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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.69 no.2 Rio de Janeiro  2017

 

ARTIGOS

 

Uma análise discursiva da abordagem nacional dos direitos humanos na imprensa escrita brasileira

 

A discourse analysis of human rights in the Brazilian press

 

Un análisis discursivo de abordaje nacional de los derechos humanos en la prensa escrita brasileña

 

 

Cássia Maria RosatoI; Raimundo Cândido de GouveiaII

IDoutoranda. Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Recife. Estado de Pernambuco. Brasil
IIDocente. Universidade Federal da Bahia (UFBA). Salvador. Estado da Bahia. Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo investiga como os Direitos Humanos foram difundidos pela imprensa escrita brasileira, através da análise de editoriais do jornal Folha de São Paulo nos anos de 1987 e 1997. Trata-se de uma pesquisa qualitativa com referencial teórico-metodológico da Psicologia Social Discursiva e ferramentas conceituais de Michel Foucault. Os principais resultados revelam a existência de uma diferença no modo como os Direitos Humanos são compreendidos nos contextos nacionais e internacionais. Nas matérias nacionais, os Direitos Humanos costumam ser associados à segurança pública e à criminalidade. Já no plano internacional, o jornal propaga uma noção mais ampliada de Direitos Humanos, especialmente direitos civis e políticos. A principal diferença refere-se à ênfase dada aos Direitos Humanos como questão prisional na década de 1980, enquanto que, na década de 1990, a polícia é retratada como um importante ator no campo dos Direitos Humanos, sobretudo num viés de violação de direitos.

Palavras-chave: Direitos humanos; Psicologia social discursiva; Análise de discurso; Discurso jornalístico.


ABSTRACT

This paper includes an investigation on how Human Rights have been disseminated by the press in Brazil, through the analysis of editorials from Folha de São Paulo from 1987 to 1997. This is a qualitative research that has Discursive Social Psychology and conceptual tools of Michel Foucault as theoretical references. The main findings reveal the existence of a dichotomy in how Human Rights are understood and disseminated in Brazil. This means that, in national contexts, Human Rights are often associated with public security and crime. In international conjunctures, the researched newspaper propagates and spreads a broader notion of Human Rights, especially civil and political rights. The central difference refers that in the 1980s, Human Rights appears as prison issue and in the 1990s the police are shown as an important actor, predominantly violating rights.

Keywords: Human Rights; Discursive Social Psychology; Discourse Analysis; Journalistic Discourse.


RESUMEN

El presente artículo investiga cómo los Derechos Humanos fueron difundidos en la prensa escrita brasileña, a través del análisis de editoriales del periódico Folha de Sao Paulo en 1987 y 1997. Se trata de una investigación cualitativa con referencial teórico-metodológico de la Psicología Social Discursiva y de herramientas conceptuales de Michel Foucault. Los principales resultados revelan la existencia de una dicotomía en el modo como los Derechos Humanos se comprenden en los contextos nacionales e internacionales. En contextos nacionales, los Derechos Humanos suelen asociarse a la seguridad pública y el crimen. De otro lado, en coyunturas internacionales, el periódico propaga una noción más ampliada de Derechos Humanos, especialmente derechos civiles y políticos. La principal diferencia se refiere al énfasis dado a los Derechos Humanos como cuestión de prisiones, en la década de 1980, mientras que en la década de 1990, la policía surge como un importante actor en el campo de Derechos Humanos, especialmente en un enfoque de violación de derechos.

Palabras clave: Derechos humanos; Psicología Social Discursiva; Análisis del Discurso; Discurso Periodístico.


 

 

Introdução

O presente artigo buscou identificar os sentidos atribuídos aos Direitos Humanos pelo jornal Folha de São Paulo, nos anos de 1987 e 1997, através da análise discursiva de seus editoriais. Sabe-se que os direitos são percebidos e compreendidos de modos diferentes pelas pessoas, havendo uma enorme variedade de significados. Desse modo, este estudo procurou reconhecer os diferentes sentidos sobre os Direitos Humanos, assim como estabelecer uma análise comparativa da linha editorial do jornal, após 10 anos. Com isso, pretende-se tornar mais claras as estratégias utilizadas pela mídia no registro dos acontecimentos relacionados aos Direitos Humanos. Acredita-se que, a partir de um distanciamento histórico, essas estratégias de argumentação tornem-se mais evidentes ao se afastarem do "calor dos acontecimentos" contemporâneos.

Como ponto de partida, tomou-se a concepção contemporânea de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) que está definida na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) desde 1948. Essa visão compreende os Direitos Humanos como sendo universais, indivisíveis e interdependentes (Piovesan, 2004). Isso significa que a condição de pessoa basta para ser titular de direitos, conferindo o caráter de dignidade humana e universalidade de direitos. Além disso, os Direitos Humanos também devem ser entendidos como unidade indivisível e interdependente, na medida em que a violação de um deles implica na violação dos demais direitos.

Após a DUDH, diversos tratados e instrumentos internacionais foram criados pela ONU com o objetivo de orientar os países a combaterem violações e construir uma cultura de respeito aos direitos. O Brasil é signatário da grande maioria deles, porém, sabe-se que esses dispositivos não são suficientes para garantir condições dignas de vida às pessoas. Não apenas a população brasileira, mas uma parcela considerável de pessoas em todo o mundo têm seus direitos violados. De acordo com Pinheiro (2008), cerca de quatro bilhões de pessoas estão excluídas socialmente e não possuem meios de sair da situação de pobreza.

No Brasil, os níveis de desigualdade vivenciados pelos diferentes segmentos populacionais do país não podem ser ignorados. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) revelou que o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país se manteve estável no período de 2005 a 2010, tendo o país um IDH considerado elevado. Mas é importante destacar como o grau de desigualdade histórica influencia o desenvolvimento humano. Um estudo realizado na década de 1990 (PNUD, 2010) identificou a resistência de elites brasileiras em ampliar oportunidades educacionais, tendo em vista possíveis dificuldades de gestão de trabalhadores mais instruídos. O documento conclui que "esse tipo de pensamento trava o desenvolvimento humano, conduzindo a um menor investimento em capital humano e bens públicos, uma menor redistribuição e uma maior instabilidade política".

