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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.22 no.1 Ribeirão Preto ene./jun. 2021

 

ARTIGOS

 

Considerações sobre a prática clínica da psicologia no ensino superior

 

Considerations about clinical practice of psychology in college education

 

Consideraciones sobre la práctica clínica de la psicología en la educación superior

 

 

Janine Gudolle de Souza1; Fernanda de Oliveira Alves2; Bianca Zanchi Machado3

Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria-RS, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo tem por objetivo discutir a atuação clínica da Psicologia em um serviço de apoio ao estudante universitário dentro de uma Instituição de Ensino Superior pública, por meio de um relato de experiência. Apresenta-se uma breve descrição do serviço, a implementação de um processo de triagem, a relação terapeuta e paciente, a psicoterapia breve, algumas queixas mais recorrentes no serviço, bem como limitações e potencialidades da atuação. Assim, entende-se que o trabalho psicoterapêutico de caráter breve, ainda que seja atravessado por desafios institucionais de ordem burocrática e administrativa, consegue ser efetivo e é valorizado pela comunidade acadêmica. Evidencia-se que a atuação clínica no contexto da educação superior é um campo profissional que pode ser mais explorado pela Psicologia.

Palavras-chave: Serviços de saúde para estudantes; Psicoterapia breve; Psicologia clínica; Universidades; Ensino superior.


ABSTRACT

In this article, we aim to discuss the clinical performance of Psychology in support service for university students within a Public Higher Education Institution, through an experience report. We present a brief description of the service, the implementation of a screening process, the relationship between therapist and patient, brief psychotherapy, more recurring complaints in the service, as well as limitations and potentialities of performance. Thus, we understand that psychotherapeutic work of a brief nature, even though it is traversed by institutional bureaucratic and administrative challenges, manages to be effective and is valued by the academic community. It is evident then that clinical practice in the context of College Education is a professional field that can be further explored by Psychology.

Keywords: Student health services; Brief psychotherapy; Clinical psychology; Universities; College education.


RESUMEN

En este artículo, nuestro objetivo es discutir el desempeño clínico de la Psicología en un servicio de apoyo para estudiantes universitarios dentro de una institución pública de educación superior, a través de un informe de experiencia. Presentamos una breve descripción del servicio, la implementación de un proceso de detección, la relación entre terapeuta y paciente, psicoterapia breve, quejas más frecuentes en el servicio, así como limitaciones y potencialidades de desempeño. Así, entendemos que el trabajo psicoterapéutico breve, aunque esté atravesado por desafíos institucionales burocráticos y administrativos, logra ser efectivo y es valorado por la comunidad académica. Es evidente entonces que la práctica clínica en el contexto de la Educación Superior es un campo profesional que la Psicología puede seguir explorando.

Palabras clave: Servicios de salud estudiantil; Psicoterapia breve; Psicología clínica; Universidades; Educación superior.


 

 

Pensar sobre a Psicologia ainda revela certas representações sobre sua forma de atuação como sendo uma clínica particular individual. Esse foi, e ainda continua sendo, em muitos casos, o formato predominante de atendimento ofertado por profissionais psicólogos. No entanto, devido a mudanças sociais, culturais e nas legislações de saúde e assistência social, existem significativas transformações na forma de prestar assistência e atendimento psicológico. Uma dessas mudanças e um novo ambiente de atuação para psicólogos têm sido as instituições de ensino superior.

As universidades têm sofrido transformações sociais em suas configurações, não somente em termos estruturais, mas também na democratização de acesso ao ensino (Fonseca, 2018). Em contrapartida, também tem sido um local de significativo sofrimento psíquico (Graner & Cerqueira, 2019) para aqueles que ingressam neste contexto educacional. A entrada no ensino superior é um momento de muitas mudanças na vida do estudante, já que na maioria dos casos é quando o sujeito sai do ambiente familiar e se depara com outro contexto e com relações bem distintas (Figueiredo & Oliveira, 1995; Papalia, Olds, & Feldman, 2010). Esse momento pode ser um grande gerador de ansiedades e inseguranças, pois há expectativas em relação ao futuro profissional e uma idealização da vida acadêmica (Cohen, Costa, & Ambiel, 2019). E tais situações têm um potencial para evoluir e se transformar em sintomas, doenças e sofrimentos quando não contornados ou tratados.

Assim, são necessários recursos cognitivos e emocionais complexos para o manejo das demandas desse novo ambiente (Padovani et al., 2014). Algumas pesquisas têm investigado a prevalência de transtornos mentais em estudantes universitários e apontam que os fatores que mais aparecem são distúrbios psicossomáticos (29%), estresse psíquico (28%) e desconfiança no desempenho/autoeficácia (26%), como na pesquisa de Cerchiari, Caetano e Faccenda (2005). Isso acontece, principalmente, tendo em vista que o sujeito ao ingressar na universidade se depara com diferentes responsabilidades que podem alterar seu funcionamento psíquico (Fiorotti, Rossoni, Borges, & Miranda, 2010). Outras pesquisas têm apresentado dados demonstrando uma alta prevalência de ansiedade (Silva, Panosso, & Donadon, 2018) e depressão (Krefer & Vayego, 2019) em estudantes universitários. Além disso, o contexto da universidade pode gerar estresse aos discentes, podendo tornar-se excessivo. O estresse em excesso pode, além de ser desencadeador de várias doenças, propiciar prejuízos na qualidade de vida, influenciando no rendimento acadêmico do estudante (Sadir, Bignotto, & Lipp, 2010).

