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Revista da Abordagem Gestáltica
versão impressa ISSN 1809-6867
Rev. abordagem gestalt. vol.26 no.3 Goiânia set./dez. 2020
https://doi.org/10.18065/2020v26n3.7
ESTUDOS TEÓRICOS OU HISTÓRICOS
Daseinsanálise e a tonalidade afetiva do tédio: diálogos entre psicologia e filosofia
Daseinsanalysis and Boredom: dialogues between Psychology and Philosophy
Daseinsanálisis y la tonalidad afectiva del tédio: diálogos entre psicología y filosofía
Paulo Victor Rodrigues Da CostaI; Ana Maria Lopez Calvo De FeijooII
IProfessora Adjunta do Departamento de Psicologia Clínica (DPC) e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social (PPGPS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Coordenadora do Laboratório de Fenomenologia e Estudos em psicologia Existencial (LAFEPE). Bolsista Produtividade (PQ2 - CNPQ) e Procientista da UERJ. Participa do GT Psicologia & Fenomenologia da ANPEPP. Sócia fundadora do Instituto de Psicologia Fenomenológico-Existencial do Rio de Janeiro (IFEN), Presidente da Asociación Latino-americana de Psicoterapia Existencial (ALPE), no Brasil, Membro Honorário da Sociedad Peruana de Psicología Fenomenológico Existencial (SPPFE). Email: ana.maria.feijoo@gmail.com
IIGraduado em Psicologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), especialista em Psicologia Fenomenológico-Existencial pelo Instituto de Psicologia Fenomenológico-Existencial do Rio de Janeiro (IFEN), Mestre em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGPSUERJ), Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGF-UFRJ). Professor substituto do curso de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Professor Assistente da Universidade Estácio de Sá. Email: pvrcosta@gmail.com
RESUMO
O escopo do presente artigo é o de pensar a relação entre tonalidade afetiva do tédio e a daseinsanálise a partir, principalmente, de uma perspectiva fenomenológico-hermenêutica. Tal metodologia de questionamento surge de forma explícita com o filósofo alemão Martin Heidegger de modo que seu pensamento torna essencial a relação entre fenomenologia e hermenêutica. A partir de então, surge a possibilidade de um reposicionamento da compreensão em relação ao tédio: evita-se uma interpretação solipsista e entra em cena uma interpretação histórica de determinados transtornos existenciais que no mundo contemporâneo precisam de interpretações renovadas. Tendo isso em vista, a filosofia surge como elemento fundamental de diálogo nesse novo de compreensão do fenômeno do tédio, ainda pouco tematizado pelos principais autores da Daseinsanálise.
Palavras-chave: Martin Heidegger; Clínica fenomenológica; Daseinsanálise.
ABSTRACT
The aim of this article is to think, especially from the phenomenological-hermeneutic perspective, the relationship between the attunement of boredom and the daseinsanalysis. Such a thought arises explicitly with the German philosopher Martin Heidegger, making essential the relation between phenomenology and hermeneutics. From this, the possibility of a repositioning of understanding in relation to boredom arises: a solipsist interpretation is avoided and appears an historical interpretation of certain existential disorders that in the contemporary world need renewed interpretations. Philosophy emerges as a fundamental element of the dialogue in this new understanding of the phenomenon of boredom, unfortunately not yet thematized by the main authors of Daseinsanalysis.
Keywords: Martin Heidegger; Phenomenological clinic; Daseinsanalysis.
RESUMEN
El presente artículo tiene en vista pensar la relación entre tonalidad afectiva del tédio y la daseinsanálisis a partir, principalmente, de una perspectiva fenomenológico-hermenéutica. Tal metodología de cuestionamiento surge de forma explícita con el filósofo Martin Heidegger de modo que su pensamiento hace esencial la relación entre fenomenología y hermenéutica. A partir de esto surge la posibilidad de un reposicionamiento de la comprensión en relación al tedio: se evita una interpretación solipsista y entra en escena una interpretación histórica de ciertos trastornos existenciales que en el mundo contemporáneo necesitan de interpretaciones renovadas. En este sentido, la filosofía surge como elemento fundamental de diálogo en este nuevo entendimiento del fenómeno del aburrimiento, aún poco templado por los principales autores de la Daseinsanálisis.
Palabras-clave: Martin Heidegger; Clínica fenomenológica; Daseinsanalysis.
Introdução
O projeto de articular a Psicologia à ontologia de Heidegger vem sendo pensado desde a década de 40 do século passado. Ludwig Binswanger, na sua intranquilidade frente à redução dos transtornos psíquicos ao biológico, quis pensar as experiências da loucura em outras bases que não as biológicas e nem mesmo as psíquicas. Para tanto, o psiquiatra decidiu primeiramente buscar na psicanálise uma saída para a psiquiatria biologizante. Em um segundo momento, procura a fenomenologia para sair da perspectiva psicologizante e, por fim, a ontologia heideggeriana. Na ontologia fundamental, mais especificamente em Ser e tempo, Binswanger encontra nas noções de projeto, cuidado e impessoalidade os elementos necessários para que ele pudesse repensar as doenças mentais. As elaborações desse estudioso foram, no entanto, severamente criticadas por Heidegger (2001), que afirmou haver uma incompreensão por parte de Binswanger com relação à concepção de cuidado. Binswanger, então, embora tenha sido o iniciador do que ele denominou daseinsanálise, decidiu-se por abandonar o projeto de uma daseinsanálise psiquiátrica e retomou a psiquiatria antropológica com base na fenomenologia de Husserl.
