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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.26 no.3 Goiânia set./dez. 2020

https://doi.org/10.18065/2020v26n3.1 

RELATOS DE PESQUISA

 

Experiência de ser esposa de policial militar: um estudo fenomenológico

 

Experience of being wife of a military cop: a phenomenological study

 

Experiencia de ser pareja de un policía militar: un estudio fenomenológico

 

 

Katarinne Soares; Rosa de SouzaI; Shirley MacêdoII

IGraduada em Psicologia pela Universidade Federal do Vale do São Francisco - UNIVASF. Mestranda em Psicologia - Práticas e Inovação em Saúde Mental pela Universidade de Pernambuco - UPE. Email: katarinnesoares7@gmail.com
IIDoutora em Psicologia Clínica, Professora Adjunta 4 do Colegiado de Psicologia e da Residência Multiprofissional em Saúde Mental da Universidade Federal do Vale do São Francisco - UNIVASF - Endereço Institucional: Av. José de Sá Maniçoba, s/n, Centro, 56304205 - Petrolina, PE - Brasil. E-mail: mvm.shirley@gmail.com

 

 


RESUMO

O trabalho do policial militar é permeado por diversas particularidades inerentes à profissão, que acabam por afetar sua vida pessoal e sua família. Diante dessas problemáticas, marcantes e complexas, o presente estudo teve por objetivo geral compreender sentidos da experiência de ser esposa de policial militar. Especificamente, objetivou-se, na ótica dessas mulheres, descrever esses sentidos, investigando em que medida o trabalho do companheiro afeta a saúde e a qualidade de vida delas e/ou da família; bem como identificando dificuldades enfrentadas por elas e os impactos do trabalho do companheiro no relacionamento conjugal. Tratou-se de um estudo qualitativo fenomenológico, que utilizou entrevista individual aberta com pergunta disparadora. Colaboraram quatro esposas e as unidades de sentido reveladas foram: vulnerabilidade, sensação de insegurança e atenção constantes; preocupação com riscos à vida do companheiro; incertezas quanto ao planejamento de vida; afetações quanto às mudanças na rotina; limitações na vida social do casal; risco de infidelidade; tentativa de preservação da relação; mudanças no próprio comportamento; e mudanças no comportamento do companheiro. Concluiu-se, principalmente, que há repercussões do trabalho dos companheiros na saúde, qualidade de vida e relacionamento conjugal dessas esposas, o que pode invisibilizar suas condições sociais de serem mulheres.

Palavras-chave: Policial Militar; Família; Conjugalidade; Trabalho; Pesquisa Fenomenológica.


ABSTRACT

The work of the Military Cop is permeated by several peculiarities inherent to the profession, which affect his personal life and his family. Given these issues, striking and complex, the present study aimed at understanding the experience of being the wife of a military police officer. Specifically, from the perspective of these women, we aimed to describe these senses, investigating the extent to which the husband's job affects their health and quality of life and/or the family; as well as identifying difficulties faced by them and the impacts of the partner's profession on the marital relationship. This was a phenomenological qualitative study using an open individual interview with a triggering question. Four wives participated and the revealed units of meaning were: vulnerability, constant sense of insecurity and vigilance; concern about risks to the life of the partner; uncertainties about life planning; changes in routine; limitations in the couple's social life; risk of infidelity; attempt to preserve the relationship; changes in her own behavior; and changes in husband behavior. In conclusion, there are repercussions of the work of their husbands on their health, quality of life and marital relationship, which can make invisible their social condition of being a woman.

Keywords: Military Cop; Family; Conjugality; Job; Phenomenological Research.


RESUMEN

La labor del Policía está permeada por particularidades inherentes a la profesión, que terminan por afectar la vida personal y familiar. Delante de esas problemáticas el presente estudio tuvo por objetivo comprender sentidos de la experiencia de ser esposa de un policía. Se tuvo por objetivo, en la óptica de esas mujeres, describir esos sentidos, investigando en qué medida la labor del compañero afecta la salud y la calidad de vida de ellas y/o de la familia; identificando dificultades enfrentadas por ellas y los impactos de la labor del compañero en el relacionamiento conyugal. Estudio cualitativo fenomenológico, en que se utilizó entrevista individual abierta con pregunta disparadora. Colaboraron cuatro mujeres y las unidades de sentido reveladas fueron: vulnerabilidad, sensación de inseguridad y atención constantes; preocupación con riesgos a la vida del compañero; incertidumbres relacionadas a la planificación de vida; afectaciones relacionadas a los cambios en la rutina; limitaciones en la vida social de la pareja, cambios en su comportamiento y en el del compañero. Se concluye que hay repercusiones de la labor de sus compañeros en su salud, calidad de vida y relacionamiento conyugal de esas mujeres, lo que puede conducir a la invisibilidad su condición social de ser mujer.

Palavras-clave: Policía Militar; Familia; Nupcialidad; Labor; Investigación Fenomenológica.


 

 

Introdução

Tem-se percebido no Brasil um aumento constante dos diversos tipos de violência (Oliveira & Santos, 2010) que afeta a todos, seja direta ou indiretamente. Sabe-se, portanto, que independente da gravidade e resolução deste problema, há uma classe que sempre estará continuamente vulnerável às mazelas oriundas da violência e da criminalidade social: os policiais militares e seus familiares (Costa, Acciolly Jr., Oliveira & Maia, 2007; Derenusson & Jablonski, 2010; Minayo & Adorno, 2013).

Pelas atribuições do seu próprio trabalho, o policial está sujeito ao risco iminente à sua vida. Estudo de Souza e Minayo (2005) revelou que o número de mortes de policiais militares por causas violentas foi 6,18 vezes maior que na população comum; além disso, apontou que esse número aumentava nos momentos de folga destes trabalhadores: em 2004, morreram por ações violentas 2,8 vezes mais policiais em folga do que em serviço. Dados de dezembro de 2017 mostraram que, em São Paulo, um policial é morto a cada cinco dias. Desde 2001, são 1.147. Do ano de 2015 até o de 2017, a violência ocasionou o afastamento de 3.113 homens e mulheres por facadas, tiros, atropelamento por bandidos, capotamento de viatura, dentre outros tipos de acidentes, tanto em serviço como nas folgas (Godoy, 2017).

