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Revista da Abordagem Gestáltica
versão impressa ISSN 1809-6867
Rev. abordagem gestalt. vol.24 no.1 Goiânia abr. 2018
https://doi.org/10.18065/RAG.2018v24n1.11
TEXTOS CLÁSSICOS
A problemática da dor psicologia fenomenologia metafísica1
F. J. J. BuytendijkI; Tradução: Jennifer da Silva MoreiraII; Joanneliese de Lucas FreitasIII
I(1948)
IIUniversidade Federal do Paraná
IIIUniversidade Federal do Paraná
1. O problema da dor na sociedade moderna
"Os males deste mundo são sempre mais reais que seus bens" (Bossuet)2
No curso da vida cotidiana, com suas alternações de ócio e trabalho, alegria e tristeza, poucas vezes se formula expressamente e de forma conceitual a grande pergunta acerca da essência e do sentido da existência humana. Contudo, isso não significa, que estes problemas não existam e que não tenham produzido seu efeito. A vida, em suas múltiplas manifestações, na secreta intimidade do mais pessoal e inexprimível, ao menos nas formas públicas da sociedade humana, na estrutura das instituições sociais e na administração do Estado, está a princípio determinada pela concepção que o homem tem de si mesmo e, por tanto, também de seu próximo. Esta concepção de si mesmo se dá em grande parte à tradição para a qual, no entanto, cada época proporciona um aspecto diferente.
Quanto mais violentos são os choques que abalam a história de um período, mais urgente é para a humanidade se enfrentar com os problemas da vida. A ruptura da tradição obriga a esboçar uma nova imagem da natureza, da origem e do destino da sociedade humana, uma imagem na qual se tornam visíveis os princípios que sustentam a concepção dos comportamentos próprio e alheio. Quando estes princípios são cunhados e se tornam suficientemente diferenciados e, se encontram em clara e firme relação com a concepção da vida e do mundo, cobram sua influência decisiva sobre a sociedade, impregnam por meios conscientes e inconscientes as ações mais simples da vida diária e as carimba com sua imagem. É apenas quando se recebe uma resposta clara e válida à pergunta sobre a essência e o sentido do sofrimento e da dor física em particular, que se converte, então, em modelo para a atitude espiritual e toda conduta de vida.
As premissas, segundo as quais se desperta a sensibilidade para o problema do sofrimento em todas as camadas da sociedade e cujas respostas exigem uma força convincente, dificilmente são obtidas fora da esfera religiosa. Esta ensina a meditar sobre estas hipóteses e condições, o que é confirmado pela história, embora, certamente, não pela história que se pode chamar de "tempos modernos".
Por mais difícil que possa ser conhecer as forças motrizes que atuam no interior de uma sociedade em determinada época, assim como calibrá-las com exatidão e julgá-las com retidão, há algo, contudo, completamente garantido: em contraste com os séculos precedentes, a religião já não constitui mais na consciência europeia, para a maioria dos grupos da população que sustentam a cultura, o clima no qual respiram e atuam. Por outro lado, é sabido que estes grupos não estão unidos e abrigados por uma mesma realidade espiritual incontestável. Assim, pois, não é estranho que a pergunta sobre a essência e o sentido da dor não fale mais ao coração e à cabeça, porque já não há uma resposta que possua validade geral e ofereça segurança. O perguntar tem sentido unicamente quando existe a possibilidade de uma resposta válida e, uma vez que o homem de todos os tempos não conta de modo suficiente com experiência individual, saber teórico e forte pensamento criador, lhe resta pouco mais que evitar os múltiplos problemas da vida cujas respostas deficientes não podem fazer mais que desorienta-lo, fazendo-o se sentir inseguro interna e externamente até o intolerável.
O homem e suas experiências vitais não mudam em sua essência mais profunda. Por esta razão também o homem moderno mesmo na particularidade de sua vida individual, sem manejo da tradição e da religião, se vê impulsionado, por sua essência e pela natureza de sua experiência, a perguntar pela causa mais profunda em tudo o que o afeta pessoalmente, excedendo os motivos ocasionais imediatos. Esta necessidade obedece a duas razões. Em primeiro lugar, nas lidas e cuidados de sua existência, nos impulsos obscuros que o importunam, nas ameaças da Natureza e da cultura, no desejo insatisfeito de bens materiais e espirituais, o homem encontra uma realidade que se lhe impõe com sua potência concreta como o ser inconcebível das coisas em seu ser-assim e não ser de outra maneira. Porém esta realidade - como ensina a experiência - não precisa de conexão e sentido, ainda que ambos sejam mais suspeitados que concebidos. Precisamente a relação que na experiência mesma se mostra com fundamentos alijados, com potências invisíveis, torna em nós e em nosso entorno a realidade angustiante. Esta angústia suscita uma pergunta, por mais que se evite a sua formulação. Ainda na vida cotidiana, a ideia de um cosmos espacial e temporalmente incomensurável, bem como de uma humanidade originada por uma evolução natural - ideias que parecem tão familiares ao homem moderno - se misturam com um elemento sentimental que se decanta na consciência quase sempre na forma de destino ou azar.
Em segundo lugar, aquilo que afeta o homem impede sua atividade, restringe sua liberdade e se opõe ao sucesso de seus desejos e à satisfação de seus instintos é, em grande parte, produzido por uma ação de outros ou dele mesmo. Também neste caso, surge uma pergunta sobre as causas profundas, extremamente necessária quando se reconheceu a verdade de que a liberdade e a razão são do caráter da natureza humana. Não apenas o sentido da história, mas também o da justiça e da injustiça, da culpa, da irreflexão e da apatia se tornam questionáveis e obrigam um olhar para as experiências concretas em relações de sentido mais remotas.
Por pequena que possa ser em geral a tendência e a capacidade de refletir por si mesmo, nenhum homem - cultura e sorte não importam - pode subtrair-se a tensão entre a ideia assustadora de um fatum e a suspeita de um sentido da história da própria pessoa e da comunidade a qual pertence. Assim, portanto, ninguém que tenha um vislumbre da concepção da vida e do mundo, pode, por esta razão, negligenciar o problema do sofrimento. E ainda, cabe à arte do viver do ceticismo moderno, no que diz respeito a toda problematização filosófica e religiosa, limitar-se ao prático e ao que é próximo mediato e ater-se na atividade cotidiana às vinculações afetivas imediatas. No entanto, devido à força escura da angústia e ao empobrecimento espiritual este ceticismo se degenera em uma cegueira para o profundo que se revela a nós continuamente na imediatez evidente das coisas, dos estados de ânimo, das paixões. Deste modo o homem perde como pessoa o sentido que atesta na tranquila natureza e na movimentada cultura sua origem comum e cai em um isolamento que só pode ser superado por uma atividade incessante e pela perseguição da felicidade sensível.
Uma falsificação e romantização da história tentaram nos fazer crer que as gerações anteriores se ocupavam menos de negócios e meditavam mais profundamente, sentiam com mais delicadeza e duvidavam menos. Contudo, nunca existiu outra época na qual um instrumento mais eficaz de educação e de esclarecimento público inibira a reflexão em tal grau que mesmo o mal e o sofrimento são nada mais que constatados e registrados. O conhecimento positivo é hoje muito maior que nunca. Sua estimativa resulta da diferenciação de uma cultura que devido à necessidade de superar o afastamento espacial e temporal cada vez maior, desenvolve uma técnica que já não se detém diante de nada. Obrigado pela sua natureza a meditar sobre o sentido do sofrimento, porém, não obstante inclinado em virtude da peculiaridade da cultura técnica ao ceticismo e ao interesse prático, o homem moderno, em geral, meditará sobre o problema da dor física tão pouco ou tão evasivamente assim como sobre todos os demais fenômenos ou manifestações fundamentais de sua existência.
Porém algo persiste sem mudança: a realidade do sofrimento e de todos os males neste mundo, como Bossuet já havia indicado. Portanto, deve-se esperar também que o doloroso da dor, a amargura pulsante de todas as formas de sofrimento serão, todavia, sentidos exatamente como antes, e que a extensão e a profundidade da compaixão sejam também tão grandes como nos séculos passados. Porém, se unicamente tem o caráter de realidade aquilo que se impõe a nós como um feito tido como irredutível, e se "os males deste mundo" já não são vividos como uma potência que se manifesta no ser do homem, então já não são nem mesmo para a consciência "mais reais que os bens". Daqui se segue uma mudança na esfera afetiva que podemos compreender plenamente apenas quando se entende e se penetra a conexão da sensação da dor com a atitude pessoal frente a ela. Inicialmente digamos que a dor como assunto puramente individual, sem nenhuma conexão com uma realidade metafísica, sente-se mais vivamente que qualquer outro estímulo e também provoca raiva e desespero, porém lhe falta o pathos que surge apenas com a consciência de nossa vinculação ao próximo e finalmente a toda a espécie humana, cuja esmagadora carga de dores recai em uma pequena parte também sobre nossos ombros.