Medard Boss aderiu o projeto de Binswanger, decidindo dar prosseguimento à elaboração da daseinsanálise. Para tanto, ele aproximou-se de Heidegger a ponto de coordenar e organizar seminários com o filósofo e outros psiquiatras em um período de dez anos. Com isso, Boss desenvolveu sua daseinsanálise não apenas em diálogo com Ser e tempo, mas também com aquilo que foi nomeado de pensamento tardio do filósofo alemão. Segundo Spanoudis (Boss, 1988):
Partindo dessa concepção heideggeriana, Boss como grande psicoterapeuta, e por amor ao ser humano, se preocupa incessantemente em enfrentar seus problemas fundamentais, procurando livrar os homens atuais das amarras do pensamento materialista e tecnocrata, até agora vigente, e que pretende explicar cientificamente os fenômenos humanos em vez de procurar compreendê-los (p.5).
Heidegger apresentou a Boss a possibilidade de pensar fenomenológica e hermeneuticamente, o que permitiu que o psiquiatra revisse os fundamentos epistemológicos de sua análise clínica, concluído que as psicoterapias vigentes eram tributárias das ciências naturais. Boss (1988) então pensa a sua daseinsanálise como um pôr-se frente ao ser humano de modo a iluminá-lo por meio das características próprias a sua época. E no prefácio de Angústia, culpa e libertação (Boss, 1988), descreve tudo, que segundo ele, ameaça o ser humano: "Pois o relacionamento fundamental do homem frente aos fatos de seu mundo, como frente a si mesmo e a seus próximos está gravemente enfermo" (p.7). E completa: "Heidegger demonstrou a realização do salto necessário que conduz o homem a um relacionamento inteiramente novo" (p.8).
Podemos acompanhar Boss na tentativa de trazer para a sua daseinsanálise contribuições do pensamento heideggeriano para além de Ser e tempo. Logo, esse estudioso abandona a concepção de eu, consciência e sujeito próprios à filosofia da subjetividade e passa a considerar o Dasein em sua estrutura fundamental ser-no-mundo, tal como desenvolvido em Ser e tempo. Junto a esses temas traz as disposições afetivas fundamentais da angústia e do tédio para o interior de sua teoria e prática clínica. Com isso, Boss mostra claramente que sua daseinsanálise leva em conta o tédio tematizado por Heidegger (2003) em Os conceitos fundamentais da metafísica.
Em Angústia, culpa e libertação, Boss (1988) referiu-se à neurose do tédio como a perda de todo e qualquer enraizamento: "Por isso o tédio que reina na existência dos atuais neuróticos, frequentemente encobre o seu próprio sentido utilizando-se do ruído dominante das atividades ininterruptas, diurnas e noturnas, ou do embotamento das mais diversas drogas e tranquilizantes" (p.17). Ele afirma ainda que as enfermidades psíquicas oriundas da angústia e da culpa tendem a dar lugar às neuroses do tédio: "Em todo caso, o número crescente daqueles doentes que só sabem se queixar de insensatez vazia e tediosa de suas existências, não deixa mais dúvida em nenhum médico psiquiatra de que o quadro patológico, que poderia ser chamado de neurose do tédio, ou neurose do vazio, é a forma de neurose do futuro imediato" (p.17).
Pretendemos neste estudo dar continuidade à temática do tédio iniciada por Medard Boss em sua daseinsanálise. Para tanto, primeiramente mostraremos o que Heidegger (2003) nos disse sobre essa tonalidade afetiva fundamental para depois então poder pensar mais demoradamente naquilo que está em jogo quando Boss se refere à neurose do tédio. Por fim, de posse dessas considerações sobre o tédio e os transtornos psíquicos que dai decorrem, poder lançar luz a alguns elementos presentes na clínica daseinsanalítica na lida com a tonalidade afetiva fática do tédio. Ao considerar que nos encontramos no horizonte epocal da técnica e que o tédio é a tonalidade que se abre nesse horizonte, acreditamos ser fundamental nos demorarmos mais atentamente nesse tema para assim pensarmos uma daseinsanálise na atualidade.
1. Tonalidade Afetiva do Tédio
No centro do pensamento heideggeriano reside a relação co-originária entre ser-aí e mundo. É legítimo visualizar que o termo ser-aí reúne a ideia de sítio (aí) referente à própria existencialidade enquanto tal (ser). Justamente por isso, no processo de descrição dos momentos do ser-aí a expressão ser-no-mundo é imediatamente elencada por Heidegger para designar um momento desse copertencimento originário. No entanto, mundo para Heidegger não é um mundo empírico previamente delimitado, não é um espaço potencialmente comprovável e determinável de uma vez por todas. Ele não é comprovável justamente porque sua experiência só é e só pode ser feita de maneira fenomenológica, de forma que mundo se dá enquanto fenômeno ao invés de estar simplesmente presente e apto a ser percebido por uma subjetividade. Ao ter reconhecido tal fato na maneira como o ser-aí experimenta mundo, Heidegger se deparou diante da situação de ter de delimitar o modo mesmo pelo qual essa experiência acontece sem lançar mão das conceituações tradicionais explicitadas acima. Para tanto cunhou o termo tonalidade afetiva (Stimmung)1.