Os riscos a que um policial militar está permanentemente submetido são chamados por Souza e Minayo (2005) de riscos de alta consequência, os quais acompanham o profissional desde os momentos de serviço até os de lazer, mantendo-o constantemente exposto (Souza & Minayo, 2005; Derenusson & Jablonski, 2010; Oliveira & Santos, 2010). Tais riscos desempenham um papel estruturante no que diz respeito às condições laborais, ambientais e relacionais desse profissional, o que acaba por afetar a sua família, que fica mais exposta que o resto da população. Derenusson & Jablonski (2010) lembram, inclusive, Da Matta (1997), que já afirmava que, diante dessa imersão subjetiva, a "casa" do policial é invadida pelos códigos e ameaças da "rua".

Não são apenas os riscos que acompanham o policial na ausência da farda. Em cada escolha da vida, ele é afetado pela profissão que escolheu. Eis uma questão complexa, pois, como frisou Oliveira & Santos (2010), a profissão militar tem como forte característica exigir sacrifícios numerosos do profissional, dentre eles, o da própria vida - o que inclui o âmbito familiar - em prol da vida do outro. Observa-se isto no exercício baseado na abnegação e entrega ao serviço, pois a grande filosofia que perpassa esta experiência é a de ser trabalhador em tempo integral (Muniz, 1999).

Oliveira e Santos (2010) afirmam que um ambiente familiar saudável e algumas horas de repouso contribuem positivamente para o equilíbrio mental e uma consequente melhoria na atuação do policial militar, tendo em vista as características do seu trabalho. Contudo, estudos como os de Minayo, Assis e Oliveira (2011), Derenusson e Jablonski (2010), Oliveira e Santos (2010), e Minayo e Adorno (2013) mostram que o estresse deixa o policial mais propenso a problemas conjugais e familiares do que cidadãos em geral. Esses estudos lembram, também, o que Muniz (1999) já afirmava ser voz recorrente dentro das corporações: conflitos conjugais, que, na vida dos policiais militares, são mais elevados.

Além disso, autores como Minayo, Souza e Constantino (2007), bem como Derenusson e Jablonski (2010), discutem que, muitos profissionais, por conta do baixo salário, trabalham nos momentos de folga com o intuito de complementar a renda, o que favorece a exposição a maiores desgastes físicos e mentais. Percebe-se, portanto, que o alto envolvimento com as demandas profissionais, a baixa remuneração e o pouco aproveitamento da folga tendem a refletir, constantemente, nas suas vidas pessoais (Ferreira, Bonfim & Augusto, 2011), afetando, também, o rendimento no trabalho (Oliveira & Santos, 2010).

As realidades nas quais os Policiais Militares se inserem diariamente costumam ser desagradáveis de presenciar e difíceis de explicar. É necessário lidar com os mais diversos cenários perpassados pela violência: corpos atingidos por balas, em decomposição, ou até mesmo um anônimo sufocando-se em seu próprio vômito. Esses fatos, muitas vezes dolorosos, acabam sendo partilhados apenas entre eles, raramente, com seus familiares (Muniz, 1999). O estudo de Machado, Traesel e Merlo (2017) verificou que estes profissionais, no intuito de não causar preocupação, escondem seus sofrimentos dos familiares. Mesmo que em alguns momentos isso sirva como uma estratégia de proteção, pode levar a um empobrecimento nas relações do casal e/ou da família, nas quais há, constantemente, empenho em esconder sentimentos reais.

Derenusson e Jablonski (2010) destacaram que uma queixa frequente entre esposas de militares é que seus cônjuges apresentam, após entrada na corporação, mudança indesejável de identidade, tais como indiferença à família, rigidez e, até agressividade. A percepção não está restrita às esposas: muitos policiais reconhecem essas mudanças. Há, também, casos de profissionais que, por terem enfrentado situações traumáticas, não puderam mais dispor apoio emocional à família.

Outro fator, citado pelos mesmos autores, que gera impacto na vida da família do policial militar, é o seu horário de trabalho. Principalmente dos profissionais que atuam no policiamento externo, em serviços com escala, associados, geralmente, a problemas de saúde tanto físicos quanto mentais. Por conta desse regime, os momentos de confraternização da família são afetados, uma vez que a maioria deles coincide com os dias de trabalho. Tal imprevisibilidade interfere na própria rotina do casal e/ ou da família (Derenusson & Jablonski, 2010).

Algo importante, no que diz respeito à família e, na maioria das vezes, às esposas de Policiais Militares, é a preocupação constante com a integridade física do profissional. A própria rotina de risco desse sujeito o deixa, em certos momentos, acostumado com essa prática. Sua família, porém, sofre com as repercussões geradas pelo medo da morte do ente querido (Machado et al., 2017).

Para além de questões como violência, insegurança constante, estresse laboral e pressão advinda do próprio trabalho, já atestados pela literatura, o profissional tem que lidar com a sua vida privada, que inclui, prioritariamente, a sua família - não que, a essa altura, dê para separar, pois, como já citado, todas estas questões ultrapassam a vida profissional. Dados de estudos como os de Ferreira et al. (2011) mostram que o estilo de vida do policial militar não depende apenas do contexto profissional, mas também do pessoal, e da qualidade de suas relações. Todos estes aspectos podem levar a comprometer a prestação de seus serviços à sociedade.