Diante desse quadro concreto de desigualdades e violações, é preciso considerar como as pessoas percebem seus direitos. Tomando como referência o lugar da imprensa nas sociedades contemporâneas, é possível reconhecer que, além da função informativa, a mídia também possui uma função mediadora. Martins (2005) afirma que não se trata apenas da influência que a imprensa exerce junto à opinião pública, mas o fato da mídia se constituir como espaço de atuação política nos dias atuais. Ele diz que é possível conceber a mídia como "um espaço de disputa de sentidos sobre a realidade social complexa" (p. 132). Nesse sentido, os jornais não são apenas meios de comunicação, mas instrumentos de formação de subjetividades (Coimbra, 2001). Eles contribuem na definição e formatação de modos de ser como se verifica a seguir:

Assim, pela produção e circulação de signos, imagens, subjetividades, "pelo recalcamento e negação de certas realidades", pela sugestão e, portanto, pela criação de um real, de realidades - que passam a ser as que existem objetivamente - os meios de comunicação de massa "simula(m) padrões consensuais de conduta", produzem poderosos e eficientes processos de subjetivação; forjam existências, vidas, bandidos e mocinhos, heróis e vilões (Coimbra, 2001, p. 37).

Portanto, mais do que lutar por medidas de sansão, a defesa de direitos depende muito de ações educativas voltadas para uma cultura de respeito mútuo entre as pessoas e entre categorias sociais (Zenaide, 2005). Desse modo, a imprensa pode exercer um papel de grande importância na consolidação de uma cultura mais igualitária, tendo em vista que a mídia não apenas retrata uma realidade de desigualdade de direitos, mas pode contribuir para consolidá-la ou para mudá-la.

Mendonça (2015) analisa a mídia no Brasil hoje, relacionando-a com diferentes concepções de Direitos Humanos. Para o autor, tais visões de direitos podem ser resumidas em duas grandes correntes: uma delas é denominada de hegemônica, predominando uma perspectiva essencialista e convencional na qual os direitos estariam garantidos pela DUDH, cabendo às sociedades sua devida implementação; já uma segunda concepção de direitos apresenta uma compreensão histórica, crítica e que não reduz os direitos ao que já está garantido em leis internacionais. Ao investigar como tais concepções se fazem presentes na mídia brasileira, o autor infere que prevalece a corrente hegemônica em que "esses direitos seriam evidentemente universais, sem vínculo histórico com uma posição liberal que se tornou hegemônica dentro do desenvolvimento da democracia moderna ocidental na qual a própria mídia se localiza" (pp. 235-236). Esse contexto tende a limitar as diferentes lutas por direitos que existem, estando a mídia restrita à manutenção de uma visão convencional e neutra de que os Direitos Humanos estão dados e garantidos pela DUDH.

No campo da Psicologia, a relação com os Direitos Humanos não é diferente. Significa dizer que coexistem distintas compreensões de direitos que variam desde uma perspectiva mais tradicional até uma visão mais crítica, como também ocorre com diversas matrizes epistemológicas psicológicas. Maia (2014) apresenta três propostas para enfrentar tais ambiguidades:

a) analisar histórica e filosoficamente os Direitos Humanos durante a formação do psicólogo, ressaltando suas contradições e seu potencial prático nas lutas sociais; b) desenvolver uma aguda sensibilidade para as contradições do processo social de individuação, e ao enfraquecimento das capacidades críticas que ocorre atualmente; c) analisar as atuações dos psicólogos em que os Direitos Humanos são envolvidos como ferramenta de luta ou resistência contra situações de barbárie (p. 140).

Dessa forma, o modo como os Direitos Humanos são difundidos pela imprensa brasileira precisam ser analisados a partir de uma perspectiva crítica tanto da Psicologia como do próprio campo dos Direitos Humanos.

O Construcionismo Social e a Psicologia Social Discursiva

Do ponto de vista teórico-metodológico, o presente trabalho se baseia no Construcionismo Social, superando uma visão representacionista e entendendo que não existe uma realidade a priori. Existem, sim, realidades produzidas e construídas coletivamente, através de sentidos que são compartilhados. Trata-se de uma proposta crítica em relação aos processos de naturalização e essencialização dos eventos.

O Construcionismo desconstrói a dicotomia sujeito-objeto, já que a própria ideia de sujeito e objeto não passaria de uma construção social. Assim, a questão da linguagem é relevante nessa abordagem, pois se entende que as visões de mundo são modos de construção social, uma vez que "esta construção da realidade através da utilização de determinadas descrições e explicações se dá a partir das condições sócio-históricas concretas dos sistemas de significação" (Rasera, & Japur, 2005, pp. 22-23).

Para a análise das matérias, foram utilizadas ferramentas da Psicologia Social Discursiva e do filósofo Michel Foucault. Para Garay, Iñiguez e Martínez (2005), a Psicologia Social Discursiva não se propõe a ser uma nova linguística, pois entendem que os(as) psicólogos(as) discursivos(as) não passam de psicólogos(as) sociais que buscam compreender as interações, considerando a realidade social como um "texto".

Tendo em vista a polissemia do conceito de discurso e sua utilização em várias áreas do conhecimento, é importante situar teoricamente de que noção de discurso se está tratando aqui. Os autores supracitados assumem o discurso como "um conjunto de práticas linguísticas que mantém e promovem certas relações sociais, [...] onde a análise de discurso consiste em estudar como essas práticas atuam no presente, mantendo e promovendo essas relações" (Garay et al., 2005, p. 110).

Desse ponto de vista, os conceitos de construção e variabilidade são fundamentais na compreensão de um determinado discurso enquanto prática social (Wetherell, & Potter, 1996). Uma de suas principais contribuições é a noção de contexto argumentativo: para se compreender um discurso, é necessário considerar "as posições que estão sendo criticadas ou contra as quais uma justificação está sendo elaborada. Sem conhecer essas contraposições o significado argumentativo estará perdido" (Billig, 2008, p. 156). Assim, torna-se fundamental reconhecer as posições presentes no contexto, o que está sendo justificado e o que está sendo criticado. Sem esse fio argumentativo, não é possível uma visão integral daquilo que se está analisando.

