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Estudos e Pesquisas em Psicologia
versão On-line ISSN 1808-4281
Estud. pesqui. psicol. vol.11 no.1 Rio de Janeiro abr. 2011
TRADUÇÃO
Herbert Marcuse (1898-1979)
Começaremos considerando a atividade filosófica ( das Philosophieren ) como a atividade humana na qual a filosofia se constitui. A atividade filosófica, no sentido estrito do termo, é um modo de existência humana. A existência humana, em todas as suas facetas, é localizada na questão de seu sentido . O traço distintivo da existência humana é o de não se realizar em seu único ser, de se encontrar “confrontada” de maneira totalmente determinada às suas possibilidades, de ser obrigada a apreender, primeiramente, tais possibilidades e de viver, dessa maneira, sob a questão de seu “porquê”. (Aqui e mais além no texto, será preciso distanciar deste “porquê” todas as suas representações enquanto esfera do objetivo transcendente da existência humana; o porquê, por exemplo, de ela existir. Embora se exclua todo pensamento teleológico, pode-se falar de um “porquê”, quando o “porquê” da existência repousa sobre seu próprio ser). É este “porquê”, em sua relação com a existência humana, que temos em vista quando falamos de sentido.
Atentando para sua significação inicial, o sentido da atividade filosófica não deve ser concebido como a realização de um fim que a transcenderia. Toda verdadeira atividade filosófica encontrou sentido em si mesma e apreendeu esse sentido por si mesma. O esforço filosófico visa propriamente ao conhecimento enquanto revelação da verdade. O sentido da atividade filosófica pode ser determinado, a priori, como revelação da verdade .
Dentre as inúmeras determinações da verdade, consideraremos, inicialmente, a validade. A verdade não é a validade, ela não se “esgota” em sua validade , mas a validade pertence à essência da verdade. Não existem verdades “inválidas”, nulas. Porém, o que significa validade? Só há validade em relação à existência humana. As leis naturais não valem para a natureza, cujos fenômenos ocorrem segundo essas leis, mas sim para o homem que conhece a natureza. O fato de que o ímã atrai o ferro não vale para este último, mas para o homem que considera o ímã e o ferro. Dizer que uma relação é válida significa que, se eu a considero, devo conhecê-la, agir segundo ela, estar em conformidade com ela. Esse “eu” é totalmente essencial; ele remete, em todos os casos, à existência humana. Quando se fala de validade, não se quer dizer que a relação válida seja apenas para a existência humana, mas que tal relação só pode ser declarada verdadeira ou ter sentido para a existência humana. A relação que expressam as leis naturais não é verdadeira para a natureza – para esta, a relação, simplesmente, existe –, ela é verdadeira apenas para o homem. Uma relação válida pode ser independente, segundo seu ser, de qualquer existência humana: enquanto válida, enquanto verdade, ela só existe para o homem.
Se a verdade é, desse modo, associada à existência humana pela validade, essa relação recebe sua significação existencial de um fenômeno freqüentemente negligenciado: a apropriação . A verdade exige de si mesma – o ser de sua relação sendo independente de toda existência humana - sua apropriação pela existência humana. As verdades não são procuradas e conquistadas através de luta intensa, não são apreendidas pelo trabalho do conhecimento, para serem, em seguida, conservadas in abstracto e tornadas inoperantes: no conhecimento da verdade, reside, ao contrário, a exigência de sua apropriação. O conhecimento só é uma apropriação para aquele que conhece a si mesmo, que descobriu e conquistou para si e em si mesmo a coisa conhecida, “como se fosse a primeira vez”. Para aquele que não repete, em seu íntimo, o processo de descoberta original, o conhecimento se torna saber passivo, e a verdade, algo que é tido como verdadeiro. E é somente quando uma relação é objeto de uma apropriação por intermédio de uma existência humana concreta que ela se torna verdade. Toda verdade autêntica é sabida e possuída, e saber e possuir não são atos da consciência humana que intervêm, momentaneamente, para voltar a desaparecer em seguida, mas pertencem ao existir ( Existieren ) da própria existência ( Dasein ) humana, produzem seus efeitos na e com a existência. A apropriação não constitui em hipótese alguma o ser da verdade (da verdadeira relação), mas sim o sentido da verdade. O “porquê” da verdade só se realiza na aprovação.
Se sua apropriação pela existência humana pertence ao sentido da verdade e se essa apropriação se realiza como saber e como posse no existir da própria existência, decorre que a verdade deve também produzir seu efeito no existir. Ora, o existir da existência humana é, em todo momento, um comportamento diante do mundo: ação e reação. A verdade deve, então, penetrar nessa esfera propriamente dita do existir: a existência deve poder orientar-se, no seu comportamento, de acordo com a verdade.
Toda verdade2 tem por sentido existencial o fato de que o homem, ao se apropriar dela, pode existir como verdadeiro. Essa proposição deve ser compreendida num sentido muito amplo, pois aqui trata-se apenas de determinações gerais prévias. Um conhecimento matemático, onde quer que tenha caráter original da verdade, também pode conduzir o homem a um comportamento “verdadeiro” diante do mundo. As verdades matemáticas possuíam, por exemplo, esse caráter existencial no mundo grego: tal caráter existencial aparece claramente nas tradições pitagóricas e manifesta-se, ainda com força, em muitos diálogos de Platão.
Voltemos a nosso ponto de partida. Se o sentido da atividade filosófica é a revelação da verdade e se esta tem essencialmente um caráter existencial, é necessário dizer não somente que a atividade filosófica é um modo de existência humana, mas também que a filosofia, por seu próprio sentido, é existencial. Não importa como seja delimitado o campo da filosofia, esta sempre se ocupa, no conhecimento da verdade, da existência humana. Toda verdadeira atividade filosófica não fica apenas no conhecimento, mas, desenvolvendo o conhecimento da verdade, esforça-se para fazer com que a existência humana se aproprie dessa verdade. A preocupação com a existência humana e com sua verdade faz da filosofia, no sentido mais profundo, uma “ciência prática”; ela também conduz a filosofia – e é justamente aí que queremos chegar – ao cerne da agonia concreta da existência humana. É nesse estado de coisas, cujas grandes linhas esboçamos, que se funda, a nosso ver, a necessidade filosófica das questões que se seguem.
