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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.18 no.2 Ribeirão Preto  2017

 

ARTIGOS

 

Desafios éticos na pesquisa com adolescentes envolvidos no tráfico de drogas

 

Ethical challenges in conducting research with adolescents involved in drug trafficking

 

Desafíos éticos en la investigaciones con adolescentes implicados en el tráfico de drogas

 

 

Alex Sandro Gomes Pessoa1, I; Renata Maria Coimbra2, II; Sílvia Helena Koller3, III

IUniversidade do Oeste Paulista, Presidente Prudente-SP, Brasil
II
Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Presidente Prudente-SP, Brasil
IIIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo discute as implicações éticas na pesquisa com adolescentes envolvidos em atos infracionais, enfatizando a realidade de grupos com histórico de envolvimento no tráfico de drogas. Na primeira parte, discute-se os indicadores sociais e psicológicos que estão associados ao engajamento de adolescentes e jovens na comercialização das substâncias psicoativas. Em seguida, é apresentada a experiência de uma pesquisa com esse grupo, enfatizando os dilemas encontrados no trabalho de campo em virtude de impasses que surgiram na pesquisa pela falta de clareza do comitê de ética que avaliou a proposta. Por fim, são debatidos os preceitos éticos da pesquisa com adolescentes com envolvimento no tráfico a partir das diretrizes definidas na Resolução n. 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde (CNS).

Palavras-chave: ética em pesquisa; tráfico de drogas; adolescentes.


ABSTRACT

This paper analyses the ethical implications in the research with adolescents in conflict with the law, highlighting the reality of groups with a history of involvement in drug traffick. In the first part, we discuss the social and psychological aspects associated to the engagement of adolescents and young people in the commercialization of psychoactive substances. Then, an experience in researching with this group is presented, emphasizing the dilemmas encountered in the fieldwork due to the inaccuracies of the ethics committee that evaluated the proposal. Finally, based on the guidelines defined in the Resolution n. 510/2016 of the National Health Council, the ethical issues of research with adolescents with involvement in trafficking are discussed.

Keywords: ethics in research; drug trafficking; adolescents.


RESUMEN

Este artículo discute las implicaciones éticas en la investigación con adolescentes involucrados en actos infractores, enfatizando la realidad de grupos con historial de implicación en el tráfico de drogas. En la primera parte, se discuten los indicadores sociales y psicológicos que están asociados al compromiso de adolescentes y jóvenes en la comercialización de las sustancias psicoactivas. A continuación, se presenta la experiencia de una investigación con ese grupo, enfatizando los dilemas encontrados en el trabajo de campo en virtud de impasses que surgieron en la investigación por la falta de claridad del comité de ética que evaluó la propuesta. Por último, se discuten los preceptos éticos de la investigación con adolescentes con implicación en el tráfico a partir de las directrices definidas en la Resolución n. 510/2016 del Consejo Nacional de Salud (CNS).

Palabras clave: ética en investigación; tráfico de drogas; adolescentes.


 

 

PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E ÉTICOS NA PESQUISA COM ADOLESCENTES ENVOLVIDOS NO TRÁFICO

O ato infracional, ou seja, as ações que se constituem como contravenção penal envolvendo adolescentes (ECA, 1990; SINASE, 2012), tem sido apontado como um dos principais desafios colocados ao poder público e as políticas sociais voltadas ao segmento infanto-juvenil no Brasil. Atividades consideradas ilícitas envolvendo adolescentes, como o roubo, furto, depredação de patrimônio público, envolvimento no tráfico de drogas, agressão sexual, entre outros, são situações presentes na realidade de diversas cidades do Brasil, incluindo municípios de pequeno, médio e grande porte (Conceição & Cammarosano-Onofre, 2013; Marques, 2013).

A compreensão dos fatores sociais que levam adolescentes a se engajarem nessas atividades, consideradas como ilícitas e prejudiciais ao desenvolvimento saudável desses grupos, é atravessado, muitas vezes, por modelos explicativos pautados no senso comum e no sensacionalismo midiático (Davis, 2013; Mestre & Assis, 2014). Tais prerrogativas sucumbem possibilidades analíticas pormenorizadas e criam discursos que se constituem como um desserviço para a compreensão de um fenômeno social complexo e multifacetado.

A partir destas constatações, fica evidenciada a necessidade de pesquisadores provenientes das diferentes áreas do conhecimento se engajarem nesse debate, com foco na desconstrução de propostas rasas e sem fundamento. Em especial, considera-se que as Ciências Humanas e da Saúde têm um papel central nessa empreitada, pois permitiriam, por intermédio da construção de diferentes saberes, a criação de propostas preventivas e interventivas relevantes para o enfrentamento de situações que envolvem adolescentes em atos infracionais. Tal compromisso exige não apenas o desenvolvimento de propostas metodológicas inovadoras (embora se reconheça a necessidade de procedimentos de pesquisa que estejam mais alinhadas com as expectativas da cultura juvenil na pesquisa com adolescentes em conflito com a lei), mas, entende-se como primordial que as questões éticas nas investigações conduzidas com essa população sejam analisadas e revisitadas. Compreender a intersecção dos métodos de pesquisa inovadores, que extrapolem as técnicas tradicionais empregadas (como por exemplo, entrevistas, questionários e observações), com a garantia dos preceitos éticos em pesquisa, sobretudo com crianças e adolescentes em situação de risco psicossocial, mostra-se indispensável.

