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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. v.14 n.2 Goiânia dez. 2008

 

DIÁLOGOS (IM)PERTINENTES – DOSSIÊ RELIGIOSIDADE II

 

Uma leitura crítica do livro de Habacuc na perspectiva da fenomenologia da religião

 

A critical reading of the Habacuc’s book in the perspective of the religion’s phenomenology

 

Una lectura crítica del libro de Habacuc em la perspectiva de la fenomenologia de la religión

 

 

Jeová Rodrigues dos Santos

Universidade Católica de Goiás

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A proposta do presente artigo é analisar as aproximações e/ou distanciamentos entre os pressupostos da Fenomenologia da Religião (processo de constituição interna do fenômeno religioso, sua função social, e a plausibilidade da religião na pós-modernidade) e a mensagem de um livro profético do Antigo Testamento denominado Habacuc, que trata de questões que relacionam a religião com problemas ligados à injustiça social e à implantação da justiça em sua época. A relevância desta análise encontra-se no fato de que o fenômeno religioso e os conceitos de justiça e injustiça social estão intimamente relacionados e acompanham os seres humanos desde as primeiras civilizações conhecidas até hoje.

Palavras-chave: Fenômeno religioso; Função social; Plausibilidade da religião; Habacuc.


ABSTRACT

The proposal of the present article is to analyze the approaches and estrangements among the presuppositions of the Religion’s Phenomenology (process of internal constitution of the religious phenomenon, its social function, and the plausibility of the religion in the post-modernity) and the message of a prophetic book of the Old Testament denominated Habacuc, that is about subjects that relate the religion with problems linked to the social injustice and the implant of the justice in its time. The relevance of this analysis meets in the fact that the religious phenomenon and the concepts of justice and social injustice are intimately related and they accompany the human beings from the first well-known civilizations to day.

Keywords: Religious phenomenon; Social function; Plausibility of the religion; Habacuc.


RESUMEN

La propuesta del presente artículo es analizar los acercamientos y alejamientos entre las presuposiciones de la Fenomenología de la Religión (el proceso de constitución interior del fenómeno religioso, su función social, y la plausibilidad de la religión en la pos-modernidad) y el mensaje de un libro profético del AntiguoTestamento denominado Habacuc que trata de cuestiones que relacionan la religión con problemas ligados a la injusticia social y implantación de la justicia en su tiempo. La relevancia de este análisis se encuentra en el hecho que el fenómeno religioso y los conceptos de justicia y injusticia social se encuentran en íntima relación y acompañan a los seres humanos desde las primeras civilizaciones conocidas hasta hoy.

Palabras clave: Fenómeno religioso; Función social; Acogimiento de la religión; Habacuc.


 

 

Introdução

A proposta do presente artigo, que estará subdividido em três partes, é analisar as aproximações ou distanciamentos entre os pressupostos da Fenomenologia da Religião (a constituição interna do fenômeno religioso, sua função social, e a plausibilidade da religião na pós-modernidade) e a mensagem de um livro profético do Antigo Testamento denominado Habacuc, que trata de questões que relacionam a religião com problemas ligados à injustiça social e à implantação da justiça em sua época.

Considero importante o desenvolvimento do tema proposto porque a relação entre o fenômeno religioso e o problema da injustiça social sempre esteve presente no mundo desde as primeiras civilizações conhecidas. O Profeta Habacuc viveu no final do século VII a.C, numa época de profunda crise religiosa, moral e social no reino de Judá, e sua mensagem tornou-se um testemunho vivo da ação mútua entre Deus e os seres humanos na implantação da justiça sobre a terra.

Alguns autores, ao apresentarem novas propostas de leitura para o livro de Habacuc, afirmam que

(...) os oprimidos e explorados de todos os tempos e lugares podem nele encontrar um caminho que esclareça o seu papel e a sua ação dentro da história, descobrindo a razão para a resistência e para a esperança. É através do ser e da ação do justo que Deus julga o opressor e liberta o oprimido (Balancin & Storniolo, 1991, p. 8).

A ênfase principal gira em torno da idéia de que a teimosia do justo, sua conscientização e seu trabalho árduo, são a única maneira plausível de implantação de uma sociedade mais justa e mais equilibrada.

Bonora (1993) faz uma análise prévia da mensagem de Habacuc e afirma que ela assume “valor de paradigma ou de esquema teológico interpretativo da história” (p. 119). Em outras palavras, cada nova geração encontra neste livro uma mensagem para seu tempo. Sua mensagem continua atual.

