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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.16 no.spe Rio de Janeiro esp. 2016

 

ARTIGOS

 

A anorexia na clínica contemporânea: considerações sobre o sintoma

 

Anorexia in contemporary clinic: consideration of the symptom

 

La anorexia en la clínica contemporánea: la consideración del sintoma

 

Kyssia Marcelle Calheiros Santos*; Susane Vasconcelos Zanotti**

Universidade Federal de Alagoas - UFAL, Maceió, Alagoas, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo aborda a especificidade do sintoma na psicanálise a partir da análise de um caso clínico sobre anorexia. Delimitam-se aspectos do caso que retratam a clínica do mal-estar contemporâneo a partir dos seguintes temas-eixo: anorexia e adolescência; recusa alimentar; a relação com o pai; e, psicanálise e medicina. Levando-se em consideração tais aspectos, destaca-se a anorexia como sintoma analítico a depender da constituição de uma demanda de análise e da relação transferencial.

Palavras-chave: clínica, mal-estar, demanda, sintoma, anorexia.


ABSTRACT

This article discusses the specific symptom in psychoanalysis from the analysis of a case of anorexia. It delimits aspects of the case that show the contemporary clinic of malaise from the following subjects-axis: anorexia and adolescence; refusal to eat; relationship with father; and psychoanalysis and medicine. Taking into account these aspects, there is anorexia as an analytical symptom depending on the constitution of a demand analysis and transference relationship.

Keywords: clinic, malaise, demand, symptom, anorexia.


RESUMEN

Este artículo aborda el síntoma específico en el psicoanálisis a partir del análisis de un caso de anorexia. Delimita a los aspectos del caso, que representan la clínica malestar contemporáneo de los siguientes temas ejes: la anorexia y la adolescencia; negativa a alimentación; relación con su padre; y el psicoanálisis y la medicina. Teniendo en cuenta estos aspectos, se destaca La anorexia como un síntoma analítico en función de la constitución de la demanda de análisis y la relación de transferencia.

Palabras clave: clínica, malestar, demanda, síntoma, anorexia.


 

 

Introdução

Há relatos de que nos séculos passados existiram possíveis casos de anorexia em santas que jejuavam intensamente em busca da purificação divina (Bidaud, 1998; Weinberg & Cordás, 2006). Porém, na cultura contemporânea que idealiza o corpo magro, observa-se uma mudança na forma como a anorexia se apresenta. Há sujeitos que reverenciam e exaltam a anorexia como um modo e estilo de vida, e não invocam qualquer tipo de tratamento. Essa exaltação é disseminada principalmente nos meios virtuais por militantes de movimentos pró-anorexia. Eles expõem inúmeras informações relacionadas à anorexia, de tal modo que a propagam como um bem a ser "adquirido". Tendo em vista tais aspectos da cultura e o modo como a anorexia se apresenta na atualidade, o presente trabalho orienta-se pela seguinte indagação: a anorexia pode ser considerada um sintoma analítico?

Com o objetivo de delimitar a especificidade do sintoma na psicanálise, utilizou-se o caso clínico "Virginie, a anoréxica", publicado no livro "Malaise chez l'enseignant. L'éducation confrontée à la psychanalyse" (Cordié, 2000), considerando a função didática de um caso (Nasio, 2001). Os dados clínicos foram agrupados na discussão conceitual nos seguintes temas-eixo (Cruz, 2007): anorexia e adolescência; recusa alimentar; a relação com o pai; e, psicanálise e medicina. Vale destacar que Cordié (2000) situa Virginie no campo da neurose, e em virtude disso, a presente investigação restringe-se às discussões sobre anorexia e sintoma demarcadas por esse quadro clínico.

Nesse contexto, Cordié (2000) ressalta o desafio que é tratar as anoréxicas quando se interroga: "(...) como considerar curar alguém que não se sente doente e não demanda nada?" (p. 207). Tal questionamento evidencia a ausência da demanda de tratamento que prevalece na clínica da anorexia e também da falta de implicação em seu sofrimento, de forma que muitas vezes é frente ao perigo vital que as anoréxicas aceitam um tratamento.

 

A anorexia e a ausência de demanda

Na clínica contemporânea, há uma mudança no modo como os sujeitos apresentam o seu mal-estar e em como eles demandam um tratamento. Besset et al. (2009) consideram que atualmente há uma emergência de sintomas que se apresentam no corpo, mas não se convertem em questão para o sujeito. A anorexia é um desses sintomas corporais, e apesar da sua existência desde os séculos passados (Bidaud, 1998), há um aumento da sua incidência na contemporaneidade. Se antigamente os pacientes buscavam um sentido para seu sofrimento, nos dias atuais a busca por esse sentido não é evidenciada e "(...) para o sujeito que os porta, ele não quer dizer nada" (Besset et al., 2009, p. 153).