Portanto, diante das problemáticas, marcantes e complexas, que afetam a vida não apenas de um policial, mas de sua família, surgiu o interesse pelo tema da presente pesquisa. Enquanto esposa de policial, uma das autoras deste artigo pôde perceber alguns dos sabores e dissabores desta profissão, não apenas do lugar de quem observa, mas como alguém que compartilha e vivencia os impactos e afetações que esta experiência pode gerar. Enfrentou mudanças e adaptações no seu dia a dia que, por ora, acabaram por fazê-la questionar se, assim como a sua, essa experiência seria permeada de significados comuns na vida de outras mulheres esposas de policiais militares.

Dada a importância do apoio familiar na vida de um profissional que carrega tantas problemáticas derivadas das particularidades do seu ofício (Oliveira & Santos, 2010; Ferreira et al., 2011), considerou-se relevante inclinar-se em direção a este tema, na busca de compreender a experiência de algumas esposas e, posteriormente, abrir espaço para contribuir para este contexto familiar, muitas vezes esquecido pela comunidade científica.

 

Objetivos

O objetivo geral desse estudo foi compreender sentidos da experiência de ser esposa de policial militar. Especificamente, objetivou-se, na ótica dessas mulheres, descrever esses sentidos, investigando em que medida o trabalho do companheiro afeta a saúde e a qualidade de vida delas e/ou da família, bem como identificando dificuldades enfrentadas por elas e os impactos do trabalho do companheiro no relacionamento conjugal.

 

Método

O presente estudo respeitou as normas éticas dispostas nas Resoluções nº 466/12 e 510/16 do Conselho Nacional de Saúde. Foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF), registrado sob o CAEE nº 88556918.2.0000.5196 e aprovado pelo parecer 2.663.302. Caracterizou-se como um estudo de natureza fenomenológica, de caráter qualitativo que, segundo Amatuzzi (1996), foca o sentido e os significados de uma experiência: trata-se do estudo do vivido e da experiência imediata. Macêdo e Caldas (2011), lembrando Bicudo e Martins (1989), afirmam que a pesquisa fenomenológica inicia-se a partir de uma interrogação sobre o fenômeno, buscando os sentidos da experiência e resultando em dados pautados nas significações oriundas das tematizações do sujeito sobre a experiência.

Estabeleceram-se como critérios de inclusão que as colaboradoras fossem esposas de policiais militares, com companheiros com, no mínimo, dois anos de serviço na Polícia Militar, independente da faixa etária, tempo de conjugalidade e se tinham filho ou não, e que estavam disponíveis a participar desta pesquisa. Excluiu-se do estudo esposas que fossem policiais militares; que tivessem qualquer tipo de relação direta com as pesquisadoras; e cujos companheiros fossem do rol de relacionamentos dos cônjuges das mesmas.

O instrumento utilizado foi a pergunta disparadora (Amatuzzi, 2008), que busca compreender o sentido da experiência através de narrativas ou relatos e permite percorrer a experiência vivida pelo sujeito, ao mesmo tempo em que revela como diferentes pessoas experienciam situações em comum (Andrade & Holanda, 2010).

Amatuzzi (2008) afirma que essa pergunta acaba por proporcionar ao sujeito um contato direto com as suas experiências, facilitando a sua descrição e favorecendo ao pesquisador uma melhor compreensão dos significados e sentidos das mesmas. O seu uso, segundo Macêdo & Caldas (2011), se constitui como um facilitador da aproximação de significados, tanto psicológicos, quanto culturais, ideológicos, biológicos e sociais.

A entrevista, sendo aberta, viabiliza que o pesquisador caminhe pelo discurso do sujeito, acompanhando com ele os significados que vão emergindo e, algumas vezes, a partir de intervenção interrogativa, o sujeito se dá conta de significados da experiência que ele ainda não tinha se apropriado (Macêdo & Caldas, 2011, p. 10).

A pergunta disparadora nesta pesquisa foi: Como se dá a sua experiência de ser esposa de policial militar? Tal questionamento teve o propósito de abrir um diálogo, mas a pesquisadora não poderia perder de vista os objetivos específicos traçados, tendo que inserir perguntas ao longo da entrevista que pudessem facilitar o alcance dos mesmos, mas sempre dando prioridade à narrativa da experiência relatada pela colaboradora.

Inicialmente, foi solicitada uma indicação de telefone da primeira possível colaboradora através de policiais militares conhecidos pelas pesquisadoras. No contato telefônico com a primeira colaboradora, após checar se a mesma se enquadrava nos critérios de inclusão e exclusão, foi apresentada a proposta e os objetivos da pesquisa, bem como questionado sobre a disponibilidade ou não dela participar. Acordou-se agendamento de horário para a entrevista no Centro de Estudos e Práticas em Psicologia (CEPPSI) da UNIVASF, local escolhido para garantir sigilo e privacidade.

Antes do início da entrevista, no entanto, e após leitura e elucidação das possíveis dúvidas, foi solicitado que a colaboradora assinasse o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Após a assinatura, a pesquisadora proferia a pergunta disparadora, sendo a entrevista gravada em iPhone modelo 8 plus, da Apple.

A partir da primeira entrevista, foi solicitada indicação de telefone(s) de nova(s) mulher (es) com as mesmas características, proporcionando, a partir daí, a ampliação do número de colaboradoras a participar, assim como propõe Vinuto (2014). No entanto, como a entrevistada alegava não ter contatos telefônicos de outras esposas, recorreu-se a outros policiais para obter esses contatos. Diante desta dificuldade, quando se chegou ao total de quatro entrevistadas, encerrou-se a coleta, considerando-se que em pesquisa fenomenológica não se privilegia a quantidade de uma amostra, mas a qualidade das narrativas e suas possibilidades de chegar aos objetivos traçados. Cada entrevista individual durou cerca de quarenta minutos, ocorrendo em tempo satisfatório para que os objetivos fossem alcançados e se findasse a narrativa sobre a experiência investigada.