A atividade filosófica autêntica não deve ser revelada no fato de que a apropriação de suas verdades é eminentemente necessária, do ponto de vista existencial? O problema da “fecundidade” da filosofia também é, de fato, não “filosófico” como se pretende? As questões e as verdades filosóficas não têm também suas “histórias” - não apenas porque se desenvolvem, com efeito, “na história”, mas porque, essencialmente históricas, elas estão ligadas à existência histórica concreta e só fazem sentido, de fato, a partir dessa existência histórica concreta e para ela? Os problemas e as verdades filosóficas têm também seu lugar e sua hora?
Não é possível que a existência humana concreta já tenha se apropriado, no seu modo e na sua ação histórica, das verdades que o conhecimento filosófico ainda não descobriu? De tal modo que, nesse caso, a tarefa da filosofia seria liberar essas verdades pela interpretação da existência concreta? Por outro lado, a filosofia não engloba também a preocupação com as possibilidades totalmente concretas pelas quais a existência humana está em condição de se apropriar de suas verdades? A filosofia não tem também a tarefa de preparar o terreno para suas verdades e, no caso em questão, de lutar por esta preparação na esfera da existência humana?
Resumindo o sentido dessas questões, não se deve, para começar, reconsiderar a filosofia a partir da existência humana concreta e questioná-la a partir dessa existência?
Acreditamos que falar dessas questões de uma maneira abstrata e geral é mascarar a importância capital e incisiva do problema, e que é somente tratando-o na esfera do concreto que se pode abordá-lo com a clareza indispensável. Trata-se da necessidade concreta da filosofia, não de sua necessidade geral. Nesse sentido, ressaltamos mais uma vez que o valor intrínseco de uma atividade filosófica autêntica não é colocado em questão, mas já tomado como um postulado.
Porém, antes de poder fazer essa pergunta a respeito da situação atual da existência, devemos definir a situação na qual a atividade filosófica diz respeito, em geral, à existência humana. Para tanto, iremos nos limitar às indicações indispensáveis.
A existência humana com a qual se preocupa a filosofia encontra-se, a cada instante, numa situação histórica determinada. A filosofia não considera sujeitos ou objetos abstratos “intercambiáveis”; todo indivíduo existe numa atividade determinada (no seio da qual conserva e estrutura sua existência), numa situação social determinada (que investe seu meio cotidiano), num estatuto determinado da comunidade nacional, que resulta, por sua vez, de condições naturais e históricas determinadas. Assim que nasce, todo indivíduo é exposto à sua situação histórica que traça, de antemão, as possibilidades de sua existência. E os objetos com os quais sua existência é confrontada, as coisas com as quais tem relação e que preenchem o espaço de sua vida, o mundo natural onde vive, as disposições e as estruturas nas quais sua existência se desenvolve, não são grandezas rígidas, “unívocas”, independentes, que se refratam, de algum modo, na situação histórica. Sejam quais forem o lugar e o momento em que o indivíduo as encontre, elas já foram apreendidas por uma existência concreta e transformadas, tornaram-se “história”, foram transmitidas de uma geração à outra, moldadas, a cada vez, de acordo com as necessidades da existência.
Então, se a filosofia quer se preocupar seriamente com a existência, ela não deve considerar essa contingência da existência determinada pela situação histórica enquanto simples facticidade, “perspectiva” histórica, acaso temporal, enquanto realização de um “conteúdo ontológico” (localizado fora ou acima de seu tempo), mas enquanto destino da existência, enquanto plenitude concreta desta. A existência não “faz” a história como um simples produto, ela não vive na história como em seu espaço ou seu elemento mais ou menos fortuito: ao contrário, o existir concreto da existência (Dasein) é acontecimento, o que compreendemos, intelectualmente, pela palavra “história”. Conceber a historicidade essencialmente inerente à existência enquanto simples facticidade (ou recorrendo a termos análogos) não significaria somente que a filosofia ultrapassa a esfera onde se manifesta propriamente a vida da existência; tal atitude também vai ao encontro da constatação fenomenológica, e somente essa constatação pode servir de fio condutor. Consideremos por um momento, a situação sob a ótica da redução fenomenológica. Se a consciência de seu lugar natural no mundo das realidades for distanciada, se qualquer julgamento sobre essas realidades for eliminado, se qualquer “posição” (Setzung) transcendente for evitada, abre-se para a pesquisa um campo totalmente novo: a corrente da consciência com a grande quantidade de experiências vividas, por um lado, e os objetos que essa consciência vive como intencionalidades, por outro lado. Então, de repente, tornou-se absurdo falar de historicidade, pois evento e história são, essencialmente, realidade (no sentido de uma “posição” transcendente). É perfeitamente possível limitar a filosofia a esse campo. Ele permite elaborar uma gama de conhecimentos sobre a essência da consciência, sobre a estrutura de seus atos, sobre as relações das experiências que ela vive, sobre a constituição de seus objetos - e todos esses conhecimentos devem ter uma validade “supratemporal”, se são obtidos de maneira fenomenologicamente exata. Contudo, ao mesmo tempo em que a fenomenologia preparou o único terreno no qual tais conhecimentos são possíveis, ela permitiu descobrir o único modo sob o qual a filosofia fenomenológica ainda é possível fora da redução. O correlato necessário da redução fenomenológica é o devir histórico da filosofia . No momento em que caem os parênteses da redução, a existência e seu mundo aparecem em sua concretude histórica.
Tomemos um exemplo. Observo a fábrica que está à minha frente. Na redução fenomenológica, eu a apreendo enquanto dado, enquanto objeto de percepção. Elimino todas as “posições” transcendentes e posso, a partir de então, estudar a constituição desse objeto intencional na percepção, a estrutura dos atos que me dão acesso ao objeto, as leis que existem entre esses atos, os graus de evidência sob os quais o objeto se manifesta, etc. Em relação ao objeto perceptivo “fábrica”, posso ilustrar com exemplos as leis inerentes ao que se dá como coisa, cor, extensão, etc. Depois disso, abandono a redução, mas sempre me mantendo em conformidade com o método fenomenológico, a fim de deixar ver e falar o “objeto por ele mesmo”, tal como aí se encontra, em sua plena concretude. O que tenho no momento é o complexo fábrica na plenitude (mais ou menos forte) de sua significação concreta: lugar de uma atividade econômica onde qualquer coisa é “fabricada”, lugar de trabalho de tantos operários, propriedade desta ou daquela sociedade, construção moderna ou arcaica, grande ou pequena... A fábrica aparece como que integrada em uma forma econômica determinada, resultado parcial de uma longa evolução técnica, objeto de acirradas lutas de interesses..., tudo isso se revelando a mim à medida em que me ocupo mais de perto do objeto fábrica, cujo sentido se torna sempre mais amplo, porém, para se centrar em torno da historicidade do objeto fábrica e de sua ligação semântica com a existência humana histórica.