O homem moderno considera a dor exclusivamente como um incômodo que como todo estado desagradável tem que ser combatida. Acredita-se que o combate contra a dor não exige nenhuma reflexão sobre o fenômeno mesmo. Mas em relação ao sofrimento psíquico essa reflexão é assaz necessária. Este sofrimento provém tão notoriamente das relações humanas, direito e costumes, ódio e amor, circunstâncias sociais, educação, comunidade familiar e laboral, que obriga à meditação, e isso por sua vez contribui a aliviar a (pena) e a conciliar-se com o irremediável. Mesmo o sofrimento na enfermidade e na morte aparecem hoje, todavia à luz de uma ideia: a fragilidade de todo o humano.
A dor, o irritante por excelência, provoca a pergunta: O que precisa ser feito? A medicina é a instância competente para encontrar os meios de lutar contra a dor. Esta finalidade foi alcançada por ela em grande medida e por esta razão ela tem contribuído para uma mudança na atitude frente à dor. O medo da enfermidade e inclusive da morte é, em grande parte, medo do sofrimento. No entanto, a ausência de dor em um tratamento cirúrgico moderno, a possibilidade de um auxílio médico rápido em um acidente, não afasta, como se poderia supor, a angústia ante a ameaça da dor, nem aumenta a alegria da vida.
Quem chegou em um país onde não existe absolutamente nenhum auxílio médico sabe que a resignação ao destino, o encorajamento e a confiança dão mais satisfação interior que a possibilidade de chamar ao médico a qualquer hora do dia. Tal possibilidade, certamente, responde a uma necessidade, porém provoca uma nova angústia e principalmente raiva, quando todo o aparato que se tornou a medicina (e tudo que está relacionado a ela) não funciona sem atrito. O homem moderno se irrita com muitas coisas que antes admitia serenamente. Se indigna com a velhice, com a doença prolongada, com a morte, mas prontamente com a dor. A dor não deve existir. A sociedade moderna exige em qualquer lugar e para todo o mundo a aplicação de todos os meios disponíveis para combater e evitar a dor: na oficina, em alto mar, na cidade e no campo. Exige da ciência médica, com seus progressos em diagnóstico e terapia, uma prevenção e supressão sempre maior da dor. Todo médico, dentista, cirurgião, ginecologista o sabe muito bem em sua experiência cotidiana. Originou-se uma "algofobia" que em seu excesso se tornou inclusive uma praga e tem como consequência uma pusilanimidade que acaba imprimindo seu selo em toda a vida.
Ao impulso do pensamento e do tratamento médicos contribui a simpatia compassiva aos sofrimentos dos homens, porém esse generoso motivo mantém sua força unicamente na medida em que reaviva constantemente a clara intelecção da essência do homem e do sentido do seu sofrimento. Se a medicina perde a conexão com ela, converte-se em mera técnica, que obedece à sua própria lei. Quando se torna autônomo, o combate contra a dor não está mais a serviço da humanidade e dos valores morais em sua ordem hierárquica. Aspira e consegue, obediente à vontade cultural do mundo moderno, aproximar-se de uma forma burguesa de vida, que evitando absolutamente todos os estímulos e influxos perturbadores, quer se assegurar da conservação de um bem-estar físico agradável. Esta tendência obedece à vontade de uma luta radical contra a dor.
É sempre discutível pronunciar um juízo de valor sobre uma forma de vida. Diante da concepção frequentemente defendida de que a atitude prática, estreita, limitada do "bourgeois" relacionada a todas as coisas da vida significa empobrecimento interior, redução da atividade e reatividade espirituais e, portanto, um interesse excessivo pelas coisas terrenas e imediatas, está a opinião de que, precisamente, o refúgio em uma existência modesta, protegida, fundada materialmente, assegura a elevação a uma ordem de validade geral e, por tanto, fortemente moral. Em todo caso, a atitude "burguesa" diante da dor tem eliminado o verdadeiro problema da dor, a pergunta sobre a essência e o sentido do sofrimento físico, e como consequência tem embotado o conhecimento da relação sutil de enfermidade, dor e vida pessoal na imagem do destino do homem. Na imagem que o "burguês" tem de si mesmo, falta o traço doloroso da vulnerabilidade. Ele sabe muito bem que pode sentir dores, porém lhe falta a consciência de estar sempre à mercê da possibilidade do sofrimento físico. Com isso, o "bourgeois" perde uma característica do ser do homem.
Por maior e mais justificada que seja a fama da qual, com todo direito, goza a medicina devido ao seu crescente poder sobre a dor física, por mais orgulhosa que possa estar de seus progressos que poupam a dor a inumeráveis seres humanos, devolvem bem-estar subjetivo, aumentam a capacidade de trabalho, tornam suportável o leito de dor, aliviam as agonias dolorosas; no entanto, apesar de tudo isso, estas enormes possibilidades da medicina têm retirado da esfera metafisica e moral e, com isso, também da religiosa, o problema da dor, a pergunta sobre seu sentido levantada pela inteligência e pelo coração, transferindo-a à esfera prática. Quem sente hoje uma dor intensa e duradoura a atribui à imperfeição técnica, à imprevisão, à negligência ou ao atraso do auxílio médico.
Em todo caso, a exigência de uma luta radical contra a dor também está moralmente permitida pela consciência religiosa moderna. Pois o homem tem conquistado legitimamente seu poder sobre a Natureza. Até o homem religioso do nosso tempo considera os meios empregados para combater a enfermidade e a dor como uma dádiva, que pertence a mesma ordem que todo bem-estar com o qual a cultura nos presenteia e que, por conseguinte não tem que ser em absoluto nocivo para a alma. Mesmo quando o homem religioso sabe que a dor possui um valor que excede o educativo, fortalece o caráter, engrandece e induz ao arrependimento e à purificação, este conhecimento se concilia muito bem com o desejo de prevenir e combater a dor. Mesmo para uma concepção cristã do mundo e da vida, apoiada em sua grande tradição dos séculos passados, o conhecimento da significação extraordinária que a dor possui para dar seu pleno sentido à existência humana não contradiz em nada a confiança incondicional na medicina e na higiene e em sua amplíssima técnica para prevenir e suprimir a dor. Precisamente o pensamento e o sentimento cristãos respeitam a inclinação natural do homem a subtrair-se de toda dor, veem na alegria e na paz a verdadeira esfera sobre a terra, reconhecem, conforme a sagrada tradição, o martírio como autêntica vontade de Deus tão somente quando é inevitavelmente necessário. Este conhecimento maduro e profundo protege a vida cristã em toda a técnica moderna e todo pragmatismo diante da insensibilidade no que diz respeito ao problema da dor, por mais que apenas raramente se tenha buscado uma solução conceitual3.
Muitos doentes demonstram, sem muitas palavras, que para eles surgiu a verdadeira resposta à verdadeira pergunta, porque para eles o sentido da dor se realiza existencialmente em uma serena, clara resignação e uma positiva comunhão com Cristo, "o homem da dor". Então o coração começa a compreender a alegria dos santos no sofrimento, tão distinta do espirito da "sociedade moderna". Então o homem penetra em um mundo esquecido, no qual o chamado para o combate à dor não apaga o chamado no grito de dor. Quando um poeta da nossa época, Francis Jammes, escreveu: "Tenho apenas a minha dor e não quero nada além dela que me foi e me segue sendo fiel".4
Estas palavras podem ser apresentadas à consciência moderna como uma inconcebível "algofilia"; na realidade, nelas ressoa um testemunho como o de H. Bernhard, que à frase do Salmo "Eu estou com ele na dor", acrescenta: "Senhor, presenteia-me perpetuamente com sofrimento para que Tu estejas sempre comigo".5 Perguntar significa parar e olhar, liberta da atividade e da vinculação sensível aos fenômenos em sua mudança fugaz. A pergunta cria o silêncio da surpresa, a amplitude de um novo espaço e de uma nova perspectiva. Porém desde Sócrates sabemos que esta misteriosa força da pergunta reside em sua forma e depende do momento em que aparece. Assim ocorre também com o problema da dor. Contra toda atitude prática e pragmática, contra todo positivismo e racionalismo, toda atividade técnica e toda deficiência de consciência religiosa, também na sociedade moderna pode ser inevitável meditar sobre a significação e a essência da dor.
Porém o difícil é colocar a pergunta devidamente e quando falta a resposta à contra pergunta, perde-se toda visão e toda a surpresa se volatiza. Assim o demonstra, por exemplo, um experimento feito em 1934 com alunos do último curso do bacharelado pelo Ministério da Educação de Sajonia durante uma seleção para os estudos universitários.6
A pergunta, precisa e bem pensada, que deveria ser respondida por escrito, dizia: "Suponham que fosse encontrado um meio pelo qual todos os homens que o usaram se tornaram livres de toda sensação dolorosa para o resto da vida. Quais seriam as consequências desse descobrimento?". Certo número de alunos recebeu esta invenção com entusiasmo. Muitos dos motivos alegados eram muito singulares, por exemplo: "Os médicos teriam menos trabalho", ou "sobrariam médicos depois disso"; "não seria necessário tratar mais que as fraturas; os hospitais ficariam vazios". Incluindo: "O estômago não doeria por comer muito nem doeria a cabeça por pensar muito; resumindo, seria uma invenção maravilhosa".
