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Revista da SPAGESP
versão impressa ISSN 1677-2970
Rev. SPAGESP v.6 n.2 Ribeirão Preto dez. 2005
ARTIGOS
Processo grupal e crise da pós-modernidade: o que vemos, o que nos olha!
Group process and crisis of pos-modernism: what we see, what sees us!
Proceso grupal y crisis de la post-modernidad: ¡lo que vemos, lo que nos mira!
Sergio Kodato 1; Manoel Antônio dos Santos 2
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto - USP
RESUMO
Os autores refletem sobre a crise da subjetividade no mundo contemporâneo e seu impacto nas relações afetivas e sociais. Inserindo a questão em uma perspectiva histórica, apresentam uma visão crítica dos fatores que teriam levado ao empobrecimento do espírito comunitário e da preocupação coletiva com o bem comum nas últimas décadas. Argumentam que a franca expansão do capitalismo globalizado, tendo como marcas ideológicas o individualismo exacerbado e o consumismo desenfreado, deram novos contornos à vida grupal. São discutidas as implicações da chamada crise da pós-modernidade para a prática grupal, tanto no plano da clínica como da educação, enfatizando-se as experiências que conformam a desorientação do nosso olhar nos tempos sombrios em que vivemos.
Palavras-chave: Grupo; Subjetividade; Individualismo; Pós-modernidade.
ABSTRACT
The authors reflect about the subjectivity crisis around the world nowadays, and about its impact on the social and personal relationships. Putting this issue in a historical perspective, a critical view about the factors that would have developed the impoverishment of the community spirit and of the collective concern over the common good in the past decades was presented. In the authors’ opinion, the outrageous individualism and the uncontrolled consumerism gave new shapes for the life in group. The implications of the post-modernity crisis for the group practices, both in the clinical and educational context, was discussed, underlining the experiences that conform the disorientation of our look over the shadowy times that we live in.
Keywords: Group; Subjectivity; Individualism; Pos-modernity.
RESUMEN
Los autores reflexionan acerca de la crisis de la subjetividad en el mundo contemporáneo y su impacto en las relaciones afectivas y sociales. Centrando la cuestión en una perspectiva histórica, presentan una visión crítica de los factores que habrían llevado al empobrecimiento del espíritu comunitario y de la preocupación colectiva con el bien común en las últimas décadas. Argumentan que la franca expansión del capitalismo globalizado, teniendo como marcas ideológicas el individualismo exacerbado y el consumismo desenfrenado, dieron nuevos contornos a la vida grupal. Son discutidas las implicancias de la llamada crisis de la post-modernidad para la práctica grupal, tanto en el plano de la clínica como de la educación, enfatizándose las experiencias que conforman la desorientación de nuestra mirada en los tiempos sombríos en que vivimos.
Palabras clave: Grupo; Subjetividad; Individualismo; Post-modernidad.
O TESTEMUNHO DA CRISE NO GRUPO
O incremento da violência urbana e de criminalidade, o imaginário do medo e o pânico coletivo levaram os indivíduos a se refugiarem em suas residências, transformadas em fortalezas inexpugnáveis e, conseqüentemente, houve uma sensível redução nas relações afetivas e sociais, um empobrecimento do nosso espírito comunitário e do capital social. Solidão e individualismo são características da vida grupal na atualidade.
A descrença no princípio civilizatório de que “a união faz a força” afetou diretamente a ocupação do espaço público e a preocupação coletiva com o bem comum, colocando a vida grupal em processo de franca decadência. Com o advento das redes virtuais na web, a intensidade dos fluxos e trocas simbólicas, o antigo grupo, “olho-no-olho, tête-à-tête, todo mundo junto, reunidos novamente”, infelizmente, encontra-se um pouco esquecido, insinuando-se como sintoma de tragédia e catástrofe social.
De acordo com Carvalho (2000, p. 237), “...a catástrofe costuma trazer em si um problema de representação. A representação depende de uma catástrofe (sem catástrofe, não há o que representar), mas a catástrofe dificulta ou impede a representação...”. O esvaziamento dos rituais grupais e comunitários traz à tona o problema da degradação do processo civilizatório e a diminuição da capacidade de compreensão, elaboração e representação coletiva.
Segundo Nestrovski e Seligmann-Silva (2000, p. 8), “a palavra ‘catástrofe’ vem do grego e significa ‘virada para baixo’ (kata + strophé). A catástrofe é por definição um evento que provoca um trauma, um ‘ferimento’. ‘Trauma’ deriva de uma raiz indo-européia com dois sentidos: ‘friccionar, triturar, perfurar’; e também ‘suplantar’, ‘passar através’...”. Esse parece ser o paradoxo da experiência traumática: algo que “tritura, perfura”, mas que, ao mesmo tempo, “é o que nos faz suplantá-la”.
Se o incremento da dinâmica de grupo, das práticas psicológicas de grupos artificiais, a partir dos idos de 1970, disseminou a perspectiva e a esperança do grupo, em suas várias modalidades técnicas, como instrumento de transformação social e humanização das relações familiares e sociais marcadas pela frieza e alienação, por outro lado o fracasso nos vários tipos de técnicas grupais, as brigas e boicotes mútuos, a intensa crueldade daqueles que poderiam ser solidários marcaram uma experiência melancólica e traumatizante.