Tais eventos característicos deste momento de vida são complexos e podem acarretar algumas manifestações de sofrimento. Neste aspecto, é notório que nos últimos anos a discussão acerca dos sofrimentos e dificuldades enfrentados pelos universitários vêm ganhando voz, uma vez que em recente revisão de literatura (Penha, Oliveira, & Mendes, 2020) evidenciou-se um aumento da produção científica brasileira desde o ano de 2010 sobre saúde mental de estudantes universitários. Esses aspectos têm mobilizado não apenas um olhar para as habituais práticas de receptividade da comunidade universitária, mas um olhar para a forma como o mundo acadêmico no todo precisa de humanização.

Lima, Valerio, Lima, Barbosa e Bronzeado (2019) nos convidam a pensar a universidade como representação de uma mini sociedade. Dentro do espaço universitário se desenvolvem dinâmicas de poder que também atravessam a sociedade: a exigência da produtividade, adequação e adaptação a um sistema de funcionamento dentro da normalidade. Assim, o sofrimento denunciaria uma incapacidade do estudante em ser funcional quando se propõe a cursar o ensino superior.

Outra percepção sobre a saúde mental na universidade pública é a de Leal, Oliveira, Rodrigues e Fogaça (2019) que observam o espaço universitário como uma possibilidade de ascensão social do estudante através da graduação. Entendemos que isso pode ser visto como uma promessa de futuro, algo que garantiria uma profissão e uma boa colocação no mercado de trabalho. Podemos pensar a partir disso que o desenvolvimento do estudante e da ciência depende de um investimento intelectual e também afetivo, que para acontecer carece de condições que o sustentem. Uma universidade existe na medida em que existem sujeitos que a construam. Para que isso seja possível é necessário que o estudante permaneça na universidade. Tal fato é tratado no Programa Nacional de Assistência Estudantil (Brasil, 2010), o qual entende que uma das ações para a permanência dos estudantes que devem ser desenvolvidas nas instituições de ensino superior é a atenção à saúde.

Assim, evidencia-se o papel da universidade na necessidade de desenvolvimento de ações integradas de prevenção e tratamento do estudante universitário (Padovani et al., 2014), o que reafirma a importância de as universidades darem atenção à saúde mental dos estudantes, buscando estratégias de cuidado. Ainda, é necessário entender o contexto de cada instituição de ensino superior, refletir sobre como os discentes têm experienciado esse momento de vida e pensar intervenções que possam acolher e apoiar o estudante.

Devido a isso, a Psicologia tem sido fundamental no atendimento a estudantes com vistas a contribuir na permanência dos mesmos. Não somente no cuidado em relação ao sofrimento psíquico, mas também para prevenção e orientação durante o percurso acadêmico. Santos, Souto, Silveira, Perrone e Dias (2015) descreveram em uma revisão de literatura sobre a atuação de profissionais da Psicologia no ensino superior. Neste estudo, a atividade mais comumente desenvolvida foram os atendimentos clínicos individuais em uma perspectiva breve, os quais visam solucionar problemas psicológicos frequentemente desencadeados pelo ingresso no ensino superior. Por outro lado, há propostas de grupos psicoterapêuticos como uma forma de estratégia para redução de sofrimento psíquico e uma ferramenta de cuidado no ambiente universitário (Oliveira, Rosa, & Nascimento, 2019).

Assim, considerando o contexto acadêmico e a inserção da Psicologia em um núcleo de apoio que presta cuidados e assistência a estudantes de uma universidade pública, algumas indagações foram sendo feitas ao vivenciar a prática profissional neste serviço institucional. Refletimos e nos deparamos com questões sobre o formato, o tempo e os objetivos dos atendimentos, a demanda dos estudantes, a relação entre psicólogo e paciente e também a implementação de um processo de triagem. Por isso, objetivamos discutir a atuação clínica da Psicologia em um serviço de apoio ao estudante universitário, por meio de um relato de experiência.

 

MÉTODO

Com a intenção de descrever a experiência e a prática clínica das autoras deste artigo, o relato de experiência foi utilizado como ferramenta metodológica, sendo compreendido como "uma construção teórico-prática que se propõe ao refinamento de saberes sobre a experiência em si, a partir do olhar do sujeito-pesquisador em um determinado contexto cultural e histórico" (Daltro & Faria, 2019, p. 228). O relato de experiência, a partir dos escritos de Daltro e Faria (2019), contribui para sistematizar a experiência vivida, criar uma narrativa científica e, ainda, ajuda a elaborar o acontecido, partindo da memória e das reflexões dos pesquisadores. Dessa forma, conforme salientam as autoras, podemos entender que o relato de experiência apresenta uma potência narrativa e pode ser considerado uma construção discursiva, sendo importante especialmente no campo da saúde e da Psicologia.

Ainda, pensar sobre a nossa experiência não significa simplesmente argumentar ou explicar as nossas ações, mas significa dar sentido ao que somos e ao que nos acontece (Bondía, 2002). Ao longo do tempo, muitas coisas se passam na nossa existência, no entanto, praticamente nada nos acontece. A experiência, como destaca Bondía (2002), portanto, é a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, bem como algo que nos forma e transforma. Para que haja a experiência é necessário "um gesto de interrupção, (...) requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir (...) falar sobre o que nos acontece" (Bondía, 2002, p. 24). Sendo assim, nos propomos a parar para pensar sobre nosso fazer clínico dentro de uma instituição, com a intenção de darmos sentido à nossa prática, buscando entender aquilo que nos atravessa e torna tal prática uma experiência possível de ser compartilhada.

