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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.10 no.2 Ribeirão Preto dez. 2009

 

ARTIGOS

 

Saúde mental: uma visão vincular 1

 

Mental health: a vision of linking

 

Salud mental: una visión vincular

 

 

Waldemar José Fernandes 2

Núcleo em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares - NESME

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho se inicia com algumas considerações sobre como anda a medicina atual, no que diz respeito ao excesso de diagnósticos, concluindo-se que não existem doenças, mas pessoas doentes, reforçando o que a experiência tem mostrado, isto é, cada caso é um caso. A seguir, a visão psicossomática e os aspectos vinculares são abordados, assim como reflexões sobre a psiquiatria dinâmica, as neurociências e sobre o relacionamento entre o profissional de saúde e seus pacientes. Na parte final o autor propõe que uma atitude psicoterápica seja seguida pelo profissional de saúde, finalizando com observações sobre a psicoterapia em geral e a psicoterapia de grupo, em especial. O grupo é um dispositivo privilegiado para atender à necessidade de autoconhecimento, desenvolvimento, do emergir do potencial de cada pessoa e de se decifrar os enigmas das próprias vidas, entre eles, o da formação dos sintomas, e da comunicação realizada pelo corpo, em verdadeiro dialeto, com as peculiaridades da cada um.

Palavras-chave: Psicossomática; Vínculo; Psicoterapia; Psicoterapia de grupo.


ABSTRACT

This study begins with a few considerations about the status of present-day medicine, concerning the excess of diagnosis. It finally concludes that there are no diseases but sick people that, learning from my experience, are different in each case. Then the psychosomatic vision and linking aspects are approached, as well as reflections on dynamic psychiatry, neurosciences and the relationship between the mental health professional and his or her patients. At the end of this study the author proposes that a psychotherapeutic attitude should be accompanied by a mental health professional and adds observations on psychotherapy in general and, particularly, group psychotherapy. The group is a privileged device to fulfill the need of self-knowledge, progress, surfacing one’s potential and puzzling out their own life’s enigmas, among them, that of the formation of symptoms and how their are shown by the body, in its own language, with its particular peculiarities.

Keywords: Psychosomatics; Linkings; Psychotherapy; Group psychotherapy.


RESUMEN

Este estudio se inicia con algunas consideraciones sobre la situación de la medicina actual, en lo que se refiere al exceso de diagnósticos, y concluye que no existen enfermedades, sino personas enfermas. Esto comprueba lo que demuestra la experiencia, es decir, cada caso es único. A continuación, se plantea la visión psicosomática y los aspectos vinculares, así como reflexiones sobre la psiquiatría dinámica, las neurociencias y sobre el relacionamiento entre el profesional de salud y sus pacientes. En la parte final, el autor propone que un profesional de salud acompañe la actitud psicoterápica, añadiendo finalmente comentarios sobre psicoterapia en general y, en especial, psicoterapia de grupo. El grupo es un dispositivo privilegiado para atener a la necesidad de conocimiento de sí mismo, de la evolución, del emerger del potencial de cada persona y de descifrarse los enigmas de las propias vidas, entre ellos, el de la formación de los síntomas y de la manifestación del cuerpo, utilizando un lenguaje propio, con las peculiaridades da cada uno.

Palabras clave: Psicosomática; Vinculo; Psicoterapia; Psicoterapia de grupo.


 

 

No mundo atual, o conhecimento é baseado na separação. Separam-se os objetos
de seu meio, separa se o estudioso do objeto analisado, separam-se as disciplinas
uma das outras. Enfim, aprendemos muito bem a separar as coisas, mas não
aprendemos a juntá-las. Isso faz com que a propensão natural do ser humano, que
é analisar e sintetizar, não seja desenvolvida plenamente.
Edgar Morin (1999)

Trabalhando como médico psiquiatra há 39 anos, a experiência me mostrou a importância dos fatores psicológicos e do contexto social na saúde e na doença. Atualmente não se pode abrir um jornal, revista ou ligar a televisão, sem que algum especialista esteja abordando doenças e tratamentos. Na área da saúde mental as expressões - “a depressão”, a “síndrome de pânico”, “a esquizofrenia” referem-se especificamente a entidades nosológicas, mas, nessa visão simplista, o ser humano não aparece.