Apesar do reconhecimento dos avanços no que diz respeito à elaboração de políticas governamentais voltadas para o atendimento socioeducativo desse grupo, estudos mostram que ainda prevalece um sistema de atendimento marcado por violências, desrespeito e falta de alinhamento às conquistas históricas dos movimentos sociais (Monte& Sampaio, 2012; Simões, 2014; Volpi, 2011). O desafio ético posto aos pesquisadores nesse campo adquire, portanto, três dimensões: 1) denunciar os sistemas de garantia de direitos que não exercem sua função protetiva; 2) estabelecer recortes investigativos que sejam respeitosos com os adolescentes envolvidos em atos infracionais, atribuindo-lhes possibilidades de fala e de expressão de suas aspirações e anseios; 3) assegurar que os dados fornecidos pelos participantes sejam analisados de forma crítica e repercutam na melhoria dos serviços prestados à população.

Os atos infracionais que envolvem adolescentes possuem diferentes implicações jurídicas - em termos das medidas socioeducativas aplicadas, que variam de acordo com a gravidade do ato - e psicológicas, uma vez que as razões que os conduzem a cometer a contravenção penal originam-se de diferentes motivações. Desse modo, torna-se essencial compreender a tipificação dos atos infracionais, visando ao estabelecimento de recortes de pesquisa que levam em consideração as especificidades do ato infracional cometido pelos adolescentes. Neste artigo, dar-se-á ênfase para a pesquisa e os preceitos éticos em relação aos adolescentes com envolvimento no tráfico de drogas.

O envolvimento de adolescentes na comercialização de substâncias psicoativas ilícitas é uma realidade de diversos países no mundo, mas em especial nas regiões marcadas por indicadores de desigualdade social saliente (Rocha, 2013). O envolvimento no tráfico está, notoriamente, associado a problemas de ordem econômica e social, que coloca muitas famílias numa condição desprivilegiada, sobretudo pela privação de direitos e inacessibilidade de recursos sociais de qualidade (Costa & Goldani, 2015).

As condições materiais e econômicas constituem-se como fatores preponderantes para o recrutamento de adolescentes de camadas populares nesse mercado, tido como altamente lucrativo, do ponto de vista econômico imediato (Picanço & Lopes, 2016). A falta de oportunidades na inserção de outras atividades sociais de prestígio, tanto da família quanto dos adolescentes, torna o tráfico atrativo e, em alguns casos, uma forma imediata de assegurar os recursos materiais básicos para subsistência (Zaluar, 2004). Assim, o recrutamento de adolescentes no tráfico de drogas é uma etapa posterior ao processo longo de privação de direitos básicos (Rocha, 2013). Estudos anteriores já mostraram que os adolescentes envolvidos no comércio de drogas ilícitas e suas famílias tiveram seus direitos violados em diversas áreas, entre elas, na saúde, educação, moradia, assistência social, formação profissional, entre outros (Nardi & Dell'Aglio, 2012; Simões, 2014; Vilarins, 2014).

Entende-se que os pesquisadores que almejam desenvolver estudos com essa população devam partir dessa premissa e estejam sintonizados com o papel ético-político que o recorte investigativo traçado deve adquirir. O reconhecimento da função social da ciência e da não neutralidade na produção do conhecimento deve balizar as motivações de pesquisadores que buscam compreender o envolvimento de adolescentes no tráfico. Em outras palavras, deve-se reconhecer que os elementos coletados no trabalho de campo com essa população só poderão ser compreendidos de maneira assertiva se forem submetidos a um modelo analítico mais abrangente que leva em consideração o processo histórico de subalternidade e privação de direitos dos adolescentes e de suas famílias.

O argumento defendido é que o tráfico de drogas envolvendo adolescentes tem sua gênese no modelo de organização social vigente (Feffermann, 2006). Isso significa que quanto mais injustiças sociais são identificadas em determinado contexto, maior a probabilidade de inserção de populações infanto-juvenis em atividades consideradas ilícitas (Zaluar, 2004). Dessa maneira, entende-se que os estudiosos dessa temática necessitam compreender outros fatores que circundam a realidade de adolescentes envolvidos no tráfico, como precariedade socioeconômica, violência urbana, ciclos intergeracionais de exclusão, entre tantos outros.

Os pesquisadores devem, ainda, reconhecer que a relevância dos estudos com essa população não deve ser pautada apenas na validação científica atribuída pela comunidade acadêmica, mas, sobremaneira, no caráter ético-político que a investigação deve adquirir. Isso evidencia o cuidado necessário nas interpretações dos dados, no encaminhamento de relatórios ao poder público, na devolutiva aos participantes e na produção de materiais didáticos e científicos divulgados nos diferentes canais. Levar em consideração o contexto de exclusão dos adolescentes envolvidos no tráfico é, sem dúvida, o primeiro cuidado ético que os pesquisadores devem assumir.