Tonalidade afetiva se refere ao modo mesmo como o ser-aí se encontra "sintonizado" com o mundo que ele mesmo é. Ela corresponde à "afinação" do ser-aí com seu espaço performático, é o modo concreto com que mundo se pronuncia na sua mostração imediata. Ao se dizer isso, supera-se a noção tradicional de que é apenas vez por outra que alguma tonalidade afetiva "colore" a existência. Ao invés disso, há a certeza de que elas se fazem presentes incessantemente e são condições de possibilidade para a experiência fática de mundo. Contudo, esse estar presente da tonalidade afetiva não diz respeito a um estar presente semelhante à presença de um ente físico no espaço. A presença da tonalidade afetiva se dá sob o modo específico com que mundo se revela concretamente, de maneira que sua presença se estabelece como uma presença-ausente: uma tonalidade afetiva não pode ser vista, ela não está aí simplesmente dada em algum lugar, mas ao mesmo tempo é ela que perpassa o ente em sua totalidade, se estabelecendo no "como" da mostração do mundo. Com relação às tonalidades afetivas Heidegger escreve:
Uma tonalidade afetiva é um jeito, não apenas uma forma ou um padrão modal, mas jeito no sentido de uma melodia, que não paira sobre a assim chamada presença subsistente própria do homem, mas que fornece para este ser o tom, ou seja, que afina e determina o modo e o como de seu ser (2003, p. 81).
O caráter de "ausência" da tonalidade afetiva confere a ela o poder de se estabelecer como se não estivesse de fato aí presente, ao mesmo tempo em que afina de maneira total os entes em geral. Essa característica da tonalidade afetiva torna possível a ideia comum de que cotidianamente nenhuma tonalidade está evidentemente afinando o ser-aí, de maneira que, para o entendimento mediano, seu acontecimento fica restrito a situações-limite em meio às quais o ser-aí se encontraria por ventura exposto. Essa certeza cotidiana traz consigo a ideia de que no momento em que tais situações porventura deixassem de se apresentar, o ser-aí estaria apto a retornar à neutralidade de seu cotidiano novamente sem afinação alguma. Todavia, é nessa distração em relação aos tons do cotidiano que a presença da tonalidade afetiva se torna mais enraizada e influente. Justamente quando ela se faz como se não estivesse presente a sua "presença" é mais avassaladora:
Exatamente porque a essência da tonalidade afetiva consiste em não ser nenhuma manifestação paralela, mas nos remete para o fundamento do ser-aí, ela permanece velada ou disfarçada para nós. É por isso que apreendemos inicialmente a essência da tonalidade afetiva a partir do que a princípio se abate sobre nós: a partir dos rompantes extremos da tonalidade afetiva, a partir do que irrompe e se dissipa. Porque tomamos a tonalidade afetiva a partir dos rompantes, elas parecem ser eventos entre outros e desconsideramos o ser afinado de modo peculiar, a tonalidade afetiva que atravessa originariamente todo ser-aí enquanto tal (Heidegger, 2003, p. 82).
E ainda:
E exatamente as tonalidades afetivas para as quais não atentamos de maneira alguma e que observamos ainda menos, as tonalidades afetivas que nos afinam de um tal modo que tudo se dá para nós como se nenhuma tonalidade afetiva estivesse aí, como se nós não estivéssemos absolutamente afinados: exatamente estas tonalidades afetivas são as mais poderosas (Heidegger, 2013, p. 81).
Os trechos acima evidenciam a tonalidade afetiva como o tom sempre presente da mostração do mundo. A reboque desse fato é possível se dar conta de que sem as tonalidades afetivas a experiência de mundo simplesmente não aconteceria. Sem ela haveria a falta de um conteúdo explicitador de mundo, de modo que toda e qualquer vivência se tornaria impossível. A par disso, quando se volta a atenção para o modo de mostração do ser-aí em sua cotidianidade mediana um importante dado vem à tona. O ser-aí cotidiano age como se nenhuma tonalidade afetiva estivesse afinando sua experiência de mundo. Como foi visto, é notório no pensamento heideggeriano o modo de posicionar a cotidianidade como marcada por uma autonomização da lida prática do ser-aí em relação aos sentidos e significados de seu horizonte mais imediato. O ponto é que para que tal imersão no cotidiano seja feita, um modo de afinação que promova a impessoalidade deve permitir que o ser-aí permaneça operante em seu mundo de maneira irrefletida.
Não é necessário aqui desenvolver cada uma das possíveis tonalidades afetivas cotidianas, o que se torna necessário é esclarecer, outra vez mais, que tais tonalidades sempre estão presentes sem que com isso se mostrem enquanto tal, justamente porque elas são o "como" da experiência de mundo cotidiano, e se ocultam em função de sua proximidade. Elas são responsáveis pelo laço justo entre impessoalidade e ser-aí, fazendo com que o acontecimento cotidiano se desenvolva sem percalços maiores.
As tonalidades afetivas que não são cotidianas têm o poder de confrontar o ser-aí com o nada de si-mesmo. Em razão da conexão dessas tonalidades afetivas com a experiência do ser-aí em sua essencialidade, enquanto fundamento nulo de si-mesmo (Heidegger, 1988), tais tonalidades afetivas são chamadas de tonalidades afetivas fundamentais (Grundstimmungen). Um exemplo clássico desse tipo de tonalidade é a angústia. Em Ser e tempo é a angústia que torna possível o estranhamento do mundo cotidianamente dado, uma vez que desempenha uma aproximação do ser-aí com sua indeterminação. Ao aproximar o ser-aí de seu fundamento inexistente, a angústia promove uma exuberância desmedida do mundo, de modo que o caráter de possibilidade se torna opressor. A angústia lança o ser-aí numa exuberância existencial que o transforma, pois quando o possível se mostra radicalmente a distração mais básica para as ações cotidianas se perde. Quando a angústia se pronuncia, ocorre prontamente uma atividade de supressão dos ditames cotidianos exigindo do ser-aí uma decisão existencial fundamental. Isso ocorre na medida em que tal estranhamento tem relação com a abissalidade da ausência de solo seguro originário e, a partir do momento em que o ser-aí se confronta com seu fundamento nulo, busca um retorno transformado em relação aos sentidos e significados sedimentados oferecidos pelo impessoal. A angústia serve para exemplificar certo tipo de afinação do mundo que não possui época histórica específica para acontecer. Para Heidegger (1988), onde e quando existirem seres-aí, existirá a possibilidade de angustiados, pois essa é a marca indelével de seu fundamento abissal. Além da angústia, Heidegger (2003) aponta também para uma tonalidade afetiva fundamental que precisa vir a lume, uma vez que se encontra presente nas ações cotidianas em geral de forma velada. A referida tonalidade afetiva é a do tédio. O intento heideggeriano de despertar o tédio se encontra para além de uma intelecção racional que só faz identificar de maneira erudita o que ele, tédio, significa, e como as coisas se dão quando o tédio se faz presente. Heidegger tem em vista tornar possível uma experiência dessa tonalidade afetiva de modo fático, de modo que ela tenha algo a dizer em relação ao ser-aí contemporâneo.