Na primeira parte deste trabalho, procuraremos verificar algumas teorias que propõem explicar os elementos que compõem o sagrado e o processo de institucionalização do mesmo, e aplicá-las ao contexto de Habacuc. Após essas identificações, descreveremos as possíveis funções que a religião pode desempenhar numa sociedade, e aplicaremos alguns desses conceitos teóricos na realidade vivenciada por Habacuc. Finalmente, abordaremos algumas perspectivas teóricas que discutem acerca do lugar da religião na atualidade, e procuraremos relacionar a mensagem religiosa de Habacuc para os dias atuais. Essa tríplice análise fundamentar-se-á em referenciais teóricos da Fenomenologia da Religião.

 

O Interno do Fenômeno Religioso e sua Relação com Habacuc

Analisar o Interno do Fenômeno Religioso significa abordar seus elementos constituintes e seu processo de institucionalização. Tudo começa com uma experiência religiosa profunda com o sagrado.

A Fenomenologia da Religião, em sua forma clássica, é uma vertente do saber que, desde fins do século XIX, tem focado sua atenção na experiência religiosa, buscando compreendê-la como um fenômeno da natureza humana. Ela parte do axioma antropológico de que o ser humano é equipado com uma faculdade específica que o predispõe para a sensação da presença do sagrado, faculdade essa denominada: “sensus numinis” (Usarski, 2006, p. 34).

Rudolf Otto (1985), um dos expoentes dessa vertente, descreve a experiência religiosa como algo que foge aos padrões da racionalidade e entra na dimensão do não-racional. Para melhor esclarecer essa premissa, Otto apresenta alguns conceitos que configuram a experiência religiosa, que ele descreve como sendo: o numinoso, o tremendo e o fascinante. Ao referir-se, por exemplo, ao numinoso, Otto fala daquela experiência que não pode ser entendida ou explicada intelectualmente e que aparece como elemento vivo em todas as religiões (p. 12). Um dos sinais do encontro do ser humano com o numinoso é o sentimento de nulidade, de perceber-se como sendo nada mais que uma criatura diante do tremendo e fascinante.

Outro teórico importante que discorre sobre a materialização do sagrado é Mircea Eliade (1992). Ele inicia sua abordagem definindo o sagrado como aquilo que se “opõe ao profano” (p. 14) e afirma que sagrado e profano constituem duas modalidades de “ser” no mundo, duas situações existenciais assumidas pelo homem, homo religiosus, no decorrer de sua história (p.18). O homem religioso “só pode viver num mundo sagrado porque somente um tal mundo participa do ser, existe realmente. Essa necessidade religiosa exprime uma inextinguível sede ontológica. O homem religioso é sedento do ser” (p.56).

A pessoa que passa pela experiência religiosa é uma pessoa carismática, ou seja, ela possui uma capacidade extraordinária de perceber o sagrado. Sua experiência pessoal, permeada de interesses materiais e de seu próprio ethos, começa a contagiar e inspirar outras pessoas, que se tornam seus seguidores.

Tais seguidores, que também possuem interesses materiais e ideais (ethos), sistematizam os mitos, os símbolos e os ritos, a partir da experiência fundante da pessoa que primeiro teve a experiência com o sagrado.

Inicia-se assim o processo de institucionalização do sagrado com o surgimento da teologia que define o conteúdo da experiência, da doutrina que normatiza a experiência e da economia e burocracia que definem como o movimento sobreviverá.

O’Dea (1969), descrevendo o processo de institucionalização da religião, afirma que, nas sociedades primitivas e arcaicas, a religião foi um fenômeno difuso que, posteriormente, desenvolveu-se gerando organizações cuja principal função era religiosa. Essas organizações originaram-se “a partir de experiências específicas de determinados fundadores e seus discípulos. De tais experiências surge uma forma de associação religiosa que termina numa organização religiosa institucionalizada e permanente” (p. 56).

Segundo este autor, tais organizações iniciam-se com uma figura carismática, que ao desaparecer ou morrer, inspira um grupo de discípulos, que ao reinterpretar o carisma puro, formam uma comunidade estável. O’Dea menciona a interpretação weberiana desse fenômeno: “Weber sugere que as motivações para tal mudança se encontram nos interesses, ideais e materiais, dos seguidores, e sobretudo dos seus líderes, em continuar a comunidade criada pelo fundador” (1969, p. 56).

