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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.62 no.3 Rio de Janeiro  2010

 

ARTIGOS

 

O trabalho do negativo e a transmissão psíquica

 

The work of the negative and the psychic transmission

 

 

Claudia Amorim GarciaI; Carla Maria Pires e Albuquerque PennaII

I Docente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Brasil
II Doutoranda. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho discute inicialmente o conceito de negativo em psicanálise, a partir das contribuições de André Green, apontando tanto para seus aspectos patológicos quanto estruturantes para o processo de constituição psíquica. A seguir discorre sobre a importância do trabalho do negativo para a investigação da transmissão psíquica transgeracional, principalmente quando conteúdos negativados e não representados são transmitidos psiquicamente através de gerações, nos moldes do objeto que não se deixa apagar, causando prejuízos consideráveis nas constituições subjetivas. Nesses casos, presenciamos o fracasso da ação estruturante do negativo que pode se apresentar na face defensiva de pactos denegativos, em certos contratos narcisistas e também na telescopagem de gerações.

Palavras-chave: negativo; trabalho do negativo; transmissão psíquica; transgeracionalidade; objeto primário.


ABSTRACT

This paper initially discusses the concept of the negative in psychoanalysis, from the point of view of Andre Green, pointing at both its pathological and structuring aspects that contribute to the process of psychic constitution. Next it emphasizes the importance of the work of the negative for the investigation of transgenerational psychic transmission especially in the case of negated and non-representational contents which are psychically transmitted through generations, in a similar way as the object that doesn´t allow to be forgotten, damaging the psychic sphere. In those instances we are dealing with the failure of the structuring function of the negative which can be represented by the defensive aspect of the denegative pact, in certain narcissistic contracts and telescoping of generations.

Keywords: negative; work of the negative; psychic transmission; transgeracionality; primary object.


 

 

A partir da década de 1980 o conceito do negativo passou a ser alvo de atenção e investigação por parte de psicanalistas franceses, como André Green, René Kaës, Piera Aulagnier, Jean Guillaumin, André Missenard e Jean Laplanche, entre outros. André Green (1993) ressalta a importância de três publicações francesas sobre o negativo que contribuíram para o desenvolvimento do estudo sobre o tema: Entre Blessure et Cicatrice: Le destin du négatif dans la psychanalyse, de Jean Guillaumin (1987), Pouvoir du negatif dans la psychanalyse et la culture, produção de diversos autores editada pela Dunod (1988), e Le négatif et sés modalités, coletânea dirigida por André Missenard (1989) (KAËS, 2005).

Segundo Guillaumin (KAËS, 2005), a reflexão sobre o negativo como categoria psicanalítica substantiva surgiu recentemente e acentua três principais conotações: a ausência de representação, um destino nocivo do funcionamento psíquico e a experiência de perda e falta na qual repousa a positividade que estrutura a vida psíquica. Por outro lado, para Green (1993) o negativo em psicanálise abrange vários significados, podendo designar: o oposto do positivo numa relação conflituosa ou simétrica; uma ausência latente daquilo que se opõe ao manifesto; e, finalmente, o nada, algo que nunca chegou a existir.

Em torno do tema do negativo em psicanálise, Green (1993) propõe o trabalho do negativo que se realiza entre os extremos de um recalque bem constituído e o da forclusão (Verwerfung) e que se apresenta no princípio de qualquer operação psíquica de transformação e nos processos de pensamento. Assim, o trabalho do negativo apresenta tanto um aspecto estruturante quanto uma face patológica, quando o não-dito e o clivado atacam a coerência mental, conduzindo à recusa ou à forclusão. Este artigo propõe-se a realizar uma investigação da literatura existente sobre o trabalho do negativo examinando os prejuízos causados pelo seu fracasso em situações nas quais a transmissão psíquica entre gerações (intergeracional), falhou, dando lugar a uma transmissão através das gerações (transpsíquica) (KAËS, 2001). A transgeracionalidade é uma forma de transmissão transpsíquica e envolve aspectos negativados, não representados na mente dos pais, que são transmitidos ao psiquismo dos filhos em estado bruto, não elaborado. Nesses casos a abolição dos limites psíquicos e do espaço subjetivo fundamental para o desenvolvimento de um trabalho do negativo e para o surgimento de constituições subjetivas saudáveis fica sensivelmente prejudicado, trazendo consequências observadas em diferentes quadros da clínica psicanalítica atual que envolvem diversas formas e figuras do negativo.

O negativo em psicanálise

Green (2002) aponta para duas menções freudianas que podem se reportar ao tema do negativo: a primeira quando Freud define a neurose como negativo da perversão (FREUD, 1905) e a segunda, quando se refere à reação terapêutica negativa (FREUD, 1923). No entanto, afirma “não há nada ali que possa justificar o negativo, pois esta forma de pensar está muito distante do modelo freudiano” (GREEN, 2002, p.259). A presença do negativo pode ser inferida na obra freudiana desde seu início, através do fenômeno da alucinação negativa, um conceito criado em 1884 por Bernheim, empregado por Freud no período hipno-catártico entre 1895 e 1897, e logo depois abandonado por ele para reaparecer somente incidentalmente em uma nota de rodapé em um artigo sobre o sonho (BOURGUIGNON, 1991). Um pouco mais tarde, é o próprio conceito de in-consciente, inconsciente de si mesmo, que aponta para um negativo e, nos escritos técnicos da década de 10, a transferência negativa ocupa lugar de destaque.

