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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas
versão On-line ISSN 1806-6976
SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.16 no.4 Ribeirão Preto out./dez. 2020
https://doi.org/10.11606/issn.1806-6976.smad.2020.169257
ARTIGO DE REVISÃO
O nexo entre religiosidade/espiritualidade e o comportamento suicida em jovens*
El nexo entre religiosidad/espiritualidad y comportamiento suicida en los jóvenes
Maria Betânia Tinti de AndradeI; Andriana Olimpia Barbosa FelipeI; Kelly Graziani Giacchero VedanaII; Fabio Scorsolini-CominII
IUniversidade Federal de Alfenas, Escola de Enfermagem, Alfenas, MG, Brasil
IIUniversidade de São Paulo, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Centro Colaborador da OPAS/OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Ribeirão Preto, SP, Brasil
RESUMO
OBJETIVO: avaliar as evidências científicas referentes à relação entre religiosidade/espiritualidade (R/E) e o comportamento suicida.
MÉTODO: estudo de revisão integrativa da literatura, nas bases de dados: LILACS, PubMed e CINAHL, de janeiro de 2011 a fevereiro de 2020. Foram identificados 1044 artigos, dos quais sete foram incluídos no estudo.
RESULTADOS: Predominaram estudos quantitativos (71,4%), realizados com universitários (57,14%), que investigaram a religião (71,43%) e diferentes dimensões do comportamento suicida (85,7%). A maioria dos estudos retratara benefícios da religião e da espiritualidade, mesmo que indiretamente na vida dos jovens e apontaram para efeitos protetivos da R/E em relação ao comportamento suicida.
CONCLUSÃO: A R/E pode ser um fator importante para adolescentes e adultos jovens que merece ser explorada em investigações e ações que fortaleçam os fatores protetores contra o comportamento suicida e permitam o aumento da literacia em saúde mental entre lideranças religiosas.
Descritores: Espiritualidade; Religião; Adolescente; Jovem Adulto; Tentativa de Suicídio; Ideação Suicida.
RESUMEN
OBJETIVO: evaluar la evidencia científica sobre la relación entre religiosidad/espiritualidad (R/E) y conducta suicida.
MÉTODO: revisión integradora de la literatura, en las bases de datos: LILACS, PubMed y CINAHL, de enero de 2011 a febrero de 2020. Se identificaron 1044 artículos, de los cuales, siete fueron incluidos en el estudio.
RESULTADOS: predominaron los estudios cuantitativos (71,4%), realizados con estudiantes universitarios (57,14%), que investigaron religión (71,43%) y diferentes dimensiones de la conducta suicida (85,7%). La mayoría de los estudios han retratado los beneficios de la religión y la espiritualidad, incluso indirectamente en la vida de los jóvenes, y han señalado los efectos protectores de la R/E en relación con la conducta suicida.
CONCLUSIÓN: la R/E puede ser un factor importante para los adolescentes y adultos jóvenes que merece ser explorado en investigaciones y acciones que fortalezcan los factores protectores contra la conducta suicida y permitan un aumento de los conocimientos en salud mental entre los líderes religiosos.
Descriptores: Espiritualidad; Religión; Adolescente; Joven Adulto; Intento de Suicidio; Ideación Suicida.
Introdução
De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), estima-se que a cada 40 segundos uma pessoa morre por suicídio em algum lugar do mundo, o que corresponde a mais de 800.000 óbitos por ano. O suicídio é um problema particularmente preocupante entre adolescentes e jovens adultos, pois é a segunda principal causa de morte na idade de 15 a 29 anos. Considerando que o suicídio é multifatorial, múltiplas ações podem ser realizadas para preveni-lo(1). A atenção a essa faixa etária dos 15 a 29 anos, que compreende a transição da adolescência para o início da vida adulta, vem se mostrando, portanto, um foco importante para as investigações, intervenções e políticas de prevenção ao suicídio.