1. 1. O ser entediado por...
Como se sabe, Heidegger não quer que seu pensamento recaia em imposições teóricas ou adequações forçosas, apenas procura que o centro das experiências em geral venha à plena luz em seus respectivos acontecimentos. Para tanto Heidegger foge de definições acerca do que é o tédio e procura muito mais uma ambientação ao seu modo de ocorrência no cotidiano. Ele diz:
Precisamos justamente evitar que venhamos a nos perder em enfoques tradicionais artificialmente instituídos ou fixamente cristalizados, ao invés de manter e sustentar a imediatidade do ser-aí cotidiano. O que vale não é o esforço por nos familiarizarmos com uma posição particular, mas, inversamente, a serenidade da visada cotidiana livre - livre das teorias psicológicas e outras mais da consciência, de teorias sobre o fluxo de vivências e coisas do gênero. Mas, como estamos impregnados por tais teorias - frequentemente já na compreensão mais imediata e no esclarecimento de significações vocabulares -, é seguramente muito mais difícil em si esta serenidade do que aprender a gravar inúmeras teorias. Precisamos compreender a partir daí a aparente circunstancialidade, com a qual buscamos nos aproximar de um fenômeno tão trivial quanto o tédio. Esta aproximação tem o sentido de um afastamento de tudo o que se acerca de tais posições (2003, p. 110).
Uma vez que a postura é a de aproximação em relação ao tédio, ao invés de sua inquirição direta, o primeiro contato com a tematização dessa tonalidade afetiva deve acontecer a partir de uma situação em meio a qual o seu acontecimento seja corriqueiro. Nesse sentido Heidegger (2003) fornece um exemplo: a espera da chegada de um trem por uma pessoa qualquer em uma estação ferroviária. Grosso modo, a situação é a seguinte: uma pessoa se encontra sentada numa estação de trem, esta estação localiza-se no interior mais remoto de uma cidade. A estação não é familiar, muito menos atrativa, pois se insere numa região extremamente inóspita. Além de tudo ela é comum, é uma estação como qualquer outra. Por algum motivo a pessoa em questão chega à estação quatro horas antes da partida do trem de modo que não há outra alternativa senão esperar. Ela tenta ler um livro, por alguns instantes chega a ter a impressão que de fato lê, mas não consegue mantê-la por muito tempo. Olha ao redor desinteressadamente à procura de algo que a prenda e repentinamente focaliza os gráficos indicadores de diversas estações das quais nunca ouviu falar e calcula mentalmente a distância entre elas. Quando olha para o relógio novamente se passaram 5 minutos. Uma aflição toma lugar e é preciso fazer alguma coisa para que tal situação não piore. É preciso sair dali. Ela vai à rua, mas nada muda essencialmente. Ela conta o número de árvores, conta de quanto em quanto tempo alguma pessoa passa, desenha figuras aleatórias na areia e se pega novamente olhando para o relógio: agora já se passaram dez minutos desde o começo da penosa situação.
Portanto, ao menor sinal de que o tédio pode se instalar há a tentativa imediata de sufocá-lo. Quando uma pessoa conta árvores, desenha figuras aleatórias na areia, ou lê um livro que nem a interessa tanto, o que ela está querendo fazer é se ver livre desse tempo hesitante e por isso se vê obrigada a lançar mão das mais diversas estratégias para consegui-lo. Tais estratégias que invariavelmente surgem com o tédio são chamadas de passatempo. O ponto é que tédio exige um passatempo correspondente. O passatempo, por sua vez, possui rigorosamente apenas um objetivo específico: matar o tempo que se alonga. Aqui a língua alemã novamente ajuda. Passatempo se diz Zeitvertreib e é palavra composta pelo verbo vertreiben, que significa fundamentalmente "retirar"; "expulsar", com o termo Zeit, "tempo". O passatempo, portanto, é instrumento de estímulo prazeroso do tempo que se anuncia através do incômodo do instante longo. Ele é utilizado para desviar o olhar do tédio, que se anuncia de forma tão inóspita que inviabiliza de imediato a sua simples permissão a se aproximar. É possível reconhecer na atitude de "matar o tempo" a vivência de certa libertação da sensação de clausura que a hesitação do tempo traz consigo e, com isso, a vivência do prazer e do bem-estar que essa libertação mesma provoca. Retornando ao exemplo dado, nada se dá ao ser-aí em questão no passatempo para além da sensação de prazer e bem-estar gerada. O passatempo não se dá como se o ser-aí estivesse plenamente a par da lentidão do tempo e quisesse, por esse motivo explícito, fazer alguma coisa com isso. O ser-aí muito mais se volta contra uma situação que mal sabe dizer propriamente qual é, mas sabe muito bem que ela é "chata". Essa "chatice" inexplicável e que mal consegue ser experimentada senão por instantes direciona imediatamente para uma libertação imediata, que é não sentir de maneira alguma a hesitação do tempo, de forma que o tempo em sua hesitação e sua experiência desagradável fiquem anestesiados.