Considerando a interdisciplinaridade presente no Construcionismo Social, recorre-se também às contribuições de Foucault; os conceitos usados neste estudo são noções retiradas, principalmente, da fase em que o filósofo procede a uma conceitualização do que seria uma arqueologia do saber.

Algumas ferramentas foucaultianas

Para Foucault, os discursos não são espontâneos e casuísticos, ao contrário, eles necessariamente possuem uma ordem própria, um controle e uma organização que os conforma. Juntamente com esta ideia de ordem discursiva, há também a noção de regularidade discursiva como elemento de relevância para qualquer análise. Esse conceito se refere aos padrões vigentes que se mantêm e se repetem; são os enunciados e discursos sempre retomados para se falar de determinados assuntos, por se tratarem de referências primordiais. Em suas palavras, são "os discursos que estão na origem de certo número de atos novos de fala que os retomam, os transformam ou falam deles" (Foucault, 1970/2004, p. 22).

Os textos jurídicos se enquadram nessa tipologia, podendo-se tomar a DUDH como exemplo de referência em Direitos Humanos. A constante menção à Declaração, ao se tratar de direitos, é uma regularidade discursiva. No entanto, na época de sua criação, em 1948, deve ser compreendida como um tipo de acontecimento que irrompe e desvirtua as continuidades. Além disso, a análise discursiva de Foucault trabalha com o dito, com o que está expressamente colocado, principalmente o porquê de tal enunciado ter aparecido em determinado momento e lugar, e não em outros.

O filósofo afirma que o enunciado: "não é em si mesmo uma unidade, mas sim uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço" (Foucault, 1969/2008, p. 98). Para entender um enunciado, é preciso considerar um conjunto de referências, conhecidas como "leis de possibilidade" e "regras de existência". Ele diz ainda: "não há enunciado em geral, enunciado livre, neutro e independente; mas sempre um enunciado fazendo parte de uma série ou de um conjunto, desempenhando um papel no meio dos outros, neles se apoiando e deles se distinguindo" (Foucault, 1969/2008, pp. 111-112). A partir destes conceitos, é possível inferir o caráter dialógico do pensamento foucaultiano, já que os enunciados estão sempre dialogando com outros e integrando um campo enunciativo maior. O enunciado se consolida somente se certas "leis de possibilidade" e "regras de existência" estiverem presentes. Assim, um enunciado possui um conjunto de condições que permitem sua "emergência" em um dado contexto. Nos momentos em que isso é atendido, um enunciado pode ser materializado, no tempo e no espaço, através de uma posição enunciativa. É também a partir dessa lógica que se identifica a regularidade e a dispersão desses elementos discursivos.

Para Foucault (1969/2008), o discurso tem um caráter de unidade e descontinuidade. Ele detém limites, cortes e transformações, além de possuir determinadas regras de formação; basicamente são formados pela dispersão e pela regularidade de seus objetos, conceitos e enunciados. Portanto, a tarefa de um analista discursivo residiria em estudar como isso aparece ao longo de um determinado período de tempo e como os elementos de um discurso variam e se dispersam, de acordo com essas regras de formação.

Os referenciais foucaultianos contribuem na compreensão do contexto maior que circunda esse fenômeno, ou seja, como um discurso "emerge" e se dispersa ao longo de determinados períodos históricos, assim como ganha novos contornos. Já os conceitos da Psicologia Social Discursiva instrumentalizam a análise discursiva do material pesquisado. A partir da articulação dessas duas visões teóricas, foram estabelecidos os procedimentos metodológicos utilizados neste estudo.

 

Material e método

O universo investigado nesta pesquisa foi a produção editorial da Folha de São Paulo, a qual, até o ano de 2009, possuía a liderança como jornal de maior circulação no Brasil, posição mantida hegemonicamente desde 1986. Segundo o Índice Verificador de Circulação (IVC), publicado pela Associação Nacional de Jornais (2011), a Folha passou para segundo lugar ao manter média diária de 294.498 exemplares.

A decisão de analisar a linha editorial da Folha baseia-se no fato de que, nesse espaço, o jornal revela quais são seus interesses. O editorial expressa o pensamento do jornal e tem autoria institucional. Isso significa que a linha editorial de um periódico indica explicitamente qual é o discurso oficial do jornal e qual o seu posicionamento diante de determinado assunto.

Foi estipulado o ano de 1987, sobretudo, em função do momento de redemocratização que estava acontecendo no Brasil, com o término da ditadura. Novos governos estavam sendo eleitos democraticamente e isso representava um novo momento político, razão pela qual o presente trabalho se debruçou sobre esse período. No estado de São Paulo, terminava a gestão do governo de Franco Montoro, que havia sido eleito por voto direto após décadas de repressão de direitos civis e políticos.

Com o objetivo de fazer um estudo comparativo, também foram mapeados todos os editoriais da Folha de 1997, a fim de vislumbrar dissonâncias, rupturas e novas produções discursivas sobre Direitos Humanos no mesmo periódico. A ideia foi identificar os novos contornos que o conceito de Direitos Humanos ganhou ao longo desses 10 anos; ao mesmo tempo, reconhecer como esse tema foi abordado pela imprensa escrita, considerando os progressos legislativos, como por exemplo, a Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990, entre outros.

Assim, foram identificados todos os editoriais da Folha que continham a expressão "Direitos Humanos" nos dois períodos investigados. Isso resultou em dez editoriais ao longo do ano de 1987 e nove editoriais em 1997. Porém, já que esta pesquisa buscou compreender como os direitos foram abordados em temas nacionais, foram analisados apenas os editoriais relacionados a notícias brasileiras. Isso significou a análise de 14 editoriais, sendo cinco relativos ao ano de 1987, nove do ano de 1997 e uma matéria do caderno Exterior. Foram eliminados cinco editoriais de cunho internacional de 1987. O Quadro 1, logo abaixo, apresenta o título e a data de cada um desses textos, nos dois anos pesquisados.