O comportamento suicida é um fenômeno complexo que está associado a um conjunto de ideias, intenções e ações relacionados ao desejo de provocar a própria morte(2). Na juventude, diferentes fatores podem contribuir para uma maior exposição dessa população a esse fenômeno, como variáveis relacionadas ao trabalho, à vida familiar, às vivências grupais, a quadros psicopatológicos pré-existentes, ao maior consumo de substâncias, às perspectivas de futuro e aos próprios conflitos oportunizados nessa fase do desenvolvimento, que marca a transição entre a adolescência e os desafios da vida adulta, representando um período de maior mobilização emocional e também de maior fragilidade diante dos diversos desafios. Além disso, o fenômeno do suicídio nessa faixa etária também deve ser compreendido a partir das suas repercussões nas redes de apoio social, compondo um fenômeno que atinge, de modo especial, a família(3-4).
Em que pesem os expressivos dados epidemiológicos, que asseveram o suicídio como uma das três principais causas de morte entre jovens, algumas estratégias de prevenção e de posvenção ao suicídio têm sido cada vez mais discutidas na literatura científica(1), a exemplo da religiosidade/espiritualidade (R/E). Estudos que comparam a R/E de jovens adultos e de idosos destacam que os efeitos dessa variável na saúde podem ser mais expressivos entre a população mais idosa(5). Isso nos leva à necessidade de compreender melhor como os jovens se posicionam em relação às vivências da R/E e o papel da mesma nos desfechos em saúde dessa população.
Estudos apontam evidências acerca das relações positivas entre R/E e saúde mental(6-8) e também sua influência na saúde física das pessoas com diversas alterações no processo saúde-doença(9-10). Contudo, as relações entre a R/E e o comportamento suicida ainda são incongruentes(11), sobretudo quando analisamos adolescentes e jovens adultos. Conhecer como esse público vivencia a R/E e se esse fator pode ser protetivo no contexto da saúde mental, sobretudo na prevenção ao suicídio, apresenta-se como uma lacuna importante de ser investigada.
Neste contexto, é relevante compreender que a R/E é uma nomenclatura especialmente utilizada no contexto da saúde e que abrange, de forma combinada, as definições de religiosidade, espiritualidade e também de religião. Em que pesem as diferenças semânticas e epistemológicas entre esses termos, a adoção do termo combinado, R/E, tem sido útil nos estudos que enfocam os efeitos dessa dimensão no cuidado em saúde, envolvendo questões relacionadas ao sentido da vida e ao sagrado, podendo ou não levar às práticas religiosas e institucionais(12-13). A dimensão da R/E é parte integrante do indivíduo, levando-nos a reflexões sobre como a mesma pode repercutir no contexto da saúde e de que maneira pode influenciar como fator de proteção para o comportamento suicida. A partir dessas considerações, o presente estudo teve como objetivo avaliar as evidências científicas referentes à relação entre R/E e o comportamento suicida em adolescentes e jovens adultos.
Método
Trata-se de um estudo de revisão integrativa da literatura, que tem como finalidade identificar e analisar as evidências científicas de forma sistemática e ordenada, para conseguir o aperfeiçoamento de conhecimento do tema pesquisado e a necessidade de novas pesquisas(14). Para este estudo, optou-se pelas seguintes etapas: Identificação de um problema, formulação de uma questão norteadora, busca das evidências científicas, avaliação das evidências disponíveis(15).
Quanto à elaboração da questão norteadora, utilizou-se a estratégia PICO, composta pelo acrônimo ligado aos seguintes itens (Patient: adolescente e jovem adulto de 15 a 24 anos; Intervention: R/E Comparison: pessoas sem R/E (nos estudos nos quais houve comparação); e Outcomes: comportamento suicida. Em relação à idade da população considerada para a presente revisão, a delimitação do período compreendido entre 15 e 24 anos teve por objetivo abarcar indivíduos adolescentes ou jovem adultos, que estão em uma faixa etária na qual o suicídio desponta como a segunda causa de mortalidade(1), requerendo, portanto, ações preventivas e reconhecimento de fatores de risco e de proteção. Destaca-se que, segundo a OMS, o adolescente é o indivíduo que possui entre 10 e 19 anos(16), enquanto em classificações nacionais, o jovem adulto é aquele que possui entre 20 e 24 anos(17).
A estratégia PICO foi desenvolvida de modo alinhado à prática baseada em evidências para a localização de estudos primários relevantes nas bases/bibliotecas de dados(15). Na presente revisão, a questão norteadora foi: Quais as evidências científicas referentes à associação entre R/E e comportamento suicida entre adolescentes e jovens adultos?