Poderia se imaginar que isso é uma distorção da mídia, e que os profissionais da saúde considerariam o ser humano de forma total, mas, de fato, não é a visão que predomina. É raro alguém sair de uma consulta sem um nome para sua doença, achando que, dessa forma, tudo será resolvido e seus males terão um fim: “tenho TDAH e terei a cura com a Ritalina”; “tenho fibromialgia e tomando a fórmula recebida na consulta a doença será eliminada”; “tenho úlcera gastroduodenal, causada por Helicobacter pylori, e com o antibiótico ficarei bom”. Boa parte desses pacientes será medicada também com ansiolíticos e antidepressivos.

Embora cansado, continuo pregando o que a experiência me mostrou: não existem doenças, mas pessoas doentes. Aliás, isso faz parte do conhecimento de todos: quem de nós não conhece casos de pessoas desenganadas, que estão vivas até hoje, apesar de prognósticos nefastos? O contrário também é verdadeiro: casos aparentemente bem diagnosticados e bem tratados, que evoluem muito mal. Ou seja, cada caso é um caso!

 

UMA COMPREENSÃO PSICOSSOMÁTICA

Pode ser determinante para se manter uma saúde razoável, assim como uma recuperação rápida quando se adoece, a ocorrência de alguns fatores, que passo a discriminar: a) Fator constitucional, como a herança genética facilita ou dificulta a evolução das doenças, b) Fatores psicológicos, familiares e profissionais, c) Atividade física, lazer, alimentação, d) Organização do tempo, a forma com que nos vinculamos e tantos outros itens que atualmente se juntam na manutenção da saúde integral e da qualidade de vida.

Todo sintoma tem um componente físico, ao lado de componentes emocionais, profissionais e familiares. A palavra psicossomática significa uma compreensão integral do ser humano. Os profissionais da saúde, aprendendo com a experiência, têm tido oportunidade de perceber que não existe separação, de fato, entre mente e corpo, assim como de reconhecer a enorme influência do contexto social na saúde e na doença.

Tal como Júlio de Mello Filho vejo a medicina psicossomática como "uma ideologia sobre a saúde, o adoecer e sobre as práticas de saúde, é um campo de pesquisas sobre estes fatos e, ao mesmo tempo, uma prática, a prática de uma medicina integral" (MELLO FILHO, 1992, p. 171). Infelizmente, não é essa a visão que predomina na saúde, com honrosas exceções.

Heládio Francisco Capisano foi um estudioso da visão psicanalítica dos sintomas. Em suas aulas podíamos refletir sobre temas da maior importância, como o seguinte, referente à gastrite:

Infelizmente só quando a gastrite crônica resiste às providências terapêuticas clássicas, o clínico ou o gastroenterologista se lembra do psicoterapeuta. Na verdade lhes escapa a riqueza do histórico, onde o paciente expõe a sua neurose mesclada nos dados anamnésticos de fundo orgânico. É uma pena, pois se volta ao conceito de alternativa de 60 anos atrás: se o problema não é físico, então é psicológico. Não existe separação entre soma e mente. O homem acredita no que vê, apalpa e é incrédulo no que respeita ao seu mundo emocional, do qual se afasta por medo (CAPISANO, 1990).

Imaginemos duas pessoas que estabeleceram um vínculo entre si. Quando nesse vínculo surge algo intolerável ocorre uma espécie de curto circuito nas instalações do aparelho psíquico. Nesse caso, um dos sujeitos não podendo suportar a situação desagradável, o ego procura recursos para contemporizar a situação. Um deles é transferir o psíquico para o somático, como se o corpo ficasse contaminado pelas inscrições do conflito psíquico entre essas pessoas.

O paciente faz comunicações conscientes, superficiais: perda de apetite, náuseas, vômitos, dor abdominal, entre outros, mas, pela dificuldade afetiva, não consegue ter uma boa comunicação, apenas os sintomas falam por ele. A descoberta do significado inconsciente dos sintomas não é racional.