 

 

Resultados

Primeiramente, é possível dizer que o jornal manteve quase a mesma média de editoriais sobre Direitos Humanos nos dois anos investigados, conforme números já mencionados antes. No entanto, no ano de 1997, houve um aumento significativo de assuntos nacionais em relação a 1987 porque o número de editoriais quase duplicou: apenas cinco em 1987, contra nove em 1997. Vale ressaltar também que todos os textos de 1997, que focavam assuntos nacionais, tinham como eixo de discussão a corporação policial.

É importante destacar que a Folha publicou várias matérias de primeira página sobre Direitos Humanos em 1987, no entanto, a grande maioria se referia a acontecimentos internacionais. Isto pode estar relacionado ao contexto geopolítico internacional durante a Guerra Fria. Esta conjuntura teve forte influência na época, repercutindo também nos meios de comunicação. Assim, os Direitos Humanos, no plano internacional, na Folha de 1987, "emergiram" enquanto violações de direitos civis e políticos, em função das várias ditaduras que ainda vigoravam e também da polarização Capitalismo versus Socialismo. Já no fim da década de 1990, o panorama mundial sofreu alterações importantes e, com o término da Guerra Fria, o número de notícias internacionais caiu bruscamente no jornal. Das 28 capas em que o tema foi abordado em 1987, apenas quatro abordavam questões nacionais. Esse dado indica qual era o status dos Direitos Humanos em nível nacional e que tipo de informação o periódico decidiu divulgar.

Segundo Hernandes (2006), as capas da Folha revelam que o espaço físico concedido pelo jornal foi significativamente maior para os acontecimentos internacionais. Essa discrepância pode indicar que os Direitos Humanos de outros países foram mais relevantes que os Direitos Humanos nacionais nesse período. Entre as únicas quatro capas que a Folha dedicou aos Direitos Humanos no país, duas delas abordavam rebeliões em presídios. Esse dado fornece os primeiros indícios acerca dos diferentes discursos sobre Direitos Humanos no mesmo jornal.

Essa constatação já sinaliza para uma dicotomia na visão dos Direitos Humanos no Brasil, tendo em vista que, na esfera internacional, em 1987, os Direitos Humanos foram mais divulgados, como se pode perceber nas 24 capas da Folha, em detrimento das únicas quatro capas nacionais que o jornal dedicou ao tema. Além disso, das únicas quatro capas nacionais, duas delas se referiram a uma rebelião ocorrida em um presídio de São Paulo. Escolher tal temática como assunto de Direitos Humanos em metade das capas nacionais indica que tipo de direito a Folha decidiu enfatizar, silenciando sobre outras questões referentes ao tema. Acredita-se que o jornal explicita aqui qual o lugar dos Direitos Humanos no Brasil. Vale ressaltar que nenhuma das capas internacionais, no ano de 1987, focou a questão prisional; os assuntos abordados diziam respeito a violações de direitos civis e políticos cometidas principalmente por regimes ditatoriais.

Já em 1997, a Folha decidiu estampar sete de suas capas com os Direitos Humanos. Desse universo, cinco foram sobre assuntos nacionais e somente duas capas tiveram enfoque internacional, alterando o cenário de uma década atrás. Em 1997, tortura, cidadania e operações policiais foram a tônica das capas nacionais do jornal pesquisado.

Um ponto que também merece ser comentado, ainda em relação às manchetes internacionais de 1987, refere-se às capas direcionadas para o trabalho da Anistia Internacional. Fundada em 1961, a organização Anistia Internacional caracteriza-se hoje como a maior entidade de defesa dos Direitos Humanos no mundo, com mais de dois milhões de colaboradores distribuídos em mais de 150 países. O jornal dedicou à entidade, em média, mensalmente em 1987, uma coluna que se chamava "Presos de consciência", na qual o mesmo cabeçalho era publicado, conforme se verifica a seguir:

A Folha prossegue hoje, em apoio à campanha desenvolvida pela Anistia Internacional em favor da libertação dos presos de consciência em todo o mundo, a publicação mensal dos casos divulgados no boletim da organização, sediada em Londres. Essas são histórias de pessoas presas por causa de suas convicções políticas ou religiosas, sua cor, sexo, origem étnica ou língua. Nenhuma delas usou ou defendeu a violência. Sua permanência na prisão constitui uma violação à Declaração dos Direitos Humanos pela Organização das Nações Unidas (Folha de São Paulo, 04/01/87, p. A8).

Logo após esse preâmbulo, o texto referido explicava sobre o funcionamento dessa campanha e orientava quem quisesse participar. Em seguida, eram apresentados casos de pessoas que estavam presas em seus países e informações da detenção. O discurso usado nessas matérias procurava assegurar que o/a leitor/a não tivesse como duvidar de que essas pessoas deveriam ter seus direitos assegurados. Entretanto, ao virar a página do jornal, sair das páginas internacionais e ler uma notícia nacional que trata de Comissões de Direitos Humanos que denunciam tortura em presídios, o/a leitor/a era convidado/a a pensar se realmente haveria uma disjunção entre os Direitos Humanos no plano internacional e na realidade brasileira.

Isso remete à ideia de construção discursiva de Potter (1998). Para o autor, a construção discursiva está orientada para a ação, ou seja, os discursos têm consequências práticas e "constroem" a realidade à qual se referem. Na notícia analisada, é possível reconhecer a eficácia desse tipo de construção, uma vez que parte da população brasileira efetivamente considera essa dicotomia e concorda que os que aqui defendem direitos não o fazem "corretamente". A esses respeito, Cano (2010) analisou dados colhidos pela Secretaria de Direitos Humanos em várias capitais brasileiras sobre o que significam os Direitos Humanos 60 anos após a promulgação da DUDH e identificou grupos contrários aos Direitos Humanos. Esse trabalho evidenciou a existência de pessoas que relativizam o conceito de universalidade, inclusive defendendo a violação de direitos para determinados segmentos populacionais.

Análise dos editoriais relativos a 1987

Em 1987, a Folha manifestou sua opinião em dez editoriais que tinham os Direitos Humanos em seu conteúdo, sendo cinco abordando questões nacionais e cinco sobre eventos internacionais que não foram analisados no estudo em tela.