A realidade histórica que a filosofia já encontra pronta quando se volta para a existência não é mais uma facticidade que lhe pertenceria fortuitamente e da qual seria possível fazer abstração, do que um mundo puro e independente de coisas que o conhecimento poderia destacar da existência contemporânea sem prejudicar sua verdade. Portanto, é claro que a historicidade inerente à existência humana deve revestir-se também de uma importância capital quando se trata de abordar, metodicamente, as “ ciências sociais ”. As instituições sociais, as formas econômicas, as estruturas políticas concorrem para moldar aquilo que se produz na existência e devem ser consideradas a partir dela. Se são questionadas a priori enquanto “coisas” do ponto de vista de sua constituição, de suas relações e das leis de seu desenvolvimento, cairão rapidamente numa esfera onde a análise - erroneamente conformada ao modelo das ciências naturais - será totalmente incapaz de extrair seu sentido. Porque a existência está sempre presente nas e com as estruturas, de modo que a possibilidade de sua “reificação” só é dada num nível histórico determinado da análise da existência3 . Também não é lícito decompor a realidade histórica em estratos ou esferas e, com base em tal decomposição, tratar a atividade econômica, política, social, artística, científica como variados “modos de existência” independentes e fechados. Pode ser que tal divisão seja necessária na ciência moderna; pode até mesmo acontecer que o próprio conhecimento o exija, de fato, na pesquisa empírica. No entanto, qualquer pesquisa que vise a destacar a essência dessas atividades não deve jamais perder de vista, em seu próprio método, a unidade indivisível da existência humana. Não há “sujeitos econômicos”, “sujeitos jurídicos” etc., mas somente indivíduos ou coletividades que, enquanto unidades históricas, existindo numa situação particular, têm uma economia, ditam o direito ou a ele obedecem, fazem obras de arte e de ciência, etc. (Desse ponto de vista, o conceito de “tipo ideal” que se encontra em Max Weber deve, igualmente, ser corrigido. Quando o desenvolvimento da realidade histórica é concebido sob forma de “desvios” em relação ao tipo ideal, estes correm o risco, em sua concretude, de constituir a realidade daquilo que é produzido).
A ciência social moderna confirma inegavelmente a mudança de orientação que interveio no método científico. O pensamento de Max Weber continua vivo não em seus ensaios de teoria científica, mas em seus trabalhos concretos, sobretudo na sociologia religiosa e na Economia e sociedade, onde ele lança um olhar sobre a totalidade dos poderes e dos domínios que participam da órbita histórica de uma existência, onde ele aborda esses poderes e esses domínios a partir da existência. Do círculo de Max Weber, a mudança de orientação da pesquisa sociológica, em seguida, chegou a sua plena consciência, do ponto de vista do método, na obra de Gottl-Ottilienfeld . Este, antes de mais nada, combate a antiga economia política que “só pensa em termos de mercadorias”, toma fatos por dados e procede por meio de puras reificações, sem ter a mínima consciência histórica do caráter existencial da economia. Seu projeto de uma ciência “pan-econômica” propõe-se a compreender intelectualmente “a economia e a vida”, a apreender as estruturas econômicas enquanto “estados de fato da vida em comum dos homens”. (Não examinaremos aqui em que medida sua definição a priori da economia - enquanto “forma da vida em comum dos homens no espírito de uma harmonia durável das necessidades e de sua satisfação” - corre, novamente, o risco de considerar o estado de fato da economia do ponto de vista de um “sujeito econômico” abstrato).
Procuraremos agora, após essas indicações gerais, concretizar a questão da significação existencial da filosofia, remetendo-a à situação atual da existência: é possível, na situação histórica atual, designar um modo determinado de atividade filosófica como “necessariamente” exigido por essa existência? qual será esse modo?
Essa formulação do problema levanta de imediato uma questão. É lícito falar de uma situação histórica determinada como de uma “ unidade ”? E, conseqüentemente, falar de uma existência atual e de uma necessidade? A questão não vai se deparar, no mundo concreto, com uma pluralidade de existências atuais acompanhadas de uma pluralidade de necessidades em uma pluralidade de situações históricas? De modo que nossa formulação equivaleria a uma abstração que violenta a existência concreta ou que passa por cima dela? Quando se considera uma situação histórica determinada, toma-se-a a priori como uma entidade que se pode distinguir e que se distingue de uma outra; coloca-se a ênfase em sua diferença específica no curso da história. O essencial é, então, a fronteira bem visível que a separa do que aconteceu anteriormente: um estado concretamente distinto da evolução econômica e social, que se pode isolar em sua estrutura do estado anterior. Essa diferença de estrutura deve aparecer primeiramente no “nível material” da situação considerada4: o modo segundo o qual a existência em questão produz e reproduz a estratificação social que lhe corresponde e as formas do ser social. Pode ser que numerosas diferenças se manifestem então entre as classes, os povos, os países, etc. – tais diferenças não são, porém, senão diferenças no seio de uma unidade que as funda, posições e evoluções diversas no interior do mesmo ser econômico e social. E lá onde se encerra sua estrutura homogênea, não mais se pode falar de situação homogênea.