Na primeira forma do tédio - o ser-entediado por... - o ser-aí se encontra a beira de se confrontar com alguma situação entediante, e que o tédio se configura como uma hesitação do tempo, um alongamento do tempo. Esse tempo, que teima em não passar logo, direciona inequivocamente o ser-aí a um correspondente passatempo, que tem por único objetivo a desvinculação com o tempo hesitante. O tempo hesitante é um primeiro momento do tédio. Ele é a própria característica fundamental daquilo que acontece com o tempo no tédio: ele hesita. Essa hesitação do tempo traz consigo o segundo momento que é a experiência de tal tempo hesitante aberto pelo tédio como "chatice", por Heidegger (2003) apontado como a serenidade vazia. Serenidade vazia, no exemplo citado, é o que diz respeito a uma estação que entedia a quem espera pelo trem que não chegará tão cedo. O que ocorre é a simples entrega de um espaço fora da possibilidade mesma do qual ele é espaço. Uma estação que não possui um trem que siga viagem prende o ser-aí em um vazio que não o orienta para prática alguma, forçando-o a forjar para si alguma coisa com a qual se ocupe, um passatempo. Sendo que esse passatempo não possui evidentemente compromisso algum com o que se pratica em seu agir mesmo e nem do que dele advém. O que leva à certeza de que no passatempo, mesmo ao se livrar da inconveniência de um espaço sem sentido, há uma permanência no vazio, por meio da sensação agradável de expulsar o tempo que se alonga2.
Portanto, ao se questionar o tédio no seu primeiro modo, algumas características próprias ao seu funcionamento já se conquistam. Há na tonalidade afetiva do tédio uma relação íntima dessa tonalidade com o tempo e seu ritmo. O tédio se relaciona propriamente com a temporalização do ser-aí. No tédio o tempo hesita, ele se torna cansativo, se torna longo demais para ser aceito. O ser-aí se encontra repentinamente retido por essa hesitação do tempo. Por isso, remete imediatamente ao passatempo, que é o seu antídoto mais imediato. Da mesma forma que há a retidão em um tempo hesitante, co-pertence a ela o deixar vazio que a serenidade vazia do tédio promove, de modo que o que resulta de uma situação entediante é a entrega de um espaço que "não diz nada" ao ser-aí. No tédio, o ser-aí se insere na experiência de um ralentamento temporal co-pertencente ao vazio de um espaço que se apresenta como inóspito.
1. 2. O entediar-se junto a...
Apesar de diferenciar três formas de tédio, Heidegger não quer com isso estabelecer a existência de três acontecimentos distintos, pelo contrário, quer revelar como esses três eventos concernem a um único fenômeno que afina o ser-aí contemporâneo de maneira geral. Enquanto no primeiro tédio o entediante se faz presente a partir de uma situação específica, como se pudesse ser dito que ele se impõe ao ser-aí de "fora", o que acontece na segunda forma do tédio é diferente da primeira. Para a segunda forma do tédio Heidegger (2003) narra uma segunda exemplificação, que é a seguinte:
Fomos convidados para ir a um lugar qualquer à noite. Não precisamos ir. Mas tivemos um dia tenso e à noite temos tempo. Assim, vamos. Há aí a comida de sempre com as conversações de sempre à mesa. Tudo não está somente de fato saboroso, mas também de muito bom gosto. As pessoas se sentam juntas depois animadamente, talvez ouçam música, conversem: tudo é espirituoso e divertido. Já é tempo de ir embora. As senhoras asseveram, e não apenas ao se despedirem, mas também no andar de baixo e do lado de fora, onde já estão entre si: '-Foi realmente muito legal'; ou: '-Foi extremamente estimulante'. De fato. Não se encontra nada que pudesse ter sido entediante nesta noite; nem a conversação, nem as pessoas, nem os ambientes. As pessoas voltam, portanto, totalmente satisfeitas para casa. Elas ainda dão uma rápida olhadela sobre o trabalho interrompido à noite, fazem um cálculo aproximativo e uma consideração prévia do que tem de ser feito no dia seguinte - e, então, aparece aí: eu entediei-me efetivamente esta noite, em meio a este convite (p. 132).
Apesar de se apresentar como uma segunda forma de tédio, os momentos estruturais da primeira - retenção do tempo e serenidade vazia - se encontrem também na segunda. Tudo está presente nela também, inclusive o passatempo. Mas como é possível reconhecer isso numa situação que simplesmente não dá abertura para que algo como uma retenção do tempo ou a entrega de um espaço vazio fosse sentido e, consequentemente, se fizesse necessário um passatempo correspondente? Todo instante da festa foi completamente dinâmico, vívido e prazeroso, de modo que não se experimentou a serenidade vazia nem a retenção no tempo hesitante. Mas ainda assim o que há é a completa entrega à presença do tédio.