A coleta de dados foi realizada entre os meses de fevereiro e março de 2020. Para realização da busca optou-se pelas bases/bibliotecas LILACS (Literatura Latino-americana e do Caribe em Ciências da Saúde), PubMed (National Library of Medicine and National Institute of Health - USA), CINAHL (The Cumulative Index to Nursing and Allied Health Literature). Tais bases/bibliotecas foram selecionadas devido à sua abrangência e relevância para a identificação de evidências, como reportado em outras revisões de literatura disponíveis(18).
Utilizou-se os termos indexados nos descritores de Ciências da Saúde (DECs) e Medical Subject Headings (MeSH). Foi utilizada a seguinte combinação dos descritores indexados no DECs e MeSH Terms: ideação suicida (suicidal ideation), suicídio (suicide), tentativa de suicídio (suicide attempted), espiritualidade (spirituality), religião (religion), adolescente (adolescent) e jovem adulto (young adult). Além da utilização da palavra chave jovem (young). Foi empregado o operador booleano AND, perfazendo dezoito combinações de buscas diferentes. Como estratégia de busca, incluiu-se a pesquisa dos descritores e da palavra-chave ao longo do texto. Esses descritores e suas combinações foram definidos a partir da pergunta norteadora.
Foram utilizados como critérios de inclusão: artigos em português, espanhol e inglês, publicados no período de janeiro de 2011 a fevereiro de 2020, que retratassem a relação entre a R/E e o comportamento suicida, tendo como participantes adolescentes e jovens adultos com idade entre 15 a 24 anos. O período de abrangência da revisão, abarcando o recorte dos últimos nove anos, visou a possibilitar o acesso à produção mais recente acerca do tema.
Essa idade entre 15 a 24 anos foi selecionada por englobar adolescentes e jovens adultos que estão na faixa etária da população com maior vulnerabilidade para o comportamento suicida(1).
Quantos aos critérios de exclusão, foram retirados artigos de revisão de literatura, editoriais, resumos, artigos repetidos na base de dados, cujos textos não estavam disponíveis na íntegra, que não respondessem à questão norteadora, artigos que abordavam outras comorbidades e cujos participantes estivessem abaixo dos 15 anos e acima de 25 anos de idade, que informassem apenas a média de idade ou que não mencionassem a idade dos participantes da pesquisa.
As buscas e a aplicação dos critérios de inclusão e de exclusão foram realizadas por dois juízes independentes, ambos com experiência nas temáticas da R/E e do suicídio, bem como com familiaridade com o método de revisão adotado. As possíveis disparidades nessas avaliações foram apreciadas por um terceiro juiz. Os artigos recuperados a partir desse processo de filtragem e seleção compuseram o corpus analítico.
Para a categorização dos artigos foram extraídas as seguintes informações dos artigos que compuseram o corpus: autores, ano de publicação, título, periódico, idioma, objetivo, características metodológicas, instrumentos e questionários utilizados.
Resultados
Na Figura 1, observa-se o processo de seleção e dos critérios de exclusão e inclusão dos estudos. Primeiramente, foram identificados 1044 artigos nas bases de dados/bibliotecas selecionadas. Após a leitura e análise dos títulos identificando o tema principal como: comportamento suicida (ideação e tentativa de suicídio) e espiritualidade, religião ou religiosidade, foram pré-selecionados 433 artigos. Com a leitura dos títulos e resumos, foram excluídos 314 artigos e 112 artigos não atendiam aos critérios de inclusão, totalizando uma amostra final de sete artigos.
As causas de exclusão foram: idade dos participantes (n=107; 95,5%) e artigos que não abordavam a temática estudada (n=5; 4,5%).
O corpus do estudo foi composto por sete artigos que atenderam aos critérios de inclusão. A síntese de informação dos artigos recuperados está apresentada na Figura 2.
Constatou-se que (73,47%) das publicações são da PubMed e (24,81%) CINAHL. Quanto o ano de publicação, verificou-se que sete estudos selecionados foram publicados entre 2011 a 2017. Houve predomínio em 2011 com duas (28,5%) publicações e em 2012, 2014, 2015, 2016 e 2017, houve apenas uma (14,3%). Em relação ao idioma de divulgação, sete (100%) foram publicados em inglês e em revistas internacionais, sendo que três (42,86%) artigos foram publicados em um mesmo periódico, o Journal of Religion and Health(19, 20,22).