Para tanto, seguindo os pressupostos apontados por Daltro e Faria (2019), seguiremos um conjunto de elementos que são essenciais para a construção formal de um relato de experiência, tais como: entender o relato como um trabalho documental, de linguagem e narrativas; a importância de que pelo menos uma das autoras seja sujeito participante do contexto em questão; não somente descrever os fatos, mas gerar reflexões e problematizações acerca do que foi vivenciado; dialogar com os saberes científicos e revelar de que lugar as autoras estão falando; garantir referências teóricas, descrição do contexto, discussão e considerações finais, e por último, entender que não são feitas conclusões, mas que se deve considerar o que foi obtido no percurso da experiência como uma produção singular, sendo que lacunas e possíveis contradições devem ser apresentadas. Ainda, analisaremos a nossa experiência a partir de autores que partem da Psicanálise como perspectiva teórica. Também nos reportaremos a outros relatos de experiência que tratem sobre aatuação da Psicologia nas universidades, bem como estudos sobre saúde mental nas instituições de ensino superior.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O CONTEXTO INSTITUCIONAL DE ATUAÇÃO

O contexto institucional em que se deu a experiência profissional trata-se de uma universidade pública localizada no estado do Rio Grande do Sul. O serviço de apoio aos universitários funciona para orientar e discutir questões relativas a todo o processo educativo, contribuir para o enfrentamento das dificuldades dos discentes e também ajudar os estudantes na sua permanência e conclusão do curso. Assim, presta atendimento a estudantes de Ensino Médio e Tecnológico, Graduação e Pós-Graduação da instituição. São desenvolvidas ações como palestras e minicursos na área da educação e saúde mental, monitorias de disciplinas oferecidas por bolsistas de graduação, atendimentos psicológico, pedagógico, psicopedagógico e psiquiátrico e grupos terapêuticos.

O serviço tem como objetivo central orientar e assistir a comunidade universitária por meio de uma abordagem interdisciplinar de promoção, potencialização, qualificação e ressignificação dos processos de ensino e aprendizagem. Conta com profissionais de diversas áreas, como Terapia Ocupacional, Psicopedagogia, Pedagogia e Psicologia. Na área da Psicologia, pretende promover um espaço de acolhimento e escuta, auxiliando na identificação e superação de questões psicológicas que podem afetar a aprendizagem e a adaptação à universidade. Para tanto, é oferecido atendimento individual e, eventualmente, são implementadas atividades em grupo de cunho psicoeducativo e terapêutico aos estudantes.

Desta forma, este é um dos serviços que compõe o trabalho de assistência estudantil da universidade e tem um papel central devido ao grande número de estudantes que atende, tendo significativo destaque e importância neste contexto. O serviço de Psicologia conta quase sempre com uma lista de espera de estudantes que aguardam serem chamados para o acompanhamento, o que nem sempre eles conseguem. A equipe de psicólogos conta com dois profissionais servidores da universidade e alguns psicólogos bolsistas que tem vínculo acadêmico com a universidade. O número de psicólogos bolsistas varia de semestre para semestre visto que os mesmos concluem seus cursos ou mesmo podem optar por sair do serviço a qualquer tempo, mas esse número costuma girar em torno de cinco.

Além disso, é realizada uma seleção dos profissionais bolsistas que irão atuar no serviço, por meio de um processo seletivo, o qual é feito com base na análise dos currículos e em uma entrevista individual. Para atuar no serviço, os profissionais necessitam já ser graduados, ter disponibilidade para atuação de 20 horas semanais, ter o registro profissional ativo e estar vinculado à universidade através de algum programa de pós-graduação (especialização, mestrado ou doutorado), sendo disponibilizada uma bolsa mensal. Desde a entrevista inicial, é sinalizada a importância do comprometimento de quem atua, entendendo aquele contexto como uma experiência profissional que requer cuidados em relação aos estudantes e ao sigilo profissional.

Há uma certa dificuldade de fixar e/ou determinar essa relação entre os psicólogos bolsistas e o serviço, pois ao mesmo tempo em que existem exigências e responsabilidades de uma relação de trabalho comum também existem intromissões e alguma falta de autonomia que se assemelham a uma relação de estágio acadêmico. Essa dinâmica acarreta alguns desconfortos para o desenvolvimento do trabalho e também no contexto da relação com a equipe. O fato do vínculo existente entre o psicólogo e o serviço ser ligado à matrícula estudantil que o psicólogo tem com a universidade acaba o colocando em um lugar de ‘aprendiz’, mas ao mesmo tempo é o seu registro profissional e sua experiência acadêmica e profissional que o possibilitam desempenhar essa atividade e compor tal equipe.

Torna-se pertinente destacar a importância da criação de um serviço como esse dentro de uma instituição de ensino superior. Uma vez que sabemos da dificuldade de acesso a atendimentos especializados pela população no Sistema Único de Saúde (SUS), especialmente o atendimento psicológico individual, conforme destacam Neves, Ramos, Marangoni e Martins (2019). Os autores relatam experiência semelhante de atendimento em uma instituição no Amazonas, e mostram que vivências como essas demonstram as possibilidades de conexão entre Psicologia e Educação, ampliando as ferramentas e os contextos de atuação de psicólogos (Neves, Ramos, Marangoni, & Martins, 2019).

Assim, conforme descrito, o serviço em que nos inserimos tem sido importante para o contexto da universidade, uma vez que a cada ano há um crescente conhecimento pela comunidade acadêmica sobre as atividades propostas. Algumas atividades vêm se mantendo, como as monitorias e todos os formatos de atendimentos, mas há sempre novas possibilidades sendo pensadas como, por exemplo, a realização de grupos terapêuticos e também a implementação do processo de triagem para uma melhor operacionalização e direcionamento das práticas.

Como destacamos anteriormente, permanecem alguns questionamentos quanto à nossa relação com o serviço, ora pautada em cobranças de uma relação profissional, ora entendida como uma relação de estudantes bolsistas com a instituição. Por fim, é necessário destacar o quanto a inserção neste serviço e a experiência vivenciada nos forma e transforma enquanto profissionais da Psicologia, contribuindo com a nossa trajetória profissional. A seguir, trataremos mais especificamente da nossa prática enquanto psicólogas no serviço.