Existem ainda outros eventos psíquicos que carregam o traço do negativo, tais como: o luto e a perda do objeto, o trabalho do sonho, as representações em suas relações com a pulsão e a própria pulsão de morte. Também o conceito de defesa, em psicanálise, aponta para o trabalho do negativo o que é bem ilustrado pela teoria do recalcamento. Green (2002) acredita que Freud tenha oscilado entre a descrição do recalcamento como defesa paradigmática que caracteriza o processo defensivo em geral, e uma outra acepção na qual o recalcamento não é senão, um dos modos de defesa identificáveis tanto na normalidade quanto na neurose. Assim, faz-se necessário estabelecer diferenças entre o recalcamento e outras defesas entre elas a rejeição ou forclusão (Verwerfung) onde alguma coisa não é recalcada, mas abolida, a denegação (Verneinung) e a recusa (Verleugnung) reportando-nos a outros tipos de mecanismos defensivos e, portanto a outras manifestações do negativo.

Após apontar a enunciação do conceito de pulsão de morte, representante por excelência do negativo, e as contribuições de Freud para a discussão do tema presentes em A Negativa (1925), Green (2002) apresenta ainda um importante aspecto do negativo em Freud a partir de uma observação nas Novas Conferências Introdutórias à Psicanálise (1933), segundo a qual “quase tudo o que conhecemos a propósito do id é de caráter negativo comparado ao ego” (FREUD, 1933, p.94). Ou seja, estamos diante de uma situação paradoxal, onde a mais ruidosa e a mais afirmativa das instâncias do aparelho psíquico, o Id, só é concebível no negativo do que sabemos sobre o ego. Para Green, e invertendo a afirmação de Freud, “O Ego é o Id no negativo (ou negatividade)” (GREEN; 2002, p. 262).

Então, embora o negativo não seja uma noção individualizada como tal nos escritos freudianos Green (1993, 2002) constata que neles o negativo se apresenta desde o início através de traços que podem ser evidenciados posteriormente ao longo da obra freudiana.

No que se refere aos destinos da temática em psicanálise a ideia do negativo ressurge durante o período hegeleriano de Lacan, único autor que desenvolveu um sentido do negativo em psicanálise, embora não tenha dado grande importância ao fato. (Green, 1993) Por outro lado, a Escola Inglesa tomou um caminho essencialmente clínico para tratar de questões que pudessem se referir ao negativo. Em Melanie Klein temos as descrições da negação e das identificações projetivas, que trazem contribuições para a compreensão do funcionamento dos mecanismos do negativo. Bion (1967), por sua vez, em O Aprender com a Experiência (1962) descreve os vínculos Amor (L), Ódio (H) e Conhecimento (K), atribuindo aos processos intelectuais uma função psíquica equivalente ao amor e ao ódio. A partir da experiência clínica observa em Ataque à Ligação (1967) a presença do reverso do vínculo K, -K introduzindo o conhecimento negativo no campo analítico e no pensamento clínico.

Em Winnicott a questão do negativo não é discutida mas pode ser deduzida exemplarmente da definição de objeto transicional enquanto uma possessão não-eu. (Winnicott, 1971) o que aponta para um negativo do eu. Também aparece claramente no caso clínico apresentado na segunda versão de Objetos e Fenômenos Transicionais de 1971 publicada no O Brincar e a Realidade (1971). A paciente - que também foi atendida por Green anos mais tarde - vítima de separações traumáticas e experiências desorganizadoras revela o lado negativo de suas relações quando se evidencia que nela somente o negativo é real ao afirmar: “Tudo o que consegui é aquilo que não consegui” (WINNICOTT,1971, p.42) que Winnicott (1971) comenta dizendo: “Temos aqui uma tentativa desesperada de transformar a negativa numa última defesa contra o fim de tudo. O negativo é o único positivo” (p.42).

Apesar do comentário, Winnicott não se aprofunda na questão do negativo evidenciada pela paciente, cabendo a Green (2003) intuir sua presença no caso afirmando:

“ A referência à viagem, à amnésia, à narrativa de ter perdido seus pais, principalmente sua mãe (...) à não aceitação da morte, como se os corpos de seus pais, especialmente de sua mãe, estivessem petrificados na cela do seu próprio corpo( incorporação do morto) – tudo isso ainda se refere ao trabalho do negativo...” (GREEN, 2003, p.81).

Isto é, as experiências traumáticas teriam sido de tamanha magnitude que sua influência se estenderia a toda estrutura psíquica que se torna imune à aparição ou ao desaparecimento do objeto, o que significa que a presença do objeto não pode modificar mais o modelo negativo, convertido em traço característico das experiências vividas pelo sujeito (GREEN, 1993, 1997).

Existe ainda a presença de uma forma de negativo radical que se apresenta na psicossomática quando se observa claramente uma referência implícita a uma negatividade que afeta o psiquismo e o corpo. Na verdade, as principais concepções psicossomáticas fazem, mesmo que implicitamente, referência a uma negatividade que afeta o psiquismo de forma significativa. É como se uma esclerose ou anemia psíquica afetasse o sujeito, o que nos leva a pensar em um pensamento operatório (MARTY, 1976,1980), ou numa depressão essencial, que parecem remeter a “recursos psíquicos reduzidos ao seu esqueleto funcional” (GREEN,1993, p.25). Trata-se de mecanismos que envolvem uma desorganização interna com causas ininteligíveis, no limite de uma intervenção analítica.

