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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.20 no.1 Ribeirão Preto jan./jun. 2019

 

ARTIGOS

 

Protagonismo juvenil no contexto da medida socioeducativa: um relato de experiência

 

Juvenile protagonism in the context of the socio-educational measure: an experience report

 

Protagonismo juvenil en el contexto de la medida socioeducativa: un relato de experiencia

 

 

Fabiane Cristina Pereira Marcilio1, I; Scharlise Thoman2, II; Vinicius Coscioni3, I; Sílvia Helena Koller4, I

IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS, Brasil
II
Faculdade de Desenvolvimento do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este relato de experiência descreve uma intervenção conduzida com adolescentes em medida socioeducativa, cujo objetivo era oferecer um espaço para que os participantes propusessem atividades a serem desenvolvidas no sistema socioeducativo. A intervenção foi realizada por uma equipe universitária que trabalhou conjuntamente com dois adolescentes internos em uma unidade socioeducativa de Porto Alegre, RS. Ao longo de seis encontros, foi construído, em coautoria com os adolescentes, um programa intitulado "Semana da Profissionalização", que se propõe a fornecer informações sobre mercado de trabalho e profissionalização aos adolescentes da unidade socioeducativa. Além da autoria do programa, a intervenção contribuiu para o desenvolvimento dos adolescentes, que participaram de modo ativo em seu processo socioeducativo, operacionalizando o princípio de protagonismo juvenil expresso por lei.

Palavras-chave: Protagonismo juvenil; Adolescente em conflito com a lei; Medidas socioeducativas; Intervenção psicossocial.


ABSTRACT

This experience report describes an intervention conducted with adolescents undergoing socio-educational measures. The intervention aimed to offer a space for participants to propose activities to be developed in the socio-educational system. Activities were conducted by a university team that worked together with two adolescents residing in a juvenile detention center in Porto Alegre, RS. A program entitled "Professionalization Week" was created during six meetings, in co-authoring with the adolescents. The program aims to provide information about job market and professionalization for adolescents undergoing socio-educative measures. Besides the authorship of the program, the intervention has contributed for the development of the adolescents, who participated actively in their socio-educational process, operating the principle of juvenile protagonism expressed in law.

Keywords: Juvenile protagonism; Adolescents; Socio-educational measure; Psychosocial intervention.


RESUMEN

Este relato de experiencia describe una intervención conducida con adolescentes en cumplimiento de medida socioeducativa de internación, cuyo objetivo fue ofrecer un espacio para que los participantes propusieran actividades para seren desarrolladas en el sistema socioeducativo. La intervención fue realizada por una equipo universitario que trabajó conjuntamente con dos adolescentes internos en una unidad socioeducativa de Porto Alegre, RS. Durante seis encuentros, se construyó, en coautoría con los adolescentes, un programa titulado "Semana de la Profesionalización", que se propone ofrecer información sobre el mercado de trabajo y formación a los adolescentes de la unidad socioeducativa. Además de la autoría del programa, la intervención ha contribuido para el desarrollo de los adolescentes, que participaron de modo activo en su proceso socioeducativo, operacionalizando el principio de protagonismo juvenil expreso por ley.

Palabras clave: Protagonismo juvenil; Adolescentes en conflicto con la ley; Medidas socioeducativas; Intervención psicosocial.


 

 

O presente relato de experiência descreve uma intervenção, desenvolvida pela Universidade, com adolescentes em medida socioeducativa (MSE) de internação. O objetivo da intervenção consistiu em oferecer um espaço para que os participantes propusessem atividades a serem desenvolvidas no sistema socioeducativo. A participação dos adolescentes na construção dessas propostas foi um aspecto importante na execução da tarefa. A intervenção resultou na criação do programa "Semana da Profissionalização", proposto pelos adolescentes participantes da intervenção, em coautoria com a equipe universitária que mediou as tarefas. O objetivo do programa criado é fornecer informações sobre mercado de trabalho e profissionalização a adolescentes em MSE de internação sem possibilidade de atividades externas (ISPAE). O programa encontra-se em avaliação pela presidência da Fundação de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul (FASE-RS) e pretende-se executá-lo futuramente. O processo de construção da intervenção embasou-se nas diretrizes pedagógicas sugeridas pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE (Brasil, 2006), que ordena a execução das MSEs no Brasil. As principais diretrizes associadas ao desenvolvimento destas atividades foram: a incompletude institucional, o protagonismo juvenil, e a profissionalização e projetos de vida como propósitos da MSE.