Do ponto de vista do funcionamento psicológico dos adolescentes envolvidos no tráfico de drogas, algumas ressalvas também se fazem necessárias para o estabelecimento de diretrizes éticas na pesquisa. A primeira é alusiva ao fato de que existem modelos teóricos apriorísticos em Psicologia que explicam os elementos que compõem a subjetividade (Martín-Baró, 1996). Inclui-se aqui a subjetividade dos adolescentes envolvidos no tráfico, apresentada por determinadas concepções filosóficas de maneira desarticulada do contexto social, atribuindo-lhes características inatistas e desvinculadas de seus contextos de vida.

O envolvimento de adolescentes no tráfico de drogas não está associado com características hereditárias ou traços de personalidade que os exporiam, por natureza, a maior propensão ao engajamento a estas atividades consideradas antissociais (Pessoa, 2015). Antes, compreende-se que os elementos que compõem a subjetividade destes adolescentes devem ser explicados por sua origem social, estabelecido no seio das relações sociais e da materialidade da vida (Mondini, 2011).

Assim, o contexto de exclusão social, somado a particularidades da cultura juvenil advindo das artimanhas do capitalismo (Mondini, 2011), traz implicações severas no que tange ao recrutamento dos adolescentes no tráfico. Um modelo de organização social marcado por relações hedonistas, efêmeras e que hiper valorizam o consumo, certamente está associado à boa parte dos fatores que explicam o que torna o tráfico atrativo ao segmento de adolescentes (Silva, 2015).

Em pesquisas anteriores com adolescentes envolvidos com o tráfico que recebiam atendimentos psicossociais no sistema socioeducativo (Pessoa, 2015; Pessoa & Coimbra, 2016), o tráfico apareceu permeado de sentidos pessoais positivos e trazia elementos valorativos para os adolescentes. As aspirações individuais, em muitos casos construídos a partir dos parâmetros impostos pelo contexto, só puderam ser atingidos após o engajamento no tráfico de drogas, que, como já dito, configura-se como uma atividade lucrativa para os segmentos empobrecidos da sociedade brasileira. O ideal de consumo imposto pelas grandes marcas e pela mídia aos adolescentes de camadas populares é alcançado, em alguns casos, apenas após o acúmulo de capital financeiro proveniente do tráfico (Pessoa, 2015). Os bonés, camisetas e tênis "de marca", objetos de desejo de adolescentes de diversas camadas sociais, não estão disponíveis por meio de mecanismos convencionais. Os padrões mercadológicos impostos à cultura juvenil estabelecem a necessidade do consumo desenfreada a qualquer custo (Silva, 2015).

Também foi constatado que os adolescentes do tráfico apresentavam um sentimento de desprestígio social e, somente após o início as atividades vinculadas ao tráfico, passaram a se sentir respeitados em suas comunidades (Pessoa, 2015). O sentimento de invisibilidade exige formas criativas de participação social (Zaluar, 2004), ainda que permeadas por riscos evidentes, mas que trazem respostas rápidas às necessidades dos adolescentes, tanto em relação a questões materiais quanto psíquicas.

Ainda em relação às motivações psicológicas que projetam adolescentes ao comércio de drogas, podem ser citadas as possibilidades da participação em festas. O consumo nestes espaços é uma atividade social valorizada por esse segmento etário. O tráfico permite, entre outras coisas, que os adolescentes passem a frequentar festas noturnas, apontadas como a principal atividade de lazer. Nestes locais, o dinheiro acumulado pela venda de drogas traz status social e os tornam, de acordo com seus relatos, mais atrativos para as meninas (Pessoa, Coimbra, Noltemeyer, & Bottrell, 2017).

Os pontos elencados até aqui são apenas alguns aspectos encontrados na literatura sobre o que motiva adolescentes a se engajarem em atividades vinculadas ao tráfico de drogas. Existem, no entanto, questões micro e macroestrutural que devem ser levadas em consideração. Qualquer abordagem de pesquisa que não se comprometa com o reconhecimento desses aspectos está propensa a produzir discursos inócuos e distantes do comprometimento ético-político que a problemática exige.

Assegurar os preceitos éticos na pesquisa com adolescentes com envolvimento no tráfico extrapola o atendimento das diretrizes estabelecidas pelo CNS. A obtenção de autorização dos envolvidos, o arquivamento e descarte do material, o contato respeitoso com os participantes e o delineamento de estratégias de devolutivas em linguagem acessível são temas relevantes, mas não esgotam os cuidados éticos que devem permear o processo investigativo. Os referenciais teóricos que explicam as motivações dos adolescentes a se envolveram no tráfico e os procedimentos metodológicos empregados devem ser o ponto de partida para primar por preceitos éticos nos estudos com essa população. Os modelos explicativos que não levam consideração os aspectos sociais e psicológicos imbricados na realidade dos adolescentes correm o risco de violar os diretos da população.