Em algumas respostas se notava um certo conhecimento da relação entre a dor e a vida pessoal, por exemplo: "Os homens seriam ainda piores do que já são; poderiam gozar de tudo sem sofrer nenhuma consequência desagradável. A saúde da alma lhes seria indiferente. Chegar-se-ia em todo caso a uma grande unilateralidade e uniformidade e por esta razão a uma insensibilidade humana".
O resultado dessa enquete não necessita explicação, fala por si mesmo. Das respostas resulta que na consciência dos jovens pode-se despertar uma confusa noção de uma certa finalidade e significação corretiva da dor. Apenas a última resposta permite supor uma leve suspeita da conexão entre a dor e o sentido da vida humana.
A superficialidade e a formulação primitiva das respostas não são de se estranhar. Certamente não depende apenas da idade dos interrogados. Pode-se supor que em uma investigação entre acadêmicos não seriam tão distintas. O ensino, sobrecarregado com conhecimentos de fatos, a formação científica com sua especialização, não deixam margem para a cultura filosófica. A consequência é que os problemas antropológicos estão fora do campo de visão da maioria dos homens cultos. Se esta estreiteza visual se une ao fato de que para a sociedade moderna o problema da dor coincide quase por completo com a questão da luta contra a dor, a consequência é o aspecto doloroso da experiência da dor permanecer intocável. É exatamente isso que queremos investigar.
2. a problemática nas experiências pessoais da dor
"O sofrimento passa, porém o ter sofrido não passa jamais"7 (Leon Bloy)8
Às vezes se conserva ainda na vida pessoal, algo que para a generalidade se perdeu como força independente e eficaz, como monopólio claramente delimitado pela cultura. O fato de que a sociedade do nosso tempo já não tenha "órgão" para a essência e para o sentido da dor chegou até nós claramente do passado. Uma das causas é a decadência da vida religiosa e, aliado a ela, o resfriamento do interesse de extensos setores pela filosofia. Como vimos, a substituição da reflexão criadora pelo ceticismo demolidor está intimamente ligada à atenção ao técnico e ao prático.
Não obstante, a linguagem conserva algo da relação original entre o fenômeno da dor e seu aspecto metafísico. A palavra alemã "Pein" (pain em inglês, pena em espanhol) provém do termo latino "poena", e significou originalmente "castigo"9; "le mal", em francês, é "malum", ou "malo", e ambos os conceitos estão contidos em um aspecto da concepção cristã da vida, enquanto esta nos ensina que ao "malum quod est culpa", responde Deus com o "malum quod est poena"10. Se o torrencial meio da linguagem pode captar um reflexo de viva compreensão para a conexão entre a dor física e o ser humano, isso indica que a problemática da dor não é um fruto tardio do conhecimento natural mais minucioso, nem de diferenciações sutis de uma filosofia muito desenvolvida. Por isso há boas razões para se supor que o fenômeno vivido da dor mobiliza o homem a meditar tão necessariamente com o fato da morte. Esta suposição deve ser comprovada mais detalhadamente. Para isso começamos com uma investigação comparativa acerca dos sentimentos.
Os sentimentos de prazer são vividos como isentos de problemas. Diferentes em intensidade, nível, volume e efeitos, estão em uma vinculação mais solta ou mais íntima com impressões sensíveis, representações, juízos, recordações e esperanças. Costuma-se dividir os sentimentos em dois grupos: os sentimentos vitais e os espirituais, sem desconhecer por isso sua conexão mútua. Os critérios acerca de como se realiza esta conexão diferem muito uns dos outros; no entanto, na maioria dos casos se vê a causa nas reações vegetativas e no sistema nervoso simpático. Em virtude de modificações do fluxo sanguíneo e da distribuição do sangue, da respiração e da atividade dos órgãos digestivos, se alteram os sentimentos. Estas funções alteradas repercutem no estado emocional. Desta forma é possível produzir em meio às reações corporais uma conexão entre os sentimentos vitais e espirituais de prazer.
No entanto, independentemente desses processos corporais, os diferentes sentimentos se encontram relacionados pelo modo que são vividos, por uma forma de viver, a qual vincula as emoções da mesma maneira que se relacionam as propriedades intermodais das impressões sensíveis. Da mesma maneira que estão relacionadas a luz clara e o som claro, o odor sufocante e a música pesada, uma superfície lisa e uma bebida fria, também se percebe uma propriedade Inter emocional na qualidade da vivência de todos os sentimentos de prazer.
Com conceitos tais como prazer, tensão, atividade, alegria radiante, calor, plenitude, etc., tentamos expressar este traço comum. Na realidade, todas estas palavras aludem ao caráter dinâmico que tem em conjunto uma multiplicidade de seus sentimentos muito heterogêneos e que todos experimentamos quando nos alegramos e nos sentimos felizes, excitados vital ou espiritualmente. Nesta vivência se evidencia um aumento de intensidade, uma renovada ou acentuada corrente de "vida" no nosso interior, um calor interno, uma libertação do frio e do embotamento, e este sentimento nos penetra e domina. Na vivência de todos os sentimentos de prazer encontramos o aumento positivo de intensidade do bem-estar e a eliminação do desagradável, a libertação de um estado anterior que inclusive aparece na vivência do prazer como seu negativo que, do mesmo modo que o fundo em uma figura destaca nitidamente a forma, independente do sentimento de prazer. Basta lembrar um simples exemplo: o primeiro passeio primaveril, a saída de uma doença, o saciar da sede, assim se anuncia o que os dois lados da vivência significam. Em todo prazer nos é dado algo que preenche um vazio e isto vale para os prazeres vitais baixos não menos que para os sentimentos puramente espirituais de felicidade, inclusive para a chamada alegria sem motivos.
A plenitude de prazer ou de felicidade tem o caráter de uma acentuação da unidade harmônica do sentimento da vida, de uma conexão entre corpo e alma, de esperança e de realidade, de dever ser e de ser. A princípio, é o prazer de ter se livrado da contradição, dos conflitos, das controvérsias, da tensão e das resistências que constituem a base de todo "problematismo". Em todas as formas de bem-estar intenso, de prazer físico e espiritual, o homem se esquece de si mesmo e de tudo ao seu redor ao entrar em sua esfera de ilimitada plenitude vital, alegria e bem-aventurança. A separação de sujeito e objeto, na qual se experiencia a contraposição ou objeção de algo ("objetividade"), na qual este algo pode ser também um conteúdo de consciência, é estranha ao prazer que não se destaca do fundo do desprazer sofrido como algo que se opõe a nós, mas, pelo contrário, infla, exalta, arrebata.
Assim, pois, o pressuposto para a reflexão, para a problemática, nem sequer existe na vivência do sentimento de prazer para que sua conexão com causas e efeitos, com a situação, com o passado e o futuro, com a essência do homem e do absoluto possa se converter em objeto de meditação. Na vivência mesma se volatizam todas as perguntas, aparecem como fantasias disparatadas, como tormentos desnecessários. A "pena", que em toda questão ressoa como um não-saber que em seu tempo é, não obstante, um possível poder saber, falta quando o homem afunda diretamente na alegria.
O estado de felicidade, como uma vivência da felicidade em nosso interior, recusa todo problema. Inclusive o aglomerado quase insensível dos múltiplos e pequenos sentimentos vitais e espirituais de prazer que constituem o estado "normal" de saúde e o cotidiano bem-estar, têm vivencialmente - para falar com Scheler - o caráter de "frivolidade metafísica". Neles vive o homem seu bem-estar e depois luta com todas as suas forças. Quão rapidamente se esquece a dor e a enfermidade, uma vez que tenhamos nos livrado delas! Leibniz11 já escreveu "Por mais que a saúde seja o maior dos bens concernentes ao corpo é, pois, a ela que dedicamos menos reflexão e o que menos conhecemos"12.
Voltemos agora o olhar para os sentimentos de desprazer e consideremos primeiro, os sentimentos vitais, depois o desprazer espiritual (a compaixão) e sua relação com a dor e comprovemos em que medida estes estados emocionais impulsionam por si mesmos à pergunta, à meditação.
Uma variedade de sentimentos, cada qual de qualidade distinta, parece ser proveniente do interior do nosso corpo, suscitam inquietude e tensão e são experienciados como perturbações desagradáveis. Assim são a fome, a sede, o cansaço, a opressão e o incômodo em todas as suas nuances, etc., que como estados vitais desagradáveis se diferenciam das impressões ingratas dos sentidos como a luz que cega, as cores berrantes, as dissonâncias, as coisas asquerosas e outras semelhantes. Em contraposição às impressões desagradáveis, os sentimentos vitais de desprazer dizem respeito ao próprio estado corporal e não a um objeto exterior. Nos sentimos cansados, famintos, sedentos, enfermos. Diferente disso, a impressão irritante ou repulsiva de um objeto ou uma situação é, para a vivência, uma propriedade qualitativa dada do mundo exterior e não possui em si e por si nenhuma tendência à reflexão. Nos afastamos, fechamos os olhos, reagimos, porém não refletimos. Além disso, a reação é o meio adequado para suprimir o sentimento desagradável. Se às vezes não se consegue, então a causa não reside no sentimento de desprazer em si ou em seu motivo direto, senão em fatores complicados. No entanto, os sentimentos vitais de desprazer, os chamados "sentimentos comuns", não são eliminados, por uma reação direta, automática, mas é necessário responder a eles com uma ação deliberada: a fadiga exige repouso, a fome, alimentação, a sede, bebida.