Em relação à anorexia, na cultura contemporânea que idealiza o corpo magro, observa-se essa mudança. Ou seja, o sujeito porta o sintoma e até se autorreferencia por ele (como por exemplo: "sou anoréxica"), mas não há inicialmente uma implicação na busca de um sentido para seu mal-estar. Dentre os sujeitos que participam de movimentos pró-anorexia, há aqueles que exaltam a anorexia como um estilo e modo de vida. Mesmo quando se denominam pelo sintoma, esse não se apresenta como uma questão. Muitos não demandam inicialmente um tratamento, pois a anorexia não é considerada um sofrimento que urge ser tratado.

Nesse contexto, como situar a anorexia na clínica psicanalítica, na qual a implicação do sujeito em seu sintoma é essencial? Como destaca Quinet (2007), para a psicanálise, a implicação do sujeito no seu sintoma, ou ao menos, a construção dessa implicação, é essencial no tratamento clínico. É quando o sujeito questiona o seu próprio sintoma que surge a demanda analítica. O tratamento analítico se inicia de fato quando na demanda há uma implicação do sujeito em seu sintoma; "a demanda de análise é correlata à elaboração do sintoma enquanto ‘sintoma analítico'" (Quinet, 2007, p. 16). É quando o sintoma sai da condição de queixa e se torna uma questão para o sujeito (sintoma analítico), que o sujeito é implicado no seu sofrimento e demanda um tratamento analítico (Quinet, 2007). Tratamento este que acontecerá a partir da relação transferencial entre analisando e analista, por tratar-se de uma construção a partir de dois saberes (Freud, 2001b).

A respeito do encontro do sujeito anoréxico com o clínico, Cosenza (2012) analisa quatro aspectos que devem estar relacionados com o sintoma, são eles: a divisão subjetiva, o enigma do sintoma, a demanda e o encontro com o analista. Ele aponta que a anorexia é um sintoma um pouco diferente do que se considera normalmente, pois esses aspectos são distintos. Para o referido autor, a anorexia é um sintoma que não divide o sujeito; pelo contrário, ele se identifica ao sintoma. Inicialmente, a queixa do sintoma não é enigmática, ou seja, o sujeito, por se identificar ao sintoma, não faz um questionamento inicial. Dessa forma, não há uma demanda inicial evidente, pois ele não solicita ao analista que sua condição seja modificada; e, com isso, não supõe um saber do analista sobre seu sintoma já que ele não se questiona sobre este. Os quatro aspectos demonstram que assim como em outras condições clínicas, o sintoma analítico depende do encontro do sujeito com o analista.

Nesse contexto, Lima (2012), na exposição de um caso clínico sobre anorexia, ressalta que esses sujeitos que chegam à clínica por iniciativa própria ou quando levados por suas famílias, apresentam em comum a característica de "ausência de sinais de uma subjetivação capaz de fazer funcionar seus sintomas como demanda" (Lima, 2012, p. 113). Há uma procura pelo tratamento, porém não há demanda. Não é que não exista sofrimento, pois caso não existisse não seria necessário buscar um tratamento, mas nota-se uma mudança na forma do sujeito se relacionar com seu sintoma e criar uma demanda de análise. É como se o sujeito apenas sinalizasse que há algo que não está bem, porém não consegue prosseguir e formular um pedido de tratamento.

Sobre o tratamento do sujeito com anorexia, Viganò (2012) apresenta uma consideração importante: "é preciso esperar o sujeito que está atrás deste distúrbio alimentar. O analista é aquele (...) que fará com que antes ou depois o sujeito surja, é por isso que ele deve ser paciente" (Viganò, 2012, p. 225). Ou seja, há uma aposta de que em algum momento a demanda surgirá, e é necessário paciência para que esse momento ocorra. Trata-se de algo que acontecerá a partir da relação transferencial, que é da ordem do particular e dependerá de cada caso. Nesse contexto, vejamos o caso clínico "Virginie, a anoréxica", que nos possibilita avançar na discussão sobre anorexia e sintoma.