Na Figura 3, encontra-se um panorama geral das sete publicações selecionadas, destacando-se o tipo de abordagem metodológica, a amostra, a idade dos participantes, o cenário e o objetivo geral.
Quanto ao delineamento das pesquisas, identificou-se que cinco estudos (71,4%) foram de abordagem metodológica quantitativa e dois (28,6%) de abordagem qualitativa. Detectou-se que os estudos de abordagem quantitativa tiveram uma amostra que variou de 111 a 1168 participantes, sendo que os estudos foram conduzidos em diferentes cenários de investigação. Neste contexto, ressalta-se que nenhum dos estudos apresentou o cálculo do tamanho amostral. Nos dois (28,6) artigos qualitativos, a amostra variou de 18 a 20 participantes(19,24).
Em quatro estudos (57,14%) o cenário de investigação se deu nas universidades, dois (28,57%) se desenvolveram em escolas com jovens do ensino médio(21,25), e o outro com grupo religioso do Islan(20). A idade dos participantes variou de 15 a 24 anos. Identificou-se também que seis (85,7%) dos estudos abordaram jovens de ambos os sexos, e um (14,3%) estudo qualitativo se desenvolveu apenas com as mulheres jovens(19).
Com relação ao local do estudo, detectou-se que quatro (57,1%) foram desenvolvidos na Ásia (Paquistão, China, Malásia, Índia), dois (26,8%) no Oriente Médio (Israel) e um (14,3%) na África do Sul (Durban) e na América do Norte (Canadá).
Ao analisar os objetivos dos estudos, é prudente mencionar que seis (85,7%) pesquisas tinham como objetivo avaliar diretamente o construto religião/espiritualidade. Ainda em relação aos objetivos, no quesito comportamento suicida, constatou-se que seis pesquisas investigaram dimensões diferenciadas do comportamento suicida, avaliaram as atitudes, a ideação, tendências suicidas e pensamentos. Vale ressaltar também que um (14,3%) dos artigos avaliou indiretamente o risco suicida por meio das situações estressantes do dia-dia(19).
No que diz respeito aos instrumentos e questionamentos utilizados para avaliar a R/E e o comportamento suicida, a Figura 4 sumariza esses elementos na presente amostra.
Ao analisar os instrumentos utilizados para a temática em tela, evidenciou-se a aplicação de instrumentos e estratégias diversificadas. Constatou-se que cinco (71,43%) estudos quantitativos analisaram a religião, e não a espiritualidade. E que a avaliação da religiosidade em dois (28,57%) dos artigos foi realizada apenas com respostas dicotômicas, sendo que um avaliou apenas a crença religiosa(23), e o outro além da crença religiosa avaliou os rituais religiosos(21), e um artigo identificou a importância da religião e a participação no serviço religioso(25).
Nas pesquisas qualitativas, um dos estudos investigou a espiritualidade com perguntas semiestruturada, as quais não foram explicitadas(19), e no outro a avaliação da religiosidade ocorreu através da pergunta "o que significava ser religioso", e as demais perguntas da religiosidade estavam envolvidas com a vida, estratégias de enfrentamento e o suicídio(24).
Com relação à avaliação do comportamento suicida nos estudos quantitativos, constatou-se também a aplicação de diferentes instrumentos(20-23,25).
Quanto aos estudos de abordagem qualitativa, a pesquisa conduzida com universitárias utilizou perguntas direcionadas às situações estressoras como suicídio e a relação da espiritualidade como força e apoio. É prudente mencionar que esse artigo realizou uma triagem utilizando três instrumentos, como a Escala de Ideação Suicida (SSI), o Questionário de comportamento suicida - revisado (SBQ-R), e o Inventário de Resiliência ao Suicídio (SRI-25). A pesquisa foi conduzida apenas com mulheres universitárias que apresentavam alteração para o comportamento suicida(19). O outro estudo avaliou através de diversas questões a relação entre a religiosidade e o suicídio(24).
Os principais resultados dos estudos referentes à relação entre R/E e o comportamento suicida encontra-se na Figura 5.