A característica essencial do trauma, segundo Caruth (1995, p. 23), é o “adiamento ou incompletude do que se sabe. O evento não é assimilado ou experienciado de forma plena naquele momento, mas tardiamente, na possessão repetida daquele que o experienciou”. Mas como sustentar esse tipo de conhecimento, que não pode ser falsificado pela reflexão, nem tornado de todo consciente, sem trair a natureza do vivido? Dependendo da perda, do fracasso, da desilusão, a representação e a conseqüente elaboração do trauma é lenta, dolorida e penosa.
Aonde foram parar nossos antigos companheiros “grupalistas”, entusiásticos propagadores do encontro, do convívio afetivo e social e da produção grupal? Ainda hoje nos espanta o fato de que a vivência da prática grupal, seja ela clínica ou educacional, fica a reverberar intensamente em nosso mundo interno, na repetição sucessiva das cenas, imagens, falas, ruídos, trocas simbólicas e de afeto. Parece que algo ainda se mexe com muita intensidade no campo das relações sociais e faz com que sempre sonhemos com situações grupais.
De acordo com Nestrovski e Seligmann-Silva (2000, p. 11), “a consciência da catástrofe modifica o nosso modo de perceber e representar, mas também de nos contrapor ao mundo. A exposição rotineira à violência talvez nos obrigue a aceitar, agora, a ampliação dos meios, e acatar o excesso como instrumento de sensibilização”. Cada um de nós sobrevive como pode a uma dose diária de exposição traumática, na tela da televisão ou no sinal de trânsito.
É inerente à prática grupal a frustração, ao nos depararmos com a dimensão da falta; todos competem, seja pela atenção do líder, pela palavra, pela aceitação e reconhecimento do outro, pelo calor da solidariedade, só que poucos conseguem atingir a meta: a maioria tende a sair frustrada da experiência & e talvez seja justamente na atitude de suportar e elaborar essa frustração que esteja o caráter civilizatório do grupo. Pena que a gente só fique sabendo disso em fase avançada da chamada “maturidade tardia”, que nos ensina a “tolerância à frustração e ambigüidade do mundo”.
Felman (2000, p. 13) interroga-nos com relação à imbricação entre catástrofe e ensino: “...existiria uma relação entre crise e o próprio empreendimento educacional? Entre trauma e pedagogia? Poderá o trauma instruir a pedagogia, e poderá a pedagogia lançar luz sobre o mistério do trauma? Poderá a tarefa da educação ser instruída pela experiência clínica e poderá, por outro lado, a experiência clínica ser instruída pela tarefa da educação?”.
Ainda segundo a autora citada
a psicanálise, assim como outras disciplinas que tratam do bem-estar do homem, procede recolhendo testemunhos de seus pacientes. Será que educadores poderiam ser, por sua vez, edificados pela prática do testemunho, enquanto buscam enriquecê-lo e repensá-lo por meio de algumas impressionantes lições literárias? Poderá o processo do testemunho & ou seja, testemunhar uma crise ou um trauma & ser usado em uma situação de sala de aula? O que de fato significa testemunho, em geral, e o que, em geral, ele tenta fazer? (FELMAN, 2000, p. 14).
No ano de 1973, como calouros do curso de Medicina, participávamos de uma festa, promovida pelo segundo ano, de recepção aos ingressantes, todos eufóricos, embriagados e “ovelhas” obedientes; de repente, o grupo do Centro Acadêmico vem nos avisar da morte de nosso colega da geologia Alexandre Vanuchi Leme, nos porões da ditadura, solicitando que não só parássemos aquela comemoração, como ajudássemos nos atos de protesto e solidariedade. Assim que o pessoal do movimento estudantil saiu, os veteranos ordenaram que esquecêssemos o que havia sido dito e continuássemos a festa. Nos barracões da cidade universitária, bem perto da geologia, presenciamos uma “calourada” com gosto macabro e sinistro.
Canetti (1974, p. 53) enfatiza o alinhamento do testemunho, “[...] em face de horror da vida, existe apenas um consolo: seu alinhamento aos horrores experimentados por testemunhas anteriores”. Para Felman (2000, p. 14), “...um testemunho de vida não é simplesmente um testemunho sobre uma vida privada, mas um ponto de fusão entre texto e vida, um testemunho textual que pode nos penetrar como uma verdadeira vida”.
Ainda nos idos de 70, participamos de cursos, grupos operativos, vivências e supervisões com Ana Quiroga e Alfredo Moffat, dois lídimos representantes da escola argentina de estudos sobre grupos, que também passaram por um contexto e momento político de resistência a um poder ditatorial. Eles sempre nos ensinaram que, diante da impossibilidade de qualquer prática grupal salutar nas instituições totais, como escolas autoritárias, prisões, manicômios e conventos, o melhor a fazer era observar, analisar a instituição, conhecer os mecanismos cotidianos de reprodução e legitimação da tirania. Numa conjuntura desfavorável, a tática seria “acumulação de forças”.