 

Caso Virginie

Virginie tem 22 anos, sofre de anorexia e é amenorreica desde os 14 anos. Ela já foi hospitalizada diversas vezes, em razão de suas condições físicas, com um peso de 34 quilos. Entretanto, esse tratamento acontece na clínica da analista. Ela é a mais velha de cinco filhos e sempre se considerou a segunda mãe de seus irmãos e irmãs. Sua mãe, oriunda de um meio aristocrata, casou-se com seu pai contra a vontade da família, e se arrependeu dessa paixão. "O pai da paciente é um psicopata, trapaceiro, cujo nome era falso" (Cordié, 2000, p. 204). O surgimento da anorexia tem início quando seu pai é preso, sendo assim, o corpo é seu lugar eleito para expressar seu conflito, Virginie exibe seu corpo emagrecido como lugar de seu sofrimento" (Cordié, 2000, p. 204).

Virginie relata que "como sou o espelho de mamãe, eu reproduzo os anjos, mamãe está segura de que eu não tenho nenhum desejo" (Cordié, 2000, p. 205). Dessa forma, tenta viver o ideal de pureza de sua mãe, que vive arrependida de ter se apaixonado por um homem desse tipo. Esse ideal de pureza vem de sua família, ela o reencontra na figura de um amigo religioso que ajudou a mãe de Virginie a educar os filhos, e ele é concebido como um "pai ideal" (Cordié, 2000, p. 205).

Diante do contexto familiar, a paciente afirma: "eu represento aquela que é assexuada na casa" (Cordié, 2000, p. 205), e enfatiza: "se eu dormisse com qualquer um, eu teria a impressão de cometer um sacrilégio com minha mãe" (Cordié, 2000, p. 205). Esse sacrilégio está ligado à ideia de desejar sexualmente um homem. Ela ressalta que "não suporta ver a barriga inchar" (Cordié, 2000, p. 205) e que não concebe a ideia de ter um filho. O fato de a paciente engordar e ter formas femininas seria introduzir o risco de seduzir o pai; havendo com isso uma recusa de entrar no jogo do desejo. Nas palavras de Virginie:

Eu cansei de menstruar (ela não menstrua desde os 14 anos). Certas moças têm um ar fabricado, eu gostaria de ser como elas, ter uma fachada bonita sem me ocupar do resto. Talvez eu não quisesse ter corpo perante papai... eu sei que papai gosta de traseiros grandes. Diante de papai eu prefiro que meu corpo não exista (Cordié, 2000, p. 206).

Ser um anjo e ser assexuada são evidências de sua recusa em ser uma mulher, ter formas femininas poderia seduzir o pai e aí reside o perigo incestuoso. Não desejar e não se fazer objeto do desejo sexual do pai. Diante dessa recusa, Virginie se torna mestre de seu desejo, mestre de seu corpo, "um corpo domesticado, subordinado à sua vontade, está aí o sonho de toda anoréxica" (Cordié, 2000, p. 207).

A paciente comenta que as suas preocupações alimentares são preocupações também de seu pai. Em relação aos alimentos, ela afirma: "eu como legumes com água, um pão inteiro, carne não... meu pai se preocupa com a alimentação, para ele o pão é sagrado... o retorno às origens é o pão completo... ele é magro como um prego" (Cordié, 2000, p. 207). Regime e magreza são características dele que ela toma para si. A anorexia de Virginie pode ser concebida como um vício, assim como o alcoolismo e o traço perverso são para seu pai. Enquanto ele vai para a prisão, ela vai para o hospital. Tem crises bulímicas, e assim como seu pai, que roubava dinheiro da bolsa da esposa, ela rouba alimentos da geladeira e os esconde em lugares secretos. Nesses momentos, "ela se empanturra "até não poder mais", e em seguida se põe a vomitar: "Então eu caio no fundo do abismo, como papai", diz ela" (Cordié, 2000, p. 207).

Virginie reencontra em seus sonhos a angústia de devoração, de desaparição e morte. A morte da anoréxica é negada, sendo esperada e temida, mas também há os desejos de morte. Ao mesmo tempo, a transferência "(...) é marcada por certa violência, colocando frequentemente o terapeuta pouco à vontade, e lhe provoca reações agressivas e comportamentos de rejeição" (Cordié, 2000, p. 213).

Virginie também era tratada por uma equipe médica que, durante as hospitalizações, estipulava o peso a que ela deveria retornar para que pudesse sair do hospital. Este tratamento consistia no isolamento, sem visitas; e Virginie já havia passado por isso entre seus 14 e 22 anos, antes de chegar à clínica onde começou o tratamento psicanalítico. A equipe médica propôs em um determinado momento que a paciente deveria morar sozinha, que ela deveria se separar de sua família. Ela seguiu essa recomendação médica e passou a morar sozinha, porém se sentiu muito mal, e houve um aumento significativo dos episódios bulímicos.