Os passos utilizados para a análise dos dados foram os propostos por Macêdo (2006, 2015), que se baseia em Amatuzzi (2001) e Giorgi (1985):

a) Inicialmente foi realizada uma leitura integral de cada depoimento, após a sua transcrição, quantas vezes fossem necessárias para que as pesquisadoras alcançassem significados e sentidos da experiência narrada.

b) Em uma análise posterior, as pesquisadoras buscaram encontrar elementos significativos, atribuindo às falas de cada entrevistada uma linguagem psicológica.

c) Com os significados compreendidos da experiência narrada, foi formatado um texto que constituiu a análise preliminar de cada entrevista.

d) Cada colaboradora teve a oportunidade de receber a análise preliminar de seu relato, num contexto de entrevista devolutiva, que teve por objetivo a confirmação, alteração ou modificação da análise realizada pelas pesquisadoras, por parte das colaboradoras. Amatuzzi (2001) sugere esse passo no intuito de evitar um comprometimento do sentido da experiência narrada.

e) Após esse quarto passo, as pesquisadoras buscaram, conjuntamente, compreender os sentidos em comum emergidos pelas análises de todas as colaboradoras, estabelecendo Unidades de Sentido.

 

Resultados e Discussão

Escolheu-se identificar as colaboradoras do presente estudo por meio de pseudônimos, a partir dos sentidos atribuídos às experiências narradas e compreendidas, no intuito de preservar suas identidades. Optaram-se, então, por nomes de mulheres guerreiras da história, algumas pouco lembradas, que lutaram bravamente em campos de batalha, sendo responsáveis por grandes feitos e vitórias militares na sua época. Sendo assim, elas foram nomeadas: Artemísia, Mochizuki, Anita (Garibaldi) e Dandara.

As Unidades (US) que serão especificadas na tabela abaixo dizem respeito aos sentidos em comum a todas as esposas, ou à maioria delas:

 

 

Dentre os sentidos compreendidos da experiência de ser esposa de policial militar, estão a vulnerabilidade e a insegurança constantes, revelada por todas as colaboradoras, como se lê nos recortes de narrativas abaixo:

Nós não sabemos se a nossa vida está segura, porque a insegurança da vida, da sociedade como um todo, já está num nível muito grande, só que a nossa duplica, porque nós somos inseguras em relação à sociedade comum e à sociedade militar. Essa é a nossa realidade. (Anita)

Hoje, como tem muito a questão da violência, a violência cresceu muito, muitas esposas são usadas também como vítimas, não é? E, às vezes, acho que o medo também é disso, de você ser sequestrada, sei lá, ser reconhecida. (Artemísia)

É muito mais delicado você ter essa profissão e você ser esposa, porque a partir do momento que você é uma pessoa que se expõe, você está expondo sua família; a partir do momento que você é uma pessoa que recua um pouco, então você também está protegendo a sua família. [...] Ele não nos expõe de forma alguma, justamente por isso, porque é questão mesmo de proteção não é? Proteção para mim e para os meninos. (Dandara)

Como esposas de policiais militares, as colaboradoras reconheceram estar mais vulneráveis às mazelas advindas da criminalidade e da violência, já que vivem inseridas num contexto que lida diretamente com essa realidade. Derenusson & Jablonski (2010) atestaram realidades semelhantes em seu estudo, justificando o fato tanto pela natureza das funções do policial militar, que tem o risco como elemento central, quanto pelas expectativas sociais de resoluções de conflitos que atravessam e estigmatizam o papel desse profissional. Autores como Minayo et al. (2007, p. 2768) afirmaram, sobre isso, que "seus corpos estão permanentemente expostos e seus espíritos não descansam", o que leva à próxima US compreendida.

Devido à vulnerabilidade e insegurança, as esposas também relataram que estão em estado de atenção constante, que as acompanha na maior parte do dia a dia, em momentos comuns, rotineiros, ou de lazer:

A gente não faz o mesmo caminho todas as vezes. E até para eu ir para a faculdade, tenho que prestar atenção nisso. Mesmo eu sozinha, vou dirigindo e chego em casa. Isso já virou até habito para mim. Eu mudo o percurso, porque pode ter alguém perseguindo, alguma coisa assim, e a gente não percebe. Aí acaba trazendo para dentro de casa uma coisa que é externa. Mas você começa a viver aquilo. (Artemísia)

Às vezes, [um estranho] olha para você e quando ele diz assim 'eu te conheço de algum lugar', você já fica com medo. Você fica com medo porque você não sabe se ele lhe conhece de algum lugar qualquer ou se é porque ele lhe reconheceu porque sabe que você é vinculada ao militarismo. E isso acontece demais com as pessoas. (Anita)

Porque em todo lugar andam certos tipos de pessoas. Então, não só ele como eu por ser, eu creio, não é, que seja, por ser mulher dele, policial, criou isso em mim de quando estou em algum lugar eu fico atenta, como ele também, se eu vir algum movimento suspeito, eu falo. (Mochizuki)

Compreendeu-se, então, que para além do risco real (vulnerabilidade e insegurança constantes) que elas enfrentam por serem esposas de policiais militares, existe uma angústia que acaba por deixarem-nas constantemente em estado de alerta, temendo que algo aconteça às suas vidas. Essa hipervigilância, associada ao contexto vivenciado pelo policial militar e, consequentemente, sua família, é destacada em vários estudos (Muniz, 1999; Moraes et al, 2001; Costa et al., 2007; Minayo et al., 2008; Oliveira & Santos, 2010; Minayo & Adorno, 2013). Muniz (1999) aborda esse comportamento hipervigilante como um modo de administração cotidiana da realidade enfrentada, confirmando o que Da Matta (citado por Derenusson & Jablonski, 2010, p. 23) já enfatizava sobre a casa do policial ser invadida pelos códigos e ameaças da rua.