A essa situação homogênea deve também corresponder uma existência humana “homogênea”. Todos os indivíduos, todas as “comunidades” de um tempo, por diferentes que sejam, estão unidos pelo fato essencial de se encontrarem na mesma situação histórica. Existem, sem dúvida, tantos modos de existência quantos são os indivíduos e, logo, tantas possibilidades e necessidades existenciais. Porém, os indivíduos não são de modo algum as unidades últimas com que se depara a análise da existência histórica. Começar essa investigação pelos indivíduos significa, arbitrariamente, mudar de direção a meio caminho do objeto (a existência humana concreta). O que, na abordagem fenomenológica, aparece como unidade histórica são “unidades superiores”: “comunidades” ou “sociedades” no espaço em que cada uma vive (tentaremos explicitar adiante essas noções). Assim, se levantamos a questão da filosofia necessária a uma existência histórica concreta, essa necessidade visa a uma existência que pode ser abordada como uma unidade porque (e na medida que) a situação histórica a partir da qual ela existe apresenta uma estrutura homogênea, no sentido acima indicado. Uma filosofia seria, então, necessária à existência concreta quando essa existência se encontra em um estado de necessidade existencial (isto é, um estado de necessidade que lhe concerne e que a incita enquanto existência) para cuja transformação ela pode contribuir. Veremos por que, nesse caso, a atividade filosófica se reduz sempre a uma função de ajuda e de contribuição.
A situação histórica na qual se encontra a existência “de hoje” e a respeito da qual começamos esta análise é determinada em sua estrutura pela estrutura da sociedade capitalista no estágio do capitalismo evoluído (capitalismo organizado, imperialismo). Essas noções que definem a situação não designam aqui estados de coisas puramente políticas ou econômicas, mas as determinações existenciais da existência ( Dasein ) atual. Na sociedade capitalista, um modo determinado de existência humana – e um modo que não pertence senão a ela – tornou-se realidade. A partir do sistema da economia, todos os domínios ingressaram nesse processo de “reificação”, que separou de toda personalidade as formas de vida e as unidades de sentido outrora ligadas à pessoa concreta do homem, além de criar um poder situado entre as pessoas e por cima delas que, uma vez estabelecido, submeteu a si por seu próprio dinamismo todas as formas e os valores da pessoa e da comunidade. Os modos da vida em sociedade são esvaziados de todo conteúdo essencial e regulados do exterior por leis “estrangeiras”: os homens que vivem juntos são, acima de tudo, sujeitos, ou antes, objetos, econômicos, colegas no interior de uma profissão, cidadãos de um Estado, membros da mesma “sociedade”; as relações essenciais da amizade, do amor, toda verdadeira comunidade das pessoas limitam-se à pequena esfera de vida que subsiste fora da atividade utilitária. Ao mesmo tempo, em função do individualismo suscitado por essa evolução (individualismo que não é de modo algum incompatível com o marcado coletivismo da economia), o indivíduo é separado de sua “atividade”; essa atividade lhe é “imposta” e ele a exerce sem que ela lhe permita realizar efetivamente sua pessoa.
O mundo no qual vive essa existência tornou-se ele também, em escala crescente, uma “empresa”. Os objetos que nele se encontram são imediatamente tidos como “bens”, como coisas que devem ser utilizadas, não para suprir por seu intermédio as necessidades da existência, mas para ocupar ou preencher uma vida que sem eles giraria no vazio, até que eles realmente se tornem “necessidades”. De modo que a “empresa” sempre consome mais existências apenas para se manter em seu estado. As formas de vida de todas as classes tornam-se, enfim, tão ocas que elas fazem surgir a necessidade de colocar a própria existência em uma nova base.
Essas reflexões não pretendem traçar a imagem do mundo e o comportamento da sociedade capitalista em seu estágio desenvolvido. Queremos simplesmente dizer que a crise do capitalismo é uma crise da existência que a abala até em seus fundamentos. E, na perspectiva em que nos colocamos, esse fato ainda não constitui o elemento capital da situação atual. O ponto importante é este: nessa situação, a ciência está em condição de acessar o conhecimento dessa crise, de suas causas e de sua solução (ou de seu prolongamento). Os fundamentos da ciência contemporânea, suas repercussões históricas, as conexões universais que nos levaram a tais repercussões e as conseqüências históricas que lhes são inerentes tornaram-se acessíveis ao conhecimento científico. É por isso que a existência dirige à filosofia uma demanda de um imenso alcance: tornar concreto esse saber, explicitar suas verdades em relação à existência ameaçada. Nas situações em que a existência contemporânea se encontrava em uma crise existencial, toda verdadeira filosofia concebeu suas verdades sobre um modo existencial e entendeu que sua tarefa era tornar-se necessária comunicando essas verdades à existência contemporânea. Detalharemos nosso pensamento.
A existência atual não mantém apenas ligações universais com tudo o que vive no mesmo tempo; ela também é determinada, em suas próprias raízes, por uma herança histórica universal. Quanto mais estreita se tornou essa conexão universal resultante da estrutura econômica das sociedades, mais, por um lado, as verdades que ligavam existencialmente cada uma dessas sociedades e seus constituintes específicos (condições, classes, povos) se diferenciaram segundo sua particularidade histórica, e, por outro lado, mais as verdades “universalmente válidas” se degradaram em relações abstratas. Consideremos, nessa ordem de idéias, o estado de necessidade existencial do qual falávamos acima, estado de necessidade provocado pela estrutura da sociedade capitalista: é claro que, para essa existência, não há nenhuma verdade que possa ser erigida, em sua concretude universal, em verdade obrigatória e necessária. Da mesma forma, a responsabilidade da filosofia e seu dever de cuidar da existência não fazem senão crescer. A filosofia pode, sem dúvida, ocupar-se como antes de estabelecer as leis essenciais da ação moral ou do ser, do mundo dos valores e de sua edificação, etc. Porém, se os problemas assim “resolvidos” são em seguida vividos no concreto existencial, verifica-se que a existência atual não possui absolutamente a possibilidade de observar e cumprir essas leis essenciais. É fácil afastar uma tal problemática declarando que essa existência é justamente “inautêntica”, fora da verdade, e que, por conseguinte, a filosofia não tem que se preocupar com ela. Trata-se precisamente disto: a pesquisa filosófica volta-se novamente para a existência, perguntando-se quais são suas possibilidades de se apropriar da verdade . Se essa existência se encontra em uma situação que, por sua estrutura histórica (o modo de conservação e de estruturação da existência enquanto fato social), a torna incapaz de se apropriar de tais verdades, a tarefa da filosofia é apreender a existência nessa situação e tentar, partindo dela , “conduzi-la à verdade”. Tomemos um exemplo. Os progressos da técnica e da racionalização que caracterizam a sociedade atual suscitam em toda a parte uma embriaguez de potência, mas fazem esquecer que o poder pessoal do homem sobre a natureza e as “coisas” não aumentou, mas diminuiu. Da mesma forma que os homens estão a serviço da economia – que se tornou uma “coisa” independente – enquanto “sujeitos e objetos econômicos”, ao invés de estarem a serviço de uma atividade econômica adequada a sua existência, também os seus instrumentos (máquinas, meios de transporte, eletricidade, luz, energia) se tornaram tão desmedidos e penosos que os homens que com eles lidam devem cada vez mais, enquanto pessoas, a eles se conformar em sua existência, colocar-se a seu serviço, de modo que é preciso utilizar sempre mais existências com a finalidade única de manter seu “funcionamento”.