O FAZER DA PSICOLOGIA EM UMA INSTITUIÇÃO DE ENSINO SUPERIOR

O serviço sobre o qual nos debruçamos aqui leva no nome a palavra "apoio". Definimos apoiar como uma forma de oferecer um auxílio que ajuda na sustentação de um lugar. Aqui pode ser representado pela permanência do estudante na universidade, pela sua condição de conseguir estudar, produzir conhecimento e também de cuidar e proteger a sua saúde mental durante todo o seu percurso acadêmico. O estudante que está passando por alguma dificuldade, tanto no seu desempenho acadêmico quanto na sua vida pessoal e relacional, deve procurar por alguém que trabalhe na universidade para que seja encaminhado ao serviço. Ao ser encaminhado, por meio do preenchimento de um formulário pelo servidor, o discente fica em uma lista de espera para ser chamado para um processo de triagem. A triagem, implementada em 2019, foi pensada com vistas a dar um melhor direcionamento aos atendimentos, sendo feita pelos psiquiatras ou psicólogos.

O formulário de triagem é composto inicialmente por uma ficha de identificação pessoal que recolhe dados relativos à idade, gênero, raça/etnia autodeclarada, moradia, questões sobre algum tipo de deficiência e busca-se saber quais as redes de apoio social e familiar dos estudantes. Segue-se a triagem a partir da identificação acadêmica, assinalando o curso a que pertence, ano de ingresso na universidade, previsão de término do curso, se ingressou por alguma ação afirmativa e se possui benefícios socioeconômicos, bolsas ou atividade remunerada. Nos aspectos relacionados ao atendimento, pergunta-se os motivos do encaminhamento na intenção de localizar uma demanda e queixa inicial. Investiga-se aspectos educacionais, escolares e de aprendizagem a partir do desempenho acadêmico e da relação com o decorrer do curso. Assinalamos que estes aspectos se tornam informações relevantes na medida em que o objetivo do serviço psicológico é o de propor assistência à aprendizagem. Ou seja, é preciso localizar prejuízos no processo formativo dos estudantes para que estes sejam atendidos pelo serviço. A partir desta percepção já apontamos um direcionamento aos atendimentos psicológicos por parte do serviço.

O segmento da ficha de triagem conta ainda com a averiguação do histórico médico e psicológico prévio do paciente, a fim de saber se há uso de medicamentos e buscando localizar alguns sintomas, histórico de bullying ou trauma, comportamentos de risco, conduta antissocial, automutilação, ideação suicida, uso de substâncias, entre outros. É importante ressaltarmos que neste momento da triagem pode acontecer dos estudantes recordarem situações de violência ou abuso e que, após acolher o que é endereçado a nós, precisamos reiterar a importância de se falar sobre, mas que este não é o objetivo da triagem. Assim, informamos que os atendimentos se dão de forma diferente dessa entrevista inicial.

O processo de triagem precisa de uma condução cuidadosa para não se transformar em um inquérito. A ficha a ser preenchida é extensa e com perguntas diretivas, o que pode causar um estranhamento e distanciamento. O profissional que faz essas entrevistas iniciais deve estar ciente de que nem sempre a ficha de triagem será preenchida em linearidade, mas que deve instigar a narrativa do paciente para coletar as informações necessárias para o início do tratamento. Entendemos que desde aqui, a tarefa da Psicologia é de acolher de forma singular e não burocrática ou protocolar, mesmo que um protocolo venha a ser preenchido depois.

Ao fim do processo de triagem, que pode ser feito em até duas entrevistas, é função do profissional decidir o encaminhamento dado ao estudante. Podendo este ser interno (quando há demandas para atendimento no setor), externo (encaminhamento para outro serviço do município) ou feito um encerramento por não serem identificadas demandas para atendimento naquele momento. Se for realizado o encaminhamento interno, é feito um agendamento para o início dos atendimentos com um profissional da Psicologia.

Realizar a triagem de estudantes requer reflexões por partes dos profissionais e um entendimento de que é necessário levar em conta que algumas pessoas se beneficiarão de um formato de clínica mais breve e focalizado proposto no serviço, e outras não. Por isso, cabe a nós, profissionais de Psicologia, compreender a(s) demanda(s) dos pacientes e reconhecer qual o melhor encaminhamento a ser feito. Deve-se considerar, juntamente com o estudante atendido, a gravidade do caso, as dificuldades vivenciadas naquele momento, se a demanda requer apenas atendimento psicológico, ou se é necessário um encaminhamento para a Psicopedagogia e/ou Psiquiatria.

Dessa forma, realizar o processo de triagem demanda um importante raciocínio clínico que é aprimorado à medida que é experienciado e nos mostra que no momento da triagem a escuta torna-se diferenciada, uma vez que precisa seguir um roteiro, não necessariamente linear, e ser mais pontual. Assim, destacamos que a realização da entrevista de triagem nos exige uma escuta mais ativa, objetiva e com a finalidade de entender a queixa, já que é necessária uma tomada de decisão após o encontro para que sejam feitos os encaminhamentos necessários.

Podemos considerar que a conduta do psicólogo nesse momento deve ser próxima de uma atitude estratégica, observando-se sintomas e possibilidades de trabalho. Isso faz com que nos confrontemos com conceitos e prerrogativas clínicas de associação livre por parte do paciente e atenção flutuante por parte do profissional. Porém, por considerar a brevidade e o foco dos atendimentos, essa postura estratégica é também uma postura ética já que há o risco de suscitar questionamentos que podem causar sofrimentos sem serem acolhidos no serviço por não se encaixarem nos objetivos do mesmo.