Wiesel (1977, p. 75) postula o tema da solidão do testemunhar: “...se algum outro pudesse ter escrito minhas histórias, eu não as teria escrito. Eu as escrevi para testemunhar e essa é a origem da solidão que pode ser apreendida em cada uma de minhas frases, em cada um dos meus silêncios”. Tentaram nos ensinar que ‘em boca fechada não entra mosquito’, ‘vence na vida quem diz sim’, ‘o silêncio é a alma do negócio’: tempos desafiantes em que se tinha que tomar cuidado com as palavras usadas, pois algumas podiam redundar em advertência, expulsão ou até cadeia e tortura.
Celan (1999, p. 33) é insistente: “...ninguém testemunha pelas testemunhas. Testemunhar é agüentar a solidão de uma responsabilidade e agüentar a responsabilidade, precisamente, desta solidão”. Ainda assim, a designação para testemunhar é, paradoxalmente, uma designação para transgredir os limites daquela posição isolada, para falar intercedendo pelos outros e para outros.
Quando nossas professoras, duas figuras emblemáticas que nos haviam ensinado o grupo operativo como ferramenta revolucionária, brigaram entre si, nosso ‘admirável mundo novo’ desabou. Depois, no movimento estudantil, confirmamos o triste fato de que gente de ‘esquerda’ também briga e muito feio, de um não olhar na cara do outro e até querer prejudicá-lo. Quantos amigos do peito se separaram por diferenças consideradas irreconciliáveis entre as convicções ideológicas, em verdade posições doutrinárias e sectárias sem convicção alguma.
O que o testemunho, no entanto, não oferece é um discurso completo, um relato totalizador desses eventos. No testemunho, a linguagem está em processo e em julgamento, ela não possui em si mesma uma conclusão, como constatação de um veredito ou como saber em si transparente. O testemunho é uma prática discursiva em oposição à pura teoria.
Nos anos 80, em plena época de redemocratização do país, depois de muita gritaria, a palavra, desgastada pela hipocrisia da política e dos demagogos, transformou o acontecimento grupal em “verborragia onanista”, delirium interpretativo. Nosso interesse nas práticas grupais se voltou para o psicodrama moreniano, a bioenergética reichiana, os grupos de encontro rogerianos e os de sensibilização gestaltistas. Naquela época “o corpo fala” e “sentir antes de pensar” eram algumas das palavras de ordem. Procurava-se romper com a circularidade da palavra no grupo, muita interpretação e pouca produção de saber instrumental. Queríamos aprender a linguagem do corpo vibrátil, pulsante, dramático, sensitivo e desejante. “O corpo fala” através de suas couraças, tocá-las era “carícia essencial”. Com a encenação do drama familiar no grupo liberava-se a emoção recalcada, resgatava-se a espontaneidade e a capacidade de estabelecer relações totais.
Nunca nos esquecemos de um amigo psicólogo que, tendo conhecido sua namorada numa sessão de bioenergética, que alguns maldosos chamavam de sessão “rela-rela, pega-pega”, depois que sacramentaram o relacionamento, proibiu a parceira terminantemente de freqüentar aquelas sessões eivadas de permissividade para a fantasia corporal. Descobria-se que o corpo não apenas “fala”, como também “fantasia”, “suspira” e “transpira”.
Em nossa formação profissional, nos anos 80, o grupo deixou de ser a “panacéia revolucionária” para se firmar como ferramenta profissional, seja nas escolas e indústrias, seja nos processos de terapia grupal. Baremblitt utiliza o termo “grupalistas” para se referir a todos aqueles que planejavam, coordenavam, observavam e disseminavam os grupos dinâmicos e artificiais, dos mais variados tipos, com objetivos profissionais e ideológicos. Como era bom acreditar (seria o marxismo-leninismo uma crença?) que era possível transformar o mundo.
Segundo Canetti:
[...] testemunhar & prestar juramento de contar, prometer e produzir seu próprio discurso como evidência material da verdade & é realizar um ato de fala, ao invés de simplesmente formular um enunciado. Como um ato de fala performático, o testemunho volta-se para aquilo que, na história, é ação que excede qualquer significado substancializado, para o que, no acontecer, é impacto que explode dinamicamente qualquer reificação conceitual e delimitação constantiva. (CANETTI, 1974, p. 59).
Como eram gostosas aquelas sessões de encontro nas chamadas “maratonas grupais”, um dispositivo grupal intensivo de sexta-feira à noite até domingo à tarde, todo mundo praticando grupo, comendo junto, dormindo junto, aprendendo, se divertindo e tentando conter o choro que tendia a brotar da emoção da convivência plena. Era visível a evolução da chamada cultura de grupo e intenso o processo regressivo coletivo; ao final, os coordenadores nos lembravam que estávamos retornando ao mundo “de fora” e que não era para chegar no ponto de ônibus e abraçar todo mundo, devia-se “tornar-se pessoa” com cuidado.