Por conceber que a separação necessária entre a paciente e seus familiares não era de ordem física, a analista solicitou aos psiquiatras que a paciente voltasse para casa, porém eles eram contrários a essa posição. Entretanto, em um determinado dia, Virginie ignora as recomendações médicas e decide retornar para seu quarto de menina.

Com o decorrer do tratamento analítico, que durou muitos anos, Virginie passou a dissociar sua história das de seus ascendentes, passando a examinar a relação que existia entre ela e sua mãe. A resolução do conflito se precipita quando o que era impensável para ela, ter um relacionamento com um homem, passa a acontecer na sua vida, pois ela pôde estabelecer uma relação com um namorado. Assim, "a emergência da pulsão, o imprevisto do desejo, um outro prazer do corpo vislumbrado, tudo isso pôde enfim vir à tona e lhe faz esperar um outro destino" (Cordié, 2000, p. 209).

A partir do caso Virginie foram privilegiados alguns aspectos do caso que retratam a clínica do mal-estar contemporâneo, tendo em vista a relação entre anorexia e sintoma. Para tanto, serão abordados em temas-eixo (Cruz, 2007).

 

Resultados e Discussões

Anorexia e Adolescência

No caso apresentado foi observado que a anorexia teve início na adolescência, quando Virginie tinha 14 anos. Alguns psicanalistas discutem essa constituição da anorexia na adolescência (Fernandes, 2006; Freud, 2010c; Gaspar, 2010; Silva & Bastos, 2006; Vieira, 2008). Fernandes (2006) propõe que o aumento da demanda pulsional no momento do adolescer possibilita o surgimento da anorexia. Esse aumento da demanda pulsional corresponde ao excesso da pulsão e está relacionado com as mudanças da puberdade, em que há transformações hormonais e físicas na vida do sujeito. Para esta autora, esse excesso está relacionado aos perigos que emanam do interior do corpo e que podem impulsionar esse surgimento. Na mesma perspectiva, Gaspar (2010) considera que a incidência da anorexia na adolescência se deve ao turbilhão de mudanças abruptas que acontecem no corpo do adolescente, pois é um momento em que o corpo é colocado em cena.

Em Freud (2010c), a relação entre anorexia e adolescência aparece no texto História de uma neurose infantil, conhecido como  "O homem dos lobos". Ele afirma que no momento da puberdade (ele não utiliza o termo adolescência), há nas meninas uma neurose que exprime a recusa sexual e considera que a incidência da anorexia na adolescência está relacionada com a recusa da sexualidade. Diante das mudanças corporais advindas desse momento, o sujeito está apto e pronto para o encontro de um objeto de ordem sexual, aliás, para um reencontro do objeto (Freud, 2003c). Para ele, a recusa alimentar é também uma recusa sexual, uma recusa desse encontro com o sexo, através de um corpo cadavérico e dessexualizado. Essa recusa sexual pode ser observada quando Virginie afirma que é assexuada, ou seja, como um sujeito sem sexo, um sujeito desprovido de desejo.

Na mesma direção, Silva e Bastos (2006) consideram que "é justamente quando o sujeito se depara com o desejo do Outro em sua vida, seja nas transformações que o corpo sofre na adolescência, seja em seu encontro com o sexo, que a anorexia aparece" (Silva & Bastos, 2006, p. 104). Essas autoras afirmam que o surgimento acontece quando o sujeito se depara com o desejo do Outro. Ou seja, quando ele questiona "o que o Outro quer de mim?", desejo este tanto relacionado às modificações corporais quanto ao encontro com o sexo que emerge na adolescência.

Ainda sobre anorexia e adolescência, Vieira (2008) afirma que há uma relação entre ambas devido à ressignificação edípica que surge na adolescência. É interessante esse posicionamento, pois Cordié (2000) considera que o caso Virginie é constitutivo de uma estrutura histérica, e o sintoma da anorexia tem relação com a castração e com a problemática edipiana. Para esta autora (Vieira, 2008), a histérica aspira por uma mestria total do funcionamento do seu organismo e isso pode ser observado quando Virginie controla o seu corpo cadavérico e afirma que é assexuada, na tentativa de evitar a castração e não ser submetida à lei da diferença sexual que emerge na adolescência diante da reedição edípica.