Ramos et al. (2018) descrevem em um relato de experiência, a partir de um projeto de extensão, a implementação de uma "Triagem Psicológica". Semelhante ao funcionamento da triagem da nossa experiência, os autores entendem que um dos benefícios dessa etapa dos atendimentos seria "um encaminhamento assertivo, que permite que os universitários se engajem no atendimento, diminuindo assim os índices de evasão dos programas de intervenção" (Ramos et al., 2018, p. 225). Já para Adames e Angelis (2017) o próprio termo "triagem" é problematizado, pois este significa escolher, separar, selecionar. Os autores descrevem que o "processo de triagem" foi substituído por "estratégia de acolhimento", visando acolher os estudantes que chegam, escutá-los, valorizando as particularidades de cada um. Tal problematização é pertinente e deve ser levada em conta na implementação dos serviços, o que nos faz refletir acerca da nomenclatura dada a essa etapa no serviço em que nos inserimos.

Ao discorrer sobre os fundamentos da clínica psicanalítica, Freud (1913/2018) atesta que é comum aos pacientes, no início do tratamento, perguntarem quanto tempo é preciso para se libertarem de seu sofrimento. Como se demandas sem uma resolutividade que partisse da figura do terapeuta. O fundador da Psicanálise reconhece como incômoda tal situação e afirma que o tempo irá depender da velocidade de cada um para com seu processo analítico. Entendemos que estamos atravessadas pelas teorias que pautam a clínica individual de cada uma, mesmo que esta seja feita em um contexto institucional. Esse apontamento que Freud nos apresenta, é uma forma de reforçar o cuidado que devemos ter nos atendimentos iniciais, ao localizar que algumas demandas não podem ser atendidas neste serviço, o que não quer dizer que não possam ser escutadas, acolhidas e encaminhadas.

Um dos grandes desafios para quem atua clinicamente em instituições é justamente sustentar uma escuta singular, dando espaço ao sujeito (Cazanatto, Martta, & Bisol, 2016). Para que isso seja possível é necessário sustentar uma posição de escuta e de ato: "escuta-se a instituição a partir do discurso e das práticas dos agentes institucionais, das relações estabelecidas entre os atendentes e destes com os atendidos e da posição que a instituição ocupa no meio em que está inserida" (Cazanatto et al., 2016, p. 490). Para as autoras, na clínica tradicional haveria um setting que promove uma proteção tanto para o profissional quanto para o paciente, no entanto, na instituição, o trabalho vai se construir a partir do lugar que se ocupa. Então, entendemos que não tem como não estar atravessado pela instituição, embora se conviva com todos os atravessamentos que se dão, é possível criar um modo singular de prática clínica de acordo com as experiências de cada profissional.

Essa situação que apresentamos nos convoca a refletir sobre nosso processo formativo enquanto psicólogas. Os atendimentos no serviço mantêm com a prática clínica fora de instituições algumas similaridades: o agendamento é de um paciente por cada hora, deixando livre ao profissional organizar a duração de cada atendimento dentro dessa possibilidade, segue-se uma periodicidade semanal e preza-se por manter o encontro sempre no mesmo setting, o que entendemos como uma forma de manter um local de referência para os estudantes. Há ainda a possibilidade de mudança de profissional caso o paciente do serviço não se sinta confortável com a psicóloga que lhe foi designada.

Aqui destacamos a transferência uma vez que no contexto institucional tal conceito é importante para a prática (Cazanatto et al., 2016). Isso fica visível quando, ao enviar um e-mail para o serviço, seja para remarcar horário, cancelar o atendimento ou pedir a mudança de profissional, o discente não sabe o nome da psicóloga que o atendeu. Outro exemplo é a formatação das mensagens enviadas para quando o aluno falta ao atendimento, informando que caso faltar novamente perderá o vínculo com o serviço. Uma das contribuições da Psicanálise, independente do lugar em que se atua, seja na clínica tradicional ou em instituições, é que o trabalho é sempre singular, se dando no encontro com o outro e acontecendo na e pela transferência, como salientam Cazanatto, Martta e Bisol (2016). As autoras entendem que não basta impor teorias e técnicas para a prática clínica, é necessário levar em conta a transferência, sendo que a forma como esta se estabelece vai depender da singularidade e da história de cada sujeito e também da instituição em que se está inserido.

A tarefa do profissional de Psicologia é, desta forma, atravessada pelo funcionamento do serviço, o que pode afetar negativamente o processo psicoterapêutico do paciente. Faltar ao atendimento pode ser material para o desenvolvimento do atendimento clínico, mas o e-mail enviado, após uma falta, pode ser entendido como punitivo. Andrade e Herzog (2011) afirmam que ao pensar a transferência e a contratransferência, Freud reconheceu a necessidade do analista de implicar-se afetivamente no processo. As autoras questionam como o analista se porta diante de um sujeito com uma fala desafetada e com dificuldade de expressar suas emoções e seus sentimentos. Entendemos que conduzir os tratamentos psicoterapêuticos que relatamos aqui exige uma sensibilidade afetiva do profissional, já que temos limites de tempo e de interpretações, pois a psicoterapia é breve e focal. Parece que se torna necessária uma mediação entre psicologia clínica, paciente e o serviço institucional.

Partimos do entendimento de que a Psicologia, enquanto ciência e profissão, está pautada em uma ética de comprometimento com o sujeito. Todo fazer clínico parte da relação entre psicólogo e paciente, de um encontro que acolhe queixas, identifica demandas e segue norteado por uma escuta continuada no tempo. No serviço em que estamos inseridas, o atendimento psicológico se dá através da Psicoterapia Breve, independente da perspectiva teórica adotada pelo profissional da Psicologia. Mesmo que o serviço acolha profissionais com perspectivas teóricas diferentes, nos identificamos e construímos esse relato através da Psicanálise como abordagem de trabalho. A psicoterapia breve se dá em função de que cada estudante chamado para ser atendido deve ter seu atendimento iniciado e finalizado dentro do mesmo semestre letivo (em torno de quatro meses). Desta forma, na mais longa das hipóteses, o estudante terá quatro meses de atendimentos psicológicos semanais.