Os estados vitais de desprazer têm o caráter de aspectos desagradáveis de vida e, em virtude desse caráter, são estreitamente afinados à dor, que também muitas vezes se atribui aos sentimentos vitais de desprazer. No entanto, existe uma diferença notável em dois aspectos. A dor - falamos da dor "autêntica", a crônica, a que tem que ser suportada, não da dor fulminante, aguda do golpe, da pontada ou da queimadura - não é apenas uma perturbação geral do modo em que nos encontramos, um estado doloroso, mas - como veremos - é sempre um sentir-se ferido, afetado em algum lugar. Tal localização falta nos outros "sentimentos comuns".
Em segundo lugar, existe uma diferença entre a resposta da inteligência e do sentimento. O desprazer puramente vital, tomado em si, incita à pergunta tão pouco quanto a impressão sensível desagradável. O sentimento dá testemunho tão claro de sua causa que impulsiona a ações determinadas, por exemplo, a buscar alimento ou a procurar descanso. Estas formas de atividade são, certamente, por seu sentido, inteligíveis como reações, porque são suscitadas pelo sentir interno, porém se diferenciam, contudo, das reações motoras aos estímulos desagradáveis que provêm do mundo exterior. Estas reações não são apenas mais simples, mais diretas e não deliberadas, são também menos determinadas por representações, esperanças e experiências. Assim, pois, esta diferença pode assinalar-se aproximadamente entre os conceitos de "movimentos reflexos" e "ações instintivas".
Em resumo, pode se dizer que os sentimentos vitais de desprazer se aliviam constantemente por meio de atividades encaminhadas para suprimir o desprazer. As relações entre o sentimento e o plano de ação, que relativamente à sua execução está dado à consciência com todo sentido e, portanto, isento de problemas. Estes sentimentos não nos movem para a reflexão mais que os sentimentos de prazer.
Entre todas as classes de sofrimento espiritual e dor física, existe uma diferença surpreendente. Não em vivacidade, profundidade ou repercussão, mas na atividade interrogante que brota da emoção mesma. Como vivência, o sofrimento espiritual está entrelaçado com todo o campo de representações e com as relações nas quais tem sua fundamentação. Como dor espiritual, este sofrimento está fundido constantemente com todos os processos psíquicos, sentimentos, volições e pensamentos. Suscita juízos que o reforçam ou o atenuam. A reflexão sobre a conexão dos fenômenos que emanam direta ou indiretamente da situação de sofrimento não é certamente a fonte, mas o canal por onde passa o sofrimento. O sofrimento espiritual está envolto em uma problemática própria. No entanto, não é, por sua vez, turvo e opaco, nem problema, nem questão. Na medida em que nós mesmos estamos presos na situação de sofrimento - e isso ocorre sempre - , o estamos como pessoas. Da mesma forma que a alegria, o sofrimento pode nos encher, nos inundar, nos arrastar. A relação com a pensamento é em tal medida tão análoga que em ambos os casos, tanto na alegria como no sofrimento, a reflexão sobre a alegria ou o sofrimento exerce influência sobre a qualidade e a intensidade do sentimento. Precisamente o sofrimento aciona muito sensivelmente a reflexão.
Em oposição aos sentimentos de felicidade que, como vimos, disparam um movimento expansivo interno, um estar-fora-de-si da personalidade, um esquecer-se de si mesmo, o sofrimento em as suas formas leva o homem a ensimesmar-se, a fechar-se em si, exilando-se de tudo o que não tem de uma maneira ou de outra alguma relação com a sua pena. Esta limitação do círculo visual, este voltar-se constantemente a si mesmo, não acontece exclusivamente na esfera emocional, mas também no pensamento. O sofrimento espiritual tem indubitavelmente uma dimensão interrogativa, porém a forma desta atitude interrogativa é diferente na vivência da dor física. A diferença reside, em parte, na relativa transparência do sofrimento espiritual, e de outra parte, na circunstância de que a dor física - em contraste com a dor pessoal - é primariamente a vivência de um conflito que em si mesmo não tem sentido, que ocorre na própria existência. Com isso nos referimos exclusivamente à dor física de alguma duração, não à dor momentânea que - por mais viva que seja - é esquecida muito rapidamente como vivencia e em sua expressão.
A dor crônica não impulsiona menos à reflexão que o sofrimento espiritual, porém na dor já há algo pelo qual a vivência se dá sem explicar para a inteligência corrente, porque na experiência não se pode encontrar nenhum fundamento suficiente para isso. É concebível o fato de que se sofra pela perda de uma pessoa querida, por um erro cometido, por um amor não correspondido, por um dever não cumprido. O sentimento é, por sua vez, tão pouco irracional que nos parece incompreensível que alguém em situação análoga não sofra. Apesar de toda a vivacidade do sofrimento, que dá voltas sem cessar ao pensamento, conforma-se com ele porque compreende-se que ele pertence às circunstâncias.
Porém, quem sofre de dor física pergunta de maneira completamente diferente. É possível que conheça exatamente o motivo da dor - ferida, doença, inflamação - , e um motivo é algo muito diferente de um fenômeno sem sentido, de um incômodo sem sentido. No entanto, o afetado pergunta porque esta ferida, este órgão, esta parte do corpo tem que doer tão vivamente e por tanto tempo. Por que justamente comigo, por que precisamente agora e precisamente aqui? Por que este estado de entrega, esta impotência, esta anulação de toda liberdade, inclusive de pensar, sentir e querer, por que este desconserto? As perguntas suscitadas pela dor têm o caráter de protesto.
A dor, como tal, é duplamente dolorosa porque é, ao mesmo tempo, um enigma atormentador. Não apenas a própria dor, mas também a dor dos demais, inclusive a dos animais, nos coloca, em virtude da compaixão, uma pergunta que brota do mesmo sentimento e depois se expressa em fórmulas mais ou menos racionais, sem que por isso representem a resposta da inteligência ao sentimento. Quem compassivamente se representa a dor anônima de toda a humanidade, quem sabe escutar o grito de dor de toda a criação pedindo sua redenção, percebe neste "cri de couer"13, o caráter inevitável da problemática no fenômeno da dor, comparável apenas à pergunta pelo sentido da doença, da morte, do mal e do pecado. Em todos estes fenômenos sentimos a obscura desarmonia, seu conflito com a conexão de sentido que é imanente à toda vida. No entanto, apenas na dor experimentamos a divisão das unidades orgânicas mais naturais: a divisão da unidade entre nosso ser pessoal e nosso ser corporal.
Nada que venha de outras pessoas, nada estranho, nenhum sucesso, palavra ou pensamento, nem sequer a doença ou a morte, manifestam tão evidentemente seu poder, apenas o nosso próprio corpo nos dói. Minha mão, minha cabeça, doem a mim. Órgãos tais como o coração, os rins, o estômago, que funcionam para mim sem que me dê conta, negam-se a me servir, rebelam-se, doem e me privam de meu domínio sobre mim mesmo. "Este impotente estado de entrega do ser vivo na dor, motiva nos homens seu efeito reflexivo, a saber, a divisão do eu e do corpo. Até no animal que se entrega indefeso à dor, esta desavença entre o corpo e aquele que suporta o corpo, tem uma representação elementar incipiente. Quando a criatura sem um eu se retorce presa pela dor e estoura em gritos frenéticos, parece nestes gritos querer evadir-se de seu corpo doloroso, no qual o retorcer-se representa uma reação difusa de fuga do ponto central persistente e fixo da dor. Até a criatura sem eu tende, na dor, a fugir de seu corpo, apenas sua submersão cega nele não lhe permite se distanciar dele14.
Grito, queixa, lamento, as manifestações naturais da dor, revelam com que intensidade se experimenta a desarmonia na dor, a impotência contra a ruptura entre o eu e sua existência corporal. Felicidade e sofrimento nos preenchem, no entanto, o sentimento de dor nos entrega a um completo absurdo. Ante o tribunal da inteligência, este absurdo elementar de toda dor, não apenas impulsiona ao protesto, mas, além disso, à pergunta positiva por uma causa situada além de toda experiência.