Esses aspectos da adolescência relacionados às transformações corporais advindas das mudanças hormonais, da recusa sexual, do desejo do Outro, do encontro com o sexo, da castração, da ressignificação edípica pode ser observado no caso clínico através da recusa alimentar da paciente.

A recusa alimentar

Quando Virginie comenta que cansou de menstruar (não menstrua desde os 14 anos), que não suporta ver a barriga inchar e que prefere que diante de seu pai seu corpo não exista, ela exprime, de forma clara, a recusa sexual. Essa recusa engloba todos os aspectos citados anteriormente, já que ela afirma preferir que o seu novo corpo não exista diante de seu pai. Ela detém um corpo dessexualizado, talvez na tentativa de, inconscientemente, recusar o encontro com o sexual, de não saber o que o Outro quer dela, já que seu corpo está modificado e apto para a procriação.

São aspectos da adolescência que perpassam pela vida da paciente, e ela decide, através da recusa alimentar, apagar seu corpo. Dessa forma, provoca a recusa sexual, um afastamento do encontro com o objeto sexual. Aqui há também a expressão de um desejo velado de maternidade. A recusa alimentar e sexual evidencia esse desejo através do que Freud (2011b) denomina de negação. Segundo o autor, a negação é uma manifestação do inconsciente na tentativa de recalcar algum juízo. Com a recusa, há uma negação do desejo de maternidade da paciente, ele então fica velado. O desejo existe, porém está velado, dissimulado, encoberto.

Válido ressaltar que quando Freud (2010c) evidencia a relação entre anorexia e adolescência, utiliza o termo "meninas", fazendo referência à incidência da anorexia em mulheres. Virginie é uma mulher e o caso evidencia complexidade do tornar-se mulher (Freud, 2010d), seja quando ela comenta que tem medo de sentar no colo do pai e sujá-lo de menstruação, seja quando ela é a assexuada da casa e prefere que perante o pai seu corpo não exista. Apesar de haver casos de anorexia em homens, assim como Freud (1918/2010c), alguns autores também relatam a preponderância da anorexia em mulheres (Fernandes, 2006; Gaspar, 2010; Pencak & Bastos, 2009).

A relação com o pai

Outro aspecto do sintoma no caso Virginie é referente à relação da paciente com seu pai, pois o surgimento da anorexia acontece quando o pai da paciente é preso. Nesse momento é possível identificar que houve um recalcamento de situações indesejadas da paciente com seu pai e com isso, houve a formação do sintoma, o retorno do recalcado (Freud, 2010b). Esta ideia remete aos textos freudianos sobre a anorexia (Freud, 2003a; 2003b), quando ele relaciona o surgimento desse sintoma com um fato traumático e com lembranças da vida infantil.

Freud (2000a) afirmara que a constituição do sintoma está relacionada às experiências do sujeito e, nesse sentido, a presença paterna esteve relacionada ao surgimento da anorexia. Ainda que a figura paterna esteja presente na formação sintomática, esta é uma relação singular e não determinante em todos os casos. Tendo isso em vista, é importante considerar a questão da ressignificação edípica que surge na adolescência e que também está relacionada com a formação da anorexia na paciente.

Segundo Freud (2003c), a ressignificação edípica corresponde ao momento da adolescência em que o sujeito revive as fantasias incestuosas da vida infantil. Essas fantasias são referentes ao Complexo de Édipo, momento da vida infantil de investimentos objetais em que o filho se sente atraído pela mãe, e a filha pelo pai. Segundo Freud (2011a), na dissolução desse Complexo, "os investimentos objetais são abandonados e substituídos pela identificação" (Freud, 2011a, p. 208). A menina tende então a se identificar com a mãe e o menino com o pai, ou seja, tende a ser uma identificação distinta dos respectivos investimentos objetais. Mas no caso abordado, o início da anorexia ocorreu não apenas a partir de situações em que o pai, que um dia fora idealizado, esteve presente, mesmo com a notícia de que ele foi preso, mas também a partir da identificação da paciente com seu pai, ou seja, uma identificação com o mesmo objeto, com o mesmo investimento, quando é mencionado que as preocupações alimentares da paciente eram decorrentes de preocupações alimentares de seu pai. De algum modo, nesse momento da adolescência, em que há uma reedição do Complexo de Édipo, essas situações em que o pai de Virginie estava envolvido também possibilitaram a constituição do sintoma.