No entediar-se-por... uma situação específica retira o ser-aí de seu dinamismo e alonga o seu tempo pelo esvaziamento do seu espaço. Mas como isso se mostra agora? Há na segunda forma do tédio uma indeterminação quanto ao que é entediante e uma desconfiança acerca se seu acontecimento realmente se dá ou não, pois não há a experiência de ralentamento temporal. No segundo modo do tédio simplesmente não há situação entendiante. Não no sentido de que na segunda forma de tédio simplesmente não aconteça uma situação de tédio considerável, mas que entediar-se-junto-a... remete a um "não sei o quê". O que é entediante é algo indeterminado que se articula com o aquiescimento ao convite da festa. Uma vez que o convite é aceito, o ser-aí então presente na festa se movimenta em um "deixar rolar" que o mantém imerso nos acontecimentos do seu espaço, ao invés de lançá-lo na busca incessante de algo para fazer. Essa imersão nos acontecimentos da festa inviabiliza a sensação de retenção no tempo hesitante, de modo que a retenção típica do entediar-se-por... simplesmente não é sentida no entediar-se-junto-a... Outra vez mais comparativamente, no primeiro tédio o ser-aí é forçado a se deparar com uma situação na qual lhe é imposto um espaço vazio. O tempo se retém e o ser-aí se vincula a uma paz superficial e irritante. A reboque, o passatempo traz a tentativa vã de distração, mas o que ele somente faz é manter o ser-aí de maneira mais contundente no vazio. No segundo modo do tédio o que acontece é que o próprio ser-aí busca para si o esvaziamento do espaço em meio ao qual vai se inserir. O ser-aí busca escapar de si-mesmo. Heidegger diz:
Reside aí um deixar rolar peculiar, e mesmo em um sentido duplo: em primeiro lugar, no sentido de deixar-se-para-trás, do abandonar-se, do deixar-para-trás si-próprio mesmo. Neste deixar-rolar característico da entrega ao que aí se transcorre por parte do que se deixa para trás pode formar-se um vazio. O ser-entediado ou o entediar-se são determinados por esta formação de um vazio em meio à participação aparentemente preenchida no que aí se transcorre. Também aqui, portanto, na segunda forma do tédio, encontramos uma serenidade vazia; e, em verdade, uma forma essencialmente mais profunda da serenidade vazia do que a do caso precedente. A serenidade vazia consistia lá simplesmente na ausência de preenchimento. Ela consistia no fato de determinadas coisas, com as quais buscamos uma diversão e ocupação, se nos recusarem. Aqui, contudo, não permanece apenas um vazio não preenchido, mas forma-se justa e efetivamente um vazio. Este vazio é o deixar-se-para-trás de nosso si-próprio mesmo (2003, p. 143).
Heidegger fala em um abandono do ser-aí por ele mesmo porque no entediar-se-junto-a..., o ser-aí procura para si mesmo uma anulação bastante eficiente do tempo e do espaço. O ser-aí tem tempo para a festa. No caso específico do exemplo, o tempo entre o trabalho e o sono. Ele direciona seu foco e seu tempo para o acontecimento de esquecer-se de si-mesmo. Ele procura deixar-se vazio, se anular.
Assim como no ser-entediado-por..., os dois momentos estruturais do tédio também acontecem: a retenção do tempo e a serenidade vazia. No entanto, ambas se transformam e se fazem presentes de diferentes maneiras. O "deixar rolar" que concerne à atmosfera da festa corresponde à serenidade vazia da primeira forma de tédio. A diferença consiste no fato de que o "deixar rolar" absorve o ser-aí no espaço ao invés de direcioná-lo para a fuga do tédio. O "deixar rolar" torna o ser-aí imerso em toda a situação. Só que essa presença e absorção no espaço acontecem de modo que se tem a clara impressão de que muita coisa acontece. No entanto, esse "acontecer" é um mero acontecer tático entre os entes simplesmente presentes no espaço da festa, de modo que o que se dá nisso tudo é o próprio afogamento na serenidade vazia, transfiguradamente. Na serenidade vazia os entes em geral não transmitem nada de importante e assim o é nesse "deixar rolar" indiferente. Essa total imersão no presente traz consigo a retenção do tempo, afinal tudo na festa impressiona: a comida é boa, as companhias são agradáveis, há uma atmosfera prazerosa de diversão.Tudo é tão bom na situação que ela passa muito rapidamente, como se fosse um único instante. Essa é precisamente a retenção do tempo. A festa inteira se desenrola como se não houvesse vinculação nenhuma com o tempo. O ser-aí busca na festa uma desvinculação com o tempo. A expressão "como se não houvesse amanhã", frequentemente dita por quem deseja se entregar completamente a um evento ou festa indica bem o que acontece aí. O que tal expressão revela é a vontade de deixar o passado para trás, esquecer-se do futuro e se entregar completamente a um presente que passa como num segundo. Passado e futuro não são separados, como se houvesse uma clivagem. Eles são esquecidos em nome do agora, que não é fundamentalmente presente nenhum. Isso se desdobra dessa forma pelo fato do tempo, na segunda forma do tédio, se resumir a um presente estagnado na totalidade gratuita do seu espaço simplesmente dado, onde muita coisa divertida e interessante pode acontecer, e geralmente acontece, mas nada que diga respeito essencialmente ao ser-aí de fato tem início. Pois o que se dá nessa situação é que a própria festa é o passatempo do tédio e, como foi visto, o passatempo não é outra coisa senão uma imersão maior no vazio que o próprio sem tempo do espaço é. O ser-aí busca sua própria anestesia por meio da inserção no âmbito da sensação prazerosa que a festa provoca. Na medida em que o próprio ser-aí busca esse passatempo, sem a princípio ser frontalmente confrontado explicitamente por alguma situação que force a entrada na percepção do tempo que se alonga, Heidegger irá identificar que o que aí entendia agora é o próprio ser-aí como ser-aí. "O tédio concentra-se cada vez mais em nós, em nossa situação enquanto tal; e o que há de singular na situação não tem grande importância. De maneira acessória, ela não é senão aquilo junto ao que nos entediamos, não o que nos entedia" (Heidegger, 2003, p. 136).