A partir destas interlocuções, evidencia-se a importância dos membros de Comitês de Ética que avaliam as propostas de pesquisa com crianças e adolescentes em situação de risco estar atentos e capacitados com relação a esses fatores. Empregar o modelo biomédico ou os discursos jurídicos, de forma descontextualizada, para averiguar os atendimentos éticos na pesquisa com populações infanto-juvenis expostas a indicadores de risco psicossocial, pode dificultar a construção de um corpo de conhecimento sólido e de relevância para melhoria dos serviços prestados a esta população.

 

O TRÁFICO DE DROGAS ENVOLVENDO ADOLESCENTES E AS APROVAÇÕES ÉTICAS

Nesta seção, serão apresentados alguns impasses colocados por um Comitê de Ética de Pesquisa (CEP) ao avaliar um projeto com recorte investigativo voltado para adolescentes envolvidos no tráfico. Mais do que apontar os equívocos que ocorreram, a intenção é compartilhar com os leitores as dificuldades impostas pelos pareceres emitidos pelo referido Comitê e problematizar a função social que tais instâncias podem ocupar no que tange à garantia dos princípios éticos na pesquisa com adolescentes, desde que suas ações estejam fundamentadas.

A pesquisa originou-se da tese de doutorado do primeiro autor desse artigo (Pessoa, 2015) e teve como objetivo central analisar como o tráfico de drogas poderia estar associado com o desenvolvimento positivo e saudável na vida dos adolescentes, o que foi posteriormente denominado como resiliência oculta. Tratou-se de um estudo misto, que contou com a utilização de escalas, entrevistas e observações, e recrutou adolescentes com e sem histórico de envolvimento no tráfico de drogas.

No caso do primeiro grupo, ou seja, adolescentes envolvidos no tráfico, os encontros estavam previstos para ocorrerem em instituições que atendiam pessoas que estavam em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto (liberdade assistida e prestação de serviço à comunidade) e em regime fechado (internação).Todavia, a entrada do pesquisador nas instituições de internação não foi autorizada pela administração estadual, responsável pela gestão das unidades de internação. O mesmo parecer reconheceu, entretanto, a relevância do estudo e recomendou que o projeto passasse por adequações e, posteriormente, fosse submetido a uma nova avaliação, mas, dessa vez, propondo a realização do estudo em instituições de semiliberdade. Portanto, os participantes passaram a ser adolescentes com envolvimento no tráfico que recebiam atendimentos em instituições de semiliberdade e em meio aberto (Pessoa, 2015).

As instituições de semiliberdade não representam expressivamente as medidas socioeducativas aplicadas no Brasil, pois se constatam poucas unidades distribuídas no território nacional (SINASE, 2012). Os adolescentes que recebem essa medida socioeducativa residem na instituição durante a semana, geralmente de segunda e sexta, e têm uma rotina de atividades pedagógicas, culturais e de qualificação profissional diárias. Aos finais de semana, está previsto que os adolescentes possam ir até suas casas para encontrar suas famílias. Trata-se de uma instituição que, geralmente, recebe adolescentes que estão encerrando a medida de internação e são, progressivamente, inseridos em atividades sociais. Os adolescentes estão sob tutela do Estado, o que traz implicações éticas em relação à participação em pesquisas.

No caso dos adolescentes com histórico de envolvimento no tráfico de drogas que eram atendidos em meio aberto, as ações ocorriam junto aos Centros de Referência de Atendimento Especializado em Assistência Social (CREAS). A prefeitura do município será responsável pela gestão destes serviços, que consistiam no oferecimento de intervenções psicossociais de média complexidade, de acordo com a Política Nacional de Assistência Social (PNAS, 2005). Nestes casos, os adolescentes, embora tenham uma obrigatoriedade imposta pelo sistema judiciário na frequência dos atendimentos no CREAS, ficavam sob responsabilidade das famílias, que respondiam legalmente por eles, portanto, decidiam sobre a participação ou não dos adolescentes em pesquisas.

Entre os documentos que deveriam ser organizados previamente pelos pesquisadores para aprovação do Comitê de Ética, estava a autorização das instituições em receber a equipe de pesquisa, que deveria ter acessado detalhes do projeto, incluindo o aporte teórico, os procedimentos adotados, o tempo de permanência na instituição e os recursos necessários para a coleta de dados, se houver. Esta etapa é nomeada pelo CNS como "etapas preliminares de uma pesquisa".

Alerta-se aos pesquisadores que fiquem atentos, no caso das instituições de regime fechado, em relação às diretrizes estabelecidas pelos governos estaduais onde as respectivas pesquisas serão propostas. O governo do estado é responsável pela implantação e gestão desses serviços e, muitas vezes, estabelece portarias que regulamentam a condução das pesquisas, seja com adolescentes ou com funcionários.

No estado de São Paulo, por exemplo, foi instituída a Portaria Normativa nº 155/2008 na Fundação Casa (instituição que aplica medidas em meio fechado neste estado). Trata-se de um documento que evidencia o fluxograma e os critérios de avaliação dos projetos submetidos ao Centro de Pesquisa e Documentação da Escola para Formação e Capacitação Profissional. Entre os diversos aspectos apontados no documento, ressalta-se a impossibilidade de utilizar recursos visuais na pesquisa com adolescentes, como máquinas fotográficas ou produção de vídeos, pois o emprego de tais técnicas, de acordo com a Portaria, poderia ocasionar a exposição dos adolescentes.