Interessante perceber que a figura paterna está presente no surgimento, e que o pai não se coloca entre a filha e a mãe. O pai de Virginie é ausente e ao mesmo tempo presente na vida familiar da paciente. Ausente, pelas situações em que ele se envolve e também pelo fato de o amigo da família ocupar o seu lugar de promover a educação da família. Presente, pois a mãe da paciente se arrepende de ter se apaixonado pelo pai dos filhos, e isso é compartilhado e vivido intensamente, sobretudo pela paciente.

Lacan (2003), em seu texto sobre os complexos familiares, aborda o declínio social da imagem paterna e de que modo o mesmo provocou efeitos psicológicos na formação do indivíduo. Para o autor, os sintomas neuróticos contemporâneos são o reflexo dessa fragilidade da imagem paterna. Além de Virginie estar inserida na cultura em que testemunha-se esse declínio, destaca-se certa carência do pai e, a constituição do sintoma de Virginie denota a ausência de um terceiro que venha interditar a imagem materna onipotente.

A figura paterna possibilitou a presença da imagem materna onipotente, sem evidência da exclusão, na constituição do sintoma de Virginie. A esse respeito, há estudos que discutem sobre a ausência da figura paterna, ausência de um terceiro que interdite a intensa relação e sem limites entre mãe e filha (Fernandes, 2006; Gaspar, 2010; Rovere, 2011; Silva & Bastos, 2006; Vieira, 2008). Diante dessa fusão, resta ao sujeito recusar o alimento como uma tentativa de se separar dessa mãe intrusiva e constituir seu próprio desejo (Lacan, 1995; Recalcati, 2000).

A história da paciente com seu pai demonstra a ausência dele na relação entre ela e sua mãe. Não há interdição, mas é no decorrer do tratamento que a paciente começa a se diferenciar do outro, pois de alguma forma a analista ocupou a posição desse terceiro. Tal como Consenza (2009) propõe, a analista encarnou "a espécie de um outro", distinto daquele que a paciente encontrou em sua vida. A analista assumiu uma posição que até então não tinha sido bem ocupada e que era fundamental na vida de Virginie, pois era uma posição estruturante. Eis que dessa forma a separação pôde acontecer, a partir do desvencilhamento do sintoma, através de ressignificações, e não mais mediante a recusa alimentar.

 

Psicanálise e Medicina

O caso apresentado demonstra o tratamento psicanalítico da paciente, que é de ordem singular. Quanto ao tratamento que a medicina propõe, por conceber a anorexia como uma disfunção, corresponde a um contrato em que há um estabelecimento do peso que a paciente deve atingir. Ela deve se alimentar para atingir um determinado peso, que certamente normaliza essa disfunção orgânica. Esta é uma parte importante do tratamento, pois a magreza extrema e a desnutrição podem acarretar diversas consequências, que já eram até presentes na vida de Virginie, como a ausência de menstruação. Essas consequências e esse peso tão abaixo do que é indicado são os principais propulsores da hospitalização. É necessário recuperar esses déficits nutricionais e orgânicos, para que a paciente sobreviva a essa magreza excessiva. É uma condição essencial, até para que outros trabalhos possam ser desenvolvidos e ser associados a esse tratamento.

O fato de a psicanálise e a medicina serem distintas possibilita que haja a associação do tratamento de uma com o da outra; é o caso de um trabalho em equipe. Freud (2001a) já advertia em Podem os leigos exercer a psicanálise? Diálogos com um juiz imparcial que toda ciência é unilateral e que é uma insensatez lançar uma contra a outra. Ele afirma:

(...) a física não desvaloriza a química, não pode substituí-la e tampouco pode ser substituída por ela. A psicanálise é, sem dúvida, extremamente unilateral, enquanto ciência psíquica do inconsciente. Então, não se pode contestar as ciências médicas o direito à unilateralidade (Freud, 2001a, p. 217).

Desse modo, compreende-se que por serem unilaterais, a medicina não substitui a psicanálise, e vice-versa. Zanotti e Monlleó (2012) contribuem com essa discussão quando apresentam um estudo baseado na interlocução entre psicanálise e medicina a partir de uma experiência de atendimento integrado. Apesar do possível trabalho em conjunto, as autoras afirmam que a interlocução e o atendimento integrado devem ser reconstruídos a cada caso e entre os integrantes da equipe. Ou seja, a interlocução não deve ser construída e estabelecida diante de cada caso.

É justamente pelo fato de a psicanálise e de a medicina terem lugares distintos que uma se afirma perante a outra e possibilita um trabalho conjunto. Se elas ocupassem a mesma posição, não haveria necessidade desse trabalho. No caso Virginie, o tratamento analítico acontece e o tratamento médico, também. Um não impossibilita o outro. São maneiras diferentes de conceber o sujeito e o sintoma, mas isso não impede que os tratamentos ocorram concomitantemente (Lacan, 2001; Zanotti & Monlleó, 2012).