Em nossa formação, compreendemos que o foco do ensinamento sobre a prática clínica se dá, geralmente, no atendimento psicológico individual sem tempo definido para seu término. O fazer em Psicologia, em muitos casos, está posto como um atendimento a longo prazo e orientado para uma continuidade na clínica. Sabemos da importância de psicoterapias e análises que atendem a esse enquadramento e de sua contribuição no entendimento/acolhimento do sofrimento dos sujeitos. No entanto, quando adentramos os campos profissionais após a graduação nos deparamos com perspectivas que buscam resolutividade e com a obrigação de cumprimento de prazos.

Nos deparamos também com a demanda de outros formatos de clínica, como atendimentos em grupo e psicoterapia breve, por exemplo. O que acaba, muitas vezes, dificultando a nossa prática, pois de certa forma tendemos a associar a efetividade de um atendimento ao seu tempo de duração. Porém, a efetividade dos atendimentos não se dará pelo tempo em que estes transcorreram, mas sim pela relação estabelecida entre terapeuta e paciente e pelo aprofundamento que foi possível obter a partir daqueles encontros.

Tais apontamentos são feitos por Hegenberg (2010), o qual defende a psicoterapia breve psicanalítica como uma intervenção clínica possível em diferentes ambientes. O autor salienta que esta modalidade tem de sempre lidar com o preconceito, uma vez que a psicanálise clássica tende a não reconhecer sua efetividade, desde a época em que houve discordâncias entre Sigmund Freud e Sandór Ferenczi. Destaca ainda que profundidade é confundida com temporalidade. Em decorrência disso, indaga "será que psicoterapias longas são necessariamente profundas? Por que uma Psicoterapia Breve ou uma única sessão não podem ser profundas? Qual o conceito de profundidade que se utiliza? Existiria apenas um modo de se considerar profunda uma psicoterapia?" (Hegenberg, 2010, p. 12).

Dessa forma, como salienta Hegenberg (2010), é possível oferecer uma psicoterapia mais focalizada, que propicie uma maior compreensão de si mesmo, sendo ao mesmo tempo profunda e pontual. A psicoterapia breve apresenta algumas limitações que devem ser consideradas, por tratar-se de uma psicoterapia que pretende ser focalizada, deve-se levar em conta que nem todas as questões do paciente serão abordadas, já que o foco se dará em uma problemática central. Entende-se que o que diferencia uma psicoterapia breve de uma de longa duração "não é sua brevidade, mas é sua focalização em torno de uma questão específica, são os objetivos limitados, ou é o prazo definido da terapia" (Hegenberg, 2010, p. 19). Assim, as demandas atendidas pelo serviço devem ser aquelas identificadas como permeadas por questões educacionais, como situações que afetem o desempenho acadêmico, as relações interpessoais dentro da universidade, questões relacionadas à escolha do curso, entre outras.

Pontuamos que nosso fazer clínico no serviço se dá pela psicoterapia breve psicanalítica, com as características apontadas e defendidas por Hegenberg (2010), a qual segue as definições gerais da psicanálise, somada por dois elementos: um limite de tempo estabelecido e a presença de um foco conectado à angústia que leva o estudante a buscar os atendimentos. Além disso, mantém o método e a técnica da psicanálise, variando apenas o seu enquadre e adotando quatro pilares fundamentais: a interpretação, a análise da transferência, a utilização das associações livres e o respeito à neutralidade (Hegenberg, 2010).

Desde o primeiro encontro, os atendimentos são registrados em um documento que fica armazenado com os dados do discente. É importante ressaltar os cuidados éticos necessários para o preenchimento destes registros, visto que são documentos do serviço e não do profissional. Pelo serviço contar com atendimento psicopedagógico e psiquiátrico é comum que o mesmo estudante seja atendido por diferentes profissionais de forma simultânea. É comum os estudantes trazerem, durante os atendimentos psicológicos, relatos destes outros atendimentos, seja na forma de narrativa da sua nova agenda de estudo ou em dúvidas quanto ao uso da medicação. Nestes momentos cabe a nós acolhermos a fala e, caso acharmos necessário, entrar em contato com o outro profissional que trabalha com o mesmo paciente, já que não existem momentos institucionalizados para essas trocas.

Podemos pensar, a partir disso, que o trabalho multidisciplinar acontece quando proposto pelo psicólogo que acompanha o estudante e não como uma intenção inicial do serviço. O que nos faz refletir sobre a atenção integral que a Psicologia dá ao sujeito. Um exemplo que se manifesta bastante é, a partir da escuta, percebermos a necessidade de um acompanhamento psiquiátrico com certa urgência. A partir disso,nos direcionamos à agenda dos psiquiatras para solicitar prioridade ao paciente.

Ademais, percebemos, a partir dos atendimentos realizados, que tem sido prevalente as queixas relacionadas à ansiedade. Consideramos que a maioria dos atendimentos em Psicologia tem girado em torno dessa problemática, o que nos traz muitas indagações sobre a experiência universitária, as cobranças acadêmicas, a competitividade presente neste contexto e as relações interpessoais. Em relação a esses aspectos, as pesquisas têm mostrado que os universitários têm sido considerados como um grupo de risco no acometimento de ansiedade (Silva et al., 2018), devido às diversas mudanças físicas, sociais e psicológicas a que estão submetidos.

Além das demandas sobre a ansiedade, temos constantes queixas sobre a adaptação à cidade, estas também identificadas por Peres, Santos e Coelho (2003). Por tratar-se de uma universidade pública, muitos estudantes vêm de outras regiões e estados com culturas diferentes. Tornando o ambiente universitário mais propício a desencadear sofrimentos, uma vez que o discente passa por profundas transformações, não só no formato de aprendizagem, por estar inserido em um outro nível de ensino, mas por alterar sua rotina, seu ambiente, suas companhias e por estar longe de sua família e cultura de origem.