A importância que a psicanálise contemporânea tem dado ao negativo pode ser entendida por diversos ângulos. Partindo de um novo nível de dificuldade que se impõe à prática clínica contemporânea, a teoria psicanalítica atual exige novos aportes que incluam a consideração do negativo no trabalho analítico. Assim, podemos constatar que muitos autores passaram a voltar sua atenção para o não pensado, o não-eu, o não seio, o não desejo. A capacidade negativa de Bion (-K), bem como as diferenças entre not understanding e mis understanding, ou a diferença essencial entre nothing e no thing (GREEN, 1993, p.21) terminaram por contribuir para uma significativa polissemia do negativo. Tal polissemia expande o conceito do negativo para muito além dos conceitos clássicos freudianos, onde as defesas atuavam como indicadores de quadros neuróticos psicóticos ou perversos, aproximando-nos de muitos dos desafios da clínica psicanalítica contemporânea e das novas configurações nela presentes.

A constituição dos limites psíquicos e o trabalho do negativo

A partir da reunião de diferentes conceitos freudianos que apontam para uma negatividade, Green (1982, 1993) propõe o que denominou de o trabalho do negativo que pode se apresentar de diferentes formas, entre dois extremos que, grosso modo, podemos considerar como bem-sucedido, quando possibilita o surgimento de uma ausência que é presença em potencial, ou mal–sucedido, quando resulta num excesso mortífero, por ausência ou por presença. Assim, o trabalho do negativo pode assumir feições patológicas ou estruturantes, caso em que a descontinuidade que provoca redunda na construção dos limites psíquicos saudáveis. As rupturas têm uma função psíquica estruturante pela criação de um vazio, de um espaço no psiquismo no qual os limites intrapsíquicos, as representações, o pensamento e as relações de objeto podem adquirir forma, o que não acontece nos estados-limite, categoria anunciada pela primeira vez por Green em 1975, trabalho em que o negativo não é discutido ainda, apesar de se constituir num conceito indispensável à compreensão desses casos. De fato, segundo Garcia (2007): “O trabalho do negativo é apenas esboçado em 1974, vindo a ocupar um lugar de destaque em 1982 para se constituir na essência da discussão apresentada na coletânea homônima de 1993 em que finalmente uma definição conceitual é proposta” (p.127).

Assim, no clássico artigo O analista, a simbolização e a ausência no contexto analítico (1974), é apresentado um interessante levantamento de quadros clínicos que demandam especial atenção do analista por exigirem alterações na técnica, no enquadre e uma maior atenção à contratransferência. Esses casos difíceis tão frequentemente encontrados em nossos dias e denominados de estados-limite, como conceito clínico genérico por estarem justamente no limite da analisabilidade, incluem vários quadros clínicos em que predominam: experiências de fusão primária que indicam uma indistinção sujeito-objeto, com nebulosidade dos limites do eu; um modo particular de simbolização e organização dual; e necessidade de integração estruturante pelo objeto (GREEN, 1974, p.88). Entre os extremos da normalidade e da regressão fusional, esses pacientes apresentam múltiplos mecanismos de defesa que podem ser agrupados em duas polaridades fundamentais: mecanismos de curto-circuito psíquico, como exclusão somática e expulsão pelo ato, e mecanismos psíquicos de base, como a clivagem e o desinvestimento. Enquanto nas neuroses clássicas a angústia básica é de castração, nos casos-limite há uma oscilação paradoxal entre angústia de separação e angústia de intrusão, que está sempre no centro das relações com o objeto e que evidencia uma fragilidade na constituição dos limites psíquicos que afeta a formação do pensamento, e não o desejo, como na neurose clássica (GREEN, 1974, p.89). Nas análises dos casos-limite a contratransferência é muito importante na identificação do vazio afetivo e da incapacidade de representar, sinais clínicos que dramaticamente encenam a oscilação entre o excesso e a falta do objeto no espaço psíquico. A relação com o objeto nesses pacientes alterna entre uma onipresença intrusiva e uma inacessibilidade ao objeto idealizado que impedem a construção de representações, indicando que a capacidade de pensar encontra-se prejudicada (GARCIA, 2007).

Em O duplo limite (1982) André Green discute extensivamente os casos-limite, afirmando que nesses quadros a dificuldade na construção de limites psíquicos, a pobreza de suas representações, o vazio e o pensamento prejudicado são características importantes. É então que, finalmente, introduz a questão do negativo, mostrando que sua atuação é fundamental na construção do pensamento. Ressalta também a pouca importância dada por Freud em sua obra ao pensamento e sua relação com a realidade, que não faziam parte dos conceitos fundamentais da psicanálise. Realmente foi apenas com a teoria do pensar de Bion (1967), desenvolvida a partir do trabalho e da observação de psicóticos, que se inaugurou uma verdadeira teoria sobre o pensamento em psicanálise, imprescindível na compreensão dos casos difíceis que preponderam na psicanálise atual e levaram os analistas a considerar a importância do pensamento e a questão do negativo.

Os trabalhos de Melanie Klein, Bion e Winnicott contribuíram para a definição dos eixos que são importantes na construção de uma clínica e uma teoria do pensamento que vai ao encontro dos casos-limite, a saber: o limite entre o fora e o dentro e sua articulação com os limites intrapsíquicos; a representação que recobre um duplo campo: o da representação de coisa e o da representação de palavra; os processos de ligação em sua relação com o desligamento; e a abstração que representa a característica mais específica do pensamento. Representação, ligação, pensamento e simbolização são processos intimamente relacionados: “Representar é ligar e pensar é religar as representações de um modo especular” (GREEN, 1982, p. 269).

Dentre os quatro eixos fundamentais para a construção de uma teoria e clínica do pensamento, Green (1982) confere ao limite papel de destaque e mostra que é justamente em função de sua constituição que se introduz o trabalho do negativo, com ênfase no papel desempenhado pelas relações de objeto, requisito fundamental para a constituição dos limites do psiquismo (GARCIA, 2009). Nesse sentido, não se pode pensar a constituição do psiquismo nem a relação de objeto em Green sem levar em conta o trabalho do negativo que, através de diversas manifestações, opera as distinções entre interno/externo, envolvendo aspectos econômicos e simbólicos que são essenciais à constituição psíquica, o que se evidencia em A Negativa (FREUD, 1925), onde é apresentada.