De acordo com LaCapra (1994, p. 64): “...a escolha de Camus (em A Peste), do médico como narrador privilegiado e a testemunha designada, pode sugerir que a capacidade de testemunhar e o ato do testemunho envolvem em si mesmos uma qualidade curativa e já pertencem, por caminhos obscuros, ao processo de cura”.
Ainda de acordo com LaCapra (1994):
...a presença do médico como testemunha chave também nos diz, por outro lado, que o que existe para testemunhar urgentemente no mundo humano, o que alerta e mobiliza a atenção da testemunha e que necessita do testemunho, é sempre, fundamentalmente, em um sentido ou outro, o escândalo de uma doença, de uma doença metafórica ou literal; e que o imperativo de testemunhar, que aqui deriva do contágio da peste & da erupção de um mal que é radicalmente incurável &, é, em si, de alguma forma, um correlativo filosófico e ético de uma situação sem cura e de uma condição radical de exposição e vulnerabilidade humanas (LACAPRA, 1994, p. 68).
Nos anos noventa, os grupos calorosos acabaram sendo contaminados pela ansiedade persecutória, reinante numa ordem social de espetacularização da violência e, com isso, transformaram-se no lugar da ameaça e, conseqüentemente, da defesa. O “jardim das delícias” deu lugar ao “inferno musical”, em que todo mundo desconfia de todo mundo, todo mundo quer “ferrar” todo mundo, só os inocentes e “puxa-sacos” se salvam, os autênticos “se estrumbicam”. Nos anos 2000, a prática grupal agonizante entra em sua fase terminal, pelo menos em sua face teatral, ao vivo e visceral, em “carne-e-osso”. Os encontros na praça e nos bares foram substituídos pelos grupos fugazes no espaço cibernético; “grupo agora só no orkut”.
Já foi sugerido que o testemunho é o modo literário & ou discursivo & de nosso tempo por excelência e que nossa era pode ser definida precisamente como a do testemunho. Vivemos uma experiência de um grupo profissional, dentro de um departamento de ensino na década de oitenta, onde oito professores foram demitidos por seus próprios pares, sendo acusados de subversão, conduta moral duvidosa e “infanticídio canibalesco”. Naqueles tempos funestos ainda se acreditava que “comunistas eram comedores de criancinhas”. Nós, que gostávamos de posar de esquerdistas, poderíamos ter sido os próximos, não fosse o fato de que a educação familiar dotou-nos de uma timidez e recalque que nos impediam de dar baixarias nas reuniões departamentais e ofender colegas com palavras de baixo calão.
Em seu uso mais tradicional e rotineiro no contexto legal & na situação de tribunal, o testemunho é fornecido e pedido quando os fatos sobre os quais a justiça deve pronunciar seu veredito não estão claros, quando há dúvida sobre precisão histórica e quando tanto a verdade como os elementos de evidência que a suportam são postos em questão. O modo legal do julgamento dramatiza, desse modo, uma crise da verdade dominada, culturalmente canalizada e institucionalizada. O julgamento tanto deriva quanto instaura o processo de uma crise de evidência, que o veredito deve resolver.
Quando, nos anos 1990, organizamos um grupo com os alunos da disciplina Psicopatologia, que questionou a internação de uma colega de turma no hospital psiquiátrico da universidade, foi solicitada a abertura de processo contra nós pela direção psiquiátrica, pois como docentes podem insuflar os alunos a agredirem e insultarem a família e os funcionários? Mas o que havia se passado era uma presença silenciosa da sala inteira em frente aos portões do hospital, demonstrando indignação pela insanidade da internação como medida terapêutica, ainda mais de uma aluna do curso de Psicologia. Sentimos na pele o mesmo que o Sr. K., o personagem kafkiano de O Processo Foi aí que aprendemos que toda instituição em que você trabalha é um processo que você carrega e que o persegue a vida inteira e, ao final, é de onde recebe uma bela punhalada na garganta.
Quais são, no entanto, os marcos da crise & maior, mais profunda, menos definida & da verdade que, partindo do trauma contemporâneo, trouxe o discurso sobre o testemunho à frente da cultura narrativa contemporânea, muito além das implicações de seu uso no contexto legal, limitado e restrito?
Seria o testemunho um simples meio de transmissão da história ou, por vias obscuras, uma forma de cura insuspeitada? Se a história tem dimensões clínicas, como pode o testemunho interferir, ao mesmo tempo, histórica (política) e clinicamente de forma pragmática e eficaz? Quando, na década de 1970, fomos presos em Belo Horizonte na tentativa de reorganização da UNE, no prédio da Polícia Federal, estávamos eufóricos. Nas celas, cantava-se: “Quando um muro separa, uma ponte UNE”; o carcereiro ameaçou jogar um balde d’água fria; fez-se um silêncio sepulcral, mas por dentro estávamos felizes. A esquizofrenia paranóide começa assim, você se considera importante porque é perseguido e preso pela polícia política.