O primeiro analisado recebeu o título de "Ano Perdido". O texto fez uma avaliação da conjuntura política do país em relação ao ano de 1986. Dentre as várias críticas dirigidas ao governo do então Presidente Sarney, os Direitos Humanos também entraram na lista de apreciações do jornal, como se pode observar abaixo:

Há como que um grande complexo de culpa nacional na questão dos direitos humanos. Desrespeitados ao extremo, num quadro de selvageria do qual participam criminosos comuns e policiais desqualificados para a tarefa, ressurge sempre a necessidade de algumas medidas básicas de segurança pública e do presidiário (02/01/87, p. A2).

Já o editorial "Crise na Justiça" tem como mote principal a ocorrência de um linchamento, para então tecer críticas à Justiça brasileira. A coluna informa que há mais de 200 vagas para juízes no estado de São Paulo que não conseguem ser preenchidas por falta de profissionais aptos/as. Em seguida, o editorial discute a questão penitenciária e o enunciado Direitos Humanos aparece. Entretanto, ele é mencionado apenas em uma única frase em todo o texto, quando diz existir um "desrespeito cotidiano aos direitos humanos mais elementares dos detentos".

No editorial "Nota cinco", a Folha de São Paulo faz um balanço do governo estadual Montoro e assim inicia sua redação: "Encerrando-se com um nível de aprovação popular bastante discreto - para não dizer medíocre -, o governo Montoro não se presta a avaliações peremptórias e cabais". A redação prossegue a um exame crítico das várias áreas do governo até que os Direitos Humanos são finalmente mencionados:

Exemplo mais característico desta ausência de autoridade, e símbolo mais doloroso de seu fracasso, a política de direitos humanos que o governador quis implantar na área de segurança terminou com o massacre impune de Presidente Venceslau. Montoro não soube apresentar uma imagem de determinação no combate ao crime; acuado, não sustentou como devia a luta contra a tortura e a corrupção policial (14/03/87, p. A2).

Em relação ao editorial "A exceção Brossard" (22/05/87, p. A2), o jornal lamenta a conduta apresentada pelo então ministro da Justiça frente aos questionamentos feitos pela Anistia Internacional de que o Brasil estava violando direitos de posseiros no Estado do Pará através de tortura policial. Ele afirmou que não receberia mais nenhum membro da organização por considerá-la "inidônea". Em notícia publicada pela mesma Folha no dia anterior a este editorial, o ministro disse ter recebido mais de trezentas cartas vindas do país e do exterior condenando a polícia antes do julgamento, quando então mencionou: "Não posso permitir que o Brasil seja tratado como réu internacional" (21/05/87, Política, p. A7). Assim, o editorial avalia essa postura do ministro, afirmando: "Para o ministro Brossard, a entidade reconhecidamente imparcial e avessa a concessões políticas no trabalho de denunciar e combater a violação de direitos humanos em todo o mundo, seria simplesmente 'inidônea'".

Já o editorial "Chega de versões", último do ano de 1987 a ser analisado para este trabalho, critica o governo do Estado de São Paulo por não ter conseguido controlar uma rebelião que culminou na morte de mais de uma centena de pessoas. Eis como o jornal se posiciona, em relação ao acontecimento:

É nesse contexto que as entidades de proteção aos direitos humanos, baseando-se exclusivamente na versão dos presos, têm procurado convencer a sociedade de que teriam ocorrido retaliações e violência indiscriminada após o controle da rebelião da Penitenciária do Estado na última semana (07/08/87, p. A2).

Análise dos editoriais relativos a 1997

No ano de 1997, a Folha publicou apenas sete capas que tinham os Direitos Humanos em seu conteúdo; o que representa um quantitativo muito inferior a 1987. Desse total, cinco capas são de fatos nacionais e apenas duas são referentes a outros países. É importante sinalizar o aumento de editoriais abordando os Direitos Humanos dentro do contexto nacional. O jornal, em 1997, publicou sua opinião sobre Direitos Humanos em nove editoriais, todos sobre temas locais, tendo a polícia como eixo central de debate.

No primeiro editorial analisado, que teve o título "Selva Policial", o jornal menciona os crimes cometidos por policiais militares na cidade paulista de Diadema para discutir a questão da impunidade dentro da corporação. Resgatou o episódio da chacina do Carandiru e comentou que nos processos militares "mesmo se for comprovada a morte, o PM pode continuar sob a proteção de seus pares se for aceito o argumento de que não houve a intenção de matar" (02/04/97, p. 2). Os Direitos Humanos entram, nesse contexto, como algo que a polícia tenta respeitar, mas que, no entanto, está "muito longe de satisfazer a opinião pública civilizada". A coluna é finalizada com a seguinte frase: "Não só os criminosos, mas até os cidadãos honestos continuam, ao arrepio da lei, sujeitos ao arbítrio policial".

Já o editorial "A reboque da tragédia" anuncia que o mesmo episódio de Diadema serviu de mote para que o projeto de lei que tipifica a tortura como crime fosse finalmente sancionado pelo Senado. A constatação do jornal é de que "as ações oficiais na área social e de direitos humanos parecem assim caminhar, infelizmente, na esteira das desgraças" (07/04/97, p. 2).

No que tange ao texto "Energia com a polícia", o jornal cobra mais empenho das autoridades pelo ocorrido em Diadema, conforme extrato abaixo:

O comprometimento do atual governo com uma política de direitos humanos e a preocupação manifesta de Covas em civilizar os métodos da PM são louváveis, mas correm o risco de cair no vazio retórico das "boas intenções", caso não se traduzam, diante do episódio de Diadema, em ações efetivas. Pesquisa do Datafolha revela que 23% dos paulistanos temem mais policiais que bandidos e 33% os consideram igualmente perigosos (08/04/97, p. 2).

Em relação ao editorial "Diadema, a justiça anda", o jornal aborda a decisão de mandar os policiais militares responsáveis pelos crimes para o Tribunal do Júri. E diz: "É animador que, num país em que as medidas práticas contra a violação de direitos humanos vão da timidez à inoperância, policiais que, segundo apontam as circunstâncias, agiram de forma delituosa sejam julgados rapidamente" (02/07/97, p. 2).