Não é estranho que a experiência da dor, da qual nenhum homem se salva, nos liberte da frivolidade metafísica e nos obrigue a perguntar pelo sentido e pela essência deste "malum". Sem dúvida, esta inquietação pode se tornar inadvertida e inexpressiva na obscuridade de todo sofrimento, porém assim como o cego percebe a silenciosa aproximação de alguém, naquele que sofre surge a pergunta indeterminada juntamente com o angustioso desamparo de toda realidade visível e palpável, que constitui a dor em toda sua obscuridade. O problema da dor no âmbito das vivências pessoais se converte na pergunta pela possibilidade da origem da dor na e pela unidade harmônica da vida. Enquanto experimentamos nossa própria existência empírica e toda vida como exteriorização do movimento próprio, da conservação própria e da própria realização, a dor nos ensina até que ponto somos escravos, perecedores, impotentes, até que ponto a vida abriga dentro dela a possibilidade de ser inimiga de si mesma.
A dor é também sombra e aviso da morte. Nos limites da experiência aparece a morte como o fim absurdo, o qual não se pode pensar em consonância com a vida. O único que se afirma é o limite exterior que também se impõe à existência empírica individual e se deriva categoricamente da ideia da limitação de tudo o que existe, porém, a dor é um limite da vida pessoal interior que não mente em sua limitação exterior, mas se enlaça com a verdadeira interioridade do acontecer orgânico. A dor é o mal mais real e, em consonância, o mal inevitável e incontornável que a vida encontra desde dentro, que a dificulta e a ameaça. Todo homem, inclusive a criança e o santo, está à sua mercê. Portanto, o problema da dor, assim como o da morte, é uma questão de nossa vida pessoal, que apenas em nossa vida pessoal pode encontrar sua resposta.
Nós não morremos mais que uma vez, e a morte pode nos acontecer repentinamente. Diferente disso, a dor se sofre mais frequentemente, e exclusivamente com plena consciência. É certo que "A dor passa, porém, ter sofrido não passa jamais"15. Quem sofreu os horrores da dor muda para sempre. A dor mesma passa, dela se esquece rapidamente, e talvez sua sensação não seja mais lembrada. Porém, o que é, então, essa cicatriz interna que o homem leva consigo, como o signo oculto de uma ferida curada?
Qual é a causa de sua conduta distinta, de sua nova maneira de julgar, de sua nova atitude no que diz respeito às coisas, aos demais homens e a si mesmo?
Apenas a irrecuperável perda da frivolidade metafísica explica porque o sofrimento experimentado não passa jamais. Ainda que se entendam as palavras de Leon Bloy como uma amarga lamentação, como alusão à solidão e à persistência, como um requerimento à circunspecção nas manifestações da inteligência e do coração, esta concepção se destacaria sobre o fundo da expulsão do paraíso da inocência não objetivável e da firmeza da frivolidade metafísica.
A problemática da dor se esgota para a sociedade de nossa época no combate contra a dor, e para a vida pessoal se coloca, sem dúvida alguma, imediatamente a mesma pergunta nascida da ingenuidade da vida. Porém, se a dor continua, então começa uma segunda fase, o silêncio, o gemido mudo, o grito inarticulado que não pede combate, senão salvação. Este grito saído da ingenuidade da vida natural já é a reação metafísica a um sentir-se afetado aparentemente desprovido de sentido, que não pode, no entanto, ser absurdo, porque a vida testemunha a significação de toda experiência.
No claro âmbito da irreflexão em que se vive uma existência isenta de dor, a consciência está cheia de impressões sensíveis e das figuras com as quais tece o espírito. Porém, na obscuridade de sua dor, o homem está sozinho em sua fragilidade interior, desconforme com seu corpo dolorido, descobre uma nova realidade: o que existe. Esta descoberta é inesquecível: "ter sofrido não passa jamais16". A problemática pessoal contém uma questão filosófico-antropológica, uma questão ontológica. Por esta razão nenhum sistema filosófico pôde deixar de lado, sem refleti-lo expressamente, o problema da dor, e não há religião que não tenha ensinado ao homem qual é o sentido do sofrimento, porque e como se deve sofrer como pessoa.
3. O problema da dor na ciência
"A dor é um mistério sem outro análogo no mundo da vida" (Pradines)17
Entre o saber e a vida existe uma contraposição, inclusive desarmonia e tensão, que afetam dolorosamente o homem quando na urgência de sua pergunta pelo sentido e pela essência de suas vivências pede uma resposta à ciência. O que a vida pergunta à ciência não pode ser respondido quase nunca. Isto é decepcionante e inclusive irritante quando se desconhece a índole e o valor da reflexão disciplinada, da investigação metódica em benefício do conhecimento puro das leis do acontecer.
A atitude científica ante os fenômenos é diferente da conduta no trato com eles. Ambos os casos têm em comum, no entanto, o assombro ante o que acontece, a convicção de que há uma realidade por trás de toda aparência e uma conexão necessária e indestrutível no espaço e no tempo. O homem anseia apaixonadamente por uma resposta instantânea e decisiva que dirija suas ações e missões, e lhe permita ver claramente seu lugar e seu futuro no meio de toda insegurança e obscuridade, nascida da incoerente experiência.
Da ciência da natureza viva e da psicologia com ela enlaçada intimamente esperamos, sobretudo, um conhecimento da verdadeira índole e da autêntica significação dos fenômenos dados com a vida individual, sua evolução, suas ações e reações. A decepção pelo silêncio das ciências biológicas sobre as coisas que o homem atual considera importantes é uma das primeiras experiências do ensino universitário, sobretudo no estudante de medicina, que quer abordar e resolver os problemas em meio a plena vida, para ter uma base mais segura de seus tratamentos terapêuticos. Porém, no que diz respeito ao sonho e à fadiga, ao movimento e ao repouso, à puberdade e à velhice, ao sentimento e à inteligência, ao instinto e à vontade, a ciência não trata do que são realmente em seu estado normal e são, e do que significam para a existência do homem.
Inclusive a psicologia se silencia totalmente sobre estas questões quando se consulta os manuais atuais, porque o positivismo também domina esta ciência. E, por mais que tenham sido muitos os experimentos e os dados estatísticos reunidos, é completamente ausente a tentativa de fundamentar a vida sentimental em sua expressão pela linguagem e pelos gestos, seu enlace com os juízos de valor, com a consciência moral, a conduta, assim como as normas da inteligência e da razão. A pressuposição de que todos estes problemas são demasiadamente complicados para uma solução, e não permitem tratamento metódico nem investigação analítica, é tão equivocado quanto o critério de que a ciência oferece fundamentos e conhecimentos muito positivos dos processos elementares, com cujo auxílio se pode explicar toda a realidade da vida humana.
Constantemente se ouve falar de uma impotência essencial, constitutiva, da ciência da vida, que em sua vinculação e orientação para a ciência da natureza inanimada, se vê com uma barreira metódica intransponível. A consequência é que muitos se esforçam para resolver os problemas da vida humana, omitindo o trabalho exato de investigação utilizado para obter resultados válidos objetivamente. Sobretudo, se confiava no que o tratamento literário e poético da vida sentimental poderia chegar a descobrir exemplarmente e expressar simpaticamente o vivido em uma forma de compreensão que está proibida à ciência.
Tudo isso originou em nossos dias uma controvérsia sobre os limites da investigação das ciências naturais, assim como sobre os métodos e o objeto da psicologia, que corre o risco de degenerar em uma discussão estéril sobre puras diferenças formais. Porém, independentemente de tudo isso, no andamento da investigação mesma, são excedidos muitos limites e abandonados princípios metódicos anteriores.
Agora são descobertos e pisam na ciência territórios que já não pertencem por direito a uma especialidade, nem mesmo a uma Faculdade universitária; com isto vemos abrirem-se novas perspectivas na ciência da vida humana e a possibilidade de um conhecimento mais rico e mais valioso.
No entanto, subsiste um princípio: a intelecção da estrutura essencial das coisas e as relações plenas de sentido que há entre elas, exige uma experiência adquirida com tal distanciamento que são eliminadas as aderências sentimentais, juntamente som sua ótica falsa, e se consegue a liberdade do interesse desinteressado, que tem sido e sempre será a vis motrix da ciência pura.
Esta exigência de distanciamento rege também o estudo da natureza viva, inclusive quando se trata de fenômenos que apenas tomam seu verdadeiro selo e caráter na existência humana ou na intimidade da vida pessoal. Por mais que o sentir, o co-sentir e o pós-sentir proporcionem experiências de outro modo inacessíveis, a intelecção do significado destas experiências em sua verdadeira natureza só o consegue uma ciência muito extensa das condições e causas, conexões e consequências.
É certo que o homem que nunca experimentou a dor tampouco tem a possibilidade de meditar sobre ela, porém, a vivência ajuda tão pouco como a introspecção da vivência para que se conheça a função da dor na vida animal e na vida humana. Para isso, é necessário o conhecimento minucioso de todas as esferas da fisiologia e da psicologia a qual pertence a dor como acontecimento objetivo e como sentimento subjetivo, o que quer dizer: intelecção da relação do ser físico e o ser consciente, do indivíduo e o meio, da pessoa e o mundo, da saúde e da doença, incluindo-se alguns fatos e teorias sobre a hierarquia dos organismos, o lugar do homem na natureza, a significação das sensações e dos sentidos e o lugar que ocupam os movimentos de expressão na totalidade da atividade humana e animal.