Atrelado a tudo isso, parece estar a preocupação com riscos à vida do companheiro, expressa nas falas abaixo:

O meu maior medo, a minha maior angustia é meu marido sofrer um acidente, e onde ele estiver não ter um hospital de traumas como aqui tem para dar suporte; onde ele estiver não ter ninguém que vá conseguir falar comigo, conseguir falar com algum outro policial, com alguma pessoa da nossa família para socorrê-lo; ou, até mesmo, se ele morrer em serviço, e ninguém conseguir dizer a mim que o meu marido não vai voltar mais. Esse é um dos meus maiores medos. É de olhar para os meus filhos e dizer: o pai não volta mais; é ter que ligar para minha família e dizer: não volta. Por que a vida de uma esposa de militar é ter sempre a oração na mão. (Anita)

Normalmente, eu falo para a minha mãe: Mainha, qual é o meu futuro? Eu estou propícia a ser uma viúva, por que ele vive exposto aí, sabe? [...] Aí só me resta ir orar, pedir a Deus para proteger, começo logo a chorar, com medo, sabe? Medo de perder. (Dandara)

Compreende-se, pelos recortes acima, o quanto as experiências das colaboradoras parecem ser atravessadas pelo medo de perder seus companheiros ou de vê-los atingidos, e o quanto se apegam à religiosidade para minimizar suas angústias perante essas possibilidades. Além disso, algumas acreditavam estar propensas a ter que lidar, em algum momento, com a situação.

Alguns estudos (Silva & Vieira, 2008; Derenusson & Jablonski, 2010; Oliveira & Santos, 2010; Machado et al., 2017) e indicadores atuais (Godoy, 2017) justificam tal atravessamento, confirmando e demonstrando o quanto o limiar entre a vida e a morte é uma realidade na vida desse profissional, repercutindo diretamente sobre os seus familiares. Em pesquisa realizada por Machado et al. (2017), policiais militares revelaram reconhecimento dessa condição. Os mesmos afirmaram que a família acaba sofrendo, pelo medo, mais do que eles mesmos, por estarem acostumados com as repercussões decorrentes dos riscos. Segundo outros autores (Costa et al., 2007; Minayo et al., 2011; Silva & Vieira, 2008), o enfrentamento contínuo dessa realidade, permeada pelo perigo, vulnerabilidade e medo, acaba refletindo na qualidade de vida do profissional e da sua esposa.

As experiências das esposas aqui entrevistadas também parecem ser atravessadas pelas incertezas quanto ao planejamento de vida:

Ele sempre fala que nós não temos como planejar nosso futuro muito longo. Meu esposo disse: 'Amor, a gente pode planejar nosso futuro, assim, dois anos, porque muito longo a gente não sabe, não é?'. Realmente é muito incerto, então, tanto eu tenho a consciência, como ele também tem a consciência que pode sair um dia e não voltar. Ele sempre fala isso para mim. (Dandara)

Têm, por exemplo, datas comemorativas. Nem sempre você pode se planejar com aquilo porque, por exemplo, daqui a um mês, eu não posso contar com aquilo porque a escala dele pode não ser aquela. Pode ser que ele consiga permuta, mas pode não ser. (Artemísia)

As colaboradoras demonstraram ter dificuldades em se planejar a curto ou longo prazo, seja por conta do regime de escalas de serviço dos companheiros, ou por conta das incertezas quanto à vida deles. Esse planejamento seria tanto em relação a algo mais rotineiro, como presença em datas comemorativas, quanto a viagens e planos futuros da família, denunciando a imprevisibilidade do traba

lho do policial militar, que, segundo Minayo et al. (2011), consiste em um evento estressor; considerado por Derenusson e Jablonski (2010) como comprometedor do dia a dia desse profissional.

Nesse mesmo contexto, o presente estudo identificou, nas esposas, afetações quanto às mudanças na rotina, demonstrando como essas mudanças, geradas pela inserção dos seus companheiros na Polícia Militar, afetam o exercício de seus papéis como mulheres, esposas e mães (no caso das que têm filhos):

É uma mudança que vai acontecendo ao longo do tempo, mas mudou sim bastante coisa, tem que mudar não é? Não podemos viver mais a mesma vida [...] mudou a rotina todinha não é? (Mochizuki)

Você não pode estar dependendo o tempo todo da sua família, porque essa é a sua realidade; casar com militar é você não ter casa fixa, é você não ter família fixa perto de você, é você ter que aprender a lidar com as coisas de casa, com as coisas de seus filhos, com as coisas do quartel, com tudo, porque ele também precisa que você seja essa base de apoio. (Anita)

Segundo Perlin (2006), a divisão desigual de tarefas e do gerenciamento do lar, muitas vezes, gera impasses no relacionamento conjugal, tendo em vista que um dos cônjuges, comumente a mulher, acaba tendo que sustentar um ônus maior que o do companheiro, abdicando, geralmente, de projetos pessoais em prol das escolhas do outro ou em prol do equilíbrio familiar, o que, neste estudo, leva à compreensão de outra US identificada: a abdicação.

Percebeu-se que a experiência de ser esposa de policial militar, na maioria do tempo, é atravessada pela abdicação dessas mulheres, seja de emprego, para dar conta dos afazeres na ausência dos companheiros; seja da cidade de origem; seja de momentos de lazer; ou até mesmo de expressões de sentimentos e palavras que possam vir a ser interpretados negativamente por eles, diante do estresse a que os mesmos estão expostos no dia a dia da profissão:

Eu faço minha vida de acordo com o que eu posso por causa dos meninos. Então, às vezes, as pessoas não entendem o que se passa e falam assim: 'ahh, mas você vai parar? Vai parar de fazer as coisas? Você vai parar de trabalhar? Você vai parar de fazer aquilo outro?'. Só que a vida de uma esposa de militar, que não vive na luxúria, que vive com o pé no chão, a verdade é essa, a esposa de militar, que vive com o pé no chão, abdica, sim, de parte da sua vida. (Anita)

Eu até consigo, assim, reconhecer que sou eu que tenho que controlar, e dificulta tanto que nós, as mulheres do relacionamento, é que somos sujeitas até a nos renunciarmos, não é? Eu mesma tomei a decisão recentemente de sair do meu trabalho. (Dandara)

De um lado, tem-se o policial militar inserido numa profissão que tem como forte característica exigir do indivíduo sacrifícios e abdicações, até mesmo da sua vida em defesa da vida de alguém (Oliveira & Santos, 2010); de outro, tem-se a esposa, que, também, por conta do trabalho do companheiro, acaba abdicando da sua própria vida. Diante de tantas abdicações, o que sobraria nesse contexto familiar, considerando que outra US compreendida foi "limitações na vida social do casal"?