O testemunho da doença inclui, de fato, ao mesmo tempo, a história que espreita por trás das manifestações clínicas e a opressão política que, silenciosamente, sinaliza por trás da confissão clínica. Segundo Felman (1991, p. 97), “...o testemunho do submundo dado por Dostoiévski inclui, igualmente, ainda que de forma imprevisível, não somente o motivo subterrâneo do acontecimento clínico aparente, mas ainda a dimensão política da opressão e a dimensão ética da resistência que procedem da ocorrência histórica e a inscreve no testemunho”.
Quando, nos anos oitenta, ouvíamos Luiz Inácio da Silva, o Lula, no palanque do primeiro de maio, em São Bernardo do Campo, em seu discurso franco, vigoroso, corajoso e inovador, chegávamos a lacrimejar. Hoje, vê-lo presidente da República reeleito em seu impecável Armani, fumando Cohiba, dá-nos um pouco de asco; afinal, foram praticamente três décadas dedicadas à “causa e utopia petistas”. “O que é isso, companheiro?” “E agora, José”, o que fazer? A crise do grupo petista fez com que as palavras perdessem seu sentido: foram profanadas, pisoteadas, enxovalhadas, já não se sabe mais o que é verdade e o que é mentira unicamente pelo discurso.
Por isso, adotamos o grupo no formato de oficina, pois, além da troca de olhares e palavras, cria-se algo, algum artefato estético, com valor simbólico, mas principalmente coletivo. Uma pintura, um desenho, uma dramatização, um jogral, enquanto produção ética e estética. Quando você enfrenta o desafio de construir alguma coisa socialmente útil com o outro, não há como não conhecer seu modus operandi, seu compromisso social e sua ética com o grupo. Aprendemos que, para fazer grupo, é preciso ter cuidado com as formas de fazê-lo, desde os ritos de iniciação até a exposição social e coletiva da chamada produção grupal.
Aprendemos também que o acidente desastroso é, paradoxalmente, prematuramente “conhecido” e, ao mesmo tempo, só é sabido por meio de seus efeitos, após sua consumação. Em outras palavras, de acordo com Felstiner (1995),
o acidente é conhecido tanto à medida que ele “persegue” a testemunha, quanto pelo fato da testemunha por sua vez persegui-lo. Se é o acidente que persegue a testemunha, é o caráter compulsivo da testemunha que está sendo destacado: a testemunha é “perseguida”, ou seja, ao mesmo tempo coagida e atada ao que, no impacto inesperado do acidente, é igualmente incompreensível e inesquecível (FELSTINER, 1995, p. 83).
Parece que perdemos a crença e a vontade no “encontro e união” dos vários grupos que freqüentávamos; hoje, com poucos amigos, um cinema, um futebol na televisão, uma pizza e um “papo bem furado” e medroso, geralmente sobre o último atentado ou episódio de violência urbana, sentimo-nos tanto satisfeitos quanto inconclusos.
Ainda segundo Felstiner:
o acidente não solta; é um acidente do qual a testemunha não consegue se libertar. Porém, se de forma ainda menos inesperada é a testemunha quem persegue o acidente, é provavelmente porque a testemunha, ao contrário, entendeu que uma liberação pode se processar e que a acidentalização é, inesperadamente, também, de alguma forma, uma libertação (FELSTINER, 1995, p. 84).
A testemunha caracteriza-se por sua convicção inabalável de que o acidente, formal ou clínico, carrega uma importância histórica que ultrapassa o indivíduo e que não é, portanto, de fato, trivial, apesar de sua idiossincrasia.
O que espanta é a prontidão da testemunha para perseguir o acidente, para buscar ativamente seu caminho e seu percurso através da obscuridade, através da escuridão e da fragmentação, sem compreender exatamente toda a abrangência e todo o significado de suas implicações, sem prever inteiramente para onde leva a jornada e qual seria a natureza precisa de seu destino final.
Somos todos testemunhas desses tempos sombrios de doença, crise, violências atrozes e inimagináveis. O ato de tentar representar esse horror através da decadência grupalista e civilizatória não poderia contribuir para sua naturalização? O que será que poderíamos fazer para atualizar, reviver ou fazer ressurgir, em nosso cotidiano institucional e vital, o grupo como dispositivo de “saber com sabor”, como diria Barthes? Kaës (1991) recomenda transformar o sofrimento psíquico advindo das relações institucionais em conhecimento. Nestrovski e Seligmann-Silva (2000) sugerem que a “representação da catástrofe” é o primeiro passo no sentido de sua superação.
O FRACASSO NO GRUPO: “O QUE VEMOS, O QUE NOS OLHA”
Assim, depois de três décadas vivenciando e observando a dinâmica de grupos formais (no contexto da educação e da clínica) e informais (pares, familiares e amigos), em nosso humilde olhar, pudemos perceber que o clima de sedução das vivências e de resistência eufórica e coletiva à opressão, que permearam a década de setenta, foi gradativamente dando lugar a um clima de medo, tensão e hostilidade.