O SINASE (Brasil, 2006) considera a incompletude institucional como um princípio fundamental norteador da prática socioeducativa. Portanto, incentiva que os demais setores governamentais e não-governamentais sejam articulados como forma de otimizar o serviço ofertado a adolescentes em MSE. A formação de uma rede integrada de atendimento é essencial para que seja possível a efetivação da garantia dos direitos dos adolescentes, contribuindo efetivamente em seu processo de novas inserções sociais. A Universidade, como instituição de produção do conhecimento, pode contribuir de modo a fomentar novas meios de promover a prática socioeducativa, incluindo os adolescentes neste processo.

O protagonismo juvenil no âmbito das diretrizes do SINASE (Brasil, 2006) propõe a participação ativa dos adolescentes mediante a conscientização de sua condição de sujeito de direitos. É definido como o incentivo à participação dos adolescentes no âmbito de atuação familiar, social e escolar. Ocorre a partir da criação de espaços e condições que lhes proporcionem a construção do ser em termos sociais e pessoais, contribuindo para o desenvolvimento do senso de identidade, autoestima e projetos de vida (Costa, 2000). Para que as ações de protagonismo juvenil possam ocorrer em sua essência, é necessário permitir aos adolescentes a participação como autores principais. Ou seja, eles devem decidir, planejar, executar e avaliar as ações executadas com plena autonomia. Assim, há a mudança de paradigma na qual os adolescentes deixam de ser percebidos como problemas e passam para uma condição de fazer parte da solução (Esteves, 2005). A Convenção sobre os Direitos da Criança (Brasil, 1990) também preconiza a participação como um princípio fundamental. Os artigos 12º e 13º da Convenção estabelecem o direito dos adolescentes de expressarem livremente sua opinião em assuntos de seu interesse, bem como o direito de liberdade de expressão. Com tais propósitos, deve-se proporcionar aos adolescentes a oportunidade de serem ouvidos em questões que lhes afetem, bem como a liberdade de procurar, receber e divulgar informações.

Os parâmetros pedagógicos para a gestão de programas socioeducativos apontados pelo SINASE (Brasil, 2006) descrevem que as ações socioeducativas devem exercer influência sobre a vida dos adolescentes, de modo a favorecer a elaboração de projetos de vida. Um projeto de vida pode ser definido como "a intenção de transformação da realidade, orientado por uma representação do sentido dessa transformação, em que são consideradas as condições reais na relação entre passado e presente na perspectiva de futuro" (Marcelino, Catão, & Lima, 2009, p. 547). A adolescência é caracterizada por ser um período do desenvolvimento propício para construção de projetos de vida. Ações que possibilitem e favoreçam tal processo são vistas como fatores de proteção para o desenvolvimento bem sucedido dos adolescentes e devem, portanto, ser providas durante o cumprimento da MSE.

No processo de elaboração de projetos de vida, os adolescentes necessitam do apoio de figuras representativas, que os estimulem a buscar caminhos mais saudáveis. Isto inclui, entre outros aspectos, o trabalho e a educação como novas formas inserção social (Costa & Assis, 2006). Um estudo sobre projetos de vida com adolescentes em MSE de internação (Coscioni, Marques, Rosa, & Koller, 2018) verificou que alguns participantes concebiam o futuro vinculado a práticas infracionais, enquanto outros o relacionavam com educação, trabalho e família. Apenas os projetos de vida ligados a práticas infracionais, contudo, apresentavam um sentido de ação claro para o futuro, sendo os demais compreendidos como um sonho distante. Os resultados desse estudo demonstraram que o cumprimento da MSE parece pouco efetivo em sua função de promover os projetos de vida dos adolescentes. Deve-se, assim, propor atividades que otimizem a elaboração de um sentido de ação para o futuro, tais como a escolarização e oficinas de profissionalização.