No exemplo de Capisano, a gastrite pode ocorrer como episódio de vida do indivíduo em decorrência de conflitos psíquicos não resolvidos, albergados no inconsciente, em verdadeira descontinuidade psicossomática.

Como o paciente não consegue resolver seus conflitos entre mundo interno e externo, inscreve-se em seu corpo, caracterizando-se a gastrite, pois conflito mental não resolvido mobiliza órgãos em sua direção, nesse caso - o estômago. A pessoa impedida de continuar seu projeto de vida, seu diálogo com o outro, encontra na gastrite a solução, que vem a ser uma adaptação sofrida e inadequada. Para se alcançar a saúde deve-se procurar integração, onde se constitua uma unidade mente-corpo (CAPISANO, 1990).

Uma das expressões mais utilizadas nos consultórios atualmente, ao lado de estresse e depressão, é o termo ansiedade. Ansiedade é um estado afetivo caracterizado por incompreensão, insegurança, e insatisfação ao se entrar em uma experiência que não pode ser evitada. Tem raiz predominantemente psíquica. Está relacionada com a incerteza, com o desconhecido, e, por vezes com a impaciência com relação a acontecimentos futuros.

Quando põe em jogo a capacidade inata de ter medo, diante de perigo iminente e indeterminado, a ansiedade pode despertar reações neuro-vegetativas (taquicardia, dificuldade respiratória, sensação de desmaio, contraturas musculares com fortes dores, sudorese, boca seca, e tantos outros sintomas bem conhecidos na clínica). Muitos autores denominam-na, nesse caso, de angústia.

Criou-se o termo estresse, em medicina, para designar uma reação não específica do organismo a uma agressão qualquer. O homem, sendo obrigado a mobilizar suas defesas para fazer frente a uma ameaça, tem seu equilíbrio perturbado, causando um estado de tensão aguda.

Já o pânico, que seria um terror repentino e sem fundamento lógico, provocando reação desordenada, é fenômeno observável em qualquer pessoa, dependendo das condições e contexto. Para alguns profissionais, o pânico exige causa emocional, acarretando mudanças de comportamento, sintomas e, por conseqüência, alterações bioquímicas. Para outros, tal como uma moeda, tem duas faces, ocorrendo ao mesmo tempo, química e emocionalmente.

É ocorrência comum na clínica, com sintomatologia exuberante, servindo, hoje em dia, como diagnóstico para qualquer sintoma pouco conhecido.

No meio de tantos sofrimentos “cria-se” iatrogenicamente novo rótulo, entre 1980 a 1986, a “Síndrome do Pânico”, rótulo a que muitas pessoas se agarram como mecanismo de defesa, mascarando, como se faz com a depressão, um caldeirão vulcânico de muitas doenças de domínio clínico. A “Síndrome do Pânico” é uma angústia, cuja forma se apresenta agudamente, com grande desproporção de circunstâncias, e medo acentuado por perigo iminente à integridade vital do homem. É estado afetivo com sinal de alarme, pondo em jogo perigo de ameaça desconhecida, com os mais diversos sintomas (CAPISANO, 1991, p.15).

Com a repetição desta angústia, o organismo total, ameaçado por desequilíbrio, convoca a mente para reorganizar sua harmonia. Fracassando nesse propósito, surgem conflitos emocionais que deflagram alterações de comportamento e sintomas, acompanhados de inúmeras alterações bioquímicas, que são indiscutíveis. Ressalte-se, entretanto, tratar-se de angústia em decorrência de perda de controle, medo de enlouquecer e terror pela morte, observação já enfatizada por Capisano na mesma época.

Lamentavelmente, passou-se a dar valor exagerado às conseqüências bioquímicas, omitindo-se pesquisas dos conteúdos psíquicos. Uma pena, pois o material psíquico mais genuíno, o inconsciente, comanda a vida.

 

UMA VISÃO VINCULAR

Na área da saúde, e na saúde mental em geral, a experiência emocional que ocorre nas entrevistas é sempre de natureza vincular. Numa concepção bem abrangente, considero o Vínculo “uma estrutura relacional, onde ocorre experiência emocional entre duas ou mais pessoas ou partes da mesma pessoa, o que inclui os espaços intra-subjetivo, intersubjetivo e transubjetivo, e envolve a transferência e a contratransferência” (FERNANDES, 1994, p. 37).