O problema da dor representa uma questão biológica-psicológica típica, porém esta questão não pode ser levantada mais, quando a psicologia, conservando seu exato método analítico e experimental, se liberta da coação dos esquemas mecânicos de explicação; sabe utilizar a riqueza da análise fenomenológica e, de sua parte, a zoologia se desprende dos prejuízos darwinistas, para recuperar a possibilidade de referir o comportamento dos animais, os fenômenos de expressão e a função dos órgãos dos sentidos à ideia do ser animal.
É de um interesse fundamental também a circunstância de que a diferenciação entre processos corporais e processos de consciência não conduza à sua completa separação e contraposição. Durante muito tempo se tentou, sob a influência do pensamento cartesiano e da autonomia da fisiologia, que estava orientada, ademais, para a físico-química, estabelecer uma separação metódica e prática entre a teoria das funções psíquicas vitais e a teoria dos fenômenos psíquicos. Em conformidade a este critério, se considerava perfeita a investigação fisiológica dos sentidos quando fornecia uma visão minuciosa, detalhada, da origem e do curso das excitações nervosas, por mais que, pelo contrário, a verdadeira questão, o conhecimento da função, só se consegue caso se conheça sistemática e geneticamente as formas de relação entre o organismo e o meio, que se desenvolvem nas percepções, nas atitudes, na ação e nas expressões.
Apenas mediante tal aprofundamento e ampliação das ciências dos objetos vivos pode ser levantada e respondida em parte a pergunta pela índole essencial e significação da dor.
Acreditou-se equivocadamente que a ciência, como conhecimento positivo e ordenado pelas leis causais, devia estar vinculada a uma filosofia autônoma da natureza que aspire compreender o sentido do que existe. A situação metódica é distinta. Todas as ciências biológicas têm como objeto os organismos vivos, que nos são dados como figuras relativamente independentes que, em sua maneira de ser, tal como são, podem ser definidos e determinados temporal e espacialmente. A forma do corpo e do processo funcional são referidos a este ser-aí e esta relação está, por sua vez, plena de sentido. Deste modo, constitui o orgânico, como forma e como história, o objeto da ciência. Como forma, isto é, como totalidade que nunca pode ser concebida a partir de suas partes, como história e processo, isto é, como um acontecer independente, que se cumpre em e por virtude da forma, e no qual o anterior no tempo domina o posterior, porém também, ao inverso, o futuro ao passado.
Por esta razão, toda ciência da vida, fisiologia, biologia, psicologia, tem que referir seu conhecimento dos fatos ao modo de ser-aí do indivíduo, à espécie, sexo, raça ou país ao qual pertence. O objeto da ciência da vida são conexões plenas de sentido e por esta razão a biologia é mais que uma mera ciência natural, uma vez que se define, segundo o protótipo da física, como conhecimento de leis, até onde for possível como formulação matemática.
"A biologia não pertence às ciências exatas e, portanto, não goza do privilégio do método quantitativo" - disse Weizsäcker, e acrescenta - : "A biologia é completamente inconcebível quando se entende que sua tarefa não é diferente da física e da química, cujos problemas ela teria que resolver pela segunda vez, em condições muito mais difíceis"18.
O acontecer vital é histórico e dotado de forma e por esta razão está vinculado a imagens tempo-espaciais. A biologia está sujeita a imagens e, como consequência, parte do descobrimento de qualidades e de sua conexão inteligível. Esta finalidade predomina também no trabalho experimental dos fisiologistas, em toda a analítica de seus métodos: reunir os fatos e intelecções obtidas por diferentes caminhos em uma imagem do acontecer vivente. Esta imagem pode ser, às vezes, construtiva e mecânica, porque no organismo animal muitos fenômenos transcorrem mecanicamente, basta pensar nas funções do sangue, no desenvolvimento da tensão nos músculos, no funcionamento das válvulas do coração ou na filtração dos rins. Junto aos modelos destas funções dos órgãos está, no entanto, a de todo o organismo em seu intercâmbio com o meio, e esta relação é incompreensível mecanicamente, porque as impressões que disparam o movimento são, como este, sempre qualitativas e dotadas de forma. A análise pode unicamente nos fazer conhecer os meios pelos quais se realizam as funções animais.
Diante de tudo, temos que assinalar neste ponto o erro de querer explicar o comportamento do homem e do animal pelo conhecimento do sistema nervoso. Sua estrutura e seu funcionamento nos proporcionam, como todas as condições interiores e exteriores, uma compreensão dos fatores limitantes, porém não da causa suficiente do acontecer real precisamente aqui e agora. Não obstante, o conhecimento minucioso dos processos corporais e das estruturas que constituem seu substrato é de grande valor para a inteligência das funções individuais integrais e das sensações e sentimentos que nelas se manifestam. A razão para isto deve ser buscada na correlação que existe entre a função e seus meios de realização no vivente. A experiência nos ensina que no orgânico cada parte está relacionada ao todo, por meio do qual o estudo do processo em cada parte de um órgão sensorial e do sistema nervoso é de grande importância para a solução do problema da dor. Assim como uma composição musical se compreende e se goza melhor por meio do conhecimento da técnica musical em todos os seus elementos, o conhecimento tipológico de uma espécie animal aumenta com a extensão da análise morfológica, e penetra mais profundamente na significação e índole dos sentimentos e reações de expressão do homem quando se conhecem os múltiplos fenômenos parciais e suas relações, que desempenham um papel no desenvolvimento de sua atividade e vida individual. Como Goethe dizia: "Na natureza vivente não acontece nada que não esteja em relação com o todo, e quando as experiências se apresentam a nós unicamente de modo isolado, quando temos que considerar os experimentos como fatos isolados, nem por isso pode-se dizer que, efetivamente, sejam fatos isolados".
Por mais desejável que seja superar a separação aparentemente bem fundada e realizada praticamente entre a fisiologia e a psicologia, no interesse do estudo das funções pessoais e individuais, este desejo nunca pode conduzir ao menosprezo dos experimentos analíticos nos seus detalhes19. Seu valor é muito grande. O conhecimento das leis dos processos corporais, em relação com as estruturas morfológicas e com os fenômenos de consciência, que permitem os experimentos de laboratório, pode também contribuir em grande medida para a solução das diferentes questões que nos coloca o fenômeno da dor.
Sabe-se que desde sempre as ciências da vida pedem pela adequação entre forma e função. Frequentemente consideram o trabalho de um órgão desde o ponto de vista do princípio de economia. Nos organismos trata-se sempre da adequação, e da utilidade de suas partes e de seu comportamento para a preservação do indivíduo e da espécie20.
Seria, portanto, uma questão tipicamente biológica - frequentemente levantada - perguntar-se se a dor é útil, quer dizer, conveniente no conjunto dos processos reguladores que garantem a integridade da estrutura corporal, o trabalho dos órgãos e a continuidade da existência do indivíduo e da espécie em um meio determinado. No entanto, a biologia, em virtude da tese da utilidade e conveniência da dor, incorre em uma equívoca situação metódica, em duplo sentido. Em primeiro lugar, com relação ao princípio, por demais firme, de que a biologia, como toda ciência natural, deve investigar exclusivamente as relações causais, em todo caso, procurar o conhecimento formal do curso legal dos fenômenos. A consideração da idoneidade e utilidade não é então mais que um princípio "heurístico", um meio para descobrir as relações, porém não uma contribuição direta à coisa mesma. Em segundo lugar, partindo do princípio fundamental da fisiologia mecanicista, florescente na segunda metade do século passado, se segue que com as sensações e os outros conteúdos de consciência que "acompanham" os processos corporais não há nada a ser feito propriamente na biologia.
A pergunta acerca de uma possível conveniência e utilidade da dor só pode se referir então, ao efeito dos fenômenos corporais, nos quais se apresenta ainda um sentimento de dor. Não é estranho que até os casos em que a explicação de utilidade parece convir perfeitamente - por exemplo, quando se retira o pé ao pisar em um prego - justifiquem a pergunta de porquê em tais reações adequadas - presentes também nos animais - tem que se manifestar-se ao mesmo tempo a dor também. Se se indica, como Richet21 entre outros, o caráter de aviso da dor, sobre cuja base o animal e o homem aprendem a evitar uma repetição da experiência prejudicial, então já se excedem os limites da fisiologia como teoria dos processos corporais.
Se se inclui o fenômeno da dor na esfera da psicologia, então é preciso ter em conta que todas as reações às impressões dolorosas são processos corporais. Além disso, ao se limitar a psicologia à teoria dos processos de consciência, ficam em último plano todos os pontos de vista funcionais e biológicos e, sobretudo, a pergunta pela natureza e significação da dor, quer dizer, pelo papel que este fenômeno desempenha em toda vida animal e humana. Se, além disso, se leva em conta a circunstância - uma experiência cotidiana - de que a dor depende, mais do que qualquer outro sentimento, do grau e da qualidade dos movimentos concomitantes de expressão (não causados por ela) e das reações vegetativas, esta circunstância nos persuade ainda mais pelo problema da dor não poder ser considerado exclusivamente como uma questão psicológica.
