto. Havia grupos de músicos para lazer e com fins operativos - onde todos tinham uma tarefa a cumprir, como músicos tocando algo para lembrar ao povo de algum ritual, ou acontecimento no povoado.
Mais tarde vieram os textos. Textos estes que puderam ser seguidos rigidamente ou que sofreram algum arranjo conforme o executante. Apareceram duplas, trios, grupos e grandes grupos, sempre acompanhados de uma liderança.
Anos mais tarde surgiram as escolas. Surgiram pela necessidade de passar o conhecimento a quem estivesse desperto para esta tarefa, e não como herança familiar.
E as escolas de música, por incrível que pareça, também adotavam a forma circular na disposição do ambiente. A visão ampla, o olhar permitido e facilitado a 180º colaborava no sentido de permitir maior horizontalidade entre alunos e mestres. O líder, apesar de sua função e de ser uma figura de destaque, está bem mais próximo de seus aprendentes.
Hoje conhecemos muitos líderes, e muitas orquestras mas a música é sempre música e sempre será, desde que haja instrumentistas para tocar e ouvidos para ouvir e apreciar. A mesma analogia creio que podemos fazer para o estudo e entendimento da Psicologia de Grupos.
OS GRUPOS E O NUF- SPAGESP
A SPAGESP tenta seguir sua ideologia desde os primeiros momentos: criar um curso em que se pense sobre a grupalidade, que se estruture grupalmente, respeitando cada linha de pensamento, cada teoria. Árdua e difícil tarefa, mas muito enriquecedora. A instituição optou pela vertente da psicanálise das configurações vinculares.
Estas ponderações se fazem presentes em nossa prática. O objetivo e ideologia se baseiam na circulação de conhecimento e também no desabrochar das capacidades técnicas de cada aluno, de modo que cada um permaneça dentro de seus interesses e de sua potencialidades. Ninguém poderá trabalhar em algo que não acredite e aprecie, assim como nenhum pianista poderá ser um violinista se isso não o aprouver e se não se preparar para tal.
Embora se mostre a não-rigidez e a livre-escolha de seu caminho, a escola enquanto instituição formadora de técnicos não poderá deixar de exigir o cumprimento de certas normas. Da mesma forma, não há orquestra que resista a músicos que não componham uma certa harmonia e que não sigam a partitura.
Nosso curso de Formação de Grupoterapeutas e de Coordenadores de Grupos compõe-se de:
1. O Curso de Formação é desenvolvido em módulos seqüenciais: introdução, aprofundamento e aprimoramento. É realizado através de aulas teóricas e discussões clínicas. Seu conteúdo foi baseado na psicanálise das configurações vinculares e em suas conseqüentes facilidades e dificuldades. Na introdução ao estudo mostra o início de grupos desde sua montagem até o surgimento dos fenômenos grupais em diferentes tipos de grupos. No aprofundamento, estudam-se os fenômenos grupais mais especificamente e suas peculiaridades, e, no aprimoramento, estuda grupos específicos.
Segundo Zimerman (1995) para que se possa entender o vínculo, e conseqüentemente, para estudá-lo, teremos que abranger três dimensões: o intrapessoal (como os objetos internos se relacionam entre si, assim como o consciente, pré-consciente e inconsciente, id, ego e superego, etc); o interpessoal (formas de cada indivíduo se relacionar com os outros) e o transpessoal (como os indivíduos se vinculam aos mitos, à cultura, normas, leis e valores dos macrogrupos).
Os professores do Núcleo de Formação, na medida do possível, são advindos da cátedra universitária ou de uma prática exercida e reconhecida.
2. Reuniões Administrativas com alunos - Espaço criado para discussões concretas, versando sobre questões administrativas em geral no tocante ao NUF-SPAGESP. Desde questões financeiras até mesmo de cunho pedagógico têm espaço de discussão.
