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Revista da SPAGESP
versão impressa ISSN 1677-2970
Rev. SPAGESP v.4 n.4 Ribeirão Preto dez. 2003
ARTIGOS
Grupo de pais de crianças autistas & tessitura dos vínculos
Group of parents of autistic children
Grupo de padres de niños autistas
Marly Terra Verdi 1
Sociedade de Psicoterapias Analíticas Grupais do Estado de São Paulo - SPAGESP
RESUMO
O presente trabalho visa apresentar um grupo de pais de crianças e adolescentes autistas e psicóticas, alunos de uma escola especializada em São José do Rio Preto, SP. O trabalho discute as características do grupo e a dinâmica das interações, buscando relatar aspectos da vida emocional destas famílias e a inter-relação das dificuldades familiares com a constituição dos papéis parentais. Defende a importância de trabalhos desta natureza e seu significado para a ampliação da estrutura de vínculos familiares, o que contribuiria para uma melhor evolução destes quadros.
Palavras-chave: Grupo; Família; Autismo; Papéis parentais; Vínculos.
ABSTRACT
This paper aims to present a group of parents of autistic and psychotic children and adolescents, who are students in a specialised school in São José do Rio Preto, SP. The work discusses the group characteristics and the dynamics of the interactions, trying to describe some aspects of the emotional life of those families, and the inter-relationships of the family difficulties with the parental role constitution. We propose the meaning of works similar to this and its relevance for the widening of the family’s link structure, that would contribute for a better evolution for these children.
Keywords: Group; Family; Autism; Parental Roles; Links.
RESUMEN
El presente trabajo propone la presentación de un grupo de padres de niños y adolescentes autistas y sicóticos, que son aluños de una escuela especializada en São José do Rio Preto, SP. El trabajo discute las características del grupo y la dinámica de las interacciones, y intenta relatar aspectos de la vida emocional de estas familias bien como la inter relación de las dificultades familiares para la constitución de los roles parentales. Defiende la importancia de trabajos de esta misma naturaleza y su significación para la ampliación de la estructura de vínculos familiares, lo que auxiliaría para una mejor evolución de estos cuadros.
Palabras clave: Grupos; Família; Autismo; Roles parentales; Vínculos.
Este grupo foi realizado com pais de alunos da Escola Municipal do Autista “Maria Lúcia de Oliveira”, de São José do Rio Preto, SP, que atende a crianças e adolescentes com casos graves de autismo e psicose infantil.
A finalidade deste grupo era ouvir os pais e dar-lhes um espaço para refletirem sobre as suas experiências comuns o que, acreditávamos, lhes traria um maior reconhecimento de seu lugar parental.
Sendo o Autismo e a Psicose Infantil dois transtornos mentais graves que afetam prematuramente os vínculos, percebíamos nestas famílias (principalmente aquelas cujo único filho tinha sido afetado por estes transtornos) uma dificuldade em identificar seus papéis parentais.
Percebíamos uma dinâmica que alternava entre um vínculo simbiótico e culpabilizado e uma rejeição claramente expressa, rejeição essa muitas vezes surgida no momento de contato com outras pessoas. Era comum cenas de agressividade ocorrerem em momentos de separação, tal como a entrada na escola, a entrada na perua escolar, etc.. Parecíamos ser convocados a ver para interferir, de alguma forma, nestes vínculos intensos e doloridos por parte dos pais e negados por parte dos filhos.
A negação autística dos vínculos é algo bastante enlouquecedor para as mães e os pais dessas crianças, pois os filhos não os olham nos olhos e parecem nunca ouvi-los em suas recomendações, ou responderem a suas comunicações, portanto, não os reconhecem em seus papéis parentais, em sua tarefa de educá-los.
Estas características do Autismo foram bastante discutidas por Frances Tustin (1990, 1984), Diatkine, Quartier-Frings e Andreoli (1993), e, mais recentemente, por Anne Alvarez (1994), Rocha (1997), além de muitos outros psicanalistas.