A profissionalização é um dos eixos a ser seguido pelas ações e unidades socioeducativas, possibilitando aos adolescentes o desenvolvimento de competências e habilidades básicas para compreensão sobre o funcionamento do mercado de trabalho (Brasil, 2006). A partir do desenvolvimento das competências pessoais (aprender a ser), relacionais (aprender a conviver) e cognitivas (aprender a conhecer), é esperado que os adolescentes possam desenvolver a competência produtiva (aprender a fazer), contribuindo para inserção no mercado de trabalho. A formação profissional aos adolescentes no âmbito das ações socioeducativas deve ocorrer por meio do oferecimento de cursos e programas de formação inicial e continuada, bem como de educação profissional técnica de nível médio com certificação reconhecida. É essencial que a escolha do curso respeite os interesses e anseios dos adolescentes e que seja pertinente às demandas do mercado de trabalho.

As atividades realizadas no sistema socioeducativo devem colaborar para autonomia e construção do senso crítico dos adolescentes. Observa-se, entretanto, que é recorrente o oferecimento de ações de cunho repreensivo e/ou punitivo, o que acaba desfavorecendo sua execução, além de pouco contribuir para o desenvolvimento dos adolescentes (Rossato & Souza, 2014). Pesquisas conduzidas com adolescentes em MSE no Brasil revelaram dificuldades dos programas socioeducativos em desenvolver atividades de profissionalização conforme as sugestões do SINASE. Um estudo realizado com adolescentes em MSE de internação no interior do Rio Grande do Sul (Muller, Barboza, Oliveira, Santos, & Paludo, 2009) verificou que os cursos profissionalizantes oferecidos no local ficavam distantes dos desejos e necessidades dos participantes. Outra pesquisa realizada em Porto Alegre (Branco, Wagner, & Demarchi, 2008) revelou que os adolescentes não percebiam o trabalho como algo dignificante, mas apenas como um meio de obter recursos materiais. As possibilidades de atividades para esses adolescentes, tanto laborais quanto educativas, eram escassas e não recebiam o devido apoio financeiro do governo. A falta de sentido no trabalho também foi indicada em um estudo realizado com adolescentes em MSE de meio aberto no Distrito Federal (Jacobina & Costa, 2007). Para os participantes, a experiência de trabalho contribuía mais para a formação de uma "não identidade de bandido" do que para a promoção de uma condição de autonomia e pertencimento social.

Os adolescentes em cumprimento de MSE participantes dos estudos acima relatados apresentaram expectativas de futuro voltadas para estudo e trabalho, entretanto os programas socioeducativos pareciam enfrentar dificuldades para oferecer atividades profissionalizantes que considerassem seus interesses. Ressalta-se, assim, a importância do desenvolvimento de ações que trabalhem com os adolescentes temas relacionados à profissionalização, como forma de auxiliar a elaboração de projetos de vida desvinculados da prática infracional. O contato com temas pertinentes ao mercado de trabalho e atividades de profissionalização pode ser favorecido mediante a inserção da Universidade nos programas socioeducativos.

 

MÉTODO

O presente artigo configura-se como relato de experiência, resultado de uma intervenção realizada durante o período de abril a junho de 2016 em uma unidade socioeducativa de internação em Porto Alegre. A unidade localiza-se em uma região de vulnerabilidade socioeconômica e recebe os casos mais complexos (expressão utilizada pelos funcionários do local). Entre esses casos, encontram-se os adolescentes que cometeram atos infracionais de maior gravidade e/ou reincidentes no sistema socioeducativo. A unidade foi projetada para receber 120 adolescentes e, no momento da realização da intervenção, residiam 94 adolescentes no local, os quais se encontravam distribuídos em cinco subunidades independentes.