Por fim, até aqui destacamos alguns aspectos que estão presentes na nossa prática clínica. Deparar-se com o funcionamento da psicoterapia breve nos mostra o quanto temos que estar em constante formação na nossa trajetória profissional. E ainda experienciar tais atividades nos trazem muitas inquietações e questionamentos que são significativos para nosso percurso pessoal e profissional e que certamente fazem a diferença quando estamos inseridas em outros contextos de trabalho. Destacamos que a prática da psicoterapia breve psicanalítica é possível e benéfica para muitos estudantes, os quais geralmente estão vivenciando a psicoterapia pela primeira vez. Porém, sempre devemos ter em mente que tal formato não é adequado para todos, o que nos faz estar atentas e cuidadosas com as demandas que chegam.

LIMITAÇÕES E POTENCIALIDADES DA ATUAÇÃO CLÍNICA

O trabalho clínico de caráter breve que a Psicologia vem desenvolvendo neste contexto tem se mostrado importante e valorizado pela comunidade universitária. Ainda que exista uma demanda superior daquela que a equipe consegue dar conta, o trabalho desempenhado pelos psicólogos mostra-se efetivo e ético. O desafio de fazer clínica em meio a tantas regras e limitações institucionais, frequentemente, coloca o psicólogo em situações difíceis e dilemas de cunho ético-político. Nestas situações, nossa ética profissional e o comprometimento que a equipe tem com o trabalho são primordiais para que as melhores posturas sejam tomadas.

Os dilemas que citamos começam pela porta de entrada do serviço. Através de um processo de triagem, que investiga a queixa inicial, parece ser necessário buscar o encaixe do estudante com o serviço, ou seja, é preciso detectar uma questão relativa ao rendimento acadêmico para justificar o início dos atendimentos. Essa seria a justificativa que o serviço propõe para os atendimentos, queixas relacionadas à aprendizagem, questões educacionais. Entretanto, as demandas que os estudantes nos trazem fogem a questões diretamente ligadas com a aprendizagem. Porém, entendemos que relacionamentos familiares, ansiedades ou sofrimentos externos à universidade acabam por afetar a vida acadêmica dos discentes.

Desta forma, cabe ao profissional uma compreensão mais global e sistêmica do que são as questões que envolvem o processo de aprendizagem de cada estudante. Visto que não somente dificuldades de atenção e concentração ou organização do tempo, por exemplo, se caracterizam por dificultar a aprendizagem ou a permanência do estudante na universidade. Mas também questões relacionadas ao adoecimento psíquico, a dificuldades de iniciar e manter relacionamentos interpessoais, a angústias e traumas mostram fragilidades que impactam no rendimento do estudante na universidade.

A partir disso, destacamos que essa parece ser uma significativa limitação nas nossas atuações profissionais, já que devemos, de alguma forma, "encaixar" o estudante universitário em queixas que estejam relacionadas ao contexto acadêmico. O que muitas vezes se torna difícil, pois aquele estudante tem queixas relacionadas a questões familiares, sendo que as mesmas afetam profundamente o seu rendimento nas aulas. Parece haver uma dicotomia, na perspectiva do serviço, entre "queixas de fora da universidade" e "queixas de dentro da universidade". O nosso objetivo seria tratar as queixas internas do ambiente universitário, entretanto, as queixas externas insistem em aparecer. Uma das nossas potencialidades, enquanto profissionais da Psicologia, sobre esse aspecto, seria contribuir no rompimento dessa dicotomia imposta pelo serviço, pois entendemos que não é possível separar as queixas dos pacientes.

Além disso, há um engessamento das regras quanto à agenda ou ao calendário de atendimentos, tornando-se um desafio. Isso porque o serviço se propõe a realizar os atendimentos seguindo o calendário acadêmico, isto é, férias acadêmicas devem coincidir com interrupção e/ou finalização dos atendimentos (independente de quando foram iniciados os atendimentos de cada estudante). Dessa forma, há situações em que o estudante é chamado para os atendimentos em novembro, por exemplo, sendo que o período letivo se encerra antes da metade de dezembro. Quer dizer, por vezes isso significa ofertar dois ou três atendimentos ao estudante e mandá-lo embora. Nessas situações, cabe ao psicólogo ser ético e franco, desde o primeiro momento,esclarecendo tais limitações e deixar o estudante à vontade para decidir se deseja prosseguir com os atendimentos, se isso coincide com sua expectativa.

Cabe ressaltar aqui que quem faz os agendamentos dos estudantes na agenda dos psicólogos não são os próprios psicólogos, mas bolsistas de graduação sob orientação da chefia do setor (que não é desempenhada por profissional da Psicologia). Neste ponto, cabe a problematização de que as verbas destinadas ao setor são anualmente destinadas conforme relatórios quantitativos a respeito de quantos estudantes são atendidos por cada área que ali atua (Pedagogia, Educação Especial, Psicologia, etc.). Sendo assim, a chefia se preocupa em manter os números positivos o suficiente para garantir a verba necessária para desempenhar o trabalho, enquanto nós nos preocupamos em como ofertar o melhor atendimento dentro das regras e limitações impostas. Tratam-se de duas responsabilidades distintas, mas indispensáveis.