O que há no segundo exemplo é que a própria festa é o passatempo do tédio. No passatempo do entediar-se-junto-a... também acontece uma mudança. Ao invés dele ser uma postura solta e inquieta, como o é no ser-entediado-por.., ele é toda a ação conjunta referente ao convite e a seu aquiescimento e, por conseguinte, não salta aos olhos de maneira peculiar. A festa por si só já é a situação forjada para afugentar o tédio. Mas que tédio? Tédio em relação a que? Como foi dito, em relação a um "não sei o que". Esse é um dos motivos para que a segunda forma do tédio seja dita mais profunda que a primeira. Nessa forma de tédio não há uma imposição "de fora" que força o ser-aí a se deparar com uma situação específica entediante e que o retira a força do seu ritmo, mas, nesse segundo momento, o tédio já afina de forma tão íntima o ser-aí que ele mesmo se avalia desinteressante, vazio, e em função disso se dá tempo para se anestesiar. Isso se dá de modo que ao invés de uma situação qualquer entediar, o que entedia agora é o próprio ser-aí enquanto tal, o que insere o passatempo como que de forma natural para afugentar o desinteresse de si.
1. 3. O tédio profundo
"É entediante para alguém" é o modo como Heidegger se volta para a experiência do tédio profundo. O que uma expressão como essa poderia revelar? Bem, aquilo que ela expõe é um estado no mínimo estranho, no qual o ser-aí é deixado completamente vazio. A expressão revela que esse esvaziamento é tão arrasador que não é precisamente um ser-aí que entedia ou frente a uma situação específica ou em relação a si-mesmo, como se pudesse dizer fortuitamente que "se está entediado pela estação de trem" ou "se está esquivando do tédio de si", simplesmente há a supressão de qualquer indicação quanto a uma experiência existencial que possa ser encarada como sua, tudo se torna vazio.
O que de fato ocorre na interpretação do tédio, e que já pode ser visto agora, é que seus dois primeiros modos são modulações mais brandas e amenas do tédio profundo propriamente dito. De certa forma, a primeira e a segunda forma de tédio são anúncios de um acontecimento que o ser-aí procura a todo custo afastar de si. Esse acontecimento em essência é a possibilidade do tédio profundo. Nas duas primeiras formas do tédio há uma atitude de fuga em relação ao desconforto que a tonalidade afetiva do tédio provoca, no entanto no tédio profundo simplesmente não há possibilidade alguma de passatempo. Não há essa possibilidade em razão da tonalidade do tédio profundo forçar impiedosamente o ser-aí a ouvi-la. Ela força o ser-aí a se deparar diante dela sem escape possível. Não seria apenas inútil se debater contra a profundidade desse tédio a partir de um passatempo qualquer, mas seria uma desmedida já que ele se impõe cruamente ao ser-aí. Um passatempo já não é mais admitido:
Enquanto no primeiro caso o empenho se direciona para o abafamento do tédio através do passatempo, a fim de que não se precise escutá-lo; enquanto no segundo caso o distintivo é um não-querer-ouvir, temos agora um ser-obrigado à escuta; um ser obrigado no sentido de uma imperatividade, que tudo que é próprio possui no ser-aí e que está, por conseguinte, em ligação com a liberdade mais intrínseca. O "é entediante para alguém" já nos transpôs para o interior de um domínio, em relação ao qual a pessoa singular, o sujeito público individual, não pode mais nada" (Heidegger, 2003, p. 162).
Na terceira forma do tédio a serenidade vazia se encontra totalmente evidente de forma simples. Agora há a total indiferença com relação aos entes em geral. Isso não acontece como se o tédio fosse tomando cada coisa ao seu tempo e lentamente fosse retirando o sentido de cada coisa em particular de modo que, por fim, a totalidade seria esvaziada. Na verdade, tudo em geral e cada coisa em particular tornam-se, em uma tacada só, indiferentes. No tédio profundo, não se faz presente nenhuma vinculação do tédio com um determinado acontecimento ôntico específico que força tal situação, nem o ser-aí consigo mesmo busca se entediar junto a alguma situação, mas tudo, de forma contrária a tonalidade da angústia, se mostra como desprovido de exuberância. O ser-aí se encontra entregue ao ente na totalidade que se recusa, mas de alguma maneira ainda se encontra presente para ser recusado, uma vez que é entediante para alguém. Heidegger escreve:
Nesta terceira forma do tédio, a serenidade vazia é a entrega do ser-aí ao ente que se recusa na totalidade. Neste 'é entediante para alguém' encontramo-nos - enquanto ser-aí - totalmente deixados na mão; não apenas não ocupados por esse ou aquele ente, não apenas deixados estagnados por nós mesmos segundo este ou aquele aspecto, mas na totalidade. O ser-aí só se sustém ainda em meio ao ente que se recusa na totalidade. O vazio não é um buraco em meio a algo preenchido, mas se refere ao ente como um todo e não é, apesar disso, o nada" (2003, p. 166).
Como já foi explicitado, Heidegger procura na tonalidade afetiva do tédio uma ligação que tenha algo a revelar sobre o ser-aí contemporâneo em específico. O tédio profundo se vincula especificamente com o ser-aí atual, é uma tonalidade afetiva fundamental fática, e vazio é um termo para designar que a forma como o horizonte histórico contemporâneo se abre bloqueia, ou dificulta extremamente, a possibilidade de o ser-aí experimentar sua própria temporalidade de maneira plena. Nesse sentido, vazio é um termo para designar esse radical desinteresse do ser-aí em relação ao tempo/espaço que ele mesmo é.