Como os pesquisadores necessitavam anexar junto ao Comitê de Ética a autorização das instituições para estabelecer contato com os participantes, o processo ficou condicionado à aprovação de instâncias e comitês próprios, para posteriormente ser encaminhado ao Comitê de Ética responsável por avaliar a proposta. Já em casos de estudos realizados em programas de medidas socioeducativas realizadas em meio aberto, como nos CREAS, este contato foi mais facilitado, especialmente porque os pesquisadores já haviam realizado outros estudos nestes espaços.

A pesquisa com adolescentes com histórico de envolvimento no tráfico e que são atendidos por instituições apresentaram dois cenários:

  • as instituições que atendiam os adolescentes em meio aberto, em especial por meio da liberdade assistida e da prestação de serviço à comunidade, deveriam demonstrar, através da assinatura do responsável pela instituição e/ou gestor do município, que os pesquisadores estariam autorizados em fazer contato com os adolescentes e suas famílias para realizar o convite para participarem da pesquisa;
  • no caso de instituições que atendiam os adolescentes em regime fechado, a saber: unidades de internação e semiliberdade, os pesquisadores deveriam recorrer, além das comarcas judiciais cujas instituições estavam vinculadas para obtenção da autorização junto ao juiz da vara da Infância e da Adolescência, a comissões internas ligadas à administração estadual das instituições que ofertam medidas socioeducativas de regimes dessa natureza que tiveram que deliberar favoravelmente à condução do estudo e o posterior contato com os adolescentes.

Os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) não foram dispensados em nenhuma situação. No caso de adolescentes atendidos em instituições de regime aberto, o representante legal do adolescente deveria sinalizar conhecimento e concordância com sua participação no estudo. Já nos casos em que houve autorização judicial, por conta do adolescente estar residindo em instituições de alta complexidade, como unidades de internação e semiliberdade, o TCLE poderia ser assinado pelos coordenadores ou diretores da instituição. Ambos os casos não dispensaram o preenchimento do Termo de Assentimento (TA), que foi apresentado aos adolescentes para que eles próprios decidissem sobre sua participação, que deveria ser voluntária e livre de qualquer forma de coação.

A Figura 1 sumariza as etapas que compuseram os procedimentos para obtenção de autorização do Comitê de Ética e do poder judiciário na pesquisa conduzida por Pessoa (2015). No entanto, dependendo das Portarias estaduais, tais passos podem sofrer alterações e até mesmo mudanças substanciais.

 

 

Embora as Etapas 1 e 3 tenham demandado muitos esforços por parte do pesquisador responsável, sobretudo pela extensa quantidade de documentos que deveriam ser apresentados às diversas instâncias, não houve contratempos ou empecilhos. O que ocorreu foi certa morosidade na divulgação das respostas, o que pode, dependendo do caso, trazer prejuízos ao cronograma de execução do projeto (como por exemplo, numa pesquisa de mestrado, cujo tempo de conclusão costuma ser menor). Em contrapartida, na Etapa 2, que consistiu no processo de avaliação do Comitê de Ética em Pesquisa, ocorreram situações pouco usuais e foi preciso questionar posturas adotadas através de uma carta de esclarecimentos submetida aos integrantes do CEP.

O parecer emitido pelo CEP na pesquisa de Pessoa (2015) apresentava expressões do campo jurídico e pouco usuais na literatura do desenvolvimento humano. No item que compunha o formulário de avaliação, intitulado "Avaliação dos riscos e benefícios", o primeiro aspecto citado causou estranheza aos pesquisadores. A indicação, extraída literalmente do documento, afirmava que "O pesquisador deveria submeter todas as questões e o roteiro completo das entrevistas a serem aplicados aos menores pesquisados, à análise e prévia ciência dos pais e/ou responsáveis" (Extraído do parecer emitido pelo Comitê de Ética que avaliou a proposta). Isso significa que, de acordo com o avaliador, referendado pelos demais membros que compõem a CEP, os questionários e os roteiros de entrevistas semiestruturadas deveriam ser submetidos previamente às famílias dos adolescentes. Para sinalizar concordância, os guardiões legais deveriam rubricar todas as páginas dos instrumentos, sendo que os mesmos formulários deveriam ser utilizados no momento da coleta de dados com os adolescentes.

Obviamente o parecer foi questionado e uma carta de esclarecimentos apresentada ao CEP para mostrar a inviabilidade da solicitação. Foi justificado que o manejo do material, tanto pelos adolescentes quanto por suas famílias, poderia implicar a "contaminação" dos dados (surgimento de vieses na amostra). As respostas obtidas, caso acatada a decisão do CEP, poderiam sofrer influências externas, como a pressão dos adultos sobre o tipo de respostas que deveriam ser apresentadas, quanto pelos próprios adolescentes, que ao lidar com as perguntas poderiam produzir discursos mais elaborados, mas não necessariamente vinculados aos seus contextos de vida e expectativas individuais.