De fato, é na releitura do texto freudiano que Green (1982) retoma o tema da constituição dos limites interno / externo, considerando que os fenômenos psíquicos ali anunciados, como a expulsão e a negação, e aqueles que derivam de sua interpretação, como a alucinação negativa e o recalcamento, representam o trabalho do negativo nas suas diferentes manifestações como promotores da diferenciação interno/externo.

Assim, um movimento inicial pulsional de expulsão (excorporação) faz com que numa primeira etapa o ego incipiente guarde para si tudo o que lhe dá prazer e expulse o que lhe causa desprazer num movimento negativizante. Dentro dessa perspectiva Figueiredo (2004) afirma, a partir de Green (1988), que no momento em que entra em jogo a dicotomia bom e mau, sob o efeito da cisão, já se coloca o trabalho do negativo, na medida em que um campo caótico de experiências dá lugar ao início de uma construção, mesmo que ainda fantasiosa dos objetos:

“ Os objetos já nascem do trabalho do negativo de cindir bom e mau e projetar tais qualidades sobre o ambiente (...) Eles constituem-se pela cisão e adquirem sua nítida definição objetal como inexistências, fantasias, entidades imaginárias” (FIGUEIREDO, 2004, p.30).

Na Negativa (1925) Freud discute a origem do julgamento intelectual enfatizando que as funções de negação e de afirmação derivam das mais antigas moções pulsionais, as pulsões orais, e são imprescindíveis na delimitação das fronteiras eu/não-eu. Discute, então, o destino das primeiras manifestações pulsionais e a emergência concomitante do eu em duas etapas iniciais afirmando, logo de início, que “a antítese entre subjetivo e objetivo não existe desde o inicio” (FREUD, 1925, p. 298). Numa primeira etapa vigora o juízo de atribuição capitaneado pelo eu prazer e regido pelo prazer-desprazer, quando o que é considerado prazeroso é incorporado e o que é julgado desprazeroso é expulso. O juízo de existência, comandado pelo eu realidade e posterior ao juízo de atribuição, irá decidir se uma coisa que existe no inconsciente também existe na realidade.

Relendo criativamente o texto freudiano, Green (1986a) afirma que o trabalho do negativo como expulsão do desprazeroso permite a criação de um espaço interno em que o eu como organização pode nascer pela instauração de uma ordem fundada no estabelecimento de ligações relacionadas às experiências de satisfação que possibilitam o reconhecimento do objeto como separado do eu, no espaço do não-eu e o seu reencontro (GREEN, 1986a, p.293). Acentua também a importância da ação negativizante do recalcamento a que é submetido o que retorna depois de ter sido excorporado, que é responsável pela marca originária da fundação do psiquismo ao delimitar a divisão consciente/inconsciente, fundamental para a constituição da subjetividade, das representações e de um sentimento de continuidade. Green faz, ainda, menção à negação, operação através da qual o recalcado é acessado na condição de que seja negado no plano da linguagem, negação que é, contudo, uma afirmação do inconsciente. Seu interesse maior, no entanto, reside em discutir a função crucial desempenhada pela alucinação negativa da representação do objeto (seio ou mãe), operação que introduz um apagamento do “objeto absolutamente necessário” (GREEN, 1988), condição sine qua non para que se crie um espaço interno que será constituinte da estrutura psíquica, na qual as representações e o próprio pensamento possam ter sua origem. É somente através do apagamento do objeto absolutamente necessário que o processo de constituição psíquica pode ter um desfecho favorável: “o objeto absolutamente necessário à elaboração da estrutura psíquica deve se apagar. Ele deve se fazer esquecer como constituinte da vida psíquica” (GREEN,1988, p.301).

A inscrição da ausência como presença potencial que daí resulta se transforma em estrutura, campo de possibilidade da emergência dos fenômenos psíquicos que permitirá a tolerância das distâncias, ausências ou inadequações dos objetos substitutivos, base para a possibilidade do desejo e do pensamento.

É assim que Figueiredo (2004) comenta:

“A alucinação negativa tem a função de constituir uma estrutura enquadrante. Na medida em que o objeto absolutamente necessário (seio da mãe alucinado) se deixa apagar ele responde a um movimento pulsional em que o trabalho do negativo deixa suas marcas, seja na constituição do próprio objeto em seu lugar no espaço externo – ele também produto de uma negação, a excorporação –, seja na atenuação da presença para dar lugar de um lado à representação e de outro e mais profundamente, ao vazio internalizado como forma de estrutura” (p.17).

Portanto, quando o objeto absolutamente necessário não se faz apagar, ele não pode ser introjetado como função estruturante do psiquismo. Como não pode ser negado, sua presença torna-se excessiva e intrusiva; é o que Green chama de uma “situação de excesso de presença pelo fato de sua falta” (GREEN, 1988, p.387). Nesse momento existe a coalescência entre o objeto e a pulsão, e o objeto, em vez de tornar a pulsão tolerável, a torna intolerável, insuportável ao sujeito que recorre, então, a desenlaces extrarrepresentativos, como passagens ao ato, adições, exclusões somáticas e defesas de base muito primitivas, como cisão e o desinvestimento pulsional (função desobjetalizante). Onde o trabalho do negativo não se efetua, dá-se uma confusão entre pulsão e objeto que impede a emergência do desejo e prejudica a esfera do pensamento. São casos em que o objeto primário permanece enquistado e absoluto, impedindo a constituição de um espaço interno no qual acontecem os movimentos psíquicos e, mais importante, se constituem as representações sem as quais o desejo não pode surgir.