De acordo com Santos (2002), “a compreensão da fenomenologia da violência pode ser realizada a partir da noção de uma microfísica do poder, de Foucault (1994), ou seja, de uma rede de poderes que permeia todas as relações sociais, marcando as interações entre os grupos e as classes”. Configura-se uma “microfísica da violência” na vida cotidiana, que legitima e sustenta uma certa paralisia e falta de criatividade nos processos grupais, principalmente educacionais.
Sempre olhamos nossos fracassos e insucessos, nos vários grupos que tentamos formar, como imaturidade, dificuldade, bloqueio da população alvo: alunos do curso de Psicologia, professores de escolas públicas, funcionários de hospitais públicos. Por que será que nunca olhamos o fracasso em nós?
“O que vemos, o que nos olha!” De acordo com Huberman (1998, p. 29), “o que vemos só vale & só vive & em nossos olhos pelo que nos olha. Inelutável, porém, é a cisão que separa dentro de nós o que vemos daquilo que nos olha. Seria preciso, assim, partir de novo desse paradoxo & Joyce disse bem: ‘inelutável modalidade do visível’.” Observar, olhar a dinâmica dos grupos, remete-nos a essa questão: não só “o que vemos”, mas “o que nos olha”.
Quais as conseqüências de se nomear o fenômeno da crise dos grupos formais e informais como civilizatória? De acordo com McWillians, “quando as instituições fraquejam e a sociedade política depende dos homens, estes se revelam frágeis juncos propensos a aquiescer, senão a sucumbir perante a iniqüidade”. Lapassade (1988) situa a questão da burocratização dos grupos nas instituições, onde só se preocupam com as regras, as normas, a pontualidade e esquecem-se da produção e da sabedoria do coletivo.
Nosso olhar pelo objeto “grupos nas instituições” configura-se inicialmente a partir do lugar da vítima, o suposto réu kafkaniano diante d'O Processo. A instituição como um tribunal que persegue, como nos idos tempos de regime autoritário, onde o poder acaba tomando a forma de um macartismo discriminatório e muitas vezes aniquilador de carreiras acadêmicas e administrativas. Não há nada a fazer enquanto as estruturas não forem modificadas radicalmente.
O que nos olha, nesse caso, é o fracasso, a anorexia de poder, o esvaziamento dos propósitos e um constrangido pedido de desculpas: “não pude fazê-lo porque não me permitiram”. Olha-se para a instituição como um bloco monolítico, um aparelho ideológico althusseriano, sufocante, sem saída, um panopticon. Olha-se para o grupo como um “bando de ovelhas dóceis e domesticadas”, que precisam ser conduzidas por alguma técnica ou idéia messiânica brilhante. Uma massa, um amontoado de gente inerte, à espera da salvação que virá com um líder messiânico.
Essa atitude pode traduzir, segundo o autor citado anteriormente, a mesma atitude de alguém que, diante de um túmulo, só percebe o “volume visível, e acaba por postular o resto como inexistente, rejeitando-o ao domínio de uma invisibilidade sem nome” (HUBERMAN, 1998). Olha-se para o túmulo na sua aparência, “um bloco de granito”:
uma espécie de horror ou denegação do cheio, isto é, do fato de este volume, diante de nós, estar cheio de um ser semelhante a nós, mas morto, e deste modo cheio de uma angústia que nos segreda nosso próprio destino. Mas, há também nessa atitude um verdadeiro horror e uma denegação do vazio: uma vontade de permanecer nas arestas discerníveis do volume em sua formalidade convexa e simples. (...) Uma vontade de permanecer a todo o custo no que vemos, (...) essa dupla recusa & consiste em fazer da experiência do ver um exercício de tautologia: uma verdade rasa lançada como uma verdade mais subterrânea e bem mais temível a que está aí embaixo. Uma vitória maníaca e miserável da linguagem sobre o olhar, na afirmação fechada, e congelada, de que aí não há nada mais que um volume... (HUBERMAN, 1998)
Isso nos remete aos assim chamados por Foucault (1994) de “marxistas acadêmicos”, de retórica rebuscada, mas que pouco penetram nesse real sólido, poroso e com buracos, lacunas, fendas, brechas, aberturas. Patto (1981) foi quem nos mostrou o olhar da análise institucional e o grupo como um aparelho ideológico a ser modificado. Sendo de natureza estrutural, os processos grupais nas instituições reproduzem a relação mais geral de dominação e exploração, inerente ao modo de produção dominante. Muitas vezes corre-se o risco de se cair nessa posição claustrofóbica, “não há nada a fazer, a não ser interpretar o acontecido grupal”, de “braços cruzados esperando a revolução”.
Só que, por outro lado, a necessidade de fornecer algumas respostas conjunturais às demandas e aos clamores de atores sociais implica misturar-se, embrenhar-se nas teias labirínticas da instituição e encontrar-se diante dessa indisponibilidade, resistência, impossibilidade de mudança & literalmente: “quebrar a cara”. Nesse momento, quem nos olha, de novo, é o fracasso, só que agora na forma da impotência: “tentei e não consegui”, juntamente com o legado desse fardo colonial, essa incompetência morosa e corrupta. Atraso epistemológico e instrumental.