Eliade (1972) descreve o papel dos mitos, símbolos e ritos na experiência do sagrado nas sociedades arcaicas. Segundo ele, “o ritual abole o Tempo profano, cronológico, e recupera o Tempo sagrado do mito. Torna o homem contemporâneo das façanhas que os Deuses efetuaram in illo tempore” (p. 124). Para o homem arcaico, o mundo é ao mesmo tempo ‘aberto’ e misterioso. O homem também é ‘aberto’ e comunica-se com o mundo através dos símbolos. Os mitos recordam os eventos grandiosos que tiveram lugar sobre a terra e lembram que esse “passado glorioso” é em parte recuperável. Os ritos, isto é, os gestos paradigmáticos, forçam o ser humano a transcender seus limites, obrigando-o a situar-se ao lado dos Deuses e dos Heróis míticos, a fim de poder realizar os atos deles.

Além desses elementos importantes, surgem também três classes distintas, fruto da especialização do trabalho religioso: o sacerdote, um profissional capacitado por seu saber específico de uma doutrina e por sua competência em apoderar-se do saber dos leigos e sistematizá-lo, com o propósito de manter a instituição a qual está vinculado; o profeta como aquele que questiona o status quo, e busca levar os leigos de volta à experiência fundante, o que muitas vezes ocasiona divisões e o surgimento de seitas; e, o mago, que tem como característica principal o trabalho individual e ocasional. Este último personagem força os demônios ou os deuses a agirem, é capacitado pelo dom da magia e é legitimado por meio de seu êxito.

Com a divisão do trabalho religioso, através da institucionalização do sagrado, surge, então, o papel de leigo que se torna a clientela ou o alvo de disputas constantes entre o sacerdote, o profeta e o mago.

Weber (1991) mostra a complexidade da distinção entre mago e sacerdote a partir de várias perspectivas, e apresenta também uma definição de profeta. Segundo ele, partindo da distinção feita entre culto e magia, “é possível designar como ‘sacerdotes’ aqueles funcionários profissionais que, por meio de veneração, influenciam os deuses, em oposição aos magos, que forçam os ‘demônios’ por meios mágicos” (p. 294). A característica básica que distingue o profeta do sacerdote é a vocação pessoal. Weber (1991) assevera ainda que, “o profeta, quando sua profecia tem êxito, atrai acólitos permanentes [...], os quais, em oposição aos sacerdotes e adivinhos que se encontram numa associativa estamental ou hierárquica de cargo, juntam-se a ele de modo puramente pessoal” (p. 310).

Bourdieu (1998) descreve o processo da divisão do trabalho religioso e o processo de moralização e de sistematização das práticas e crenças religiosas partindo do pressuposto de que a aparição e o desenvolvimento das grandes religiões universais estão associados à aparição e ao desenvolvimento das cidades, sendo que a oposição entre a cidade e o campo marca uma ruptura fundamental na história da religião, ou seja, “a grande divisão do trabalho material e do trabalho intelectual consiste da separação entre a cidade e o campo” (p. 34).

A narrativa registrada no livro de Habacuc descreve o exemplo típico de uma experiência religiosa. Podemos identificar ali os elementos que constituem o fenômeno religioso e perceber claramente o grau de institucionalização do mesmo.

O principal elemento que compõe o Fenômeno Religioso é o sagrado, que Rudolf Otto define como sendo um “elemento vivo e presente em todas as religiões” (1985, p. 12) e que pode ser percebido através da experiência religiosa.

Em Habacuc, o sagrado é descrito como sendo o “Senhor”, Yahweh, (Habacuc 1,2), o Deus único e verdadeiro de acordo com a concepção judaica. É a ele que o profeta se dirige, o tempo todo, em diálogo, nos dois primeiros capítulos do seu livro que descreve sua experiência com o sagrado.

Os mitos, símbolos e ritos também podem ser observados em Habacuc. Eliade afirma que o papel dos mitos é o de fundamentar e justificar todo o comportamento e atividade humana. Ele assevera ainda, que os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irupções do sagrado que realmente fundamenta o mundo e o converte no que é (Eliade, 1972).