No que diz respeito aos resultados dos artigos, identificou-se que existem quatro (57,1%) estudos que apoiam a associação entre a R/E e a prevenção do comportamento suicida, sendo que em dois estudos essa relação positiva foi encontrada apenas para os adolescentes cristãos(21) e na outra, apenas no sexo feminino(25). Dois estudos não encontraram uma relação entre R/E e o enfrentamento para o comportamento suicida. Contudo, o compromisso religioso contribuiu indiretamente para que os jovens fossem mais compreensivos em relação ao comportamento suicida de outras pessoas e considerassem que o mesmo pode ser prevenido(22), e que a fé também pode contribuir para os jovens atravessarem o período de situações difíceis, mas não é suficiente para ativar em situações agudas de estresse e trauma(24).
Um fato importante a ser elucidado é que um dos estudos referenciou que a religião pode não ser um protetor universal contra ideação suicida em diferentes religiões, e que o desejo de viver foi um fator protetor contra o comportamento suicida, independente da religião(21).
É relevante mencionar que em um dos artigos houve efeito inverso, em que ser religioso aumentou o risco do suicídio. Os autores explicam que os jovens, ao acreditarem em uma vida após a morte, veem no suicídio uma forma rápida de acelerar essa conquista(23).
Quanto à explicação dos benefícios da R/E, apenas dois artigos retratam que a conexão com a divindade proporciona uma sensação de conforto, alívio e vigor para continuar vivendo(19) e que quanto mais religioso o jovem for mais ele é seduzido pela vida(20).
Discussão
Constatou-se uma lacuna de estudos no contexto nacional referente à relação entre R/E e o comportamento suicida em adolescentes e jovens, o que já vem sendo retratado na literatura(33). Neste sentido, é necessário que pesquisas sejam conduzidas com esse grupo, uma vez que as taxas de suicídio nessa população são expressivas(34), além do que a R/E faz parte da cultura, da socialização e da rotina diária de muitos brasileiros(35), sendo o Brasil um país eminentemente religioso. Um maior investimento nessas pesquisas pode contribuir tanto para compreendermos melhor as estratégias de prevenção ao suicídio empregadas por essa população, bem como as possíveis particularidades em relação ao contexto brasileiro. Nesse sentido, a R/E pode se revelar um fator protetivo mais ou menos expressivo em função desse contexto, o que ainda deve ser melhor investigado e suportado por mais evidências científicas.
A principal abordagem realizada pelos pesquisadores nesse campo foi a quantitativa, e em nenhum dos estudos realizou o cálculo estatístico para definição da amostra. A realização do cálculo amostral contribui para a validade interna do estudo, sendo de fundamental relevância que seja descrita nos artigos(36).
Outro fato importante a ser destacado é que grande parte dos estudos foi conduzida em universidades e com os universitários. Tal situação pode estar relacionada com o acesso facilitado aos estudantes, bem como ao sofrimento vivenciado nesse contexto social e por esse grupo, como a violência, a síndrome do pânico, o estresse, a depressão e o suicídio, além do que o mundo muitas vezes se tornou desinteressante e sem sentido para os jovens(37). A literatura referencia que os estudantes universitários são um grupo que merece atenção em relação ao comportamento suicida(38). Além disso, o contexto institucional vem cada vez mais sendo alvo de reflexões em termos da saúde mental, sendo necessário que as instituições de ensino superior estejam engajadas não apenas em programas de atendimento a esses estudantes, mas que também possam desenvolver ações de acolhimento a esse público, o que perpassa, as reflexões sobre a prevenção ao comportamento suicida nessa etapa da formação.
Pesquisa realizada com 637 universitários, com idade variando entre 18 a 32 anos, da Universidade Federal de Mato Grosso, detectou que 9,9% apresentavam ideias suicidas nos últimos 30 dias(33). Investigação também conduzida com 220 universitários da Irlanda observou que 59% dos participantes apresentaram sintomas depressivos e 28,5% ideação suicida(39). Esses dados convergem com a pesquisa realizada com 523 estudantes de graduação da Etiópia, que encontrou que a estimativa geral de comportamento suicida foi de 28,9%, enquanto que a prevalência ao longo da vida de ideação foi de 58,3%, plano suicida de 37,3%, e a tentativa de suicídio de 4,4%(38).