Esse sentimento de “dar murro em ponta de faca” no cotidiano do poder rasteiro e dessa incomensurável preguiça tropical. Diante desse esvaziamento Huberman (1998) vai nos mostrar a outra atitude, oposta à tautologia, aquela baseada na crença:
Por outro lado, há aquilo, direi novamente, que me olha? E o que me olha em tal situação não tem mais nada de evidente, uma vez que se trata ao contrário de uma espécie de esvaziamento. Um esvaziamento que de modo nenhum concerne mais ao mundo do artefato ou do simulacro, um esvaziamento que aí, diante de mim, diz respeito ao inevitável por excelência, a saber o destino do corpo semelhante ao meu, esvaziado de sua vida, de sua fala, de seus movimentos, esvaziado de seu poder de levantar os olhos para mim. E que no entanto me olha num certo sentido & o sentido inelutável da perda... (HUBERMAN, 1998, p. 37)
É triste reconhecer que, depois de trinta anos de práticas grupalistas das mais diversas, algumas sistemáticas, outras singulares, pouco se conseguiu em matéria de cidadania e avanço epistemológico. A necessidade de dinamizar a prática grupal constitui-se em função e num momento de angústia social diante da violência e corrupção galopante, de desilusão com as utopias; o “fim da história”, as teses marxistas de transformação radical foram de certa forma refutadas pelo volume histórico, conferindo uma espécie de álibi irrefutável aos apologistas do mercado. O que fazer com a intenção de equacionar a questão da alienação no individualismo, por meio da transformação estrutural das instituições, dos grupos e da sociedade? O que fazer com as idéias “viúvas” do marxismo?
Continuando com Huberman (1998):
...mas, diante de um túmulo, (...) nossas imagens são mais diretamente coagidas ao que o mesmo quer dizer, isto é, ao que o túmulo encerra. Eis por que, quando o vejo, me olha até o âmago & e, nesse ponto, aliás, ele vem perturbar minha capacidade de vê-lo simplesmente, serenamente & na medida mesmo em que me mostra que perdi esse corpo que ele recolhe em seu fundo. Ele me olha também, e claro, porque impõe em mim a imagem impossível de ver daquilo que me fará o igual e o semelhante desse corpo em meu próprio destino de corpo que em breve se esvaziará, jazerá e desaparecerá num volume mais ou menos parecido. (HUBERMAN, 1998)
Agora percebemos o porquê de nossa impaciência e impotência diante do vazio grupal, daquele silêncio longo e aterrorizante, daquela inanição e esquizofrenia coletiva. Era mais fácil culpar o volume, a massa de manobra, indivíduos ‘filhotes da ditadura’, ‘almas dóceis e alienadas’, ‘sonolentos e desinformados’, do que se olhar na própria incompetência.
Assim, diante da tumba, eu mesmo tombo, caio na angústia & a saber esse modo fundamental do sentimento de toda situação, essa revelação privilegiada do ser-aí, de que falava Heidegger [...]: “É a angústia de olhar o fundo & o lugar & do que me olha, a angústia de ser lançado a questão de saber (na verdade, de não saber) o que vem a ser meu próprio corpo, entre sua capacidade de fazer volume e sua capacidade de se oferecer ao vazio, de se abrir". Essa vivência cotidiana com os grupos de pessoas, a quase impossibilidade de se modificar profundamente qualquer coisa, essa inelutável angústia, esse sofrimento corrosivo e suportável, esse dilaceramento inevitável que acaba por finalizar-se na doença do corpo & tudo desviando do olhar mais acurado e necessário possível. Depois de anos de grupos, oficinas, assembléias, reuniões, eleições, os fatores de risco para câncer e demência senil precoce avolumam-se em velocidade geométrica.
Frente à tautologia, na outra extremidade da paisagem, aparece um segundo meio para suturar a angústia diante da tumba. Ele consiste em querer ultrapassar a questão, em querer dirigir-se para além da cisão aberta pelo que nos olha no que vemos. Consiste em querer superar & imaginariamente & tanto o que vemos quanto o que nos olha. O volume perde, então, sua evidência de granito e o vazio, igualmente, seu poder inquietante de morte presente (morte do outro ou nossa própria morte, esvaziamento do outro ou nosso próprio esvaziamento). (HUBERMAN, 1998)
Essa segunda atitude consiste, portanto, em fazer da experiência do ver um exercício de crença: uma verdade que não é rasa e nem profunda, mas que se dá enquanto verdade superlativa e invocante, etérea, mas autoritária. É uma vitória obsessional & igualmente miserável, mas de forma mais desviada & da linguagem sobre o olhar, e a afirmação, condensada em dogma, de que aí não há nem volume apenas, nem um puro processo de esvaziamento, mas algo de Outro que faz reviver tudo isso e lhe dá um sentido, teleológico e metafísico.