Temos que indicar, todavia, as dificuldades com as quais tropeça uma explicação científica da dor. A primeira está relacionada com a experiência de que a dor contrapõe, de modo peculiar, a consciência de si mesmo ao próprio corpo. Para compreender esta propriedade fundamental da dor é indispensável uma teoria da corporeidade em geral e do modo e maneira como ela é experimentada e vivida.
Nela se trata, em primeiro lugar, do problema da localização da dor e da teoria dos "signos locais" (Latze) ou da teoria do "esquema corporal" (P. Schilder)22, ou da ontologia da existência corporal como tal. Se a questão tem que ser tratada de modo rigorosamente científico, sem prejuízos metódicos e sem a limitação do campo visual derivada destes, será necessário refletir sobre os fenômenos fundamentais das verdadeiras relações em que estão o homem e o animal com seu arredor e com seu próprio corpo. Conceitos como "posicionalidade" remota e próxima, alheia e própria (Strauss), central e excêntrica (H. Plessner), pertencem à esfera da biologia, que sem eles perde profundidade e amplitude de visão sobre seu objeto.
Uma segunda dificuldade parece residir na questão de se a dor pode ser considerada como um fenômeno "normal" ou se tem relação com um sentimento de reação e suas exteriorizações, que excedem os limites da vida normal. Então, a dor pertenceria melhor à patologia que à fisiologia. Neste caso, não teria sentido investigar a significação da dor, mas seria melhor que se colocasse em primeiro plano sua relação com a doença, a ferida e a morte. Como um fenômeno anormal, a sensação de dor não teria lugar entre as demais sensações dos sentidos, visto que estas constituem o meio de contato normal entre o indivíduo e seu entorno. Porém, um processo patológico, precisamente um processo que como "incidente", ocorre com tanta frequência na vida, a dor, que não pode escapar da biologia, do mesmo modo que não escapa a reação de um traumatismo, a cura de uma ferida, a regeneração e a adaptação morfológica e funcional.
A ciência da natureza viva só pode levantar o problema da dor, e se for o caso responder-lhe, quando concebe o organismo realmente como vivo, ou seja, como um ser que convive em algum lugar e de algum modo, como a indissolúvel unidade de funções sensoriais e motoras; quando os processos sensoriais não são concebidos como excitações passivas, mas como processos condicionados pela atividade e pela atitude do indivíduo, no homem especialmente como um "encontro entre eu e o mundo circundante" (Von Weisäcker)23, não como uma série de causas e efeitos, mas como "decisões". Em uma palavra: apenas a biologia, que é diferente por princípio da ciência da natureza inorgânica e possui seus próprios conceitos e princípios de explicação, sem estar por isso separada da psicologia, pelo fato de que "o objeto dos biólogos é precisamente um objeto no qual habita um sujeito", pode ocupar-se do problema da dor.
Uma propriedade da existência animal individual, que se nota tanto na experiência imediata quanto na investigação cientifica, consiste na unidade indissolúvel dos fenômenos psíquicos e corporais, os quais mantém, no entanto, uma relativa independência. Esta contraposição de unidade e dualidade tem que ser admitida como um dado último, irredutível, e tem que ser mantida sempre em vista. Nem a circunstância de que a unidade psicofísica é tão irrepresentável como a ação recíproca ou o paralelismo entre corpo e psique, nem as dificuldades do problema sobre ser e consciência necessitam ser para o pensamento filosófico causa para que se abandone um dos pontos de vista na ciência de que se teria que lidar com o objeto concreto. E, no entanto, é isto que ocorre.
Enquanto antes se acentuava a independência entre o físico e o psíquico, agora domina a tendência a considerar exclusivamente o organismo à luz da unidade psicofísica. Mesmo prescindindo de um grande número de obras que falam demasiado de "totalidade", muitas investigações neurológicas e psiquiátricas modernas, caracteriológicas e tipológicas, colocam a unidade no ponto central da existência humana (e animal). Os estudos sobre o equilíbrio e a vertigem de Vogel24, Christian25, entre outros, demonstram a indissociável conexão entre sensações, sentimentos e movimentos objetivos. Por último, temos que lembrar os valiosos tratados sobre os movimentos de expressão, nos quais se torna palpável a unidade psicofísica (Klages)26. Neles às vezes se perde de vista a contraposição do corporal e do espiritual.
Contrário a todos eles Plessner27, em suas notáveis investigações sobre o riso e o choro, demonstrou que estas formas de exteriorização apenas podem se explicar "dentro dos limites do comportamento humano" quando, apesar de toda a unidade entre alma e corpo, se manteve sua contraposição polar como estrutura fundamental.
Desde sempre, o médico que não se apega a teorias, mas que segue a experiência direta, penetrou até o mais profundo da verdade da unidade e da mútua independência entre o subjetivo e o objetivo. Para seu diagnóstico - segundo Weisäcker - toma os materiais onde pode coletá-los e relaciona sem pudor algum as manifestações subjetivas do paciente com os sintomas objetivos, por mais que em virtude de sua educação moderna (positivista) quase sempre dê prioridade aos últimos. No entanto, o médico se consideraria frívolo, ligeiro, caso não utilizasse em caso necessário, a mais insignificante manifestação subjetiva para encontrar em um caso obscuro o modo de iluminá-lo.
O pensamento e tratamento médico nascem do contato pessoal entre o médico e o paciente, e por esta razão tem que se tomar cuidado para não perder seu verdadeiro objeto e seu "ethos". O médico não é - segundo Krehl28 - um erudito, um artista, um técnico, mas exclusivamente médico. "Sua atividade tem algo em comum com a desses tipos de homens, porém em sua última finalidade é completamente diferente e ainda muito mais, pois o objeto de sua atividade é o homem como homem".
Em certa medida, o juízo que se exige do médico pode basear-se em um esquema dos processos corporais, das causas de suas perturbações e se pode aplicar este conhecimento ao doente independente dos fatores pessoais. Quando muito, pode nele influir a história anterior, a constituição, o meio vital, investigáveis objetivamente. Porém, quando o paciente como sofredor29 pede ajuda em sua dificuldade, o médico já não está diante de um caso, mas diante de um doente e se exige dele mais do que se exigiria de um erudito, de um técnico. Então, o médico deve compreender o homem, o são e o doente, e certamente de uma maneira peculiar, na qual a pessoa concreta está e deve estar contrária a si mesma, a seu próximo, a suas obrigações vitais e exigências morais. Assim teve em conta O. Schwaz30 em sua Antropologia médica quando disse: "A problemática médica está arraigada profundamente em uma filosofia do espírito". No contato pessoal com a humanidade que sente dor, o médico se vê constantemente diante do problema da dor em toda a sua amplitude.
Ainda quando o médico - em atenção às demandas cada vez maiores que lhe são feitas - deve ver no conhecimento das ciências gerais da Natureza, como a Morfologia e a Fisiologia, a base necessária de sua atividade profissional, ele tem que saber, contudo, mais da personalidade humana que o leigo ou que aquele que adquiriu na prática como conhecimento dos homens, conforme é chamado. Exigir dele uma perfeita educação filosófica seria exagerado; um conhecimento superficial dos fundamentos ou da história da filosofia não produziria mais que decepções, porém uma profunda reflexão sobre os homens e o humano, sobre o espírito e o espiritual é indispensável para compreender o homem com dor e seu sofrimento. O habitual desprezo pela filosofia impede a compreensão do problema do sofrimento, portanto, também da essência e do sentido da dor, não menos que a separação entre psicologia e fisiologia, a qual - se bem admitida teoricamente - acaba sempre superada pelo médico em sua prática. No homem doente o médico encontra o mistério da unidade e a oposição entre a vida psíquica consciente e inconsciente, assim como sua dependência corporal e sua manifestação física na expressão e ao mesmo tempo sua emancipação destas travas na liberdade, racionalidade e moralidade do espírito.
Em virtude da peculiaridade de seu objeto - que é o homem são e o doente - a ciência médica - na medida em que reflete realmente sobre seu objeto - pode constituir o marco de uma biologia teórica e de uma antropologia filosófica e, portanto, encontrar também o acesso a um tratamento científico do problema da dor. Por três razões o médico está obrigado a interessar-se pela dor. Em primeiro lugar, porque, como já ensinou Hipócrates, o médico como tal médico foi chamado por Deus para aliviar a dor. Em segundo lugar, porque a dor como sintoma patológico é de importância fundamental para seu conhecimento. E em terceiro lugar, porque ninguém como o médico - apesar de toda sua atitude objetiva - observa a dor de tão perto. É certo que também o médico, como todo homem, pode estar pleno de compaixão para com o paciente, porém sua tarefa mais importante não consiste em esbanjar consolos, mas em curar, portanto, em saber. Por isto aplica-se a ele, por mais que tenha que ter em conta o homem e não a enfermidade, a exigência da devida distância e a eliminação dos afetos emocionais, que enevoam o olhar, fixam o pensamento, colorem os conceitos e perturbam o julgamento. Quando o médico se inclina sobre o leito do enfermo, verá diante de si na angustiosa tensão das feições do rosto, nas pupilas dilatadas, na pele pálida, no suor frio, na lamentação e na agitação motriz, nas palavras de desespero e no pedido de salvação, a imagem inteira do homem que padece pela dor. E reconhecerá nela a relação estreita da dor na vida vegetativa e animal e com tudo o que é puramente humano e pessoal, com as qualidades de caráter e os valores morais, com o obscuro poder do inconsciente, com a força de vontade que é gerada na claridade da inteligência e no coração, com a atitude em que o homem, preso nas cadeias dolorosas de sua corporeidade, está sujeito a si mesmo e a Deus.