Entrar na Escola ajuda, por si mesmo, a mostrar aos pais suas próprias dificuldades de separação e reconhecimento de qualquer alteridade destes filhos. Possibilita também se perceberem como pessoas de referência para eles, que ao se separarem, parece poderem explicitar melhor o que havia de vínculo com seus pais, às vezes, nunca antes demonstrado. Observávamos, neste sentido, pais que ficavam na porta à espera dos filhos por todo o período de quatro horas, às vezes, durante anos. E outros, que ao perceberem que seus filhos estavam bem na escola, e que eles já poderiam voltar para casa, tiravam os filhos e os levavam consigo.
Observávamos toda esta intensa trama vincular, que não se alargava ou ampliava, mas na maioria das vezes era como a trama de fina renda, onde não se pode modificar nenhum elo, sem o risco de desmanchar todo o desenho. O grupo foi uma tentativa de ampliar o pensamento e fazer surgir novas possibilidades de vínculo intragrupo e extragrupo. Visávamos principalmente à recomposição de estruturas de vínculo familiar, o que auxiliaria o desenvolvimento mental desses pais e de seus filhos, conseqüentemente ampliando a rede destes vínculos familiares.
Acredito que este era um grupo de reflexão, mais do que um grupo terapêutico, ou quem sabe um grupo de escuta, pois na maioria das vezes o grupo não estava em condições verdadeiras para a reflexão. Refletir quer dizer buscar novos significados, compreender, enfim, pensar sobre algo. O pensamento é reflexivo, e ter esta condição exige do grupo condição de reciprocidade e de abstração.
Este grupo parecia sentir-se capaz ainda de pensar sua própria experiência no papel parental, mas compartilhá-la ali foi nos levando à possibilidade de nomear e poder gradativamente compreender já que, como disse o poeta: “Sonho que se sonha só é só um sonho que se sonha só. Sonho que se sonha junto é realidade”.
Falar sobre a vivência comum destes filhos que experienciam algo tão impenetrável e difícil de traduzir, ia aos poucos dando a eles um sentido de realidade à sua condição e esta troca ia trazendo para eles um maior reconhecimento de si e dos outros como pais.
No início do grupo eles compartilharam o inusitado, a estranheza. Mas transformá-la em palavras aliviava a tensão e trazia muitas vezes riso ao grupo. Quando falavam dos filhos que comiam tudo da geladeira ou dos armários, começavam o relato com angústia e daí, ao ouvirem que alguém havia resolvido colocar correntes e cadeados na geladeira, ou outras formas de conter a voracidade dos filhos, acabavam rindo juntos destas dores cuja força fazia-os perceberem, às vezes, os filhos não como seus queridos e amados (que também eram), mas quase inumanos, ao devorarem até o que seus pais não podiam lhes dar.
Compartilhar a risada do inédito de uma situação de geladeiras com cadeados e a dor de ter que impedir a qualquer custo um filho que tem o desejo de se alimentar, pensar estes aspectos, as ambivalências que tudo isto trazia, os acalmava. Percebiam conjuntamente a dificuldade que os filhos tinham de aprender e muitas vezes sentiam que não adiantava ensinar-lhes, e como todos os pais sentem um sagrado dever de ensinar seus filhos, quando estes se negam a aprender, o que fazer?
O grupo trocava soluções práticas, mas ao mesmo tempo tornava realidade compartilhada, aquilo que antes lhes parecia não um sonho, mas sim um pesadelo do qual não sabiam como acordar, ou seja, o de se sentirem pais de alguém que não os reconhecia e aos quais eles não sabiam se podiam reconhecer, já que não compartilhavam o que a cultura propõe.
Devagar, o grupo passou a refletir e trocar sobre a sua condição como família: um pai que não aceitava a situação do filho, outro que começara a beber por não saber como fazer com a dor. Mães que por só cuidarem do filho(a), não mais davam atenção aos maridos, os quais não conseguiam se posicionar e ficavam excluídos. Pais que se desentendiam com freqüência por se culpabilizarem mutuamente.