Aqui o que vemos (o triste volume) será eclipsado, ou melhor, relevado pela instância legiferante de um invisível a prever, e o que nos olha se ultrapassará num enunciado grandioso de verdades do além, de alhures hierarquizados, de futuros paradisíacos e de face-a-face messiânico. É enfrentar a tumba e a perda do morto por meio de uma crença: “Ele morreu, mas ressuscitou e foi embora, já nem está mais aí”. No plano acadêmico, é a idolatria da questão do método, como panacéia científica. O método de pesquisas e o instrumento concebido são tratados como know-how milagroso, endeusado, comercializado e espetacularizado nos congressos científicos. Independentemente das condições sociais e econômicas do contexto, a técnica funciona competentemente, é a dinâmica de grupo e as estratégias grupais a serviço do neo-liberalismo, lucro imediato e promessa de “felicidade plena”.
Nessa outra vertente, não marxista, temos os discípulos do pragmatismo, do “progresso científico e tecnológico”, que são os mercadores das estratégias grupais, em diferentes contextos culturais. Com eles, aprendemos que a pesquisa e a prática científica, se não modificam substancialmente a realidade social, podem render bons dividendos desde que seus resultados ainda frágeis sejam mostrados como potentes. A importância dos estudos de interação social e dinâmica dos grupos, em vários países, mostra que a crise social afeta diretamente a capacidade do coletivo em se articular, se unir e impor sua vontade à minoria violenta, ilegítima e corrupta.
No entanto, reduzir o complexo fenômeno do declínio civilizatório, da vida grupal à violência, é permanecer na superficialidade de quem só olha no túmulo o volume de granito. É preciso atentar para as características singulares da vida grupal, em um país em desenvolvimento, em que governo e instituições não funcionam direito, como poderiam os grupos, ainda mais os públicos, serem ilhas de funcionamento ISO 9002? Parece que a crise civilizatória e grupal enquanto instituição não pode ser desconsiderada, pois no ‘jeitinho brasileiro’, ‘atrasos, faltas e saídas antecipadas’, ‘preguiça e faz-de-conta que funciona’ ‘nunca ninguém é avaliado’, ‘deita-se em berço esplêndido um gigante varonil adormecido’. Olhando para o fundo do túmulo, encontramo-nos diante da nossa própria morte e fracasso, em viver e modificar nossa insossa e burocrática vida grupal.
Retornando a Huberman, (1998, p. 209), que sugere dirigir o
...desejo de compreender a perspectiva da “forma com presença” para dois caminhos que abririam conjuntamente, romperiam e abandonariam tanto o fechamento essencialista da palavra “forma” quanto o fechamento substancialista da palavra presença. E seria preciso, a cada vez, abrir duplamente: saindo do círculo da tautologia, rompendo a esfera da crença. Abrir, neste sentido, equivale a falar em termos de processo e não em termos de coisas fixas. É recolocar a relação em sua prioridade nos objetos mesmos.
Entre a superficialidade do objeto “dinâmica de grupo”, reduzido às interações sociais circunscritas e a crença num método de transformação estrutural da vida grupal como solução, olhar para o processo, para a formação do fenômeno e não enrijecê-lo ou espiritualizá-lo. “O gesto mínimo, o gesto minimalista consistirá em falar antes de formação que, de forma fechada ou tautológica, consistirá em falar antes de apresentação que de presença real ou metafísica”.
Para preservar o “interminável limiar do olhar”, de acordo com Huberman (1998), Freud propunha um último paradigma para explicar a inquietante estranheza: é a desorientação, experiência na qual não sabemos mais exatamente o que está diante de nós e o que não está, ou então se o lugar para onde nos dirigimos já não é aquilo dentro do qual seriamos desde sempre prisioneiros. Propriamente falando, o estranhamento inquietante seria sempre algo em que, por assim dizer, nos vemos totalmente desorientados. Quanto mais um homem se localiza em seu ambiente, tanto menos estará sujeito a receber coisas ou acontecimentos que nele produzem uma impressão de inquietante estranheza.
Mas as duas estão ligadas, ontologicamente, por assim dizer, à experiência da inquietante estranheza. Pois nossa desorientação do olhar implica, ao mesmo tempo, sermos dilacerados pelo outro e sermos dilacerados por nós mesmos, dentro de nós mesmos. Em todo caso, perdemos algo aí; em todo caso, somos ameaçados pela ausência. Ora, paradoxalmente, essa cisão aberta em nós & cisão aberta no que vemos pelo que nos olha & começa a se manifestar quando a desorientação nasce de um limite que se apaga ou vacila, por exemplo, entre a realidade material e a psíquica. Será que Lord Acton tinha razão quando dizia que “...o poder corrompe; o poder absoluto corrompe absolutamente”?
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Endereço para correspondência
Sergio Kodato
E-mail: skodato@ffclrp.usp.br
Manoel Antônio dos Santos
E-mail: masantos@ffclrp.usp.br
Recebido em 27/08/05.
1ª Revisão em 11/10/05.
Aceite Final em 25/10/05.
1 Psicólogo, professor doutor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Coordenador do Observatório de Violência Escolar.
2 Psicólogo, professor doutor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Diretor Científico da SPAGESP Sociedade de Psicoterapias Analíticas Grupais do Estado de São Paulo.