O Encontro entre pessoas reais produz efeitos e cria um espaço intermediário de trocas. Assim, para o profissional de Saúde mental que trabalha com a psicanálise vincular, o espaço intersubjetivo tem especial destaque, pois o outro real externo corrige as fantasias e projeções, permitindo uma avaliação mais objetiva do contacto com o outro.

Janine Puget chama de interferência a tais efeitos, causados pela presença real do outro, pois não se trata de lembrança ou projeção de fantasia, mas de uma ocorrência em tempo real. O fato é que o presente impõe seus próprios significados e sinais – “uma via de abordagem para o que não pode ser pensado como repetição do passado. A isto poderíamos chamar a imposição de um presente” (PUGET, 2009, 123).

De certo modo, a interferência tem analogia com o que Bion (1979) dizia sobre o vínculo intersubjetivo, algo assim - quando duas personalidades se encontram, na conjunção destas duas personalidades cria-se uma tempestade emocional, um estado emocional muito diferente do que se nunca tivessem se encontrado.

Uma das perturbações ocorre na área do narcisismo, existente em todos nós, e, na presença do diverso e do alheio, muito sofrimento pode ocorrer, sendo necessário conviver e aceitar o que se desconhece, para administrar tal dificuldade. Tal ponto de vista nos coloca em maior contato com o outro, em sua totalidade, e mais próximos da verdade, que nunca é parcial, mas está na integração e nas diferentes perspectivas possíveis, de qualquer situação.

 

SAÚDE MENTAL, NEUROCIÊNCIAS E PSICANÁLISE VINCULAR

A psicanálise e as neurociências têm mantido importante diálogo, resultando em maior compreensão da complexidade do funcionamento mental, do nível simbólico da mente humana, e da influência das estruturas neuro-hormonais. Devemos integrar o psicossocial com o biológico, sendo a psicoterapia tão eficaz para modificar o funcionamento do cérebro como as drogas antidepressivas, idéia que compartilho com Gabbard (1998).

Com uma visão psicossomática da pessoa, o profissional de saúde em geral, e da saúde mental em particular passa a fazer um raciocínio mais amplo, fundamentado em conceitos psicodinâmicos. Dessa forma, poderá integrar fatores biológicos, psicológicos e sociais em sua avaliação da pessoa doente e da condição humana, que tem como referente último o homem em situação.

As psicoterapias psicodinâmicas, associadas ao uso correto dos modernos psicofármacos, desempenham importante função, devido à interdependência entre o cérebro e a mente. Como o distúrbio bioquímico não é o único, nem tampouco o principal causador dos transtornos de ansiedade ou depressivos, há que considerar os fatores emocionais, assim como a degeneração de células cerebrais, determinados por fatores constitucionais, não esquecendo os aspectos sociais.

Diferentes estudos têm mostrado evidente relação entre o estresse e as mudanças estruturais no cérebro do indivíduo deprimido. Outras pesquisas mostraram que tensões nas relações primitivas podem alterar as conexões nervosas que controlam a emoção, exagerando as respostas; enfim, “as pesquisas sobre o cérebro validaram o ponto de vista psicanalítico de que primitivas adversidades na infância podem criar psicopatologias no adulto” (KATZ apud FERNANDES, 2009).

Assim como as conexões nervosas das células podem ser destruídas na depressão, elas também podem ser reconstruídas com os tratamentos, que estimulam o crescimento de células nervosas em regiões chaves do cérebro, alterando o comportamento do ser humano.

Por isso, considero iatrogênica a conduta em que, após poucos minutos de consulta, o paciente recebe um diagnóstico e uma receita com antidepressivos e tranqüilizantes, dando a mensagem de que tudo se esgota aí. Anos depois, posso encontrar numa consulta, uma pessoa que não se responsabiliza por seus sintomas, que acha que é vítima de alguma doença, e que só os remédios, aos quais já está dependente quimicamente, pode salvá-la.