Há que se considerar que dois artigos incluídos na amostra da presente pesquisa tiveram como cenário a escola, e a população, adolescentes do ensino médio. Esse grupo também apresenta taxas significativas de comportamento suicida, conforme evidenciado em estudo realizado em Gana, no qual os adolescentes apresentaram maiores taxas de estresse, depressão e ideação suicida do que os estudantes universitários(40). Pesquisa com adolescentes do ensino médio do Irã concluiu que 4,1% apresentavam pensamentos suicidas no último 12 meses(41). No contexto brasileiro, também evidenciou-se que, 12,1% dos adolescentes do ensino médio tiveram ideações suicidas e 5,5% tentaram suicídio nos últimos 12 meses, sendo que a maior prevalência de ideação foi na faixa etária entre 14 a 16 anos(34).
É imperativo que pesquisas sejam conduzidas nos espaços das escolas e das universidades e que os profissionais de saúde estejam aptos a implementar estratégias que possam acolher os adolescentes e jovens em toda a sua dimensão existencial, contribuindo para melhoria do seu bem-estar(37,40). Embora a literatura recuperada não explore suficientemente o papel da gestão educacional, é mister que os dirigentes dessas instituições de ensino, tanto do ensino médio quanto do superior, estejam engajados em ações de promoção de saúde mental que possam considerar, de modo enfático, a prevenção ao comportamento suicida. Essas estratégias também podem se dar de modo articulado a outras ações de acolhimento fundamentais para esse público.
Quanto à idade dos participantes, considerando os critérios de inclusão estabelecido no presente estudo, constatou-se que a idade variou de 15 a 24 anos. Fato importante de ser elucidado que mundialmente a segunda principal causa de morte entre os jovens de 15 a 29 anos se refere ao suicídio, e que ainda é uma área da saúde negligenciada(41). Com relação a essa variável, observa-se que pesquisas foram excluídas do presente estudo em decorrência da idade ser superior a 25 anos(11,42,43). Em algumas investigações os autores apenas mencionaram que os participantes tinham mais de 18 anos(44,45), ou que eram adolescentes e jovens adultos(46), e outros retratavam apenas a média de idade dos jovens(38,47). Recomenda-se que os estudos especifiquem claramente a variação da idade dos participantes para permitir melhor compreensão dos resultados.
É oportuno apontar que estudos com um grupo etário muito amplo podem alterar os resultados das pesquisas em relação à vivência da R/E(42-43), assim como do comportamento suicida. Sabe-se que os adolescentes e jovens estão expostos a outras vulnerabilidades, como o consumo de álcool, tabaco e outras substâncias, depressão, violência entre os pares e demais aspectos que seriam catalisadores para elevar a taxa de suicídio entre os demais grupos.
O que coaduna com investigação conduzida com participantes entre 18 a 36 anos, que o risco de suicídio é maior nos mais jovens, os quais eram menos comprometidos com a religião, apresentaram maiores taxas de sintomas de depressão, de ansiedade, consumo de álcool, percebiam menos apoio social da família e de amigos e não procuravam ajuda, sendo que essas variáveis eram significantes(11).
Outra questão relevante refere-se ao fato de que a maioria dos artigos estudou apenas as questões do sexo/gênero e a relação com o suicídio, o que corrobora com a investigação que descreve a negligência das pesquisas sobre a interface entre R/E e a saúde mental da comunidade LGBTQI+, grupo com risco aumentado para o comportamento suicida(33,48). Os autores consideram que é necessário mais pesquisas com população LGBTQI+(49) e que as mesmas sejam conduzidas com objetivo de definir intervenções que contribuam para a prevenção do suicídio(48). Deve-se destacar, ainda, que a R/E pode ser um fator de proteção importante, notadamente quando se mostra acolhedora com minorias sexuais e de gênero(50), permitindo que jovens LGBTQI+ que estejam conectados com a dimensão da R/E também possam adotar comportamentos mais saudáveis, o que envolve também a prevenção ao comportamento suicida.