O registro por escrito do diálogo entre Habacuc e Yahweh, que ocorre nos capítulos 2 e 3, é um exemplo da descrição de um mito, uma irupção do sagrado no mundo. Ali, autor descreve diálogos em forma de perguntas e respostas entre o profeta e o Senhor. As questões que Habacuc levanta giram em torno da injustiça que permeia a sociedade de sua época e são uma espécie de protesto contra tais atitudes. Abaixo encontramos o registro de suas queixas ao Senhor:

Até quando, Senhor, clamarei por socorro, sem que tu ouças? Até quando gritarei a ti: “Violência!” sem que me tragas salvação? Por que me fazes ver a injustiça, e contemplar a maldade? A destruição e a violência estão diante de mim; há luta e conflito por todo o lado. Por isso a lei se enfraquece e a justiça nunca prevalece. Os ímpios prejudicam os justos, e assim a justiça é pervertida (Habacuc 1, 2-4).

O uso de simbolismo, em forma de figuras de linguagem, pode ser notado na narrativa do livro de Habacuc, no momento em que o Senhor responde às indagações do profeta. Ao descrever os babilônios, instrumentos que serão utilizados por Yaweh para aplicar o castigo ao reino de Judá, o Senhor diz o seguinte:

Seus cavalos são mais velozes que os leopardos, mais ferozes que os lobos nos crepúsculos. Sua cavalaria vem de longe. Seus cavalos vêm a galope; vêm voando como ave de rapina que mergulha para devorar; todos vêm prontos para a violência. Suas hordas avançam como o vento do deserto, e fazendo tantos prisioneiros como a areia da praia (Habacuc 1, 8-10).

Cazenueve (s/d), ao descrever o papel, a natureza e as funções dos ritos na vida social, afirma que os mesmos são muito importantes para a compreensão de um determinado contexto social, pois eles “constituem um terreno de investigação privilegiado, mais ainda talvez que os mitos” (p. 8). Ele define o rito como sendo “um acto [sic] que pode ser individual ou coletivo, mas que sempre, mesmo quando é bastante flexível para comportar uma margem de improvisação, permanece fiel a certas regras que constituem precisamente o que há nele de ritual” (p. 10). Além disso, Cazenueve (s/d) distingue o rito de outros costumes correntes numa determinada cultura, e assevera que a essência deste encontra-se na repetição.

Quanto à natureza e funções do rito, Cazenueve (s/d) afirma que para compreendê-lo é necessário analisar “as relações que o rito pode ter com a necessidade do homem de assumir a condição humana, o que pode constituir em tentar libertar-se o mais possível de tudo o que o condiciona ou, pelo contrário, em aí encerrar-se” (p. 24).

No livro de Habacuc, podemos notar claramente a presença de um rito constituinte da religião judaica: a oração. Ali, no capítulo 3, temos a descrição da oração que o profeta faz a Yahweh, oração de confissão e também declaração de fé na intervenção sobrenatural do Senhor. Essa oração demonstra claramente a necessidade do profeta e, ao mesmo tempo, seu anseio de ver a justiça finalmente triunfar. A seguir, citamos alguns fragmentos desse registro:

Oração do profeta Habacuque. Uma confissão. Senhor, ouvi falar da tua fama; tremo diante dos teus atos, Senhor. Realiza de novo, em nossa época, as mesmas obras, faze-as conhecidas em nosso tempo; em tua ira lembra-te da misericórdia. [...] Saíste para salvar o teu povo, para libertar o teu ungido. Esmagaste o líder da nação ímpia, tu o desnudaste da cabeça aos pés. [...] Ouvi isso, e o meu íntimo estremeceu, meus lábios tremeram; os meus ossos desfaleceram; minhas pernas vacilaram. Tranqüilo, esperarei o dia da desgraça, que virá sobre o povo que nos ataca. Mesmo não florescendo a figueira, e não havendo uvas nas videiras, mesmo falhando a safra de azeitonas, não havendo produção de alimento nas lavouras, nem ovelhas no curral nem bois nos estábulos, ainda assim eu exultarei no Senhor e me alegrarei no Deus da minha salvação (Habacuc 3,1-2; 13; 16-18).

Em Habacuc, vemos, também, traços visíveis de uma religião institucionalizada. No primeiro versículo do capítulo 1 e no primeiro versículo do capítulo 3, ele é identificado como profeta: “Advertência revelada ao profeta Habacuc” (Habacuc 1,1); “Oração do profeta Habacuc. Uma confissão” (Habacuc 3,1). As funções de sacerdote, principal figura do cenário religioso, e de profeta eram de todo conhecidas no contexto histórico de Habacuc.