Então descobre o médico, como pensador científico, a amplitude e a profundidade do problema da dor, a conexão da dor com os processos fisiológicos, psicológicos, patológicos e pessoais, com o ser animal e humano. No entanto, o médico silencia ante a dor, não se vê apenas ante um problema, mas também ante um mistério, "um mystère sans analogue dans le monde de la vie"31. Precisamente a dor torna-se evidente ao médico no homem com dor como o absurdo absoluto na vida mesma, em sua mais íntima interioridade. A dor é o "malum", o que se opõe à vida, o que obstrui e ameaça, no qual o homem, abatido como um mísero animal, sofre mil mortes32.
Nesta treva de impenetrável absurdidade, percebe também o médico na cabeceira do enfermo o resplendor de uma luz misteriosa, o fulgor do que há de eternamente imodificável na pessoa do homem, o qual pode ter sentido a falta de sentido do mundo.
Nota Biográfica
Frederik Jacobus Johannes Buytendijk (1887-1974). Biólogo, Antropológo, Psicólogo e Fisiologista holandês, nascido em Breda (29 de abril) e falecido em Nijmegen (21 de outubro). Presidiu a Federação Internacional de Medicina do Esporte, de 1930 a 1933. Doutor em Medicina pela Universidade de Amsterdam (1909), foi premiado por seus trabalhos sobre a função da adrenalina. Durante a I Guerra Mundial, foi mobilizado como médico militar, dirigindo o Departamento de Psiquiatria e Neurologia do Hospital de Amsterdam. A partir de 1919, dedica-se a temas relacionados à biologia e fisiologia, desenvolvendo experimentos sobre o comportamento animal. Manteve estreitos contatos com personalidades como Helmut Plessner, Hans Driech e Max Scheler, influenciando suas publicações sobre Psicologia Comparada. Posteriormente, aproxima-se de Viktor von Weizsäcjer e Viktor Emil von Gebsattel, marcando assim a influência da Fenomenologia sobre sua obra. Durante a II Guerra Mundial, novamente mobilizado, é feito refém pelas forças de ocupação nos Países Baixos, e é durante a prisão que escreve o livro sobre a Dor. Em 1946, é nomeado professor de Psicologia Geral na Universidade de Utrecht; posteriormente (entre 1948-1963) leciona na Universidade de Louvain.
Revisão Técnica: Tommy Akira Goto (Universidade Federal de Uberlândia)
1 Buytendijk, F. J. J. (1958). El Dolor. In F. J. J. Buytendijk, El dolor: Fe nomenología, psicología, metafísica (p. 15-59). Traduzido do alemão por Fernando Vela. Madrid: Revista de Occidente. [ Links ]
2 Boussuet, Oraison funèbre de la Princesse de Gonzague. [ Links ]
3 Leriche discute brilhantemente o ponto de vista da luta contra a dor: "É preciso abandonar a falsa ideia da dor benfeitora. A dor é sempre um presente sinistro que diminui ao homem, o faz pior do que seria sem ela e o dever estrito do médico é esforçar-se em suprimi-la, caso seja possível", A cirurgia da dor. 2. ed. Masson, Paris, 1940. [ Links ]
4 Je n'ai que ma douleur et jê ne veux plus que´elle elle m´a été et m´est encore fidèle.
5 Véase, Mgr. Von Keppler, Lijdensschool, Leuven, 1927, página 135. [ Links ]
6 F. Sauerbruch y H. Wenke, Wesen und Bedeutung des Schmerzes, p. 114 (Junker und Dünnhaupt, Verlag, Berlín, 1936). [ Links ]
7 Souffrir passe, avoir souffert ne passe jamais.
8 León Bloy, Le Pélerin de l´Absolu
9 Pena em espanhol, Pein em alemão, Pain em inglês, derivam do latim (pena) com a significação originária (cristã) de "castigo, condenação".
10 "Ao mal pecado (este malum quod est culpa, de que fala São Tomás de Aquino, esse mal criado pelo homem e que fere a Deus), Deus responde com o mal dor (este malum quod est poena, que faz mal ao homem)", Charles Grolleau, Quelques propositions sur la douleur, Etudes carmélitaines, 1936, vol. II, outubro, Desclée de Brouwer, Paris. [ Links ]
11 Leibniz, Lettres, t. I, carta 43.
12 Quoique la santé sit Le plus grand des biens qui concernent Le corps, c'est pourtant celui auquel nous faisons Le moins de réflexion et que nous connaissons le moins.
13 Nota das tradutoras: "grito do coração"
14 V. E., v. Gebsattel, Süchtiges Verhalten im Gebiet sexueller Verirrun gen, Monatsschr. f. Psychiatr. U. Neurol., tomo 82, 1932, p. 127. [ Links ]
15 la doleur passe, avoir souffert ne passe jamais.
16 Avoir souffert ne passe jamais.
17 La douleur est um mystère sans analogue dans le monde de la vie.
18 V. v. Weizsäcker, Handb. d. norm. u. path. Physiol., XI, 1, pág. 57. [ Links ]
19 P. ej., Grondproblemen van het dierlijk leven, Philosoph. Bibliotheek, Amberes, 1938. [ Links ]
20 P. ej., Grondproblemen van het dierlijk leven, Philosoph. Bibliotheek, Amberes, 1938. [ Links ]
Wege zum Verständnis der Tiere, Max niehans Verlag, Zurich, 1938. [ Links ]
Buytendijk y Plessner, Die pshysuilogische Erklärung des Verhaltens. Eine Kritik an der Theoria Pawlows (Acta Biotheoretica, vol. I), 1935, pág. 151. [ Links ]
21 Ch. Richet, Dictionnaire de Physiologie, 1902, artículo "Douleur". [ Links ]
22 P. Schilder, Das Körperschema. Ein Beitrag zur Lehre vom Bewusstsein dês cigenen Körpers, Berlín, 1923. [ Links ]
23 V. v. Weizäcker, Der Gestaltkreis, Leipzig, 1940. [ Links ]
24 P. Vogel, Pflügers Archiv 228 (1931), p. 150, 682 e 230, (1932), p. 16. [ Links ]
25 P. Christian, Wirklichkeit und Erscheinungen in der Wahrnehmung Von Beuegung, Zeitschr. f. Sinnesphysiol., tomo 68, 1940, p. 151-183. [ Links ]
26 L. Klages, Grundlegung der Wissenchaft vom Ausdruck, Leipzig, 1936. [ Links ]
27 H. Plessner, Lachen und Weinen. Eine untersuchung nach den Grezen menschlichen Verhaltens, 1941, 2. ed. Francke Verlag, berna, 1949. [ Links ]
28 Citado por E. Lieck, Der Arzt und seine Sendung, Munich, 1927. Ver também V. v. Weizsäcker. Der Arzt und der Kranke, Die Kreatur I, 1926, p. 69-86 e Medizinische Anthropologie, [ Links ] Philos. Anzeiger II, 1927, p. 205-263. [ Links ]
29 Inserir nota das autores sobre a tradução de doliente.
30 O. Schwartz, Medizinische Anthropologie, Leipzig, 1929, p. VII. [ Links ]
31 Um mistério sem igual no mundo da vida.
32 Até que ponto o fenômeno da dor não tem sentido para o médico é expresso por Leriche. Ainda que para o diagnóstico o sintoma da dor tenha apenas um pequeno valor. "Para os médicos que vivem em contato com os doentes, a dor não é mais do que um sintoma contingente, perturbador, penoso, às vezes, difícil de suprimir, mas que quase nunca tem grande valor par o diagnóstico nem para o prognóstico ". "Reação de defesa? Aviso afortunado? Mas, de fato, a maioria das enfermidades, e as mais graves, se instalam em nós sem gritar. Quase sempre, a enfermidade é um drama em dois atos, o primeiro, calado, sinuoso, se desenvolve no silêncio de nossos tecidos, com as luzes apagadas, antes de que as velas se acendam. Quando a dor aparece, quase sempre está já em segundo ato. É demasiado tarde. O desenlace já está em potência. É iminente. A dor não fez mais do que deixar mais penosa e triste uma situação já há muito tempo perdida". "Eu, pergunto, que aviso nos dá uma neuralgia do trigêmeo? " "Se a natureza tivesse cuidado de nós, se tivesse as atenções que se lhes supõem, não é quando um cálculo renal não pode já ser eliminado pelas vias naturais que nos advertiria, mas no momento em que não é mais que o pó que se pode eliminar facilmente", p. 39-40, obra citada.