Assim, através do trabalho do negativo em suas diferentes manifestações é que se constroem os limites dentro/fora e os limites intrapsíquicos, facilitadores da função principal do objeto primário que, ao se deixar apagar, permite a constituição de um vazio estruturante, uma presença ausente que possibilita a experiência de separação e o aparecimento dos objetos substitutos (GARCIA, 2009). Nas palavras de Green (1988):

“ A psicanálise encontra o negativo no fundamento de sua existência, porque sua teoria repousa em uma positividade em excesso, aquela devida ao funcionamento pulsional com a qual o sujeito só pode compor negativando-a ou pelo jogo dos mecanismos de defesa, tornando a vida pulsional compatível com as exigências da vida cultural, ela mesma o resultado da negação da vida natural” (p.305).

Então, Green (1993) acredita que se pode abarcar o trabalho do negativo a partir de duas óticas. A primeira é a que reagrupa os aspectos inerentes à atividade psíquica, da qual nenhum ser humano escapa, por fazer parte de sua própria constituição e que se traduz pela negativação de um excesso envolvendo diferentes mecanismos psíquicos, entre eles o recalque, a identificação e a sublimação. A segunda tem como fim mostrar como o trabalho do negativo pode ser utilizado com objetivos diversos, que, no entanto, conduzem à desorganização. São os caminhos pelos quais “a negação se torna denegação e a desmentida pode sujeitar a clivagem a um desinvestimento que afeta o sujeito até os limites do desengajamento” (GREEN, 1993, p.28).

Em suma, existem duas faces do negativo: a estruturante, fundamental para a constituição do psiquismo, e a patológica, que, em última instância, implica em um desinvestimento radical sob a forma de uma função desobjetalizante que leva à recusa ou à forclusão atacando a relação de objeto, o ego, o investimento e o pensamento (GREEN, 1986b).

A transmissão psíquica e o negativo

O estudo dos mecanismos de transmissão geracional ainda é muito recente, tendo se iniciado de forma incipiente através da observação de mulheres e crianças, por Anna Freud e Dorothy Burlingham (1943), durante o bombardeio nazista de Londres. Contudo, foi a partir de observações clínicas dos descendentes de sobreviventes do Holocausto e do estudo de situações traumáticas que a pesquisa se desenvolveu e, hoje, o estudo da transmissão da vida psíquica entre gerações é de grande relevância para a compreensão de diversas patologias que envolvem a transmissão de conteúdos não metabolizados, negativizados através das gerações.

A herança genealógica constitui o fundamento da vida psíquica e reporta sempre a uma questão de filiação. Em Freud, podemos constatar que as principais vias de transmissão desta herança são a cultura e a tradição, como bem demonstra Correa (2001) a partir de sua releitura de Totem e tabu (1913) e de Sobre o narcisismo: uma introdução (1914). Em 1913 Freud tece considerações sobre a transmissão do mito do parricídio e do tabu na organização social e na realidade psíquica (CORREA, 2001). Já em 1914 ele aponta para a “continuidade da vida psíquica entre as gerações e os diversos mecanismos de identificação” (CORREA, 2001, p.63). Por fim, em Moisés e o monoteísmo (1939), encontramos um trabalho freudiano no qual a ideia de transmissão ocupa um lugar central. Apoiando-se nesse artigo, Kupferberg (2004) aponta para a importância conferida à vinculação entre as experiências atuais e a de gerações anteriores, fato que levou Freud a concluir que “a herança arcaica dos seres humanos abrange não apenas disposições, mas também traços de memória da experiência de gerações anteriores (FREUD, 1939, p.120)”. Kupferberg (2004) afirma que na investigação de situações traumáticas precoces as reações aos fatos traumáticos não se limitam apenas ao sofrimento experimentado pelo sujeito, mas revelam um elemento intergeracional, filogenético, que passa a ser mais relevante no processo patológico do que sua própria história pessoal. As considerações de Freud em Moisés e o monoteísmo (1939) são de extrema relevância para o trabalho com transmissão psíquica em famílias e sociedades, pois permitem localizar no texto freudiano as raízes psicanalíticas da conceitualização da transmissão psíquica.

Entretanto, a simples transmissão direta da tradição e de traços culturais não oferece uma resposta definitiva para a continuidade da vida psíquica. Para que ela ocorra, as disposições herdadas deverão ser estimuladas pelos vínculos intersubjetivos que se estabelecem entre a criança e o meio familiar. Assim, a transmissão psíquica intergeracional é de fundamental importância para a preservação e conservação da herança cultural da humanidade; contudo, só pode acontecer através do estabelecimento de uma dinâmica relacional entre duas ou mais gerações, quando uma geração apoia-se sobre a precedente, apropriando-se a sua maneira daquilo que foi herdado, ou como nos diz Freud através das palavras de Goethe: “Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu” (FREUD, 1913[1914], p.188). Isso nem sempre acontece, no entanto, e então a transmissão da herança cultural e social do grupo familiar pode ficar comprometida em diversas situações em que a violência intrafamiliar, ou político-social, impede que a transmissão intergeracional ocorra livre de entraves. Assim, a eclosão de episódios dolorosos provoca uma série de traumas cumulativos (não-metabolizados) que desencadeiam inúmeras patologias que serão expressas por transmissão transgeracional, familiar ou coletiva, em que limites e espaços subjetivos serão abolidos e a transmissão de conteúdos em estado bruto atravessa as gerações.