3. Grupos de Reflexão - É uma outra peculiaridade do curso. Este grupo se mostra necessário pois dá oportunidade a todos de vivenciarem suas dificuldades tanto do conteúdo discutido em aula, como da inserção deste na instituição. Possibilita uma vivência prática dos conflitos inerentes a todo processo grupal e do ensino-aprendizagem. É uma modalidade grupal operativa, que permite aos alunos, ventilarem suas angústias frente a sua formação e à própria identidade profissional. Ajuda no conhecimento da dinâmica que ocorre na instituição, e também na reflexão acerca do novo e do velho. Facilita poder pensar e aceitar novas formas de trabalho, novas posturas, decorrentes da passagem da condição de aluno para a de um profissional técnico. Por vezes é angustiante mas não se pode crescer sem sofrer frustrações. Assim, a instituição necessita cuidar de todos os aspectos de uma formação profissional.
4. Supervisão - É um espaço onde se pode articular a teoria, a técnica e a prática. Poder ouvir o aprendente no seu relato, em suas dúvidas, poder ainda mais, deixar seus colegas conhecerem seu modo de trabalhar, assim como seu supervisor poder lhe dar modelos de ação. Esses modelos deverão ser elaborados de tal modo que possam se transformar num outro tipo de compreensão, a sua própria. Da mesma maneira que as crianças emprestam os modelos parentais em primeira instância e depois criam sua própria identidade, assim se processará a identidade de cada terapeuta. Sabe-se que não há grupo que resista a uma leitura errônea de sua dinâmica; portanto, as vezes necessita-se aperfeiçoar esta leitura, aprender um novo método, e é na supervisão em grupo onde encontrará um terreno fértil para este cultivo. Existem regras, mais ou menos padronizadas, que não podem ser perdidas, pois fazem parte do enquadre grupal. Faz parte de um consenso que, a SPAGESP, para ser reconhecida e estar irmanada junto ás instituições pioneiras do ensino de grupo, necessita estar organizada e com determinadas normas.
5. Análise pessoal - Como poderá ser deixada de lado a análise pessoal, meio pelo qual se aprenderá sobre si mesmo e sobre o relacionamento com o grupo interno-externo? O seu grupo de grupanálise e seu grupanalista serão novos modelos profissionais, o que também será assimilado e transformado em um modelo próprio algum tempo mais tarde. Como eu posso me tornar um grupoterapeuta sem jamais ter sido um grupanalisando? Como posso analisar e entender um grupo, se o meu próprio grupo interno e suas configurações são um ilustre desconhecido para mim? Nossa própria organização mental é grupal, e é importante que se conheça esse funcionamento, partindo do princípio de que a realidade externa é quase sempre inseparável da realidade interna.
A CLÍNICA DA SPAGESP
Toda teoria tem sua aplicabilidade, portanto necessita ser praticada. A SPAGESP desejou, planejou e montou sua clínica. Hoje ela está em funcionamento, atendendo quase cinquenta pacientes mensais, divididos entre os diversos grupos e triagens. A Clínica propicia aos alunos a prática grupal e suas diferentes modalidades. No momento está sendo possível atender grupos terapêuticos de adultos e infantis, assim como grupos de Pais. Para que o aluno possa estar atendendo necessita estar em análise e supervisão.
A INSTITUIÇÃO SPAGESP E A PSICODINÂMICA DAS INSTITUIÇÕES
A instituição tem sua ideologia, seu grupo diretivo, e, ao mesmo tempo, forma um grupo maior, como um todo. É preciso aprender a se fazer leituras diversas, desenvolver um “bom ouvido” e, dentro do ritmo possível, não deixar que ocorram muitos toques desafinados ou fora do ambiente. A instituição precisa estar alerta para detectar falhas, desorganizações, e com tudo isso tentar caminhar com certa harmonia.
Dentro do contexto grupo-instituição observa-se fenômeno tão bem estudado por Bleger (1964), que não poderia deixar também de acontecer nesta instituição. Em todos os grupos institucionais há a existência de um nível de interação, ao qual ele dá o nome de sociabilidade sincrética, que poderíamos entender assim:
Paralelamente à concepção generalizada de um grupo como sendo um conjunto de pessoas que interagem, compartilhando normas e tarefas, existe ainda uma outra forma de interação que se dá entre os estratos da personalidade, e que permanecem em estado de não discriminação, uma interação baseada numa comunicação pré-verbal. Em todo o grupo existe uma relação que é uma não relação, por ocorrer ao nível da não individualização. O grupo é, pois um conjunto de pessoas que entram em interação, mas, além disso, é uma sociabilidade estabelecida sobre um fundo de indiferenciação ou de sincretismo, no qual os indivíduos não têm existência como tais.