Quando a equipe médica recomenda que Virginie resida sozinha e ela acata essa recomendação, a analista considera imprópria tal recomendação. Ela entende que não é essa separação de ordem física que fará a paciente melhorar do quadro anoréxico, ainda mais quando o quadro clínico piora e há um aumento significativo de episódios bulímicos. Apesar de essa posição da analista não ser aceita pelos médicos, a paciente, por não aguentar mais viver sozinha, decide ignorar a recomendação e retornar para sua casa.

Esta foi "uma maneira um pouco simplista de querer romper com os laços patogênicos com os pais e confundir a ‘separação' psíquica com o processo de desalienação das imagos parentais" (Cordié, 2000, p. 208). A separação necessária não era de ordem física, pois o rompimento da convivência da paciente com os pais não seria determinante para a desalienação das imagos parentais.

Considerando os impasses dos processos de alienação e separação nos casos de sujeitos que recusam alimentação, Silva e Bastos (2006) afirmam que "[...] a anorexia seria, então, uma manobra de separação do sujeito em relação ao Outro. Aí onde o Outro parece sufocar toda falta, a recusa surge como desejo [...]" (Silva & Bastos, 2006, p. 100). Essa citação indica que esse sintoma é consequência da relação do sujeito com o Outro, visto que de alguma maneira o sujeito busca essa operação de separação em detrimento da alienação, a favor do surgimento de seu desejo. Com isso é possível observar que o corpo cadavérico do anoréxico denota a tentativa de separação do sujeito frente a esse Outro intrusivo, visto que a separação se trata de uma operação psíquica, onde o distanciamento físico não incide, necessariamente, sobre esse isso.

Foram opiniões contrárias, da analista e dos médicos, mas é possível afirmar que a paciente, por perceber que aquela situação não lhe era favorável, resolveu retornar para casa. No decorrer do tratamento, ela conseguiu visualizar qual era sua posição e qual era a dos seus familiares. Houve a separação da demanda do Outro (Recalcati, 2000), mas que não se deu, necessariamente, pela imposição física.

 

Anorexia: sintoma analítico?

Quanto à anorexia ser ou não ser considerada um sintoma analítico, vale retomar os aspectos (Cosenza, 2012) mencionados no item "A anorexia e a ausência de demanda": a divisão subjetiva, o enigma do sintoma e a demanda. A partir da discussão apresentada nos temas-eixos propostos no presente trabalho, é possível concluir que no caso Virginie tais aspectos foram instituídos a partir de seu encontro com a analista.

No caso Virginie, a demanda de análise foi construída durante o tratamento, a partir da implicação de Virginie em seu sofrimento. Como Quinet (2007) ressalta, não basta o sujeito se queixar do seu sintoma e pedir para se desvencilhar dele; "é preciso que essa queixa se transforme numa demanda endereçada àquele analista e que o sintoma passe do estatuto de resposta ao estatuto de questão para o sujeito (...)" (Quinet, 2007, p. 16). E mais adiante, ele continua: "quando esse sintoma é transformado em questão, ele aparece como a própria expressão da divisão do sujeito" (Quinet, 2007, p. 17).

Pode-se aferir que houve a divisão do sujeito, diante da implicação de Virginie no tratamento e quando o sintoma passou a ser um enigma, um enigma a ser explicado, e que era endereçado à analista. O aspecto da fantasia é relevante quando a paciente revela seus medos à analista: o medo do sexo, o medo de a barriga inchar. Esses medos estavam relacionados às fantasias inconscientes que permeavam a vida da paciente.

A respeito das fantasias, Freud (2000b) afirma que elas possuem realidade psíquica, em contraste com a realidade material, e que no mundo das neuroses "a realidade psíquica é decisiva" (Freud, 2000b, p. 336). Dessa maneira, compreende-se que esses medos que a paciente relatou eram contrastados com a realidade material, uma vez que eles, enquanto fantasias, demonstravam a força da realidade psíquica. Essas fantasias foram endereçadas à analista e puderam ser trabalhadas, pois estavam interligadas com a formação do sintoma. Com isso, se ela não supunha que havia um saber na analista acerca dos seus sofrimentos, houve o surgimento dessa suposição, já que existiu um endereçamento. Houve um espaço para o surgimento dessas associações e fantasias. Só́ assim foi possível o tratamento acontecer e a anorexia se tornou um sintoma analítico.