Correa (2001) acredita que os traumatismos cumulativos estão associados a novas expressões de mal-estar na cultura e que os sintomas de sofrimento psíquico que caracterizam a psicopatologia contemporânea estão fortemente relacionados às patologias da transmissão psíquica geracional. A autora aponta para falhas na estruturação psíquica dos sujeitos contemporâneos que desenvolvem formações psíquicas clivadas, dificultando o estabelecimento de objetos internos estáveis, o que nos reporta diretamente a problemas no trabalho do negativo proposto por Green (1993). Enfatiza, ainda, que dificuldades nos processos de simbolização, representação e construção de sentido estão intimamente relacionados aos traumatismos cumulativos e aos lutos patológicos (CORREA, 2001, p.62), representantes do fracasso do trabalho do negativo.

Então, a face patológica do negativo ocupa hoje lugar de destaque nos estudos que envolvem a transgeracionalidade em famílias (KAËS, 2001, 2005; FAIMBERG, 2005; CORREA, 2001) e grandes grupos (VOLKAN, 1997, 2002, 2004) e os efeitos da intersubjetividade na constituição do psiquismo. De fato, a transmissão psíquica de aspectos negativados na mente dos pais incide sobre o psiquismo dos filhos, trazendo consequências observadas na clínica psicanalítica atual e que envolvem o fracasso da ação estruturante do negativo. Tendo em vista, então, os estudos contemporâneos sobre transmissão psíquica, podemos portanto depreender que muito da herança filogenética é transmitida não apenas diretamente pela cultura e pela tradição, mas também por aspectos clivados, denegados, forcluídos e negativizados ao longo desse processo, questão que vem sendo investigada por autores como René Kaës (2001, 2005) e Haydée Faimberg (2005), com especial atenção aos aspectos do negativo que envolve.

Em Lyon, Kaës coordena há vários anos um grupo de pesquisa sobre o negativo, no qual investiga sua função organizadora propondo importantes hipóteses sobre as figuras do negativo nas modalidades de organização e de funcionamento psíquico, bem como nas determinações dos discursos no âmbito grupal e social. Sua ênfase está na análise de situações clínicas que focalizam fenômenos intersubjetivos e coletivos. O modelo de aparelho psíquico grupal proposto por Anzieu e Kaës no estudo clássico dos grupos está sustentado no duplo vértice – grupal e intersubjetivo – constituído e sustentado pelas relações interpessoais, que se dão no âmbito da historicidade e da política.

Para Trachtenberg (2005) Kaës interessa-se pelo estudo dos aspectos culturais da civilização humana e pela forma com que os lutos foram sendo transmitidos através dos tempos, tanto entre sujeitos como entre instâncias psíquicas do próprio sujeito. Para ela a problemática da transmissão psíquica envolve quatro áreas significativas: o intrapsíquico, o intersubjetivo, o transpsíquico e a formação do ego. O negativo pode exercer um papel fundamental nos processos de transmissão psíquica, não só a partir do que falha ou falta, mas também através de uma forma mais radical de negatividade que aparece fundamentalmente através do que não adveio, seja pela ausência de inscrição e de representação, seja em forma de cripta ou enquistamento, através do que ficou paralisado por não estar inscrito (ABRAHAM; TOROK, 1995).

Segundo Puget (2005), a negativa, a recusa e o negativo adquiriram maior status teórico no trabalho com grupos e famílias quando Kaës (2005) propôs a ideia de um pacto denegativo, que o levou a postular um modelo para a constituição da vincularidade grupal e familiar. O pacto denegativo seria um tipo de aliança inconsciente que se impõe entre os laços intersubjetivos e se relaciona com o negativo em suas várias formas, sendo representado de forma exemplar através da conturbada relação entre Freud e Fliess no momento da operação das fossas nasais de Emma Ekenstein (KAËS, 2005). Naquele episódio temos diversas informações que nos levam a considerar a questão sob o ponto de vista de Kaës. Sabemos da forte ligação entre Freud e Fliess, do interesse de ambos pela histeria de Irma (Emma) e da teoria da bissexualidade, bem como do fracasso na cirurgia realizada por Fliess em Emma e da recusa de Freud em admitir o erro praticado pelo amigo. Para Kaës (2005):

“ O pacto de Freud e Fliess é ao mesmo tempo a denegação de seu desejo, a recusa de seu vínculo homossexual fundado sobre o apagamento do furo da feminilidade de Emma, mas, também para Freud, a recusa em admitir sua própria descoberta da fantasia de sedução” (p.99).

De fato, podemos supor que a preservação do vínculo com Fliess exigiu de Freud uma intrincada operação psíquica sobre seu próprio pensamento, que sacrificava a recente descoberta da teoria da sedução. O episódio contém todos os elementos que levaram à constituição de um pacto denegativo entre Freud e Fliess com importante consequência para a fundação da psicanálise, pois colocou no centro de sua origem a primeira mentira resultante do desejo insustentável de Freud de manutenção de sua relação com Fliess e Emma. Assim, fundar a psicanálise foi para Freud retirar-se da recusa que exigia a manutenção de seu vínculo homossexual com Fliess, à custa do sacrifício de Emma (KAËS, 2005).

A importância do conceito de pacto denegativo em Kaës reside no fato de que é a expressão do negativo no âmbito da intersubjetividade e se caracteriza por oferecer a cada um dos membros envolvidos aquilo que no psiquismo tem como destino o recalque, a denegação, a recusa e a rejeição. Mais ainda conduz a enquistamentos, criptas erigidas no espaço interno de um sujeito ou de um grupo (ABRAHAM; TOROK, 1995).