Ficou muito mais complicado. Por exemplo, hoje, ele no WhatsApp não usa mais foto da gente, mesmo tendo separado o WhatsApp pessoal do profissional, não tem mais. Antes, era um gesto de afeto e tal, ter uma foto no WhatsApp, e, hoje, a gente não tem mais, por causa disso [dos riscos]. Eu também não uso mais a foto com ele. Minha foto é individual, por essa questão de não estar divulgando e sempre associar. A gente chegou à conclusão que gera um risco para mim também, mesmo que envolva só o nome dele. Eu, hoje, como somos só nós dois na nossa família, sou o ponto mais fraco de ser atingido, não é? (Artemísia)

Lembra que eu falei lá no início, que quando você trabalha de forma correta lhe põe em risco? Você acaba parando de estar tendo lazer noturno por conta dessas situações. Então você acaba também ficando um pouco introspectiva, antissocial, deixando mais de ter lazer externo para ter um tipo de lazer mais interno. (Anita)

Não podemos estar andando com todo tipo de pessoa, porque a gente não conhece não é? Porque tanto traz risco para a gente como para eles também, porque são só nós três. Aí eu fico mais tempo em casa com J. por que ele trabalha, ou então vou para a casa da minha mãe. Mas eu gosto de ficar em casa com ele. (Mochizuki)

Diante desses recortes de relatos, as colaboradoras pareceram revelar considerável esforço em evitar qualquer tipo de exposição, no intuito de atenuar os riscos à própria vida e à de seus companheiros (e mesmo à dos filhos), seja essa exposição por meio de saídas, conversas ou em redes sociais. Muitas afirmaram não sair para determinados locais, e em determinados horários, reduzindo momentos de lazer da família, aparentando reconhecer uma condição que parece lhes pertencer.

Dados do estudo de Minayo, Souza e Constantino (2008) já apontavam estatísticas que denunciavam um maior número de mortes de policiais em folga e não em serviço, mostrando que o risco também os acompanha nos momentos de lazer. Esses dados ajudam a compreender modos de pensar e agir das colaboradoras aqui investigadas, que parecem ser coletivos: quanto menos exposição, melhor. Isso confirma ideias apontadas por Derenusson & Jablonski (2010), ao enfatizarem que, devido à exposição a riscos do policial militar, o círculo social da família acaba sendo reduzido.

Outra US compreendida dentre três, das quatro colaboradoras, foi correr risco de infidelidade. Elas se referiram à traição como um risco possível, e a situam como comum entre os policiais militares, tratando-a como algo mais propício e rotineiro à essa profissão, pela facilidade que o serviço e a farda parecem favorecer. Exemplificaram através do relato de situações que vivenciaram ou presenciaram, em que policiais militares próximos a elas, como amigos, pais e sogros, também militares, ou até mesmo os próprios companheiros, foram/são infiéis. Afirmaram, porém, preferir confiar neles, pois trair ou não trair é uma decisão que, segundo elas, depende apenas deles.

Muitas pessoas falarão de traição como um dos grandes problemas, e, de fato, é! Eu digo a você que 90% dos policiais traem. [...] Já teve. Muita gente já deu em cima dele, eu tenho consciência disso, mas aí vai dele querer ou não trair, mas é uma realidade sim, uma realidade que muitas pessoas enfrentam. (Anita)

No caso dele, eu sempre falo isso, e sem contar com os muitos relatos que ele fala lá de muitos amigos: oh, meu amigo se separou, meu amigo deixou a esposa porque se envolveu com uma piriguete. Então, tem esse outro lado da PM também, não é? Que, aí, ou você realmente confia, ou você enlouquece. Então, eu prefiro confiar amargamente, fielmente, cegamente, porque eu não quero ficar doida, não é? E, aí, é algo que vai dele. (Dandara)

Esses trechos de falas remontam às ideias de Muniz (1999), quando ela afirmou não ser incomum escutar, nos quartéis, comentários sobre a facilidade de policiais militares em conseguir mulheres quando estão fardados. A autora também discorreu um pouco sobre a lenda que ainda existe no imaginário social a respeito da exaltação da potência sexual do policial militar, o que favoreceria a infidelidade conjugal.

Fonseca, Resende e Crosara (2015), ao estudarem sobre amor, ciúme e infidelidade, destacaram algumas informações relevantes no que diz respeito aos relacionamentos conjugais. Citando outros autores, afirmaram ser o compromisso com o outro um relevante fator para a manutenção e desenvolvimento dos relacionamentos fixos - neste caso, o casamento, e destacaram ser a infidelidade um dos principais motivos de separações conjugais. Encontra-se, nos recortes das falas reveladas pelas colaboradoras, esse significado específico, que dá destaque à preferência dessas esposas em acreditar no compromisso do seu companheiro, quando afirmaram escolher confiar, já que trair (ou não) depende apenas deles, mesmo estando inseridos num contexto, segundo elas, propenso à infidelidade.