Considera-se um sintoma, pois houve um encontro entre analista e analisando que possibilitou o tratamento, evidenciou o conflito, a sobredeterminação e a satisfação que constituía o sintoma. A demanda do tratamento se constituiu através do encontro da paciente com sua analista. As intervenções da analista possibilitaram o surgimento de diversos aspectos relatados na fala da paciente que estavam associados à constituição da anorexia. Foram intervenções que não necessariamente visaram que a paciente comesse (Lasègue, 1998), que ela alcançasse o peso ideal para a sua condição física, pelo contrário, elas proporcionaram o surgimento dessas construções (Freud, 2001b) e permitiram que as questões referentes à alimentação fossem abordadas pelos demais profissionais também envolvidos no caso. À analista não cabia essa posição.

Importante destacar a relação transferencial nesse caso, visto que Cordié (2000) ressaltou no relato do caso que a transferência era marcada por certa violência, pois a paciente lhe provocava reações agressivas e lhe deixava pouco à vontade. Essa violência indica a presença de uma transferência negativa (Freud, 2010a) que revelava a transferência de sentimentos hostis para a analista. Essa transferência, tanto negativa quanto positiva, constitui, segundo Freud (2010a), a relação transferencial que possibilita o tratamento.

Houve uma série de associações feitas por Virginie através da relação transferencial com a analista. Surgiram lembranças dos relacionamentos da paciente com seu pai e com sua mãe, dos diferentes posicionamentos da paciente ante o pai e a mãe, do corpo inexistente perante o pai e a impossibilidade de se relacionar com um homem. São lembranças que se articularam na constituição da anorexia e que também surgiram através da relação transferencial com a analista.

É interessante a posição da analista, quando os médicos recomendam que a paciente deve morar sozinha. Apesar de a analista saber do conflito familiar, presente na vida da paciente, já que é por ela relatado, ela entende que o afastamento da família não necessariamente possibilitará uma melhora na sua vida. O fato de a paciente morar sozinha seria apenas um artifício de ordem física para afastá-la dos conflitos familiares, porém o que estava em jogo na constituição desse sintoma não eram questões que seriam aliviadas com o afastamento físico. Segundo Cordié (2000), com as intervenções e o tratamento analítico a paciente foi conseguindo distanciar a sua própria história das de seus familiares. É nessa ordem, e não fisicamente, que a separação começa a acontecer. É a partir do momento em que a paciente se posiciona, que sua vida pode se direcionar de outra forma. Não foi a analista que impôs que ela deveria retornar para seu lar familiar; foi ela que percebeu o que era melhor, talvez até mesmo por ter experimentado viver sozinha, e assim assumiu outra posição em face dos que dela tratavam e de sua própria família.

O tratamento analítico foi possível não só pelo fato de que a demanda foi construída. Além desse encontro entre analista e analisando e da construção da demanda, havia a função desse sintoma na vida da paciente, e principalmente por isso o tratamento ocorreu. Essa função estava vinculada ao conflito que constituía o sintoma de Virginie. A anorexia expressava esse conflito através da recusa alimentar.

Nesse sentido, o sintoma era a solução de compromisso a condensar aspectos pertinentes à relação mãe e filha, intrusão materna, ausência do pai, idealização paterna, fantasias, reedição edípica, recusa sexual, alimentos, recusa alimentar, satisfação, ideais, sonhos e desejos. Situações estas que foram vividas de maneira singular por Virginie, puderam vir à tona e receberam outro destino, a partir do tratamento analítico.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Kyssia Marcelle Calheiros Santos
Universidade Federal de Alagoas - UFAL
Instituto de Psicologia
Av. Lourival Melo Mota, Tabuleiro do Martins, CEP 57072-900, Rio Largo - AL, Brasil
Endereço eletrônico: kyssia.santos@ip.ufal.br
Susane Vasconcelos Zanotti
Universidade Federal de Alagoas - UFAL
Instituto de Psicologia
Av. Lourival Melo Mota, Tabuleiro do Martins, CEP 57072-900, Rio Largo - AL, Brasil
Endereço eletrônico: susane.zanotti@ip.ufal.br

Recebido em: 30/06/2015
Recebido em: 31/05/2016
Aceito para: 20/06/2017

 

 

Notas

* Mestre em Psicologia - Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Alagoas (Bolsa CAPES). Psicóloga - Universidade Federal de Alagoas.
** Doutora em Psicologia (UFRJ). Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia - Universidade Federal de Alagoas.

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