No outro extremo do raciocínio, considero saudável e preventiva a conduta em que o vínculo profissional de saúde-paciente vai se estabelecendo pouco a pouco, em clima de confiança, numa troca de idéias, tentando uma compreensão dinâmica dos fenômenos, verificando a possível relação dos sintomas com fatos ocorridos e com emoções não elaboradas.

Será um começo de relacionamento com uma visão integrada, psicossomática, onde o remédio está aliado à atividade física, lazer, terapia ocupacional e outras atividades. Todos juntos, os importantes cuidados paliativos e fatores de apoio poderão concorrer para a melhora dos sintomas, enquanto uma psicoterapia já estará se estabelecendo, mostrando a importância do autoconhecimento e de se conviver e administrar os fatos, a realidade externa e interna.

É dessa forma que pacientes que atendo há anos, me informam que estão com a mente acelerada, que perderam o sono ou estão delirando, me permitindo então fazer pequenos reparos na medicação, enquanto a psicoterapia vai transcorrendo.

 

O TRABALHO COM GRUPOS

Nesta exposição procurei colocar algumas reflexões sobre os vínculos, a medicina, a psicanálise e a saúde mental. Devo expor ainda algumas idéias sobre a importância dos grupos com inspiração psicanalítica.

A psicanálise vincular é uma forma de psicoterapia grupal em que, além da meta terapêutica, como alívio ou eliminação de sintomas, desenvolvimento de comportamentos mais saudáveis etc., existe também a procura do autoconhecimento e do desenvolvimento pessoal, proporcionado pelo aprendizado que ocorre nas relações interpessoais e na vivência com o grupo como um todo, entidade que reproduz a sociedade em que vivemos. Considero esse terreno, fértil para que, conseqüentemente possa frutificar em cada membro do grupo melhor discriminação entre mundo interno e mundo externo.

Na concepção bioniana, o crescimento mental ocorre por surtos, em níveis de mudança repentinos, que causam angústia, a qual ressurge a cada vez que ocorre qualquer mudança criativa. Para Bléandonu (1993, p. 225) “a originalidade de Bion estava em situar a origem deste processo infinito no corte biológico que o nascimento irremediavelmente efetua”.

A cesura do nascimento é o equivalente psíquico ao corte biológico do cordão umbilical. Nesse sentido, Freud, em "Inibição, sintoma e angústia" (1991, p. 162) já dizia que "há muito mais continuidade entre a vida intra-uterina e a primeira Infância, do que a impressionante cesura do nascimento permite acreditar".

Os aspectos pré-natais da personalidade, na cesura do nascimento, têm a tendência à cisão, ficando internalizado em todos nós algo de uma vida tribal, atávica, registro de nosso passado animal, em que se formavam clãs, famílias ou rebanhos. Assim, é impossível entender alguns sintomas se pensarmos que se desenvolveram somente após o nascimento. É necessário considerar as emoções que não puderam se tornar conscientes, nem verbalizadas.

Nenhum de nós ultrapassa totalmente essa fase primitiva. Assim, nas afecções psicossomáticas, podemos encontrar um aniquilamento do aspecto intelectual, com o ressurgimento do psicossomático, mais primitivo.

Bion observou que quando nós nos reunimos num grupo, criamos um fundo comum, onde emergem contribuições inconscientes. Tais contribuições constituem uma verdadeira mente de grupo, com unanimidade de pensamento e de vontade, conflitando com os desejos individuais.

Entre as importantes contribuições de Bion (1975) destaca-se a observação de que qualquer grupo se movimenta em dois planos: um plano consciente de funcionamento grupal que está voltado para a execução de tarefas, onde é fundamental a cooperação entre os indivíduos, e um plano inconsciente de funcionamento grupal, que fica em estado latente e suas manifestações clínicas correspondem a um primitivo atavismo de pulsões e de fantasias inconscientes.

Tal coexistência de planos de funcionamento costuma causar um constante conflito no grupo: uma tendência progressiva, ao lado de uma regressiva.