No entanto, ao contrário do que aponta Almeida (2007), ao defender que a infidelidade resulta, frequentemente, em sentimentos de raiva, diminuição da autoestima, desapontamento, dentre outros, identificou-se nas colaboradoras da presente pesquisa uma tentativa de preservação da relação:

[Ao se referir sobre a chegada do companheiro, às vezes, bêbado em casa] Mas eu sei que aquilo ali é uma válvula de escape, então eu não vou criar esse tipo de polêmica. Eu acho que o fato de eu não criar esse tipo de empecilho dele sair com os amigos dele, dele ter aquele momento, é o que também ameniza esse impacto. (Anita)

Quando ele chega do trabalho e está muito estressado e tal, a gente sempre procura conversar, porque eu consigo entender o que ele está falando. Para mim não fica nada, tipo 'ai que absurdo'. Eu consigo entender e compreender. (Artemísia)

Ele não gosta de estar falando da profissão, do que acontece. Porque tem marido que chega falando, conta tudo, não é? É como ele disse, é minha profissão, o que acontecer lá, ele deixa lá, e nem eu quero saber, também. Às vezes, vai deixar a gente até assustada, porque acontecem várias coisas. Ah, eu não bato! Eu não sei. Vai depender da situação. Mas eu prefiro não saber. (Mochizuki)

Pelos recortes de narrativas acima, enquanto uma deseja escutar as vivências do companheiro, na tentativa de impedir que o estresse do mesmo afete a sua relação com ele, a outra prefere não ouvi-las, pois sente-se melhor dessa forma, assim como o seu companheiro, que opta por não compartilhá-las. Ambas buscam compreendê-los e amenizar os impactos da profissão deles na relação do casal ou da família. Na mesma tentativa, algumas relataram não criar certos tipos de discussões, mesmo que pareça haver incômodos por parte delas, para não piorar o estresse ou a situação do companheiro.

Esses relatos fazem lembrar o preposto por Osherson (1992, citado por Moraes et al, 2001) a empatia, enquanto manifestação que promove a sensação de estar sendo escutado e compreendido pelo outro, fundamental para o bom relacionamento conjugal. O autor acrescentou, ainda, que se sentir apoiada e compreendida é um dos fatores de maior relevância para a satisfação de mulheres no casamento.

Identifica-se, a partir dos recortes de falas das colaboradoras da presente pesquisa - bem como a partir da leitura integral e da escuta das narrativas - o que parece ser um empenho constante dessas mulheres em compreender e apoiar o seu companheiro em suas expressões emocionais por causa do trabalho. Contudo, ao mesmo tempo em que o fazem, parecem abdicar, mais uma vez, dos seus modos de sentir, pensar e agir, no intuito de não gerar mais afetações negativas nos seus companheiros. Enquanto tentam apoia-los, parecem abrir mão de reivindicarem o apoio e a compreensão deles, apontando algo que vai contra o defendido por alguns autores de que apoio e compreensão mútuos mantêm o casamento. Após inserção dos companheiros na Polícia Militar (para aquelas que vivenciaram a transição dele da vida civil para a militar), ou após relacionamento com os mesmos (para aquelas que conheceram o companheiro já inserido no serviço militar), todas relataram mudanças no próprio comportamento:

Mudou sim, em relação ao nosso comportamento, não é? (Mochizuki)

A partir do momento que a vida dele muda, quando ele decide se tornar esse profissional, a esposa completamente muda. (Dandara)

Tanto que eu não ando com tanto dinheiro assim, pelo medo, risco. Por exemplo, hoje eu estava vindo atravessando do shopping para cá, e eu sei que ali é deserto e, às vezes, passa motoqueiro puxando a bolsa. Porque eu já ouvi falar isso. Então, eu já fiz o que? Eu botei minha bolsa atravessada, virada para mim a parte da frente, virada para o meu corpo, para não chamar atenção. Aí eu já deixo tudo muito guardado, não mexo no celular. São coisas que realmente você começa a mudar. É tanto que é automático, mas se você parar para pensar, foi depois disso. Você começa a mudar alguns hábitos que você antes não tinha. Tanto que, quando eu morava com meus pais, eu era bem desligada. (Artemísia)

Os artigos encontrados, que discutem prioritariamente sobre o policial militar, no máximo pincelam sobre a família desse profissional - a não ser o de Derenusson & Jablonski (2010) - não aprofundando sobre o assunto, muito menos o abordando diretamente. Quando se trata da esposa desse profissional, o número de estudos diminui consideravelmente, já que não se encontrou nenhum que tivesse como enfoque esse tema. Justifica-se, a partir desses dados, a ausência de estudos que abordem a mudança de comportamento dessas esposas. No entanto, a esposa do policial militar acaba por vivenciar, presenciar e conhecer, mais de perto, as mazelas advindas da violência (Derenusson & Jablonski, 2010), o que pode justificar tais mudanças.

Além de perceberem mudanças nos seus comportamentos, elas consideraram que mudanças no comportamento do companheiro também são algo significativo na experiência de ser esposa de policial militar:

A essência dele como aquele homem paciente que ele era, aquele homem mais relaxado, isso aí nós perdemos. Hoje, você vê que o psicológico dele já está mais afetado. Antigamente, ele tinha até mais paciência em relação aos meninos. São muito traquinas meus bebês, mas eu via que ele aguentava mais um pouquinho. Hoje em dia, não, ele se explode bem mais rápido, e isso aí gera até alguns conflitos. (Dandara)

Às vezes, eles estão cheios de coisas do trabalho, cheios de aperreio. Você vê as expressões, você vê o telefone sem parar de tocar, você vê a quantidade de mensagens que chega, olha para ele e reconhece que ele está para estourar. E, aí, a depender da pessoa, do militar, ele pode ficar extremamente estressado e estourar com qualquer pessoa ou com todo mundo. Fica impaciente. (Anita)

Derenusson e Jablonski (2010) alertaram para a importância de atentar para as questões identitárias do policial militar na apreciação de sua relação com sua família, na medida em que observaram muitos relatos de policiais e familiares a respeito de mudanças negativas identificadas no policial após entrada na corporação na qual os pesquisadores atuavam como psicólogos clínicos. Isso pode se justificar devido ao fato da constante exigência de um desempenho eficiente, a partir de modos que enfatizam o uso da força e da dominação como caminhos para a resolução de problemas e manutenção da ordem. Há, portanto, a construção de um padrão comportamental que legitima, simbolicamente, o atravessamento do ethos guerreiro, do militarismo, encorajado por ações mais agressivas para o cumprimento do que lhes foi designado (Poncione, 2005). E, como se viu no presente estudo, tais comportamentos parecem repercutir em suas relações, inclusive, dentro de sua casa.