Observa-se então que dois níveis de funcionamento existem sempre, um da sociabilidade por interação, onde as pessoas entram em relação entre si como indivíduos inteiros, separados e diferenciados, comunicando-se verbalmente: é o nível do funcionamento consciente, dos diálogos manifestos da dinâmica consciente. Detecta-se neste sentido, o nível de funcionamento grupal, chamado “grupo de trabalho”, tão bem estudado por Bion (1948). Num outro momento, o segundo nível, o da sociabilidade sincrética - nível de funcionamento grupal inconsciente, da interação inconsciente, latente, não-discriminada, nem verbalizada, que transita por todos e pertence a todos e que, apesar de ser tão dificilmente perceptível é tão onipresente. É nesse nível que se expressa, num primeiro momento a instituição, e que poderíamos comparar com o nível de funcionamento grupal denominado por Bion “grupo de supostos básicos”.
Existe sempre um esforço grupal no sentido de manter uma cisão desta parte sincrética no seu funcionamento. Os conteúdos sincréticos ficam imobilizados e cindidos, permitindo uma organização e mobilização do nível da sociabilidade por interação. Neste sentido a instituição tem urgência de cuidados, de um olhar terapêutico, para poder manter-se num nível de salubridade compatível com seu hemisfério de ação.
Mas nem tudo é fantasia, nem tudo gira só em torno de sentimentos. Há algo concreto e muito palpável que também necessita de espaço e ambiente para ser trabalhado e discutido. Reuniões podem funcionar, e, na medida do possível, também existem com relação ao curso. Ouvir e ser ouvido em todos os setores da instituição é fundamental, caso contrário não será possível manter uma certa organização funcional.
Ampliando-se ainda mais essa visão - não participando de um mundo do faz de conta, a instituição precisa ser associada ainda a outras instituições para que possa haver, também neste vértice, um conhecimento e um aprendizado advindo de outros modelos. Por isso a SPAGESP está associada a outras instituições nacionais e internacionais, seus membros circulam em congressos e jornadas, apresentam seus modelos e ouvem outros modelos, havendo assim um intercâmbio entre os diversos institutos de ensino, assim como com a universidade e membros da comunidade científica.
CONCLUSÃO
Para terminar, o objetivo deste relato foi tentar mostrar a necessidade de se fazer conhecer como funciona um curso de formação e sua instituição e, no caso, de especialização para poder trabalhar com grupos, e, através do paralelo com a música, mostrar que não deve haver a luta pela supremacia de uma determinada técnica, pois assim como a música, o grupo está sempre presente na história da humanidade e manifestando-se de múltiplas maneiras. No caso foi apresentado o modelo SPAGESP, que é aplicável a qualquer tipo de escola, a qualquer tipo de grupo e ainda mais onde houver aprendentes e ensinantes reunidos com um mesmo objetivo - deixar florescer e ampliar os conhecimentos pré-existentes em cada um, para que cada vez mais se possa ter um meio enriquecedor para atualizar nossas capacidades e não uma luta interminável pela aquisição do poder e do saber, que a todos pertence.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BACHELARD, G. La Formación de l´Esprit Scientifique. Paris: VRIN, 1972. p.18. [ Links ]
BION, W.R. (1948) Experiências com Grupos. Rio de Janeiro: Imago, 1975. p.88-103. [ Links ]
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FERNANDES, B.S. (2002) A Difícil Arte de Educar. Revista da SAGESP, Ribeirão Preto: v. 3,. p.184, 2002. [ Links ]
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ZIMERMAN, D.E. Vínculos e Fantasias Inconscientes. Revista da ABPAG, São Paulo: n.4, p. 128, 1995. [ Links ]
Endereço para correspondência
Beatriz Silverio Fernandes
E-mail: wb.fernandes@terra.com.br
Recebido em 20/01/2003.
1ª Revisão em 30/01/2003.
Aceite Final em 24/02/2003.
1 Psicóloga, atual presidente da SPAGESP - Sociedade de Psicoterapias Analíticas Grupais do Estado de São Paulo, especialista em Técnicas Psicoterápicas Infantis. Trabalho apresentado na VI Jornada da SPAGESP. Passos, MG: 2003.