Weber (1991) define profeta como sendo “o portador de um carisma puramente pessoal, o qual, em virtude de sua missão, anuncia uma doutrina religiosa ou um mandado divino” (p. 303). Ele afirma que a vocação pessoal é a característica básica que o distingue do sacerdote.

Habacuc apresenta-se como aquele que recebeu uma mensagem do Senhor. Seu protesto contra a injustiça social é também um brado contra uma sociedade opressora que legitimava a corrupção e a injustiça social.

 

A Função Social da Religião e sua Relação com Habacuc

A função social da religião pode ser abordada sob diversas perspectivas. É possível analisar a religião como fornecedora de sentido, fator de coesão e de nomia social. Essa concepção, defendida por Peter Berger (1985), assevera que a sociedade humana é um empreendimento de construção do mundo e que a religião ocupa um lugar de destaque nesse empreendimento. Berger afirma que o processo de construção da sociedade humana é dialético, ou seja, a sociedade é um produto do homem e, ao mesmo tempo, o homem é um produto da sociedade.

Esse processo dialético consiste de três momentos ou passos, e é sintetizado pelo autor da seguinte forma: “É através da exteriorização que a sociedade é um produto humano. É através da objetivação que a sociedade se torna uma realidade sui generis. É através da interiorização que o homem é um produto da sociedade” (Berger, 1985, p. 16).

Outra perspectiva defende que a função da religião é a de promover a expiação e a reintegração social. Girard (1990) descreve o papel da religião como instrumento de prevenção da violência. Em sua perspectiva, a violência e o sagrado são inseparáveis, daí a necessidade que a religião tem de oferecer sacrifícios para a expiação da culpa.

As condutas religiosas e morais, assevera Girard, “visam à não-violência de uma forma imediata na vida cotidiana, e muitas vezes, de forma mediata na vida ritual, paradoxalmente por intermédio da própria violência” (1990, p. 33).

A religião pode ser vista ainda, como legitimadora e/ou questionadora do status sócio-político-econômico nas relações de classes. Bourdieu (1998) teoriza bem essa perspectiva, enquanto Löwy (2000) exemplifica-a ao analisar os efeitos da teologia da libertação na América Latina. Bourdieu (1998) defende a idéia de que a religião é um fenômeno puramente social, ligado a interesses meramente políticos, que estão camuflados nas crenças e na eficácia simbólica das práticas ou ideologias religiosas. Por esse motivo, ele afirma que “os especialistas religiosos devem forçosamente ocultar a si mesmos e aos outros que a razão de suas lutas são interesses políticos” (p. 54).

A relação entre a religião e a política no movimento da teologia da libertação latino-americana, segundo hipótese levantada por Löwy (2000):baseia-se em uma matriz comum de crenças políticas e religiosas, ambas enquanto um corpo de convicções individuais e coletivas que estão fora do domínio da verificação e experimentação empírica [...] mas que dão sentido e coerência à experiência subjetiva daqueles que a possuem (Bordieu, 1998, p. 62-63).

Isto significa que existe uma fé, uma certa atitude total comum às religiões e às utopias sociais, que se refere aos valores transindividuais e se baseia em um desafio. Não sendo um movimento político, a teologia da libertação limita-se: a fazer uma crítica social e moral à injustiça, a aumentar a consciência da população, a espalhar esperanças utópicas e a promover iniciativas ‘de baixo para cima’.

Derrida (2000) defende a idéia de que a religião tem como função social oferecer salvação no contexto da razão moderna. A proposta de salvação está diretamente vinculada à possibilidade de identificação concreta do mal em nosso tempo. Para ele, a religião encontra-se numa situação de aporia, ou seja, ela se mantém ao mesmo tempo no antagonismo reativo e na supervalorização reafirmadora entre a fé e a razão. É a partir desse ponto de vista, que ele avalia o retorno das religiões na pós-modernidade.

Finalmente, a função da religião pode ser avaliada também na ótica de Terrin (1998), que defende a idéia de religião como garantia de saúde. A proposta do autor não é analisar a problemática metafísica do porquê da existência do mal, mas discutir uma questão antropológica de máxima importância que constitui o verdadeiro drama da existência humana: o que as religiões e a religião cristã podem fazer para curar as doenças.