Fizeram parte da intervenção uma psicóloga e agente socioeducativa funcionária do sistema socioeducativo, dois estudantes de graduação em psicologia e dois adolescentes residentes no local. Por questões logísticas e visto que a unidade socioeducativa não dispunha de adequada estrutura para realização da atividade com um grande grupo, definiu-se que apenas dois adolescentes iriam participar da intervenção. A seleção foi realizada por conveniência, obtendo-se, para tanto, o auxílio de profissionais da equipe técnica do local. Os adolescentes tinham 17 e 18 anos, sendo escolhidos por demonstrarem interesse em atividades grupais e bom relacionamento com os demais. Neste sentido, considerou-se que adolescentes com este perfil seriam mais predispostos a exercer o papel de liderança favorecendo, assim, o diálogo com os demais residentes de forma a lhes representar durante o desenvolvimento da intervenção.

O projeto inicial, intitulado "Espaço para delineamento de projetos de intervenções sugeridos por adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação", tinha como objetivo oportunizar aos adolescentes a construção de propostas de atividades que pudessem futuramente ser desenvolvidas na unidade socioeducativo, assegurando-lhes a participação ativa e a promoção da autonomia durante todo o processo. Assim, os adolescentes foram motivados a realizar a construção de um projeto, enquanto a equipe universitária manteve-se no papel de orientadora do processo de criação. Esta distribuição de papéis está de acordo com a proposta de desenvolvimento de protagonismo juvenil dentro das MSEs (Brasil, 2006).

A proposta de trabalho foi apresentada a todas as partes envolvidas (i.e., FASE-RS; gerência e equipe técnica da unidade socioeducativa; e os adolescentes), antes de sua execução. Primeiramente, o contato foi realizado com a FASE-RS, no qual o diretor presidente assinou um termo de anuência. Em seguida, o projeto foi apresentado à gerência e equipe técnica da unidade, que auxiliou no recrutamento dos participantes. Por fim, os adolescentes, que aceitaram participar voluntariamente da intervenção, assinaram os termos de consentimento ou assentimento (a depender da idade). A intenção era de que, ao final das atividades, um novo projeto de intervenção fosse redigido, de modo a ser apresentado para a presidência da FASE-RS.

A construção do projeto foi realizada a partir de encontros, com duração média de uma hora cada, efetivados com base em um roteiro de atividades semiestruturado. O roteiro previa inicialmente a realização de quatro encontros, ainda que seis tenham sido necessários para a finalização do projeto. Os adolescentes foram agentes fundamentais para a realização das atividades, participando de todo o processo, desde sua proposição inicial, até a formulação dos objetivos, justificativa, método e avaliação dos resultados. Além disso, os adolescentes assumiriam o papel de representar e de ser porta voz das ideias dos demais internos da instituição, visto que seriam estimulados a conversar com eles sobre a criação do projeto. O programa desenvolvido a partir da intervenção relatada encontra-se em avaliação pela presidência da FASE-RS.

Os encontros foram registrados em um diário de campo sistematizado (Coscioni, 2017), cujo conteúdo descrevia as percepções e sentimentos da equipe sobre o ambiente físico, as atividades realizadas e as interações interpessoais entre equipe, adolescentes e funcionários. O conteúdo dos diários de campo era utilizado em supervisões sucedidas com um professor da instituição formadora. A partir das discussões realizadas em supervisão e dos registros em diário de campo, foram destacados eventos que ocorreram ao longo da experiência que poderiam elucidar seu desenvolvimento. Estes materiais foram utilizados para a redação do presente relato de experiência. A Tabela 1 sumariza o(s) objetivo(s) e as atividades desenvolvidas em cada um dos encontros.