Temos aí tão-somente um aspecto do fato de que, na sociedade capitalista, todos os valores pessoais se perderam ou foram postos a serviço da “objetividade” técnica e racional. Se a filosofia pode ainda se tornar existencialmente necessária a uma tal existência, é preciso que ela se esforce para conduzir a existência em uma situação em que ela esteja em condição de apreender e manter as verdades de suas leis essenciais. Trata-se de adquirir o conhecimento das possibilidades históricas da existência atual: retornando a suas origens, convém delimitar a área de suas mudanças. A filosofia deve examinar, segundo a análise exata da existência contemporânea, qual dessas possibilidades garante um “modo de existência verdadeiro”. Ela tem por tarefa perscrutar exatamente todo movimento da existência: favorecer o que representa um movimento em direção à verdade, impedir aquele que conduz a modos de existência já ultrapassados. Assim, pode ser realizado o mais nobre dos compromissos de toda atividade filosófica: a unidade da teoria e da prática.
Acreditamos haver indicado desse modo o ponto no qual a filosofia pode se tornar necessária à existência atual. Procuremos agora determinar a orientação e a tarefa de uma tal atividade filosófica. Queremos falar do processo de concretização da filosofia , cujas principais etapas esboçaremos.
Essa atividade filosófica se orienta em direção à existência contemporânea determinada. Sua tarefa é conduzir essa existência na verdade do existir. Para ter acesso a essa existência, para poder atingi-la, a filosofia concreta deve tornar-se histórica , engajar-se ela própria na situação histórica concreta. Tornar-se histórica significa, antes de tudo, para a filosofia concreta, que ela deve examinar a existência que lhe é contemporânea em sua situação histórica, perguntando-se que possibilidades ela possui de se apropriar de verdades, que verdades ela pode cumprir e que verdades lhe são necessárias. Não no sentido de uma filosofia utilitária e oportunista que se colocaria a serviço da existência prática enquanto ciência e se deixaria utilizar por ela – as verdades da filosofia não se fundam na facticidade, mesmo que a existência prática deva cumpri-las. A filosofia concreta sabe que verdades não podem jamais ser impostas abstratamente a uma existência qualquer, mas devem ser apreendidas a partir da existência e mantidas nela. Eis por que a filosofia concreta acolhe em sua “doutrina” a situação concreta total da existência contemporânea, na plena determinação da estrutura social. Somente quando ela sabe como essa existência assim determinada sofre e age, quais as suas verdadeiras necessidades, quais as maneiras de existir que a situação lhe prescreve e quais vias ela lhe sugere para se transformar, somente então ela pode conduzi-la à verdade, tornar-se para essa existência uma necessidade existencial. Mas essa análise da existência contemporânea, do ponto de vista de sua situação histórica, não seria tarefa das ciências históricas – da “história”, da sociologia, da ciência econômica? A filosofia concreta utilizará, sem dúvida, em larga medida, o material fornecido por essas ciências; sem dúvida, ela deverá recusar radicalmente ser mantida afastada dessas ciências, como foi o caso durante tanto tempo. Porém, não devemos esquecer que o método da análise filosófica é o método fenomenológico, e que a esse método específico corresponde também um campo objetivo específico. O objeto da filosofia concreta é a existência contemporânea, a existência humana no modo de seu existir. A história se ocupa da situação política efetiva dessa existência; a ciência econômica, das modalidades efetivas de sua economia; a sociologia, das modalidades efetivas de seu ser social; ou seja, essas ciências se ocupam da teoria dessas modalidades efetivas enquanto estrutura histórica (formas políticas, econômicas, sociais), mas não da própria existência. A filosofia concreta se ocupa do ser-lá ( Dasein ), na plenitude concreta de sua existência, a qual compreende todas essas modalidades efetivas – precisamente enquanto modalidades no seio das quais o ser-lá existe. Além disso, o caráter verdadeiramente filosófico dessa análise se revela no fato de que a destruição do ser-lá contemporâneo deve se realizar a partir de sua historicidade, considerando sempre a estrutura ontológica do ser-lá e do mundo. Só podemos conhecer em sua significação existencial um sistema científico, uma escala de valores, uma ordem social enquanto historicidade concreta, se essas formas são confrontadas em sua facticidade às estruturas ontológicas de “sistema econômico”, “escala de valores”, etc., que só podem ser obtidas por via fenomenológica.