No que se refere ao texto "A última da polícia", o jornal relata mais um episódio em que policiais militares espancaram duas pessoas em um ponto de ônibus:

Basta com o lugar-comum irritante do "caso isolado" para explicar esses episódios. A PM, e não só a de São Paulo, tal como hoje existe, é uma instituição incompatível com uma sociedade civilizada. O próprio secretário nacional dos Direitos Humanos, José Gregori, o diz com todas as letras: as PMs são "violentas", "ineficazes", desrespeitam as "normas mais elementares dos direitos humanos". De resto, são uma "caixa-preta": não dão satisfações à sociedade sobre sua organização interna (11/07/97, p. 2).

No editorial seguinte, chamado "Por uma só polícia", a questão policial é retomada, dando continuidade ao assunto anterior:

As sugestões para a reestruturação das polícias elaboradas pelo secretário nacional de Direitos Humanos, José Gregori, procuram corrigir um problema estrutural que se tornou mais agudo nas últimas semanas, mas estão longe de constituir uma proposta de reformulação eficaz do sistema de segurança pública (31/07/97, p. 2).

O editorial que veio a seguir recebeu o título de "Mudar para não mudar" e abordou o mesmo assunto, ou seja, o trabalho desenvolvido pela Secretaria de Direitos Humanos. De modo mais específico, mencionou o grupo de trabalho que estava com a atribuição de elaborar mudanças junto à corporação policial. De acordo com a Folha, tal grupo apresentou "propostas que, em sua maioria, repetem pontos do genérico programa do governo de FHC ou dependem da concordância dos governadores para serem implementadas" (10/08/97, p. 2).

Já no editorial "Crime e leviandade", o foco do texto está no projeto de lei que atenua a pena de crimes hediondos. Os Direitos Humanos fazem parte desse discurso:

A crescente tensão em toda a sociedade tende a criar predisposições tanto a propostas incivilizadas e demagógicas, como a pena de morte, quanto a posturas unilaterais de alguns que, na luta pelo respeito aos direitos humanos, parecem considerar a polícia unicamente como um agente da opressão (13/09/97, p. 2).

No último editorial analisado de 1997, "Mudança na cúpula da Polícia Militar", a Folha critica o governo no que diz respeito à violência policial: "A diminuição da violência policial era mais do que esperada em um governo com figuras de fato comprometidas com a defesa dos direitos humanos, tais como Covas e outros membros de sua equipe. Infelizmente, cumpre dizer que se esperava ainda mais" (17/09/97, p. 2).

 

Discussão

Os direitos humanos em 1987

No primeiro editorial "Ano Perdido", é feito um balanço geral sobre a política nacional do ano anterior e os Direitos Humanos aparecem nessa análise. O jornal associa os Direitos Humanos à criminalidade e à violência, apontando-os como "desrespeitados ao extremo". O enunciado é reduzido à "selvageria" que envolve criminosos e policiais, exigindo também "algumas medidas básicas de segurança pública e de o presidiário". Com essa construção discursiva, o(a) leitor(a) é levado(a) crer que os Direitos Humanos se resumem à questão do crime e da violência. Outros enunciados não aparecem, "apagando" outras pautas relacionadas a Direitos Humanos. Nesse sentido, é interessante mencionar a reflexão de Hernandes (2006): "O leitor, o ouvinte, o telespectador ou o internauta não devem desconfiar de que certos aspectos da realidade são silenciados na triagem ideológica para que a 'densidade de outros' seja ressaltada" (p. 28). Isso evidencia o interesse do jornal em associar os Direitos Humanos ao contexto da criminalidade no cenário brasileiro.

Já no segundo editorial "Crise na Justiça", os Direitos Humanos estão explicitamente localizados na expressão "desrespeito cotidiano aos direitos humanos mais elementares dos detentos". Outra vez, desde uma noção discursiva, o modo como os Direitos Humanos "emergem" é na perspectiva criminal, de modo mais específico na questão prisional.

O terceiro editorial "Nota cinco", já no título anuncia a nota atribuída ao governo Montoro em São Paulo, expressando uma avaliação aquém da esperada. Isso fica evidenciado com a adjetivação do texto ao dizer que a aprovação popular do governo foi "bastante discreta - para não dizer medíocre". O editorial endurece sua opinião com uma linha argumentativa de que "símbolo mais doloroso de seu fracasso, a política de direitos humanos [...] terminou com o massacre impune de Presidente Venceslau", referindo-se a um presídio do interior de São Paulo. O jornal conclui o editorial com uma ideia de Direitos Humanos novamente associada à criminalidade, sobretudo pela via prisional, mantendo uma mesma linha discursiva.

No editorial "A exceção Brossard", cabe observar que a Folha procurou, também no título, situar o então ministro da Justiça em uma condição de excepcionalidade, ou seja, provavelmente o único que avalia a Anistia Internacional como "inidônea", isolando-o nessa posição. Ao mesmo tempo, também é possível constatar que essa categoria de Direitos Humanos, ou seja, os direitos defendidos pela Anistia Internacional, é explicitamente apoiada pelo jornal, reforçando a ideia já sinalizada anteriormente de que no Brasil existe uma dicotomia nesse assunto. Desse modo, considerando o contexto argumentativo da Folha, os Direitos Humanos, no plano internacional, são plenamente defensáveis, já os Direitos Humanos defendidos no país merecem questionamentos.

Sobre o último editorial analisado de 1987, "Chega de versões", que aborda uma rebelião ocorrida em um presídio em São Paulo, vale destacar que o motim foi o assunto de duas entre as quatro únicas capas da Folha que abordaram temas nacionais em 1987. Nesse editorial, os Direitos Humanos "emergem" mais uma vez na conjuntura prisional, através de organizações que estariam questionando a versão da polícia sobre os fatos. A frase "as entidades de proteção aos direitos humanos baseando-se exclusivamente na versão dos presos, têm procurado convencer a sociedade" é precisa o suficiente para implantar dúvidas, pois sugere que as entidades estão considerando só os depoimentos dos apenados e não um conjunto de fatores. Ao mesmo tempo, resume esse trabalho a uma tarefa de "convencer a sociedade" reduzindo-o à questão retórica. Nessa narrativa, as entidades são questionadas em sua legitimidade. Percebe-se aqui um tipo de construção linguística, já mencionada por Potter (1998), que elege uma determinada forma de contar algo.