Assim, o pacto denegativo está presente no núcleo da origem e do fundamento da família, do grupo social, das leis e do sujeito singular (TRACHTENBERG, 2005) e se apresenta através de duas polaridades. A primeira delas é positiva na medida em que organiza o laço intersubjetivo, enquanto a outra é negativa, pois está baseada em um mecanismo defensivo. A polaridade organizadora apoia-se nos vínculos e se caracteriza pelo arranjo que cada grupo particular faz sobre os investimentos mútuos e identificações comuns como com uma comunidade de ideais e crenças ou realizações de desejos possíveis. O conceito de contrato narcisista, de Piera Aulagnier (1979), é considerado fundamental por Kaës (2005) para a compreensão da polaridade organizadora do pacto denegativo, já que nela a relação que os pais mantêm com seu bebê carrega consigo o traço da relação do casal com o meio social. Muito antes do surgimento de um novo sujeito, o grupo social que o cerca preinveste o lugar que ele deverá ocupar através de um discurso específico, o discurso do meio (AULAGNIER, 1979, p.147). Assim, além de assegurar para o sujeito a continuidade do investimento libidinal parental, o contrato narcisista inclui o fator social como interveniente em como o filho será investido psiquicamente pelos pais. Dessa maneira Aulagnier (1979) afirma que no investimento narcísico dos pais no bebê encontra-se sempre presente a demanda do grupo pela preservação de valores e leis culturais. Portanto, desde o início das relações mãe-bebê a transmissão de conteúdos relativos aos valores culturais representa um papel importante na constituição subjetiva e na transmissão de códigos e valores do grupo social, o que representa a face positiva do pacto denegativo.

Por outro lado, a face defensiva do pacto denegativo relaciona-se com apagamentos, rejeições, recalcamentos, ou seja, um conjunto de aspectos não significáveis, não transformáveis que surgem através “de zonas de silêncio, criptas, espaços-lixeira” (TRACHTENBERG, 2005, p.159), que mantém o sujeito alheio a sua própria história, elementos facilmente identificáveis no exemplo de Freud, Fliess e Emma.

Os pactos denegativos, as alianças inconscientes sustentam o destino do recalcamento e da repetição e se encontram ainda fortemente relacionados a identificações alienantes (FAIMBERG, 2005) e à transmissão psíquica transgeracional. São formas de funcionamento psíquico nas quais o negativo se faz presente em todas as suas nuances, especialmente através dos efeitos deletérios que as alianças inconscientes provocam na capacidade de pensar.

Através de inúmeros relatos e observações clínicas, Kaës (2005) descreve três modalidades do negativo que estão no princípio do trabalho da psique:

“ A primeira delas se apresenta como a negatividade de obrigação que corresponde à necessidade da psique de produzir o negativo a fim de efetuar o trabalho de ligação; uma negatividade relativa que situa o negativo em relação a um possível; uma negatividade radical que coincide com a categoria do impossível, quer dizer, daquilo que não está no espaço psíquico” (KAËS, 2005, p.98).

Como negatividade de obrigação Kaës (2005) compreende aquilo que acentua a necessidade do aparelho psíquico de efetuar operações de rejeição, negação, recusa, desmentida, renúncia e de apagamento, com o intuito de preservar a organização subjetiva. Essas formas de negatividade recaem sobre uma percepção ou uma representação considerada inaceitável por uma instância do aparelho psíquico e pode ser exemplificada pela necessidade de manutenção do vínculo entre Freud e Fliess, no episódio relativo a Emma Ekenstein (Irma).

Seguindo o raciocínio de Kaës (2005), a segunda modalidade de negativo é a negatividade relativa que lida com os aspectos que “permaneceram em suspenso na constituição dos continentes e dos conteúdos psíquicos” (KAËS, 2005, p.100), sustentando um espaço potencial da realidade psíquica, vinculado aos espaços continentes do pensamento e das transformações:

“ Na negatividade relativa, a positividade se realiza a partir de uma perspectiva organizadora de um projeto ou de uma origem: alguma coisa que foi e não é mais, ou não foi e poderia ser, ou aquilo que tendo sido não foi suficiente, por excesso ou por falta, mas poderia ser de outro modo” (KAËS, 2005, p.100).

Já a negatividade radical descrita por Kaës (2005) designa aquilo que, dentro do espaço psíquico, tem o estatuto do que não está, que não é, deixando-se representar pelas figuras do branco, do desconhecido, do vazio, da ausência e do não-ser. Refere-se então à categoria do impossível, do que não está no espaço psíquico. Em última instância designa algo que não está ligado e que continua sendo não ligado de uma forma irredutível. A ideia de negatividade radical implica o ataque a qualquer tipo de vínculo.

Assim, em Kaës (2005) as diferentes formas do negativo remetem a um trabalho analítico realizado no limite da representação, levando-o a considerar que “o processo de tratamento analítico é concebido como o lugar do trabalho do negativo, que consiste numa elaboração dos limites do representável” (KAËS, 2005, p.124).

Também apontando para a relevância do negativo na discussão sobre a transmissão psíquica, temos ainda as conceitualizações de Haydée Faimberg (1996) sobre a telescopagem de gerações – que designa a transmissão entre gerações de conteúdos psíquicos não elaborados, baseados na força de uma identificação patológica que nomeou de alienante –, fundamental para o desenvolvimento das pesquisas sobre o negativo e o transgeracional. Na telescopagem de gerações ocorre a superposição de gerações uma sobre a outra, sem nenhum espaço psíquico que permita para a criança diferenciação ou desenvolvimento de uma identidade própria, na medida em que fica presa ao narcisismo dos pais (FAIMBERG, 2005, p.11), o que pode ser interpretado como uma consequência de um trabalho do negativo que não ocorreu.