Por outro lado, essa análise da existência contemporânea deve ser relacionada, por princípio, à filosofia e não às ciências históricas, porque ela não pode se configurar como uma simples análise, devendo ser desenvolvida de modo a fornecer regras normativas para a ação. Se a filosofia concreta deseja realmente conduzir uma existência à verdade, ela deve tomá-la na única esfera em que as decisões existenciais podem se situar: na esfera da ação. Em sua concretude enquanto “acontecimento”, o existir do ser-lá consiste sempre em modificar, em transformar a realidade dada, em produzir um certo efeito – trata-se, portanto, de uma ação. Assim que um existir “autêntico” se expressar no ser-lá, assim que se tratar para ele de necessidades existenciais, um “bios theoreticus” irá ele também no sentido da mudança, logo, da ação, ainda que ele não vise de modo algum a um tal “efeito”. É claro, segundo o que já dissemos, que as regras da ação, onde culmina a filosofia concreta, jamais representam normas abstratas, imperativos vazios. Elas deverão ser buscadas nas necessidades da existência concreta tomada na situação histórica, e concernir sempre não a uma universalidade abstrata, mas a um sujeito concreto existente. A questão é, desse modo, a seguinte: como a filosofia consegue chegar a tais regras da ação e qual é o sujeito que a elas deve se conformar? como pode a filosofia, de um modo geral, ter acesso à existência concreta? Não erigindo suas verdades em verdades obrigatórias, depois de havê-las extraído de algum domínio anterior à existência, e contentando-se em provar ou enunciar verdades. Se, falando de apropriação das verdades, a filosofia tem em vista um movimento real da existência, ela não deve limitar-se ao conhecimento da verdade enquanto motor desse movimento. A existência humana não existe a partir do conhecimento, mas a partir do que advém no seio de uma situação determinada de seu meio e que implica seu destino. O conhecimento só pode se tornar o motor de um movimento existencial (que é sempre também uma mudança naquilo que advém) se se engajar no destino concreto da existência à qual se dirige, isto é, se ele assumir a situação histórica dessa existência, com suas possibilidades e sua realidade, se ele acionar em si mesmo e a partir de si mesmo o movimento. É somente desse modo que o conhecimento pode atingir e libertar as necessidades concretas da existência. E um tal conhecimento se concluirá e se realizará em uma mudança real no que concerne à estrutura da existência histórica e de seu mundo: não no sentido vago em que se fala da influência das “idéias” sobre a realidade histórica, mas no sentido de uma mudança consciente dessa realidade, com os meios reais dados pela situação.
A filosofia concreta não pode, portanto, ter acesso à existência a não ser que ela apreenda essa existência na esfera na qual ela existe: na ação que ela exerce no seio de seu mundo, de acordo com sua situação histórica. Ao mesmo tempo em que a filosofia concreta se torna histórica, assumindo o destino real da existência, ela se torna pública. Ela deve assumir a existência do ser-lá que lhe é contemporâneo, o que, no fundo, significa apenas que ela apreende seu próprio destino. Porque a “contemporaneidade” não se reduz a uma coexistência temporária; ela é sempre uma existência compartilhada, uma comunidade de destino. Dizer que a filosofia é contemporânea de uma existência concreta significa que ela deve se preocupar com os combates e as necessidades muito concretos dessa existência, que ela deve tomar “o mesmo” cuidado com sua vida, que existe de tal maneira e não de outra.
Kierkegaard enxergou mais claramente do que qualquer outro pensador esse caráter existencial da contemporaneidade e o quanto essa contemporaneidade compromete a filosofia: “Porque a contemporaneidade é a tensão que não permite que você deixe as coisas como elas estão, mas obriga você a se escandalizar ou a acreditar”. Ela dá “a pressão qualitativa requerida; a distância, em contrapartida, ajuda tanto a reduzir alguma coisa a nada, quanto a fazer algo de extraordinário de quase na5”. A filosofia concreta apreende a situação da contemporaneidade enquanto aspira a se atualizar. Se a existência contemporânea deve ser conduzida à verdade, é preciso que isso se produza enquanto movimento de uma existência atual, na plenitude de sua particularidade histórica, com o peso que exerce sobre ela sua situação histórica. Desse modo, o cuidado que a filosofia toma em relação à existência torna-se um cuidado que se estende às necessidades absolutamente concretas dessa existência. A filosofia que se descobriu na situação da existência contemporânea não pode mais pensar no vazio, em generalidades “sem pressão qualitativa”; existindo na atualidade, ela deverá tomar posição sem ambigüidade, tomar decisões, escolher seu ponto de vista de uma maneira visível, estar pronta para suportar a prova da realidade. A filosofia concreta existirá na vida pública porque esse é o único modo que lhe garante ter realmente acesso à existência. Apenas assumindo publicamente a existência, em seu ser cotidiano, na esfera em que ela vive realmente, é que a filosofia poderá conduzir um movimento dessa existência à sua verdade. De um outro modo, a autoridade absoluta, que cegamente se acredita possuir a verdade revelada, é a única capaz de suscitar um tal movimento.
Para ilustrar esse fenômeno, consideremos a derradeira evolução de Kierkegaard enquanto demonstração de como uma filosofia concreta se torna pública. Poucos filósofos cavaram um fosso mais profundo entre o eterno, o absoluto, o divino e a existência histórica do homem; poucos filósofos se colocaram tão conscientemente quanto Kierkegaard sob a idéia do eterno e, desse ponto de vista, denunciaram mais vigorosamente como uma covarde deserção e uma falta de responsabilidade toda tentativa de apreender a historicidade, de conceber o ser histórico-social como o universo próprio do homem. Porém, raramente também um filósofo se preocupou mais, desde o ponto de partida de sua filosofia, com a verdade da existência concreta, ou viu nas necessidades da existência nua a alavanca de toda filosofia. Eis por que, ao final de sua carreira, Kierkegaard teve de reconhecer e apreender a esfera da vida pública – aquela em que a existência contemporânea vivia em ato – como a esfera na qual devia agir mesmo a filosofia que se colocava inteiramente sob o signo do eterno. Ele sai da solidão: ele, que nunca havia se dirigido senão ao “indivíduo”, que não havia tido senão indiferença pelo efeito de seus livros sobre o público, eis que ele sai à rua, no sentido socrático do ato: escreve artigo após artigo em um jornal diário, publica panfletos, concentra todo seu combate naquilo que está em jogo naquele instante histórico. E nesse combate em que ele entra na vida pública, Kierkegaard não opõe abstratamente a verdade do eterno à existência concreta, não decreta a verdade a partir do eterno. Ao contrário, ele deseja promover com todas as suas forças um movimento concreto na existência de seu tempo, nela introduzir uma mudança “real”, de modo que seus ataques e seus apelos visem sempre às tarefas e aos modos concretos dessa existência, acolham plenamente e nunca percam de vista as possibilidades do momento. Somente então, compreende-se como era importante para Kierkegaard, para que se realizasse o sentido de sua filosofia concreta, suscitar uma decisão real hic et nunc , criar um movimento e uma mudança reais na existência de seu tempo; somente então compreendem-se o vigor de seus ataques, a violência provocante de sua intervenção na vida pública, seus embates voluntários com os representantes do mundo oficial, a concretude revolucionária de seus apelos (por exemplo, é preciso sair da Igreja oficial). Somente então, por outro lado, percebe-se o quanto deve ter sofrido Kierkegaard com a ausência de efeito de sua intervenção, com o silêncio daquilo que ele atacava, silêncio que ele sempre se esforçou por romper.