 

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A inserção da equipe universitária na unidade socioeducativa perpassou algumas dificuldades, o que denota uma fragilidade na implementação do princípio de incompletude institucional. A burocratização e a precarização do trabalho presente no sistema socioeducativo apresentaram-se como fatores que contribuíram para a resistência inicial em relação ao projeto. As condições de trabalho nestas instituições são recorrentemente precárias, tanto em termos de limitações de espaço físico, como pela falta de investimento em recursos humanos e financeiros (Coscioni, Costa, Rosa, & Koller, 2017; Souza & Costa, 2012).

Diante do pouco investimento em qualificação e curtos prazos para implementação de normas institucionais (elaboração de relatórios técnicos e planos individuais de atendimento, por exemplo), o que se observa é que os procedimentos são voltados mais para a função de encarceramento e segurança do que para a proposta pedagógica das MSEs. A reduzida quantidade de funcionários também é um fator que prejudica não apenas a frequência da ocorrência de atendimentos, como a saúde do trabalhador (Coscioni et al., 2017; Francischini & Campos, 2005; Souza & Costa, 2012). Assim, desde o início foi utilizado como estratégia a apresentação detalhada sobre o projeto, a fim de superar as resistências sobre o trabalho a ser desenvolvido na unidade.

O projeto foi apresentado em uma reunião com a equipe gerencial e técnica, que teve a presença dos membros da equipe universitária e de funcionários do local. Os funcionários demonstraram cautela, apresentando questionamentos que dificultavam sua execução: "Interessante, mas por que não fazem este projeto com os funcionários?"; "Complicado fazer com os adolescentes, pois os mesmo criam expectativas"; "Se preparem, será um muro de lamentações"; "Não sei se vai ter sala disponível". Ainda que observada certa resistência quanto à execução do projeto, ficou definido que o projeto deveria ser iniciado na semana seguinte, delegando-se a uma técnica a função de selecionar dois adolescentes que se enquadrassem nos critérios de inclusão do projeto (i.e., interesse em atividades grupais e bom relacionamento com os demais).

O estabelecimento do vínculo com adolescentes em MSE muitas vezes pode ser dificultado tanto devido a vivências anteriores negativas dos adolescentes com outros profissionais, como também pela crença de que o objetivo será apenas de extrair informações e julgar os delitos cometidos. De modo geral, a sociedade considera-os como "delinquentes" e "criminosos", o que reforça a expectativa dos adolescentes de um discurso externo taxativo e moralista (Rossato & Souza, 2014). Entretanto, não se observaram manifestações persistentes de resistência por parte dos adolescentes. Os contatos iniciais caracterizaram-se por certa timidez entre os participantes, mas gradativamente se mostraram mais participativos e envolvidos nas atividades propostas, manifestando-se de forma mais espontânea.

No primeiro encontro, os dois adolescentes registraram nos cartazes os seus nomes e as iniciais das facções que estavam vinculados. Um deles colocou recortes com imagens relacionadas com gastronomia. A equipe também registrou os nomes e recortes de figuras relacionadas com os seus interesses. Ao explanarem os cartazes gerados na atividade, os adolescentes falaram sobre fatos relacionados com suas vidas, o motivo por estarem cumprindo a MSE, a relação com os familiares, interesses pessoais e o que desejavam no futuro. O encontro foi interrompido precocemente por um servidor, que informou que precisavam usar a sala e que já havia passado o tempo previsto para a atividade.

No segundo encontro, os adolescentes mostraram-se engajados na atividade e levantaram questões que foram registradas em um cartaz e debatidas em grupo: regulação das visitas íntimas; possibilidade de uso de celular e cigarro na unidade; aumento da quantidade de alimentos trazidos pelas famílias; incentivo à prática de esporte; grupos de debate; oportunidade de cursos profissionalizantes. A possibilidade de "cigarro" e "celular" dentro da unidade foram revistos pelos próprios adolescentes com o desenrolar do debate grupal, concluindo que tal tipo de regulamentação comprometeria a execução da MSE: "Viraria o Central" [fala de um dos adolescentes, comparando a unidade socioeducativa ao presídio da região]. Ao final das atividades, os adolescentes foram convidados a compartilhar as discussões realizadas com os demais adolescentes internos. Juntos decidiriam qual dessas demandas seria escolhida para direcionar a redação do projeto de intervenção.