 

Considerações Finais

A partir das experiências investigadas, acredita-se ter alcançado os objetivos dessa pesquisa, pois foi possível compreender sentidos de ser esposa de policial militar, investigando em que medida o trabalho do companheiro afeta a saúde e a qualidade de vida da esposa e de sua família, bem como identificando dificuldades enfrentadas por elas e os impactos do trabalho do companheiro no relacionamento conjugal.

A condição de vulnerabilidade social e a necessidade constante de gerenciamento da suspeita de riscos, bem como da insegurança, juntamente com as consequências das escalas de trabalho dos companheiros - geradores de mudanças de rotina, dificuldade de planejamento, dentre outras percepções das colaboradoras dessa pesquisa -, assim como lidar com as emoções deles por causa do trabalho, abdicar da expressão de sentimentos e pensamentos, inclusive, até, da própria vida, acabam por comprometer de maneira considerável as relações familiares e conjugais, a saúde e a qualidade de vida delas e da família.

Concluiu-se, portanto, ao longo da pesquisa, o quanto ser esposa de policial militar pode invisibilizar, para as colaboradoras, a condição social de ser mulher. Em primeiro lugar, porque se identificou uma escassez de estudos sobre essa temática, demonstrando que a comunidade científica parece pouco se debruçar a respeito dessa experiência, não fornecendo aporte teórico para uma prática voltada a essa realidade tão particular - o que instigou a escolha pelo tema. Em segundo, sentiu-se grande dificuldade na fase de coleta de dados, especificamente na procura por essas mulheres, que era sempre mediada por um companheiro. Nessa procura, poucos policiais se disponibilizaram a repassar o contato telefônico de suas esposas, receosos sobre a pauta da pesquisa poder envolvê-los. De um lado, temos dados que atestam o quanto a realidade da esposa de policial militar é pouco explorada; de outro, seus companheiros - calejados de críticas sociais, geradoras de sofrimento, como bem enfatizou Minayo (2013), diante de um estudo que propõe-se a escutá-las, temem ser foco dos relatos delas. Surgem, a partir daí, reflexões a respeito dessas experiências, percebendo-se o quanto o contato com a invisibilidade aqui concluída, já tinha sido iniciado, mesmo antes das entrevistas.

Diante da percepção dessa invisibilidade, desvelada, principalmente, pelas narrativas das colaboradoras, optou-se por escrever, ao final dessa pesquisa, recorte da fala de uma delas:

É...quando Janaína [nome fictício] me falou [da entrevista] eu até senti, porque realmente é algo que ninguém não pensa. Todo mundo se preocupa só com o profissional, mas por trás do profissional, geralmente, aqueles que são casados, tem a esposa, a qual, a partir do momento que a vida dele muda quando ele decide se tornar esse profissional, a esposa completamente muda [...] Eu disse: amor, eu vou desabafar lá, eu vou rasgar lá, porque a gente se sente tão sufocada, a gente se sente tão... Ao mesmo tempo, oprimida, porque é uma situação em que a gente não tem o que fazer. (Dandara)

Percebe-se, portanto, que Dandara viu, na entrevista, uma oportunidade de ser vista e escutada, ao mesmo tempo em que reconheceu sua invisibilidade, seja perante a comunidade científica, a sociedade, o Estado (também citado pela mesma), ou o companheiro.

Diante do exposto, reconhece-se como desafio à realização do presente estudo, o fato da pesquisadora ser esposa de policial militar. Por mais que a mesma não compartilhasse de algumas experiências relatadas pelas colaboradoras, admitem-se afetações perante a escuta dos relatos, muitas vezes, difíceis de ouvir. Ao mesmo tempo, considera-se que ser esposa de policial e lidar com uma realidade que dialoga com a das colaboradoras desse estudo não está em desacordo com uma proposta fenomenológica de pesquisa, inclusive pode contribuir para uma escuta mais atenta e acolhedora.

Para enriquecer as pesquisas sobre a temática aqui investigada, sugerem-se estudos que diferenciem a experiência de esposas de policiais que tenham filhos das que não têm, bem como de mulheres que possuem companheiros que sejam policiais em cargos de oficiais das que não possuem, ou mesmo considerando o tempo de conjugalidade, para sondar, por exemplo, se a invisibilidade é algo construído com o tempo. Seriam interessantes, também, pesquisas interventivas com grupos de esposas, para facilitar um processo de escuta e fala mais longitudinal; estudos com filhos de policiais militares, para analisar as questões relativas à parentalidade; assim como pesquisas com cônjuges homoafetivos, dando espaço para novas configurações familiares.

Por fim, percebeu-se, pelas leituras para elaboração desse estudo, o quanto o ser policial militar está presente em todas as esferas e momentos da vida desse sujeito. É como um modo de ser, que o acompanha e atravessa as suas decisões, pensamentos e relações. Muniz (1999, p.103) já escreveu "ser policial é, sobretudo, uma razão de ser, em tempo integral, ou melhor, em cada instante da vida". Considerando as reflexões advindas da compreensão das experiências das esposas de policiais militares aqui entrevistadas, parafraseia-se a autora, pois se apreendeu significativamente que: ser esposa de policial é, sobretudo, uma razão de ser, em tempo integral, ou melhor, em cada instante da vida.

 

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Recebido em 09.10.2018
Primeira Decisão Editorial em 06.05.2019
Aceito em 19.06.2019

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