O outro elemento questionado ao parecerista foi o fato de ter sido informado que questões complementares poderiam emergir durante o processo da condução da entrevista semiestruturada. O Comitê de Ética, mais uma vez apoiado em discursos jurídicos, pontuou que só poderiam ser feitas questões que fossem estritamente apresentadas no roteiro avaliado por este. Sabe-se, contudo, que adotar essa indicação implicaria a descaracterização da técnica prevista, que consistia justamente na elaboração de novas perguntas a partir dos conteúdos que emergissem da fala dos participantes. Também foi solicitado aos pesquisadores que incluíssem dados "mais precisos" no TCLE relativos aos responsáveis pelos adolescentes. Para exemplificar as solicitações pouco usuais do CEP, optou-se por transcrever um trecho que constou na ficha de avaliação feita pelo CEP e entregue ao pesquisador:

"FULANO DE TAL [expressão usada pelo próprio avaliador], brasileiro, solteiro, inscrito no RG sob o n. e no CPF (MF) sob o n., residente e domiciliado a rua X, número 00, bairro Pesquisa, na cidade de Presidente Prudente-SP, neste ato representado/assistido (usa-se representado quando menor de 16 e assistido quando mais de 16 e menor de 18) por FULANO DE TAL [expressão usada pelo próprio avaliador], brasileiro, solteiro, inscrito no RG sob o n. e no CPF (MF) sob o n., residente e domiciliado a rua X, número 00, bairro Pesquisa, na cidade de Presidente Prudente-SP")" (Extraído do parecer emitido pelo Comitê de Ética que avaliou a proposta).

O parecerista redigiu o texto e pediu que fosse inserido da mesma forma no TCLE. Tal indicação, como já mencionado, pouco usual, não aparecia em nenhuma resolução do CNS sobre a pesquisa com seres humanos. Além disso, boa parte das expressões usadas é pertinente à esfera judicial, o que traria dificuldades às famílias que poderiam aderir à pesquisa. Controversamente, a própria Resolução n.466/2012 do CNS informava a necessidade de estabelecer uma comunicação, verbal e escrita, que fosse acessível aos possíveis participantes. Portanto, o CEP que avaliou a proposta não atentou para as recomendações que deveriam balizar o processo de avaliação dos procedimentos éticos na pesquisa.

O caso relatado mostra os equívocos que os avaliadores que compõem os CEPs podem cometer. Visivelmente, privilegiou-se o atendimento de questões de ordem jurídica, secundarizando as implicações éticas da pesquisa na vida dos adolescentes e de suas famílias. Embora tenha mencionado a relevância do estudo, as solicitações trazidas configuraram-se como inapropriadas para a investigação, pois certamente repercutiriam na não exequibilidade do projeto de pesquisa.

Os problemas relatados também chamam atenção para o processo de judicialização que ocorre em diversas esferas quando se trata de atendimento ou serviços prestados a adolescentes em conflito com a lei (Ávila, 2013; Monteiro, 2006). Sobressai-se o discurso jurídico em detrimento dos elementos psicológicos e sociais que circundam a problemática dos adolescentes com histórico de envolvimento no tráfico de drogas. Ao que parece, o mesmo movimento ocorre em alguns procedimentos adotados pelos CEPs.

Todo esse contexto criado em torno da pesquisa exigiu que um processo de diálogo e de esclarecimentos constantes com o CEP em questão. Notou-se que havia insegurança na tomada de decisões e que a temática trazia desconfortos ao grupo que avaliava a proposta. O distanciamento dos CEPs de estudos com populações em situações de risco pode implicar equívocos na elaboração dos pareceres (Oliveira, Carlotto, & Dias, 2017), sobretudo quando se busca adaptar o modelo biomédico e jurídico de forma arbitrária e descontextualizada a fenômenos sociais (Amaral Filho, 2017). Há necessidade do estabelecimento de parâmetros éticos que estejam mais alinhados com os modelos de produção de conhecimento das Ciências Humanas e Sociais (Koller, 2008; Lisboa & Koller, 2000).

 

A RESOLUÇÃO N. 510/2016 DO CNS NA PESQUISA COM ADOLESCENTES DO TRÁFICO: ENTRE CONQUISTAS E AVANÇOS NECESSÁRIOS

Há muito tempo tem sido debatida a necessidade do estabelecimento de procedimentos dos Comitês de Éticas em Pesquisa mais alinhados com as especificidades das Ciências Humanas. As questões subjetivas e contextuais, inerente à investigação nessa área do conhecimento, por vezes, não são levadas em consideração, repercutindo em desafios para os cientistas sociais (sobre este assunto consultar o artigo que abre a coletânea deste número especial).

Alguns indicadores presentes na Resolução n.510/2016 do CNS, homologada no mês de abril de 2016, apontavam para o início da abertura de um diálogo mais estreito do CNS com os pesquisadores das Ciências Humanas e Sociais. Ao reconhecer as especificidades da área, se estabeleceriam, concomitantemente, possibilidades mais coerentes no desenvolvimento de pesquisas com adolescentes envolvidos no tráfico, que passariam a levar em consideração mais elementos conjunturais da realidade social e psíquica destes grupos.