Algumas das demandas levantadas pelos adolescentes podem ser compreendidas como direitos previstos pelo SINASE, principalmente no que se refere ao direito à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer e o direito à profissionalização e proteção no trabalho. Apesar das MSEs terem como objetivo promover o desenvolvimento pessoal e social dos adolescentes (Costa & Assis, 2006), a realidade mostra-se controversa com tais princípios. As unidades socioeducativas caracterizam-se, de modo geral, por um contexto de vulnerabilidade e privação de direito, oferecendo atividades e serviços precários (ou até mesmo ausentes) que não levam em consideração os interesses e necessidades dos adolescentes (Coscioni et al., 2017). Nota-se, assim, um distanciamento entre retórica e realidade visto que mesmo demandas previstas em lei não estavam sendo cumpridas em sua completude.

No terceiro encontro, os participantes revelaram que, após consulta aos demais internos, a melhor demanda a ser trabalhada no projeto seria a de oferecer cursos de profissionalização de acordo com os interesses dos adolescentes. Também apontaram que esta seria a demanda com maior potencial de aprovação pela unidade. A partir da definição da demanda, os adolescentes foram incentivados a refletirem sobre a justificativa do projeto. Eles relataram que na unidade havia pouca oferta de curso de profissionalização de acordo com os interesses dos adolescentes. Ademais, ressaltaram que cursos deste tipo ajudariam para melhor prepará-los para o mercado de trabalho, além de se configurar como uma forma de ocupar o tempo livre durante o período de cumprimento da MSE. Com relação ao objetivo do projeto, esse recebeu inicialmente a seguinte redação: "oferecer cursos profissionalizantes de acordo com os interesses dos adolescentes". O mesmo foi elaborado pelos adolescentes no momento de execução das atividades, sendo a equipe universitária responsável por orientá-los.

A demanda de profissionalização levantada por esses adolescentes corrobora com a literatura, à medida que demonstra a defasagem do direito de profissionalização dentro das unidades socioeducativas. Pesquisas com adolescentes em cumprimento de MSE (Branco et al., 2008; Jacobina & Costa, 2007; Muller et al., 2009) já evidenciaram a falta de atividades profissionalizantes de acordo com os interesses de seus participantes. Neste sentido, percebe-se a dificuldade da implementação do SINASE no que se refere ao oferecimento da formação profissionalizante conforme as inclinações dos adolescentes.

No quarto encontro, a proposta inicial dos adolescentes de oferecer cursos profissionalizantes foi reformulada a partir da supervisão realizada com o professor da instituição formadora. Ainda que coerente enquanto demanda para a autoria de um projeto de intervenção, destacou-se a dificuldade de concretização de um projeto como este, tendo em vista que dependeria não só da aprovação da unidade, mas de recursos financeiros e materiais indisponíveis no momento. Um projeto como o inicialmente proposto necessitaria de maior planejamento e a ideia original era a de autoria de intervenções mais simples, passíveis de gerenciamento por uma pequena equipe universitária.

Portanto, foi proposta a ideia de criar um espaço que pudesse oferecer informações aos adolescentes sobre as possibilidades de profissionalização, conforme seus interesses. Os adolescentes concordaram com a nova proposta e ajudaram na redação do novo objetivo geral do projeto, qual seja: "criar um espaço que amplie o conhecimento dos adolescentes em regime de ISPAE sobre possibilidades de profissionalização". Começou-se a ponderar o que seria necessário para a realização do projeto e, ao final das atividades, os adolescentes foram incentivados a conversar com os demais, a fim de fazerem um levantamento das principais profissões de interesse entre os internos.