Outro elemento diz respeito à lógica jornalística, já citada antes com Coimbra (2001), de que há uma tendência dos jornais buscarem uma visão binária e maniqueísta, simplificando a realidade. A maneira como os fatos são contados incita o(a) leitor(a) a considerar que existem apenas duas versões: a da polícia e a dos presos, ou melhor dizendo, teoricamente a do bom e a do mau sujeito. A complexidade da realidade social deixa de existir, pois não há espaço para construções discursivas com outros matizes.

Pode-se observar que o discurso da Folha, durante 1987, não apresentou variabilidade significativa. Sua linha editorial buscou associar os Direitos Humanos à criminalidade, com ênfase na questão prisional, ao mesmo tempo em que manteve uma visão mais ampliada para os Direitos Humanos no plano internacional. A única variabilidade foi instituir essa diferença entre os Direitos Humanos no país e fora dele, criando status e categorias de direitos distintas.

Passados dez anos, foram identificadas algumas mudanças relativas aos enunciados envolvendo Direitos Humanos na linha editorial da Folha, em comparação a 1987, conforme se verá a seguir.

Os direitos humanos em 1997

No primeiro editorial de 1997, intitulado "Selva policial", o texto aborda a violência policial e é encerrado com a ideia de uma polícia corrupta e violadora de direitos. Isso demonstra o interesse da Folha em destacar os problemas da corporação policial. A última frase do editorial é enfática: "Não só os criminosos, mas até os cidadãos honestos continuam, ao arrepio da lei, sujeitos ao arbítrio policial". O jornal apresenta um contexto de descontrole já no título, ao mesmo tempo em que se encerra o texto reforçando a opinião de que todos estão sujeitos a arbitrariedades policiais, não sendo possível garantir direitos.

Já no editorial "A reboque da tragédia", ainda que o tema central esteja ligado à violência policial, nesse momento, o enunciado Direitos Humanos aproxima-se das ações na área social, evidenciando uma variabilidade discursiva sutil, e nem por isso menos importante.

Em "Energia com a polícia", o sentido dado aos Direitos Humanos segue o editorial anterior, ou seja, de uma visão que acompanha a política do governo em questão, mas sempre situado no campo das questões de segurança pública, especialmente no segmento policial. Os dados da pesquisa mencionada buscam reafirmar a corrupção e a violência policial, inclusive dando fidedignidade científica à ideia.

No editorial "Diadema, a justiça anda", o jornal, pela primeira vez, tece comentários elogiosos, comemorando a decisão de responsabilizar criminalmente os policiais no caso de Diadema, porém, ainda assim não poupa críticas ao Poder Executivo de São Paulo que não teria encaminhado uma reforma na polícia.

Entretanto, em seguida, o jornal "eleva seu tom de voz tradicional" no editorial "A última da polícia", que analisa mais um episódio de violência policial. A Folha afirma: "Basta com o lugar-comum irritante do 'caso isolado' para explicar esses episódios. A PM, e não só a de São Paulo, tal como hoje existe, é uma instituição incompatível com uma sociedade civilizada". O jornal adota uma postura intolerante frente às arbitrariedades policiais e tenta convencer o/a leitor/a da inadequação do modo de ação da Policial Militar no Brasil. Na segunda parte do extrato mencionado, o jornal introduz um novo ator nesse cenário: a Secretaria Nacional de Direitos Humanos. É importante ressaltar que, em abril de 1997, tal Secretaria foi criada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. O fato foi noticiado pela Folha, porém não recebeu nenhum destaque, já que o tema não foi matéria de capa, tampouco de nenhum editorial do jornal. Esse silêncio remete à ideia de que a Folha não entendeu o evento como importante o suficiente para ganhar evidência. No entanto, as questões políticas sobre quem assumiria a pasta foram divulgadas, conforme matéria intitulada "FHC confirma Gregori e constrange Covas" (07/04/97, São Paulo, p. 11).

Desse modo, a criação de uma Secretaria Nacional de Direitos Humanos, apesar de demonstrar a importância conferida por parte do Governo Federal ao pautar uma política nacional de Direitos Humanos, não trouxe repercussões à linha editorial da Folha. O jornal não se manifestou sobre o assunto nem apresentou interesse nessa nova visão, mantendo inalterado seu padrão argumentativo de correlacionar Direitos Humanos aos crimes comuns e à violência. Todavia, quando esse novo órgão responsável pela política nacional de Direitos Humanos, através de seu então Secretário, José Gregori, manifestou-se sobre a corporação policial, isso se tornou assunto editorial do periódico.

Tal situação repete-se no editorial "Por uma só polícia", no qual as ações da Secretaria Nacional de Direitos Humanos interessam ao jornal, já que abordam o trabalho das polícias, ainda que o tom argumentativo do editorial seja numa perspectiva crítica.

O editorial "Mudar para não mudar" segue a mesma linha de raciocínio do editorial anterior, no qual o jornal procurou enfatizar fragilidades na proposta do Governo Federal. A Folha utiliza uma argumentação que critica as sugestões de reestruturação das polícias, passo a passo, a tal ponto que o(a) leitor(a) é convidado(a) a concordar com a ineficácia da proposta. O enunciado Direitos Humanos "emerge" no contexto da Secretaria de Direitos Humanos. Dessa forma, é possível perceber que a ideia de Direitos Humanos, ao adentrar a esfera política, é neutralizada, no sentido de não mais carregar a conotação pejorativa que antes vinha colada à sua imagem. Nesse novo contexto argumentativo, os Direitos Humanos tornam-se mais um instrumento no jogo de interesses políticos, assumindo um novo lugar enunciativo.