Relacionado às particularidades da dimensão da R/E com o construto comportamento suicida, constatou-se que a maioria dos estudos tinha como objetivo investigar essa relação. Para ambos os construtos, os pesquisadores utilizaram diferentes instrumentos para mensurar as variáveis. Apenas um estudo qualitativo investigou a dimensão espiritualidade, e os demais avaliaram a crença, a importância da religião, rituais religiosos e a participação no serviço religioso.
Quanto à investigação do comportamento suicida, um estudo quantitativo(23) aplicou o SBQ-R - Suicidal Behaviors Questionaire- Revised e em outro este mesmo instrumento foi utilizado para identificar os participantes com comportamento suicida e posteriormente conduzir a abordagem qualitativo(19). Apresenta-se como uma ferramenta fidedigna para a população adolescente e adulta, de autorrelato, tipo likert, em que se avalia o risco de suicídio através de quatro questões, com pontuação que varia de três a 18 pontos, um escore igual ou superior a sete o indivíduo apresenta alto risco para comportamento suicida(32,11).
Os resultados dos artigos evidenciaram discrepâncias do nexo entre os construtos da R/E com o comportamento suicida. Pode-se inferir que a divergência dos resultados pode estar relacionada aos diferentes instrumentos empregados(47) e as metodologias, além das questões socioculturais, das diferentes religiões e como os jovens vivenciam a dimensão da religião e da espiritualidade em suas vidas.
Apesar da divergência dos resultados, os artigos retrataram os benefícios da religião e da R/E, mesmo que indiretamente, na vida dos jovens em relação ao suicídio. E que a gênese para esse benefício está no conforto, no alívio de situações estressantes e na satisfação pela vida. A R/E tem um efeito positivo na saúde mental do ser humano, haja vista que aumenta as emoções positivas e reduz o estresse que poderia gerar sentimentos negativos como, por exemplo, a ideação suicida. A R/E também contribui para definir as doutrinas da vida em sociedade e o comportamento pró-social: ao cumpri-las o indivíduo reduz a probabilidade de vivenciar situações geradores de estresse. A R/E também pode ser promotora de virtudes humanas como honestidade, perdão, gratidão e paciência, que aumentam as emoções positivas(13), funcionam como fatores protetivos em termos de saúde mental.
Outras pesquisas retratam que a R/E contribui para o bem-estar(33,35), uma vez que esta dimensão propicia uma rede de apoio social o que minimiza a solidão e a sensação de isolamento, e, simultaneamente, muitos ensinamentos religiosos nutrem a ideia de que o suicídio não é uma alternativa viável para lidar com sofrimentos e problemas(35). Os efeitos dessa associação podem ser encontrados em outros estudos, como o que foi conduzido com universitários que também autopreencheram o SBQ-R, concluindo que somente as jovens mulheres que tinham menos envolvimento com a prática religiosa apresentavam maiores chances para o risco de suicídio(38). Pesquisa conduzida no contexto brasileiro detectou que os universitários que não tinham uma prática religiosa apresentavam maior risco de comportamento suicida(33).
Esses dados convergem com pesquisa desenvolvida com universitários americanos em que observou que a religiosidade intrínseca (crenças e práticas religiosas) foi fator protetor para prevenção da ideação suicida apenas nas mulheres(47). Evidencia-se também em uma investigação com indivíduos adultos do Irã que tentaram suicídio em comparação com aqueles que não, que a religião intrínseca, como as crenças religiosas estão relacionadas a prevenção do comportamento suicida, contudo, a prática religiosa não apresentou correlação com essa variável(51).
Os resultados de um estudo com adolescentes e jovens adultos em Trinidad e Tobago detectou associações protetoras do pensamento suicida apenas entre os que se autodeclararam católicos e adventista do sétimo dia. A maior religiosidade autoavaliada pelos participantes esteve relacionada à menor probabilidade de pensar suicídio e de planejar suicídio. Assim, como o comparecimento a serviços religiosos estava associado à diminuição do risco de pensamentos e de tentativa de suicídio. Observou-se também uma associação protetora entre maior frequência de oração e menor chances de pensamento e planos suicida, o que contribui para minimizar o estresse e o sofrimento(46).