O fracasso de Kierkegaard na vida pública e a questão de sua causa nos conduzem a um problema geral que é da competência de nossa análise. Como pode a filosofia, engajando-se na vida pública, tornar-se real in concreto ? A que existência concreta pode a filosofia dirigir-se? Onde pode a filosofia apreender essa existência concreta? Há algo que garanta a possibilidade de uma ação existencial? A filosofia concreta se prende à verdade da existência humana de seu tempo. Conduzir a existência à verdade corresponde a mudar “realmente” a existência em sua concretude, e não apenas mudar (em superfície) suas formas e suas estruturas efetivas (formas de vida, de cultura, no sentido usual dessas palavras); corresponde a mudar a própria maneira de existir que está na base de todas essas formas. O modo concreto de existir é a esfera própria dos acontecimentos: a história. É o modo pelo qual o ser-lá apreende e vive seu destino em seu mundo, e isso enquanto destino engajado em uma situação histórica determinada, situação essa que resulte de uma estrutura econômica e social determinada.
Se a filosofia concreta deseja suscitar uma mudança real da existência, ela deve ir a seu encontro nessa esfera dos acontecimentos. Somente o sujeito dos acontecimentos pode ser o sujeito de uma tal mudança. A filosofia concreta deve, primeiramente, se perguntar quem é o sujeito dos acontecimentos. E percebe-se aqui que esse sujeito não é o “indivíduo”. A existência humana, enquanto existência histórica, é essencialmente um ser-conjunto com outros homens, e a unidade histórica é sempre uma unidade da vida coletiva, do ser social – ela é sempre uma “sociedade”. Os limites da vida coletiva, os constituintes da sociedade diferem segundo as situações históricas, e convém explicitá-los em cada situação.
Seria preciso, portanto, que a filosofia concreta se dirigisse à sociedade que lhe é contemporânea, que ela a tomasse em sua situação histórica, que ela analisasse suas formas de existência e os domínios que ela apreendesse, com suas significações e seus valores, e que ela elaborasse desse modo a sua verdade. Porém, não residiria precisamente aí essa fuga na história universal que Kierkegaard combateu com tanta profundidade, uma maneira de se furtar às dificuldades muito pessoais da existência, de se subtrair à decisão última e sem ambigüidade que pertence sempre ao indivíduo, uma vez que nenhuma sociedade pode destituí-lo de sua existência própria? Essa objeção é incontestavelmente fundada. O sentido da filosofia não permanece circunscrito no “individual”, mas cada indivíduo pode sozinho realizá-lo e ele se enraíza na existência de cada indivíduo. Em nenhum caso a concretude da filosofia na existência de cada indivíduo deve ser atribuída a um sujeito abstrato, a um alguém impessoal, ou a responsabilidade decisiva transferida a uma universalidade qualquer.
Porém, uma vez que a filosofia concreta se prende precisamente à existência concreta do indivíduo, ela deve fazer a si mesma a pergunta: como posso ter acesso concretamente a esse indivíduo? esse indivíduo existe mesmo na situação histórica da contemporaneidade? Não basta, então, escrever livros que sempre se dirijam apenas a uma universalidade abstrata, se o seu autor não se preocupa em saber quem se apropria de suas verdades e quem pode delas se apropriar. Sócrates podia ainda se dirigir ao indivíduo na ágora e com ele filosofar, porque o indivíduo existia ainda na sociedade da cidade-estado ateniense. As questões de Sócrates engajam, por sua vez, cada um de seus interlocutores e o obrigam a tomar posição. Quem os livros de filosofia colocam na mesma situação? A filosofia concreta não tem o direito de sustentar que suas formulações estão em condição de atingir e de concernir “sem mais” a existência do indivíduo e sua interioridade. A filosofia deve, sem dúvida, visar à interioridade da existência individual e impor-se a ela, mas a interioridade não é uma abstração situada para além do espaço histórico e do tempo histórico. O mundo do indivíduo é essencialmente parte integrante de sua existência, mesmo que ela seja apreendida como estando em oposição a esse mundo; o mundo do indivíduo é seu meio historicamente determinado, o mundo da natureza e da sociedade na plenitude de sua situação única. E esse mundo do indivíduo não é de modo algum função do próprio indivíduo, de forma a poder ser modificado por uma simples mudança desse indivíduo. Na “derrelição” ( Geworfenheit ) de seu ser-lá, o indivíduo é, antes, lançado nesse mundo, de tal modo que suas decisões lhe são prescritas pelo mundo (o que não significa que o indivíduo seja despossuído da seriedade da decisão, a qual seria atribuída ao “destino” ou à sociedade). A sociedade não é nem um sujeito que existe ao lado do indivíduo, nem a soma dos indivíduos, mas, em um sentido totalmente concreto, a sociedade é cada indivíduo, é o modo de existência concretamente histórico do indivíduo. É, desse modo, precisamente quando a filosofia deseja levar a sério sua preocupação com o indivíduo, que ela não tem o direito de negligenciar o mundo no qual se realiza a existência desse indivíduo. O indivíduo existe como indivíduo apenas em uma situação determinada do meio, em uma situação determinada do ser social. Essa situação nunca lhe é fortuita, de modo que se poderia ou deveria “fazer abstração dela” para aceder à existência “própria” do indivíduo. Ela é a própria realidade de sua existência, e é apenas por intermédio dela que é possível se dirigir ao indivíduo, atingi-lo verdadeiramente.