Terrin (1998) parte do pressuposto de que as religiões desde sempre associaram de maneira bem estreita o conceito de salvação ao de saúde e bem-estar e, muitas vezes, usaram os dois termos indiscriminadamente com um único significado e para indicar uma única realidade geral, da qual o homem tem necessidade num mundo no qual está constantemente ameaçado.

Ao analisar a religião no contexto social de Habacuc e contrastá-la com os teóricos acima referidos, podemos identificar duas funções sociais específicas na narrativa de seu livro.

Numa primeira leitura, podemos afirmar que a religião, na época de Habacuc, tinha a função de fornecer sentido, coesão e nomia social. Ao descrever a situação caótica da sociedade de sua época, – “A destruição e a violência estão diante de mim; há luta e conflito por todo o lado. Por isso a lei/torah se enfraquece e a justiça nunca prevalece. Os ímpios prejudicam os justos, e assim a justiça/Mispat é pervertida.” (Hc 1, 3-4) –, Habacuc, indiretamente, questiona o verdadeiro papel da religião de seu tempo que, em sua concepção, deveria servir de instrumento fornecedor de sentido, de coesão social e de nomia para o povo de Yahweh.

Quando o profeta menciona a lei – “Torah” – e a justiça – “Mispat”, – ele faz alusão à vontade e à promessa de Deus, expressos nos livros sagrados do Antigo Testamento. Ao afirmar que a lei se enfraqueceu e que a justiça já não prevalece, o profeta mostra que a religião deixou de cumprir seu verdadeiro papel social que era o de normatizar a vida das pessoas. O resultado do abandono às leis de Deus foi a anomia, leia-se corrupção, social.

Berger (1985) descreve o processo de legitimação coesão e nomia social e mostra o papel da religião nesse empreendimento. Segundo ele:

a parte historicamente decisiva da religião no processo de legitimação é explicável em termos da capacidade única da religião de ‘situar’ os fenômenos humanos em um quadro cósmico de referência. [...] A legitimidade religiosa pretende relacionar a realidade humanamente definida com a realidade última, universal e sagrada. [...] os nomoi humanamente construídos ganham um status cósmico. (p. 48-49)

As legitimações religiosas, originárias da atividade humana, uma vez cristalizadas em complexos de significados que se tornam parte de uma tradição religiosa, podem atingir um certo grau de autonomia em relação a essa atividade.

Essa premissa pode ser perfeitamente aplicada no caso de Habacuc. Seu protesto contra a injustiça fundamentou-se numa experiência com o sagrado e era legitimado pela lei – “Torah”, que estabelecia os princípios de juízo e justiça em todas as esferas da vida do povo de Yahweh.

 

A Religião na Atualidade e sua Relação com a Mensagem de Habacuc

Questões relacionadas à legitimidade da religião na atualidade são levantadas com muita freqüência na atualidade. Respostas diversas têm sido dadas a esses questionamentos.

Os defensores do secularismo, que pode ser definido como sendo a racionalização da religião, asseveram que, com o processo de racionalização do ocidente, a religião, que servia como fator de nomia social, foi desvalorizada, destituída da força nomizadora que possuía, perdendo assim o papel de instrumento normativo para o homem ocidental, ou seja, a religião perdeu o seu papel social. Berger (1985) teoriza os efeitos do secularismo na religião ocidental, enquanto, Souza & Martino (2004) ilustram bem essa teoria analisando o contexto religioso brasileiro.

Bauman (1998) é um entre vários teóricos que chegou a questionar a plausibilidade da religião na presente “era pós-moderna”. Segundo ele, a religião não responde mais à maior parte dos questionamentos e anseios do homem pós-moderno. Contudo, ele defende a idéia de que a religião é plausível somente na forma de fundamentalismo, pois desse modo ela auxilia o indivíduo na árdua tarefa de fazer suas próprias escolhas:

com a agonia de solidão e abandono induzida pelo mercado como sua única alternativa, o fundamentalismo, religioso ou de outra maneira, pode contar com uma clientela sempre crescente. Seja qual for a qualidade das respostas que ele fornece, as perguntas a que responde são genuínas. O problema não é como desprezar a gravidade das perguntas, mas como encontrar respostas livres dos genes totalitários (1998, p. 230).

Vattimo (2004), ao contrário, propõe que, com a morte da metafísica e da metanarrativa, a religião plausível em nosso tempo, é a religião do “ser como evento”, uma religião subjetiva, capaz de ser vista e vivida por diferentes ângulos. Ele afirma que a religião que se redescobre no contexto pós-moderno nada tem em comum com a religião dogmática, duramente disciplinar e rigidamente antimoderna que se expressa em várias formas de fundamentalismo.