Há relatos em um dos artigos que compôs a amostra do estudo, que revelam que, mesmo que tenha fé, nem sempre o jovem a emprega no enfrentamento de adversidades, apesar de alguns acreditarem que é fundamental para sobreviver a esses momentos. Tais resultados coadunam com investigação qualitativa com jovens e adultos que haviam tentado o suicídio, os mesmos consideram a existência de Deus, e que Ele é o responsável por presentear com a vida e de recolhê-la. Também acreditam na relevância da religião para saúde mental e o bem-estar, contudo, eles fracassaram em usá-la durante o sofrimento e que todo esse processo gerou sentimento de culpa e de reprovação pelo ato(43).
Conclusão
A partir dos estudos recuperados na presente revisão, evidencia-se que a R/E é um elemento relevante na vida dos adolescentes e dos jovens. Entretanto, é necessário que mais pesquisas sejam conduzidas e direcionadas a compreender a vivência da dimensão desses construtos na vida dos mesmos e de seus efeitos, sobretudo em relação ao comportamento suicida. Embora as evidências recuperadas neste estudo sejam limitadas em termos de seu poder de efeito para comparações mais robustas, apenas sete estudos foram recuperados, há que se destacar que, em sua maioria, apontam para efeitos protetivos da R/E em relação à prevenção do comportamento suicida. Assim, a R/E pode ser evocada não apenas como um recurso em saúde mental, o que se alinha, inclusive, às recomendações da Organização Mundial da Saúde, a partir do seu conceito multidimensional de saúde, atualizado em 1998, mas a um elemento que pode ser mais discutido com os adolescentes e jovens.
Em uma sociedade cada vez mais hiperconectada, automatizada e com pouco espaço para incursões no universo do próprio indivíduo, a R/E pode ser um convite para que esses jovens estejam em contato com as próprias sensações, com os próprios recursos e com reflexões que estejam para além da materialidade, o que pode evocar respostas mais seguras e alinhadas a uma real promoção de saúde pela possibilidade de retorno ao que, de fato, os constitui. Uma necessidade deflagrada a partir da presente revisão é a de compreender como esse público compreende e vivencia a R/E. No cenário brasileiro, eminentemente religioso e com diversas manifestações religiosas e espirituais, abre-se a possibilidade de que os estudos no campo da saúde mental devam estar em constante diálogo com aqueles produzidos pelas ciências humanas, em busca de apreensão do próprio fenômeno religioso nessa faixa etária e suas especificidades a partir dos diferentes marcadores sociais como origem, renda, escolaridade e acesso à saúde. Essas relações podem se mostrar relevantes, em estudos vindouros, para uma apreensão mais profunda acerca do papel protetivo da R/E sobre o comportamento suicida. Essas reflexões podem fazer parte de programas e ações de prevenção ao suicídio não como forma de doutrinação ou de exploração de uma atuação profissional considerada religiosa, pelo contrário: como possibilidade de levar o indivíduo a uma conexão interna que é promotora de autoconhecimento e, consequentemente, de autocuidado, tendo como referência uma R/E inteligível e prenhe de sentido para esse público.
Referências
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Autor correpondente:
Maria Betania Tinti de Andrade
E-mail: betania.andrade@unifal-mg.edu.br
Recebido: 30.04.2020
Aceito: 07.09.2020
Contribuição dos autores
Concepção e planejamento do estudo: Maria Betânia Tinti de Andrade, Adriana Olimpia Barbosa Felipe e Fabio Scorsolini-Comin. Obtenção dos dados: Maria Betânia Tinti de Andrade e Adriana Olimpia Barbosa Felipe. Análise e interpretação dos dados: Maria Betânia Tinti de Andrade, Adriana Olimpia Barbosa Felipe e Kelly Graziani Giacchero Vedana. Redação do manuscrito: Maria Betânia Tinti de Andrade, Adriana Olimpia Barbosa Felipe, Kelly Graziani Giacchero Vedana e Fabio Scorsolini-Comin. Revisão crítica do manuscrito: Maria Betânia Tinti de Andrade, Adriana Olimpia Barbosa Felipe, Kelly Graziani Giacchero Vedana e Fabio Scorsolini-Comin.
Todos os autores aprovaram a versão final do texto.
Conflito de interesse: os autores declararam que não há conflito de interesse.
* Este artigo refere-se à chamada temática "Violência autoprovocada: autolesão não suicida e comportamento suicida".