Em suma, o estudo da transgeracionalidade tem sido fundamental para a compreensão de dinâmicas familiares nas quais ocorreram falhas na transmissão psíquica intergeracional, levando à alienação dos sujeitos e a traumas acumulativos. É nesse sentido que a ideia do negativo em psicanálise faz-se extremamente relevante para a investigação da transgeracionalidade no que se refere à transmissão de conteúdos não elaborados que evidenciam variadas formas do negativo em que o não-dito, o não pensado, o rejeitado (Verwerfung) e o recusado (Verleugnung) estão presentes. Nesses casos a ação da pulsão de morte e a função desobjetalizante respondem por mecanismos primários que levam ao desligamento e ao desinvestimento pulsional. Consequentemente, qualquer vínculo positivo com os objetos fica impossibilitado e a transmissão transgeracional de conteúdos psíquicos não transformados ocorre sob a forma negativa, de geração em geração. Para Kopittke (2005), se a vida dos antepassados estiver marcada por traumas, lutos não elaborados, vivências violentas ou vergonhosas, a transmissão dessa herança ficará marcada pelo trabalho do negativo, com predomínio da renegação (Verleugnung) e da rejeição (Verwerfung). São situações em que a matéria psíquica que se transmite às gerações seguintes é aquilo que ficou esvaziado de significação, impossibilitado de ser ligado a representações, permanecendo, portanto, fora da corrente de pensamento.

O trabalho do negativo e a transmissão psíquica transgeracional

A articulação entre o negativo e a transmissão psíquica pode ser evidenciada em inúmeros trabalhos sobre o tema; entretanto, torna-se importante ressaltar que em casos de transmissão psíquica transgeracional a versão estruturante do trabalho do negativo encontra-se prejudicada. No momento em que a transmissão de conteúdos e vivências entre gerações sofre entraves, uma quantidade considerável de material traumático não elaborado, não simbolizado é transmitida em seu estado bruto para a geração seguinte. Nesses casos a transmissão é efetuada via diferentes formas patológicas do negativo, e os processos de expulsão (excorporação), recalcamento e alucinação negativa, fundamentais para a constituição dos limites psíquicos e de uma relação de objeto estável, ficam comprometidos.

Considerando-se que, na transmissão psíquica transgeracional, a transmissão da herança intergeracional não ocorreu, torna-se impossível para a criança a criação de um espaço necessário para que sua subjetividade se constitua, na medida em que seu eu encontra-se, nas palavras de Faimberg (2005), “alienado na subjetividade do outro, quando mecanismos de apropriação e intrusão ocupam o espaço psíquico” (p.10). Para a autora isso significa que a criança está tomada pela história parental nela depositada devido à apropriação indevida de sua própria subjetividade pelos pais (FAIMBERG, 2005, p.15). Assim, o sujeito que emerge da relação fica aprisionado na palavra e na vivência da geração precedente e seu espaço intrassubjetivo se encontra bloqueado pelas vivências traumáticas transmitidas, denotando severos entraves nas relações com o objeto, decorrentes do comprometimento considerável no trabalho do negativo.

Sabemos que para Green “o objeto absolutamente necessário deve se deixar apagar” (GREEN, 1988), permitindo ser esquecido para se transformar em constituinte da estrutura psíquica e também se apresentando como diferente desta, como objeto de atração ou repulsa. Entretanto, quando o objeto não se deixa esquecer, como no caso da transmissão transgeracional, ocorre uma espécie de perversão de sua função e em vez de se mostrar falível, criando um espaço para o desenvolvimento do psíquico, mostra-se permanentemente intrusivo. Assim é impossível para o sujeito representar e pensar, permanecendo alienado na história parental. Na transmissão psíquica transgeracional a vivência traumática não elaborada fica enquistada, encriptada no mundo interno do sujeito, paralisando-o e condenando-o à denegação, à clivagem e à repetição, ou seja, a inscrição de uma presença ausente, impossível nos casos de transmissão transgeracional, não se deu, impedindo a criação de estruturas necessárias para o estabelecimento de distâncias e de diferenças entre gerações. O destino é a repetição e a ocupação permanente do sujeito pelo objeto intrusivo.

Então, a psicanálise contemporânea encontra na clínica do vazio, nas patologias narcisistas e psicossomáticas e nas situações de transmissão psíquica transgeracional impasses clínicos que exigem a consideração de questões que escapam à simbolização e que têm nas diversas formas de negativo sua maior expressão. Devido ao nível de dificuldade que impõem ao trabalho analítico, estimulam a pesquisa e a busca de outras vias de sustentação teórico-clínica.

É aqui que retomamos as considerações de Green (1993, 2002) sobre o manejo clínico dos casos difíceis quando ele ressalta a atenção e a importância do enquadre e da contratransferência. Da mesma forma, Faimberg (2005) aponta nos casos de telescopagem de gerações para a importância do listening to patients listening (FAIMBERG, 2005, p.30), ou seja, para a escuta atenta do analista de como o paciente ouve as suas intervenções, o que está intimamente relacionado a aspectos transferenciais e contratransferenciais na sessão. De fato, em casos nos quais predominam aspectos forcluídos, denegados ou clivados, a escuta do analista torna-se ainda mais fundamental, no sentido de trazer à tona aquilo que permaneceu negativado, permitindo o desvelamento de segredos e situações traumáticas do passado e o início de um trabalho elaborativo, o que fundamentalmente anuncia o início de um processo de luto, de resgate e de construção de vínculos positivados que possibilitem a retomada da pulsão de vida, como função objetalizante.

 

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Endereço para correspondência


Claudia Amorim Garcia
E-mail:clauag@uol.com.br

Carla Maria Pires e Albuquerque Penna
E-mail:carlapenna@ig.com.br

 

Recebido em: 06/05/2010
Revisto em: 03/12/2010
Aceito em: 09/12/2010

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