Ao invés de incentivar fundamentalismos religiosos na sociedade pós-moderna do Ocidente, Vattimo defende que é preciso favorecer uma presença conjunta livre e intensa de múltiplos universos simbólicos (religiosos), segundo,

Um espírito de hospitalidade que expressaria bem quer a natureza leiga da cultura ocidental, quer a sua profunda origem cristã. Entretanto, para que se chegue a este ponto, é necessário que as religiões, e o cristianismo em primeiro lugar, vivam a si mesmas não mais sob a forma dogmática e tendencialmente fundamentalista que as vêm caracterizando até aqui. Também neste sentido, é possível dizermos que, ao contrário de toda expectativa leiga, a renovação da nossa vida civil no Ocidente, em uma época pluricultural, é, sobretudo, uma questão de renovação da vida religiosa (2004, p. 128).

Kepel (1995) traça o perfil histórico de duas grandes religiões, o Islamismo e o Catolicismo Romano, que, a partir da década de 60, têm experimentado transformações que culminaram em reafirmações fundamentalistas de dogmas com a finalidade de nortear a vida da sociedade pós-moderna.

Ao mesmo tempo em que retornam ao cenário atual movimentos tipicamente fundamentalistas, Siqueira & Lima (2003) apresentam o perfil histórico da religiosidade contemporânea no mundo pós-moderno e mostram como as novas tendências religiosas de nosso tempo caminham mais em direção a uma sensibilidade espiritual individual do que em direção a um movimento espiritual estruturado ou fundamentalista.

Surge, por assim dizer, uma nova concepção de religião, à medida que a nova espiritualidade em construção não seria apenas a religião institucionalizada e especializada, mas a experiência que recorreria aos âmbitos da secularidade de nosso tempo e às vias religiosas tradicionais.

Essa nova postura dá maior ênfase à espiritualidade, ou caminho espiritual, entendida como busca de autoconhecimento e de autoaperfeiçoamento, que não se restringe apenas ao campo religioso, mas que se remete também a campos como a psicologia e a medicina. De acordo com um teórico citado por Deis, “assistimos a uma passagem do antropocentrismo moderno para o cosmocentrismo pós-moderno” (p. 28).

De acordo com as teorias acima mencionadas, a questão da atualidade da religião para o nosso tempo é apresentada a partir de duas vertentes. Uma delas tende para o fundamentalismo religioso, enquanto a outra tende em direção a uma religião individualizada, subjetiva e não estruturada.

A mensagem de Habacuc parece encaixar-se melhor numa perspectiva fundamentalista, haja vista que, o mesmo pressupõe um único Deus, que revelou sua vontade através de livros sagrados e que exige de seus seguidores completa obediência à sua vontade. Habacuc e a sociedade de sua época eram fundamentalistas. Na perspectiva desse profeta, a única maneira de organizar a sociedade caótica de seu tempo, marcada por opressão, violência e toda sorte de injustiças sociais, era através da obediência irrestrita a Iahweh. Era necessário viver de acordo com os princípios éticos e morais expressos na sua Palavra.

 

Considerações Finais

Após traçarmos de forma sucinta uma exposição das características do Fenômeno Religioso, da utilidade da religião como instrumento de legitimação social e das perspectivas para o futuro da religião na pós-modernidade, na ótica de diferentes pensadores, e após confrontarmos alguns dos aspectos apresentados com a narrativa do livro do profeta Habacuc, a conclusão a que se chega é que os pressupostos fenomenológicos referentes à religião aplicam-se a qualquer manifestação religiosa, em qualquer tempo histórico, e podem servir de instrumento importante para a compreensão de “como” essa religião surgiu e do seu processo de institucionalização. No caso dos registros do livro de Habacuc, temos uma religião altamente organizada em torno de um único Deus, Iahweh, religião comumente denominada javista.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Rua Princesa Isabel Qd. 55 Lt. 15, Casa 02,
Condomínio Rafaella, Vila Alzira,
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Email: jeova.r.santos@bol.com.br

Recebido em 12.05.08
Aceito em 09.03.09

 

 

Jeová Rodrigues dos Santos - Mestrando em Ciências da Religião na Universidade Católica de Goiás (UCG).

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