No quinto encontro, os adolescentes trouxeram as profissões de interesse do grupo, as quais foram elencadas a partir de discussões com os demais adolescentes que se encontravam em internação no momento. Foram apontados os seguintes campos de interesse: Fotografia, Gastronomia, Grafite e Língua Inglesa. Além destes, destacaram o interesse em realizar um encontro com a temática sobre mercado de trabalho, o qual teria por objetivo nortear a busca por emprego, estágio e espaços de profissionalização, bem como direcionamento para uma oficina de currículo e entrevista seletiva. Assim, foi proposta a "Semana de Profissionalização", a qual seria destinada prioritariamente aos adolescentes em regime de ISPAE.

Os adolescentes, preocupados com o aproveitamento dos encontros, apontaram que os participantes deveriam ser escolhidos pela equipe técnica da unidade. Segundo eles, se as inscrições fossem abertas a todos, muitos iriam "para patifar" (termo utilizado pelos adolescentes como sinônimo de "fazer baderna"). Apesar da limitação da participação ser pertinente, tal situação acaba restringindo a inclusão de determinados adolescentes, além de ser um limitador para o desenvolvimento do protagonismo juvenil. O ambiente das unidades socioeducativas muitas vezes é permeado por relações interpessoais hostis e conflituosas entre os próprios adolescentes (Coscioni, Nascimento, Rosa, & Koller, no prelo). Neste sentido, considerou-se que a integração de adolescentes com marcantes inimizades poderia motivar comportamentos de desavença colocando em risco a segurança das pessoas envolvidas nas atividades. Ao final, para tentar minimizar esse dilema, ficou decidido que o evento seria apresentado para todos, com posterior ficha de inscrição, a qual passaria pela aprovação da equipe técnica para avaliação dos adolescentes que teriam melhor aproveitamento. Com a proposta de que as apresentações e discussões pudessem ocorrer de forma eficaz, acordou-se que o grupo deveria ser formado por até quinze adolescentes.

Neste mesmo encontro também foram discutidos os aspectos metodológicos para execução do projeto. Para cada campo de interesse, ficou definido que seria convidado um profissional de referência, o qual teria abertura para construir seu conteúdo de apresentação, desde que houvesse espaço para debate junto aos participantes. A participação dos profissionais seria através de contrato voluntário, bem como os materiais seriam de responsabilidade do mesmo. Notou-se, neste encontro, maior propriedade dos adolescentes com o projeto, o que foi evidenciado por meio da demonstração de seus posicionamentos, bem como na motivação apresentada pelo fato de estarem envolvidos na criação de um projeto importante para o local.

O sexto e último encontro foi destinado para o fechamento das atividades e dos encontros. Foi salientado sobre a construção conjunta do projeto, destacando o quanto os adolescentes foram protagonistas para sua elaboração. Os adolescentes sugeriram que um questionário fosse criado para a avaliação das atividades pelos participantes do programa. Uma versão preliminar foi proposta pela equipe de pesquisa, a qual sofreu alterações conforme sugestões realizadas pelos adolescentes, para que fosse acessível à compreensão dos demais. Ampliou-se a avaliação da intervenção para o questionamento sobre o plano de ação futuro dos adolescentes. Como sugestão dos adolescentes, acrescentou-se a seguinte questão: "Essa atividade ajudou na formação de um plano de ação futuro?". Por fim, os participantes manifestaram satisfação com a construção do projeto, apontando o quanto se sentiam felizes por terem planejado algo de acréscimo positivo para a unidade e, principalmente, algo do interesse dos demais. Ambos relataram desejo em participar da execução do projeto futuramente, mesmo que fosse realizado após o cumprimento de suas MSEs. As atividades planejadas para a "Semana de Profissionalização" são apresentadas na Tabela 2.

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo relatou uma intervenção desenvolvida com adolescentes em MSE de internação. Ao propiciar a participação ativa dos adolescentes, percebeu-se o desenvolvimento do protagonismo juvenil propriamente dito, o que ocorreu por meio do engajamento nas atividades. Para além da redação de um programa intitulado "Semana de Profissionalização", a intervenção relatada contribuiu aos participantes, no sentido de lhes fomentar a conscientização e a tomada de postura crítica frente a seu processo socioeducativo.