Sem dúvida, um dos principais avanços refere-se ao processo de consentimento livre e esclarecido, bem como de seu registro. Prevalecia, até então, a necessidade de obter por escrito, em formulários específicos, o assentimento dos adolescentes e a autorização de seus responsáveis para participar de estudos. As populações que não tiveram acesso à educação formal, portanto, não alfabetizadas, eram praticamente negligenciadas neste quesito.

A Resolução n.510/2016 do CNS ampliou as possibilidades de obtenção do consentimento e assentimento, que podem ser fornecidas por diferentes mídias e estratégias, como maneiras diversificadas de expressão oral, de forma escrita e através da língua de sinais. Também se ampliou as maneiras de registrar o consentimento dos eventuais participantes, que pode ser de forma escrita, sonora, imagética e de forma a atender as peculiaridades dos participantes. No caso da pesquisa com adolescentes envolvidos no tráfico, tal mudança pode trazer implicações importantes. Embora a produção de imagens com adolescentes em conflito com a lei seja alvo de atenção do próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) e da Lei Federal nº 12.594/2012, que versa sobre o atendimento socioeducativo no território nacional, as novas indicações do CNS habilitam os pesquisadores a organizarem o processo de consentimento e o registro do mesmo em outros canais, como por exemplo, na gravação de áudios ou mesmo de vídeos. Caberia uma explicitação na apresentação do projeto ao CEP como esses procedimentos não implicariam exposição dos adolescentes. Similarmente, deve ser apresentado o detalhamento de como esse material será arquivado durante, pelo menos, 5 anos.

Em continuidade às reflexões sobre a produção e a divulgação de imagem dos participantes, a Resolução 510/2016, em seu Art. 7º, pontua que os participantes podem deliberar quanto à revelação de sua identidade e quais conteúdos podem ser associados à sua imagem. Isso significa que os nomes reais dos participantes, bem como imagens elaboradas no processo de pesquisa, poderiam compor os materiais de publicação e relatórios científicos, desde que os participantes demonstrem interesse e consintam.

Todavia, na pesquisa com adolescentes envolvidos no tráfico de drogas, a possibilidade de divulgar o nome dos participantes e suas imagens entra em contradição com diversas leis federais e estaduais expressas em documentos oficiais. Os pesquisadores devem estar atentos a estas questões e, acima de tudo, resguardar a integridade do adolescente. O uso inadequado desses procedimentos pode implicar em sanções aos pesquisadores, tal como já previsto nas próprias Resoluções do CNS.

Ainda sobre a o recolhimento das assinaturas dos responsáveis legais para obtenção de autorização para participar do estudo (no caso de participantes atendidos em instituições de medidas socioeducativas em meio aberto), sabe-se das dificuldades que os pesquisadores podem se deparar. Em muitos casos, os adolescentes com histórico de envolvimento no tráfico possuem vínculos familiares fragilizados e, não raramente, completamente rompidos. Desse modo, o acesso a estes participantes, a partir das prerrogativas colocadas pelo CNS na Resolução n. 466/2012, tornava-se inviável.

Após a divulgação da Resolução n.510/2016, passou a ser reconhecido que existem casos para os quais a obtenção do termo de consentimento é inviável e, portanto, existe a possibilidade da dispensa do registro por escrito. Caberá aos pesquisadores contextualizar ao CEP os motivos impeditivos do registro de consentimento e/ou assentimento, que, de forma circunstanciada, deverá emitir parecer sobre a pertinência de tal solicitação. Esta medida poderia ser aplicada em casos cujos adolescentes em conflito com a lei expressem desejo de participar da pesquisa, mas tenham dificuldades de receber autorização de sua família por conta dos vínculos que estão enfraquecidos. Uma alternativa seria apresentar ao CEP que, na etapa do processo de consentimento e assentimento, haja uma testemunha que acompanhe a manifestação de consentimento. Essa pessoa não pode ter nenhum vínculo com a pesquisa, mas podem ser convidados profissionais que atendem os adolescentes no CREAS ou em outros contextos institucionais. Tal premissa é válida apenas em casos que se comprove a impossibilidade de obtenção dos registros de consentimento e assentimento.

Um esclarecimento adicional, apresentado na nova Resolução, envolve a questão do ressarcimento aos participantes. De maneira mais explícita do que nas resoluções precedentes, o texto aponta para a possibilidade de pagamento aos participantes no que se refere às despesas relativas ao deslocamento e alimentação. Essa era uma dúvida constante entre os cientistas sociais. Países como Canadá e Austrália têm adotado o pagamento em espécie pela participação das pessoas em estudos realizados nas universidades. Entende-se que o tempo dedicado das pessoas ao projeto deve ser considerado e, mais do que isso, reconhecido através de ressarcimentos financeiros. Trata-se de estímulos para garantir a presença dos participantes, contudo não podem mover as respostas pelos recursos oferecidos. Pesquisadores no contexto internacional têm recrutado adolescentes e jovens em situação de exclusão na execução de projetos de pesquisa, tanto na etapa de coleta de dados quanto na análise do material obtido. Portanto, assegurar preceitos éticos na pesquisa com adolescentes em situação de exclusão social exige modernização na maneira de compreender o processo investigativo e na compreensão da ética em pesquisa.