No editorial "Crime e leviandade", o jornal analisa um projeto de lei que pretende atenuar as penas para crimes hediondos. Os Direitos Humanos surgem de modo pontual, mas preciso, circunscrevendo uma certa ideia e/ou posição de leviandade. Nesse sentido, os Direitos Humanos acompanham as "posturas unilaterais de alguns que, na luta pelo respeito aos direitos humanos, parecem considerar a polícia unicamente como um agente da opressão". Aqui, o jornal busca reafirmar uma contraposição entre os Direitos Humanos e a corporação policial, invalidando a possibilidade de uma polícia que atue em consonância com os Direitos Humanos.

No último editorial analisado de 1997, "Mudança na cúpula da Polícia Militar", o jornal retoma críticas já feitas ao governo pela sua conduta no campo da segurança pública, associando novamente os Direitos Humanos à perspectiva de crime, violência e questões policiais.

Assim, novos assuntos que poderiam ter sido pauta dos Direitos Humanos, não foram incorporados pela Folha que optou por manter a mesma tendência identificada na década de 1980. A dicotomia entre os Direitos Humanos no plano internacional e no plano nacional se manteve, na medida em que, no nível local, a discussão permaneceu na questão do crime e da segurança pública, enquanto que, na esfera internacional, os Direitos Humanos foram compreendidos de modo mais ampliado, considerando aspectos sociais, políticos e culturais. A principal diferença, ou variabilidade discursiva, identificada na linha editorial entre os anos de 1987 e de 1997, refere-se à ênfase dada pela Folha aos Direitos Humanos como questão prisional na década de 1980, enquanto que, na década de 1990, a polícia "emerge" como um importante ator no campo dos Direitos Humanos, sobretudo por um viés de violação de direitos.

Na perspectiva foucaultiana, por mais que os enunciados circulem em diferentes discursos e sejam constantemente atualizados, é interessante perceber como eles também retornam às suas condições "clássicas" de emergência. Ou seja, no caso brasileiro, frente à conjuntura detalhada acima, os Direitos Humanos "emergiram" como questão de polícia e criminalidade e, mesmo após várias décadas, esses sentidos retornam, ou melhor dizendo, nunca deixaram de aparecer, apenas se "dispersaram", na lógica de Foucault.

 

Considerações finais

A partir da análise discursiva de editoriais da Folha, podemos afirmar que os Direitos Humanos apresentaram uma conotação dicotômica no periódico. Tal fato pode ser percebido através de vários aspectos que, conjugados, trouxeram o contexto argumentativo utilizado pelo jornal, em sua linha editorial.

Tendo em vista que a definição do que é assunto de primeira página ou não tem estreita relação com a linha editorial que determinado jornal assume, as capas referentes a assuntos internacionais da Folha atestam que, em 1987, os Direitos Humanos no exterior do país tiveram maior relevância do que as pautas nacionais. Em relação às capas locais, além do número ter sido expressivamente menor, o viés escolhido pela Folha foi o de reduzir a questão à criminalidade, associando-a fundamentalmente ao segmento prisional.

Isso revela distintas formas de difundir os Direitos Humanos, já que a cobertura internacional dos Direitos Humanos feita pela Folha, em 1987, teve como pano de fundo uma visão ampliada de direitos civis e políticos, de legislações e, sobretudo, de legitimidade. Situação completamente discrepante do enfoque nacional sobre Direitos Humanos, que priorizou uma noção restrita de direitos, quase que exclusivamente ligados à criminalidade e à violência.

Em 1997, as capas sobre Direitos Humanos no âmbito internacional diminuíram, mas a dicotomia se manteve como pode ser comprovado através dos nove editoriais nacionais, uma vez que a totalidade deles tratou de questões policiais e crimes. Isso ratifica a ideia de que existem classes de direitos distintas, uma dentro do país e outra fora dele.

Ao mesmo tempo, identifica-se um padrão jornalístico que sofreu pouca alteração no decorrer de uma década. Nos anos pesquisados, ao enfatizar os Direitos Humanos como questão de crime e violência, a Folha não assumiu esse discurso de modo evidente, mas deu espaço físico a construções discursivas com esse viés, adotando estilos narrativos que indicavam sua opinião de modo indireto. As diferenças encontradas são sutis, na medida em que a lógica discursiva do jornal praticamente se manteve a mesma, o que não significa que essas mudanças sejam menos importantes. Pelo contrário, indica que as estratégias discursivas são eficientes a ponto de tornar as alterações quase imperceptíveis.

Isso significa que o modo retórico e estilístico utilizado pelo jornal é eficaz, do ponto de vista argumentativo, porque descreve acontecimentos que imprimem um modo determinado de apreender a realidade. As expressões, os verbos e o estilo discursivo adotados indicam qual leitura de realidade está sendo feita e, consequentemente, qual visão de mundo o/a leitor/a deve seguir. Dessa forma, sabe-se que essas são estratégias discursivas - que acabam por revelar o posicionamento do jornal, mesmo que este busque manter uma aparente neutralidade.

No contexto brasileiro, foi possível constatar que a Folha, de modo recorrente, associou os Direitos Humanos às Políticas de Segurança Pública. Em 1987, os Direitos Humanos "emergiram" basicamente como questão prisional, enquanto que, em 1997, outro enunciado ganhou espaço, mediante as "leis de possibilidade" da época, direcionando o debate para a corporação policial. Em função das denúncias de violência policial, o jornal contribuiu com a construção discursiva de um enunciado que situa a polícia como corrupta e violadora de direitos.

É possível constatar que essa visão dicotômica, na qual os direitos são difundidos de um modo quando se refere à realidade brasileira e de outro completamente diferente quando se trata de acontecimentos internacionais, corrobora diferentes noções de Direitos Humanos.

Por fim, é de suma importância, a partir de uma perspectiva histórica, compreender esses procedimentos argumentativos utilizados pela imprensa ao "noticiar" a realidade. Acredita-se que tal compreensão, a partir de épocas mais distanciadas, contribui para uma leitura mais crítica a respeito das diferentes estratégias de registro histórico da realidade social.

 

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Endereço para correspondência:
Cássia Maria Rosato
cassiarosato@yahoo.com.br

Raimundo Cândido de Gouveia
raigouveia@gmail.com

Submetido em: 19/12/2015
Revisto em: 29/08/2017
Aceito em: 02/10/2017

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