Devagar, as estórias mais dramáticas começaram a emergir, e o riso parece que se foi do grupo, que agora já podia suportar dor, raiva e lágrimas. Nós ouvíamos, ajudávamos a esclarecer os temas emergentes e oscilávamos entre trazer informações que possibilitavam conhecer melhor para poder pensar, ou interpretar momentos de resistência grupal e, algumas vezes, as dinâmicas de funcionamento. Parece-me que o caminho seguido foi o de impedir que as resistências paralisassem o pensamento.
Fomos gradativamente nos tornando como um espaço de encontro importante, ao qual eles se esforçavam por vir. Sentiam como seu este espaço e vários diziam que deixavam os filhos para vir e que tentavam garantir sua presença de qualquer forma. Outros, às vezes, se faziam acompanhar do filho, que exigia de um dos pais se ausentar da reunião para cuidar dele. Ou repetiam ali conosco concretamente, ao vivo, a dinâmica da não separação. Esta sempre exigia uma cisão, onde o que se falava parecia estar a exigir do autista uma atitude mais autística (estava de corpo presente, mas o espírito deveria estar ausente e não ouvir, ou não compreender).
Participei por alguns anos deste grupo, juntamente com uma terapeuta familiar e uma assistente social. Parecia que era realmente necessário um grupo de terapeutas para conter as angústias e demandas de um grupo como aquele.
Hoje, mesmo após a minha saída, esta proposta se mantém e este espaço continua sendo um espaço importante para os pais. Percebemos mudanças estruturais significativas em alguns vínculos familiares. Deste grupo surgiram demandas para terapia familiar, em alguns casos.
A presença da terapeuta familiar foi importante elo para este tipo de encaminhamento. Acredito que este trabalho com pais e famílias destas crianças seja muito relevante para uma melhor evolução de seus quadros, já que o fechamento das dinâmicas familiares pode levar à estruturação de um lugar no qual estas crianças ficariam aprisionadas, e do qual dificilmente conseguiriam se mover. Daí a importância destes trabalhos para um melhor prognóstico destes casos. As intervenções nos aspectos relacionais da família na psicose infantil foram descritas por D.W. Winnicott (2000, 1993), e também por Geissman & Geismann (1993), e Berenstein (1988).
Creio que permanece em aberto a reflexão sobre os papéis parentais neste tipo de família e que analisarmos esta tessitura de vínculos pode ser de fundamental importância para o encaminhamento de trabalhos clínicos e pedagógicos com crianças autistas e psicóticas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVAREZ, A. Companhia viva. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. [ Links ]
BERENSTEIN, I. Família e doença mental. São Paulo: Escuta, 1988. [ Links ]
DIATKINE, R., QUATIER-FRINGS, F. Psicose e mudança. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1993. [ Links ]
GUEISMANN, C. GUEISMANN, P. A criança e sua psicose. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1993. [ Links ]
ROCHA, P. S. (org.) Autismos. São Paulo: Escuta, 1997. [ Links ]
TUSTIN, F. Barreiras autistas em pacientes neuróticos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. [ Links ]
WINNICOTT, D.W. Da Pediatria à Psicanálise & obras escolhidas. Rio de Janeiro, Imago, 2000. [ Links ]
_____________ A família e o desenvolvimento individual. São Paulo: Martins Fontes, 1993. [ Links ]
Endereço para correspondência
Marly Terra Verdi
E-mail: e-mail do autor
Recebido em 19/01/2003.
1ª Revisão em 10/02/2003.
Aceite Final em 25/05/2003.
1 Psicóloga, psicanalista, Membro associado da SBPSP, Membro associado e docente da SPAGESP - Sociedade de Psicoterapias Analíticas Grupais do Estado de São Paulo.