A divulgação dos resultados de pesquisa também ganhou destaque na nova Resolução. O documento enfatiza que os pesquisadores devem organizar maneiras de compartilhar os resultados obtidos na investigação com os participantes. Desse modo, quando conduzidos com adolescentes, podem ser adotadas estratégias que dialoguem com a cultura juvenil, como cartoons, histórias em quadrinhos, apostilas, dinâmicas em grupo, performances, vivências corporais e expressivas, blogs, redes sociais, entre ouras. Estudiosos comprometidos com a temática do envolvimento de adolescentes no tráfico de drogas devem buscar maneiras de compartilhar seus achados a partir das referências culturais que estes grupos trazem.

Por fim, a Resolução n. 510/2016 aprovada pelo CNS pode ser considerada uma conquista que traz alguns avanços na pesquisa com adolescentes em conflito com a lei, incluindo àqueles envolvidos no tráfico de drogas. Todavia, existem impasses que ainda carecem de mais discussões em espaços democráticos e deliberativos. Os pesquisadores vinculados as Ciências Humanas e Sociais devem ocupar esses espaços e tornarem-se representativos nas cadeiras junto aos CEPs. Apenas com um amplo debate em torno dos preceitos éticos e das mudanças que ainda são necessárias será possível aprimorar diretrizes que normatizam a ética na pesquisa que envolve seres humanos, especialmente com grupos expostos a situações de vulnerabilidade social, como é o caso dos adolescentes envolvidos no tráfico de drogas.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É fundamental compreender a realidade social e as questões psicológicas que fazem parte do contexto de vida de adolescentes com histórico de envolvimento no tráfico. Negligenciar esses aspectos pode produzir discursos desalinhados com os princípios éticos da pesquisa com populações em situação de vulnerabilidade social.

Os CEPs necessitam revisitar profundamente os parâmetros estabelecidos na Resolução n. 510/2016. Corriqueiramente têm sido divulgados pareceres que mostram que o documento ainda não está inserido efetivamente nas práticas dessas instâncias. Como resultado da falta de incorporação da resolução, são emitidos pareceres que atrapalham, atrasam e impedem as pesquisas e o bom andamento dos projetos. Portanto, exercem uma atitude impositiva e contrária ao progresso da ciência.

Embora a Resolução n. 510/2016 reconheça que as Ciências Humanas e Sociais possuem particularidades que devem ser levadas em consideração, nota-se predominância de pesquisadores da área da Saúde nos CEPs, o que implica divulgação de pareceres embasados no conhecimento focado primordialmente desta área, mas também recorrendo a questões jurídicas. É fundamental que os pesquisadores das Ciências Humanas e Sociais participam mais efetivamente dos Conselhos e Comitês de Ética em Pesquisa, para que seja dada materialidade aos avanços obtidos na esfera documental.

Este artigo limitou-se a debater a realidade da pesquisa com adolescentes envolvidos no tráfico de drogas que estavam sendo atendidos por instituições especializadas. Não foram mencionadas as possibilidades e desafios investigativos, do ponto de vista ético e metodológico, com adolescentes que também estão envolvidos no tráfico, mas que nunca foram encaminhados ao poder púbico, tampouco receberam atendimentos na rede de proteção. O envolvimento de adolescentes em situação de alto risco social, como o tráfico de drogas e a exploração sexual, exigirão debates ainda mais profundos sobre ética na pesquisa com populações vulneráveis.

A Resolução n. 510/2016 representa um marco importante no avanço dos preceitos éticos na pesquisa em Ciências Humanas e Sociais. Reconhecer as especificidades da área talvez tenha sido o maior ganho, mais até do que as mudanças e adaptações procedimentais. Todavia, o aprimoramento das normativas e a incorporação desses pressupostos nos CEPs ainda constituem-se como etapas a serem alcançadas. Os CEPs, com base nesta nova resolução devem avançar a pesquisa e não manter os pesquisadores cativos a preceitos alheios a questões éticas relacionadas à pesquisa com seres humanos, que se baseiam na resolução anterior, que era retrógrada, baseada em um modelo médico e que não permitia a pesquisa adequada, especialmente com participantes em situação de vulnerabilidade social e pessoal. A investigação com populações em situação de risco social, como o caso de adolescentes envolvidos no tráfico, traz questões éticas que ainda estão em aberto e convoca pesquisadores das Ciências Humanas e Sociais a se engajarem nas mudanças necessárias.

 

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Agência Financiadora: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Processo n. 2012/07418-8)

 

Endereço para correspondência
Alex Sandro Gomes Pessoa
E-mail: alexpessoa2@gmaill.com

Recebido: 10/06/2017
1ª revisão: 10/11/2017
Aprovado: 16/11/2017

 

 

1 Alex Sandro Gomes Pessoa é docente do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Oeste Paulista (UNOESTE). Realizou Pós-doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
2 Renata Maria Coimbra é docente do Departamento de Educação e do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP).
3 Sílvia Helena Koller é docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS).

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