Há uma questão a ser pontuada no que diz respeito ao fato de a maioria dos psicólogos que desempenham o trabalho em saúde mental de uma instituição pública federal não são efetivamente funcionários da universidade, mas estão no papel de bolsistas. E por essa questão acabam por sair do serviço quando concluem seus cursos de pós-graduação, quando conseguem um emprego formal ou ainda quando conseguem uma outra bolsa de estudos, gerando uma alta rotatividade de profissionais na equipe. O que para os estudantes atendidos pode acarretar na descontinuidade dos seus tratamentos, ponto esse que evidencia uma fragilidade nesta lógica de atenção à saúde mental. Enquanto que para a equipe a recorrente troca de profissionais implica em uma constante adaptação e reorganização do trabalho, pois muitas atividades e iniciativas acabam não tendo continuidade. Fica evidente assim uma importante fragilidade no real investimento que o Estado faz na saúde mental dos estudantes, pois a atual organização não garante a longo prazo a existência de uma equipe permanente. Entende-se que uma equipe permanente possa não ser garantia de efetivar uma boa atenção à saúde mental do estudante, mas diante desta experiência evidencia-se que a alta rotatividade tem acarretado prejuízos.

Outra limitação, mas também uma potencialidade, que percebemos é o tempo delimitado para os atendimentos. Conforme já destacamos, utilizamos como referencial teórico a Psicanálise. Dessa forma, nos depararmos com uma limitação do tempo dos atendimentos nos oferece uma possibilidade de busca por outros formatos da clínica psicanalítica contemporânea, que questionam a visão hegemônica de psicoterapia psicanalítica e que trazem críticas do modelo "clássico" de psicoterapia. A experiência relatada por Neves et al. (2019) nos mostra as potencialidades de espaços com psicoterapia breve de orientação psicanalítica nas universidades. Podemos entender que "a inserção e a prática da Psicanálise nas universidades é uma aposta na possibilidade de transpor as barreiras e os desafios das normativas e burocracias e construir um espaço de escuta do sujeito do inconsciente" (Adames & Angelis, 2017, p. 144).

Nossa escolha pela Psicanálise, como orientação e referencial na prática clínica, também pode gerar estranhamento no serviço. Diante disso, cabe a nós rompermos com a visão tradicional da clínica, mostrando que a Psicanálise é possível em diferentes espaços de escuta. Uma das potencialidades da instituição é tensionar novos fazeres dentro desse referencial. Retornamos à dimensão ético-político da Psicologia Clínica como estar de acordo com o espaço, o lugar e o tempo em que exerce sua função psicoterapêutica. Kupermann (2008) direciona nossa atenção para o resgate ao registro sensível da Psicanálise. O autor resgata a transferência em Freud, Winnicott e Ferenczi para defender a ideia de que existe uma liberdade no fazer da psicanálise. Podemos acrescentar que a instituição na qual construímos esse relato pode ser um convite a reinvenção desse fazer.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, por meio de um relato de experiência, tivemos como objetivo discutir a atuação clínica da Psicologia em um serviço de apoio ao estudante universitário. Nos propusemos a parar para pensar e refletir sobre as nossas atividades realizadas em um local que busca atender e dar suporte a estudantes de uma instituição pública de ensino superior. A experiência do trabalho em Psicologia em uma instituição de ensino superior mostrou-se permeada por desafios e questões que merecem atenção e reflexão. Mesmo com entraves institucionais que implicam em certas limitações na nossa atuação, entendemos que o serviço constrói e oportuniza um espaço de acolhimento que tem impactos, mesmo que pequenos, na vida dos universitários.

Assim, o acolhimento psicológico realizado na universidade, ao ser identificado como psicoterapia breve, impõe desafios à nossa prática. Isso fica exposto na necessidade que temos em rever a técnica e em criar formas de manejo durante a sessão. A intenção não é de interpretar e intervir de forma apressada, mas de compreender, junto dos pacientes, uma maneira de narrar sua história e suas aflições para daí sim construir enfrentamentos diante dos fatores que causam sofrimento. Compreendemos que a inserção no serviço nos mobiliza a reinventar nosso fazer constantemente, repensando formas de escuta, criando atividades e questionando regras e atravessamentos institucionais. O que demonstra a importância da Psicologia em estar presente nestes espaços para contribuir no cuidado em saúde mental aos estudantes universitários.

Ainda, identificamos que as queixas relacionadas à ansiedade e à adaptação na cidade e universidade têm sido recorrentes. Por isso, torna-se importante pensar em intervenções para atender tais demandas. Aqui, nos detivemos em ações que são de caráter mais individual, como o processo de triagem e também a psicoterapia breve. Porém, o serviço também oferece modalidades grupais, como minicursos, palestras e grupos terapêuticos. Entendemos a importância de tais modalidades e acreditamos que se deve investir mais nessas atividades. Sugerimos que mais pesquisas como essa sejam realizadas, para que possamos compreender como tem sido a experiência profissional de psicólogos para além do setting tradicional.

Além disso, sugerimos que ações coletivas sejam oferecidas nas universidades envolvendo toda a comunidade acadêmica, como professores, servidores, funcionários contratados, e não foquem a atenção somente no estudante. No que se refere aos estudantes, intervenções que promovam discussões sobre o ingresso na universidade e outras que foquem no fim da graduação e entrada no mercado de trabalho tornam-se pertinentes por se caracterizarem como etapas de muitas dúvidas e dificuldades para os discentes. Por fim, ressaltamos a importância de continuarmos debatendo sobre a saúde mental de estudantes universitários, tanto no que se refere às formas de acolhê-los como também encontrando intervenções que promovam um ambiente acadêmico mais saudável.

 

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Endereço para correspondência
Janine Gudolle de Souza
E-mail: gudolle.janine@gmail.com

Recebido: 21/07/2020
Reformulado: 27/08/2020
Aceito: 31/08/2020

 

 

1 Janine Gudolle de Souza é psicóloga e mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria.
2 Fernanda de Oliveira Alves é psicóloga e mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria.
3 Bianca Zanchi Machado é psicóloga, mestra e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria.

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