Podemos, certamente, nos perguntar se, apesar de tudo, a filosofia não devia ir do indivíduo a seu meio, e não o inverso, se a estrita preocupação com o indivíduo quanto à verdade de sua existência não deveria vir em primeiro lugar, preocupação a partir da qual se trataria a seguir de apreender a verdade de seu meio. Posto de lado o fato de que esses dois pontos de partida são abstrações quando os separamos tão radicalmente, e que a démarche da filosofia concreta implica antes a consideração simultânea do indivíduo e seu meio, não é possível responder a essa questão senão colocando-nos no ponto de vista da situação histórica onde ela se torna incisiva para a filosofia. Há situações históricas nas quais é possível edificar a existência a partir do indivíduo, nas quais a ação de revolucionar os indivíduos pode significar a revolução da sociedade. E há situações históricas nas quais isso já não é de modo algum possível, porque o modo contemporâneo do ser social exclui a existência própria do indivíduo. Nesse caso, a revolucionarização do indivíduo não pode passar senão pela transformação da sociedade; o indivíduo não é mais o ponto de partida da filosofia, mas seu fim, porque, primeiramente, importa torná-lo novamente possível. Em uma tal sociedade, a existência do indivíduo é necessariamente inautêntica, porque em uma sociedade essencialmente inautêntica não pode haver indivíduos essencialmente autênticos. Nas duas situações, a filosofia só pode atingir o indivíduo em sua existência se ela não o apreender enquanto sujeito abstrato, mas na plenitude de sua determinação histórica única: se ela o atingir e o apreender ao mesmo tempo que apreende o meio que é contemporâneo a esse indivíduo, o ser social. A partir do conhecimento da verdade que lhe é acessível, a filosofia deve engajar-se nas necessidades da existência contemporânea, promovê-las segundo suas possibilidades históricas. A filosofia não pode se tornar concreta se ela não tomar o partido do contemporâneo (no sentido de Kierkegaard). E, o que é mais importante, esse parti pris não deve jamais permanecer teórico. Se a filosofia se preocupa realmente com a existência, ela deve assumi-la e, existindo com ela no contemporâneo, combater pela verdade. O filósofo deve saber que ele não tem apenas o direito de, mas o dever de se engajar nas necessidades absolutamente concretas da existência, pois é apenas dessa forma que o sentido existencial da verdade pode ser realizado. De modo que o ato público se encontra necessariamente ao termo de toda filosofia concreta digna desse nome: acusação e apologia de Sócrates, e sua morte em prisão; ação política de Platão em Siracusa; luta de Kierkegaard contra a Igreja oficial.
Devemos agora dizer de que modo é possível ligar filosoficamente o conhecimento e a verdade com a vida contemporânea histórica. Colocamos como condição prévia que a filosofia não pode intervir na existência contemporânea senão em virtude do conhecimento , que toda tentativa de tornar “vivos” os conceitos do conhecimento filosófico, pretendendo que eles devam ser submetidos à “vida”, que eles devam realizar neles mesmos o movimento da vida, equivale, para a filosofia, a renunciar a ela própria. Além disso, o comportamento da filosofia concreta em relação à existência contemporânea não implica que essa existência seja sempre a “verdade” à qual a filosofia deveria se conformar. Antes, é preciso dizer que, em conformidade com o caráter existencial da verdade, a existência humana mantém a cada vez uma relação totalmente determinada com as verdades das quais ela é suscetível, relação que revela que ela as realiza ou não as atinge, que ela está próxima ou distante, que ela se esforça para realizá-las ou para encobri-las. Confrontando continuamente as verdades que ela conhece à situação da existência contemporânea, a filosofia vive na tensão decisiva pela qual ela pode, sozinha, tornar-se necessária e fecunda. Conhecimento e “vida”, verdade e contemporaneidade não se confundirão de uma maneira ilegítima, mas sua ligação verdadeira será instituída se o conhecimento, uma vez obtido a partir de uma autêntica preocupação com a existência, visa realizar sua verdade na contemporaneidade. A tensão concreta da filosofia não a conduzirá em todas as situações históricas à ação pública, ao engajamento na esfera dos acontecimentos. Porém, nas situações em que a existência contemporânea for realmente abalada em seus fundamentos, isto é, nas situações em que ela combater realmente por novas possibilidades do ser, a filosofia trai seu próprio sentido (e não, por exemplo, a “história”), quando ela permanece distante e se perpetua em discussões “intemporais”. Ela somente merece seu antigo título, o de “primeira das ciências”, se, nesse exato momento, ela se coloca em primeiro lugar.
Endereço para correspondência
Decio Rocha
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ,
Rua São Francisco Xavier, 524, Bloco A, 11º andar, Pós-graduação em Letras, sala 11033,
CEP 20550-900, Maracanã, Rio de Janeiro – RJ, Brasil
Endereço eletrônico: rochadm@uol.com.br
Katharina Jeanne Kelecom
Rua São Francisco Xavier, 204, CEP 20550-900,
Maracanã, Rio de Janeiro – RJ, Brasil
Endereço eletrônico: kelecomkatharina@yahoo.fr
Notas
*Este texto é parte de uma coletânea de textos publicada em francês sob o título Philosophie et Révolution pela Editions Denoël, em Paris, 1969 - “Sur La Philosophie Concrète” p. 130-156. O texto original foi publicado em alemão em 1929, na Archiv für Sozialwissenchaft und Sozialpolitik, v. 62, p. 111-128. (Nota de Ariane P. Ewald). Tradução de Décio Rocha, Professor Adjunto de Linguística e de Língua Francesa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, e Katharina Jeanne Kelecom, Mestre em Letras (Linguística) pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e professora de Língua Francesa do Colégio Pedro II, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Todas as notas pertencem ao autor.
1O presente estudo tenta destacar, a partir da posição que o livro de HEIDEGGER O Ser e o Tempo elaborou para a filosofia fenomenológica, a possibilidade de uma filosofia concreta e sua necessidade na situação atual. Na realidade, tal filosofia só pode ser demonstrada a partir daquilo que realiza. As observações que se seguem não pretendem substituir essa condição, mas somente impedir que os elementos de filosofia concreta, quando existem, de fato, não sejam incessantemente apresentados como "não-filosóficos", ou melhor, como intermédios da "verdadeira" filosofia.
2A seguir, "verdade" designa, sempre e unicamente, as relações existencialmente e essencialmente verdadeiras (no sentido que acaba de ser indicado), e não apenas simples "exatidões", as quais nunca dizem respeito ao ser da existência humana e de seus modos.
3A esse respeito, ver LUKACS, G. História e consciência de classe, tradução francesa por K. Axelos e J. Bois, p. 110 sqq.
4Ver a esse respeito minha obra Beiträge zur Phänomenologie des historischen Materialismus (Contribuições à fenomenologia do materialismo histórico), Philosophische Hefte, 1928, I.
5Kierkegaard, o conceito de eleito.