O interesse apontado durante a elaboração do projeto sobre a temática da profissionalização mostra que atividades deste tipo parecem não ser muito frequentes na unidade, sendo recorrentemente oferecidas sem se considerar os anseios dos adolescentes. A carência de intervenções voltadas para o desenvolvimento profissional demonstra que as MSEs não estão fornecendo profissionalização adequada, de forma a contribuir de maneira pouco efetiva na elaboração de projetos de vida desvinculados com práticas infracionais.

As dificuldades logísticas enfrentadas na execução do projeto evidenciam as limitações para implementação de atividades dentro do sistema socioeducativo, as quais perpassam desde a aprovação das unidades, estrutura física, organização de rotina, bem como a captação de recursos financeiros. A resistência da instituição em proporcionar um espaço de criação e autonomia destinado aos adolescentes demonstra que tal prática parece não ser comum dentro da unidade. Isto foi observado também a partir dos questionamentos em relação ao desenvolvimento de um projeto proposto pela Universidade. A carência de diálogo entre as unidades socioeducativas e demais instituições, incluído a Universidade, fere o princípio de incompletude institucional proposto pelo SINASE. Nesse sentido, quanto mais frequente for à vinculação entre a instituição socioeducativa com a rede, maior a facilidade de acesso com a mesma, o que otimizaria os serviços ofertados.

O resultado final do projeto de intervenção foi apresentado para a presidência da FASE-RS e está em processo de análise. Para sua execução, pretende-se realizar parcerias com profissionais que se disponham a contribuir de forma voluntária, o que aliviaria a falta de recursos financeiros. A intenção é que o projeto de intervenção seja implementado com a colaboração dos adolescentes participantes, que já manifestaram o interesse no último encontro realizado com a equipe. Sendo assim, destaca-se a contribuição de intervenções como esta para o desenvolvimento da autonomia e participação ativa, bem como sobre o acréscimo para a construção dos projetos de vida dos adolescentes em MSE.

Cabe salientar, entretanto, que a presente intervenção foi desenvolvida em caráter exploratório, tendo como finalidade averiguar o alcance dos objetivos propostos. Um dilema enfrentado pela equipe universitária durante sua execução foi justamente em relação ao protagonismo juvenil. A escolha dos dois adolescentes pela equipe técnica da unidade teve como proposta selecionar aqueles com características mais propensas ao engajamento nas atividades, porém tal decisão restringiu, em certa medida, o protagonismo dos demais adolescentes, negando-lhes a autoria na escolha de quem os iria representá-los. Da mesma forma, o projeto "Semana da Profissionalização" também apresenta dificuldades de implementação do protagonismo juvenil, tendo em vista que restringe a possibilidade de participação de adolescentes que poderiam atrapalhar sua execução por mau comportamento. Tal restrição foi fruto de sugestões dos próprios adolescentes coautores do projeto, baseadas em experiências anteriores sediadas na unidade socioeducativa. Apesar disso, considera-se que a intervenção relatada pode ser tomada como exemplo para demais atividades realizadas no sistema socioeducativo. Todavia sugere-se que intervenções futuras busquem novas estratégias a fim de possibilitar a realização com grupos com mais adolescentes.

 

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Endereço para correspondência
Fabiane Cristina Pereira Marcilio
E-mail: fabiane_marcilio@hotmail.com

Submetido: 26/09/2017
1ª reformulação: 16/06/2018
Aprovado: 05/02/2019

 

 

1 Fabiane Cristina Pereira Marcilio é graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
2 Scharlise Thoman é graduada em Psicologia pela Faculdade de Desenvolvimento do Rio Grande do Sul.
3 Vinicius Coscioni é doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
4 Silvia Helena Koller é professora titular do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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