Ressalta Odilon de Mello Franco Filho (2003, p. 23):

Para Bion, Grupo não era uma entidade, mas um ponto de vista. Com isso ele se alinhava a Freud, para quem não havia diferença entre grupo e indivíduo. Bion enfatizava que, o que chamamos de "fenômeno grupal" se trata da captação de algo que já faz parte da mente do homem, independente dele estar reunido, ou não, com outras pessoas. O grupo faria parte de um funcionamento protomental, numa área em que corpo e mente não se distinguiriam, com registros carentes de simbolização e que, com a cesura do nascimento, só voltaria a se manifestar em condições especiais. Essas manifestações, na vida pós-natal, se traduziriam em termos de doença psicossomática ou comportamento grupal.

Dessa forma, podemos relacionar o termo "grupo" com processos inconscientes muito primitivos, sendo que tais grupos internos fazem parte de cada indivíduo, e, no dispositivo grupal, emergem e podem ser captados e trabalhados.

A experiência tem mostrado que nos grupos, sejam heterogêneos, sejam grupos específicos de pacientes somáticos, o autoconhecimento tem permitido boa evolução, crescimento pessoal e melhoria dos sintomas.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Enfatizo a importância do enfoque biopsicossocial. Os fatores psicodinâmicos, assim como os bioquimicos e os constitucionais estão sempre presentes em nossa atividade clínica. O enfoque biológico é fundamental, mas deve ser relativizado e integrado com o emocional e o social, assim nos aproximando realmente do conhecimento.

O estabelecimento de um vínculo profissional de saúde-paciente, que se fortaleça gradativamente, em clima de confiança irá ajudar a compreender o que vem se passando com sua saúde e novos padrões de vida poderão se estabelecer. Tais idéias são válidas para o médico geral e para os especialistas, inclusive o psiquiatra, vale também para o psicólogo, o enfermeiro, terapeuta ocupacional, fonoaudiólogo.

Essa conduta terá um efeito psicoterápico, ainda que não esteja programada uma psicoterapia propriamente dita. Na programação de uma psicoterapia, valem mais ainda, pois é inadmissível esse tipo de trabalho com uma visão parcial do paciente, menos ainda se a ênfase for dada apenas à doença.

Enfatizo também que, na visão psicossomática integral do ser humano, o trabalho com grupos é fundamental. O dispositivo grupo, através do estudo das interações e das diferentes formas de comunicação, permite um acesso indireto e um estudo da experiência emocional, das fantasias inconscientes, dos grupos internos e teorias da mente de todos os participantes.

O grupo é um dispositivo privilegiado para atender à necessidade de autoconhecimento, desenvolvimento, do emergir do potencial de cada um e de se decifrar os enigmas das próprias vidas, entre eles, o da formação dos sintomas, e da comunicação realizada pelo corpo, em verdadeiro dialeto, com as peculiaridades da cada um.

Espero que a reflexão sobre as questões abordadas aqui, possa trazer pequenas descobertas de abordagens mais criativas, profundas e eficazes na clínica e na pesquisa, e que, fomentando vínculos de natureza mais construtiva, estejamos ampliando possibilidades para dialogar e crescer, oferecendo melhores possibilidades de atendimento ao ser humano.

Na compreensão integral do homem, seja por si mesmo, seja pelo seu cuidador, há necessidade de se ver corpo e mente como unidade, com razão e emoção trabalhando juntos. Tal visão pode ajudar a equacionar as dificuldades do dia a dia, assim como os conflitos psíquicos não resolvidos, hospedados no inconsciente.

 

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Endereço para correspondência
Waldemar José Fernandes
E-mail: wbfernandes@terra.com.br

Recebido em 20/11/08.
1ª Revisão em 04/01/09.
Aceite Final em 11/02/09.

 

 

1 Trabalho apresentado no XVIII Congresso Latino Americano FLAPAG e X Simpósio CEFAS - “Práticas Institucionais na América Latina: Casal, Família, Grupo e Comunidade”, 2009.
2 Médico. Especialista em psiquiatria pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Membro fundador e docente do Núcleo em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares (NESME) e da Sociedade de Psicoterapias Analíticas Grupais do Estado de São Paulo (SPAGESP); Co-organizador e autor de vários capítulos do livro FERNANDES, W. J.; SVARTMAN, B.; FERNANDES, B. S. Grupos e configurações vinculares, 2003, 303p.