A possibilidade de experiência de plenitude do ser-aí em relação à sua própria temporalidade em nada tem a ver com alguma sensação permanente e duradoura de conforto e bem-estar. Na maior parte das vezes ela se dá até como o inverso desse lugar de perene satisfação. Experimentar de forma plena a temporalidade é sempre se medir pelo vislumbre da densidade misteriosa própria da existência, na medida em que ela é articulada com o nada de seu fundamento. A experiência desse mistério é quase impedida pela forma como o horizonte histórico contemporâneo se entrega. O ser-aí contemporâneo é atravessado pelo acontecimento do esvaziamento e da gratuidade de um mundo simplesmente presente, dado como óbvio. Portanto no tédio profundo o ser-aí é entregue ao vazio desse espaço. Não a um vazio parcial, mas a um vazio que a tudo toma. Isso se dá sem que, com isso, o ser-aí seja completamente eliminado do acontecimento mesmo que o constitui enquanto ser-aí. Tudo permanece presente, mas sem convocação específica alguma. O ser-aí se encontra aí, vazio. Esse desterro é o próprio desterro do tempo, que abre um espaço vazio.
Sabe-se também que o tédio é constituído por dois momentos estruturais: a serenidade vazia e a retenção do tempo. O que acontece aqui com a retenção do tempo? De qual forma o tempo se articula com a profundidade desse tédio? Afinal, o tédio possui, antes de tudo, uma relação muito específica com o tempo. Nos dois primeiros casos há um ralentamento do tempo, ora promovido à força por algum acontecimento, ora promovido pelo próprio ser-aí que busca para si o seu esvaziamento. Na última forma do tédio não há, no entanto, ralentamento algum. Assim como não há ralentamento não há fluxo temporal. Isso se dá porque no tédio profundo o que acontece é que o ser-aí se encontra retirado para além de um tal fluir e de uma tal inércia do tempo. O tempo não ralenta, ele se retira. Ele se retira de tal forma que o ser-aí não encontra mais acesso ao ente, que se recusa na totalidade. O tempo se desarticula na simplicidade de um espaço abandonado, de modo que a gravidade do tédio profundo é propriamente a gravidade do tempo que se retira, invalidando o espaço que se abre. Heidegger procura com seu pensamento despertar essa tonalidade afetiva adormecida em sua íntima presença. É esse tédio profundo que afina incessantemente as práticas cotidianas em geral, no entanto, sem ser visto. É esse tédio que paira por sobre o ser-aí contemporâneo, lançando sobre ele uma sombra. Acontece nesse momento a indicação fundamental que o pensamento de Heidegger propõe: enquanto que a sua libertação mais óbvia e imediata, sua fuga, condena o ser-aí cada vez mais ao vazio, fazer a difícil experiência de sua presença, de modo a se inserir na escuta própria do que o tédio profundo indica, é capaz de tornar possível a reinserção do ser-aí em sua própria essência temporal. Mas o que é propriamente essencial no ser-aí? Heidegger diz:
O que bane dispõe concomitantemente sobre o propriamente possibilitador: este tempo mesmo que bane é ele próprio este ápice que possibilita o ser-aí essencialmente. Desta feita, o tempo que bane o ser-aí anuncia-se enquanto tal no tédio, dá-se simultaneamente a conhecer como o propriamente possibilitador. Mas isto que o que bane enquanto tal, o tempo, dá a conhecer em verdade como justamente recusado; o que ele justamente apresenta como algo quase desaparecido, como um possível e apenas como tal; o que ele dá a saber como algo passível de liberação e que propriamente possibilita; o que ele em última instância libera dando a conhecer não é nada menos que a liberdade do ser-aí enquanto tal (2003, p. 176).
E ainda:
O ser-impelido do ser-aí para o interior do ápice do que propriamente possibilita é o ser-impelido através do tempo que bane para o interior dele mesmo, em sua própria essência: para junto do instante enquanto a possibilidade fundamental da existência própria do ser-aí (2003, p. 177).
Aquilo que o tédio dá a conhecer por meio de uma recusa é a pertença do ser-aí ao tempo, não ao tempo simplesmente dado do relógio, mas ao tempo da singularidade enquanto poder-ser si-mesmo - no trecho acima indicado pela palavra "instante". Instante é um termo que faz referência a Kierkegaard (1948/1961), que em seu pensamento indica o instante como tempo da síntese do paradoxo aberto pelo corte que cinde a existência humana em finita e infinita; em temporal e eterna; em corpo e alma. Tempo que unifica a cindida existência decaída. No escopo do pensamento heideggeriano ela diz respeito ao ser-aí singular. De maneira geral, aproximando tal termo da terminologia heideggeriana, designa uma experiência libertadora que reinsere o homem como ente transparente a si-mesmo como possibilidade de ser. Essa experiência do instante permite um confronto do ser-aí consigo mesmo. Esse confronto é aquilo ao qual o tédio direciona e indica silenciosamente de forma opressora como afinação da abertura epocal de um mundo sem temporalização do tempo e que exige do ser-aí uma participação decidida nessa opressão que atinge a sua própria essência como ente livre. O instante é aquilo para que o tédio profundo se refere ao modo de uma recusa. Somente pela intencionalidade que pressente e desconfia em relação a tal recusa do instante é possível "quebrar" o banimento do tempo. O instante se vincula a experiência de liberdade que constitui o ser-aí. Esse, portanto, é o ápice velado do ser-aí banido do tempo e precisamente aquilo que o tédio indica e tem a dizer a partir de uma recusa: o ser-aí é livre, pois admitido no seio do tempo, que se recusa. Como foi indicado, a recusa do tempo se refere à falta de relação do ser-aí com sua própria indeterminação ontológica, que se encontra maculada pela opressão do tédio e que insere o ser-aí na busca por passatempo, que finda em manter o ser-aí no vazio. Tal vazio marca a existência contemporânea.
2. Tédio, transtornos existenciais contemporâneos e daseinsanálise.
Como dissemos anteriormente, o nosso objetivo é poder avançar um pouco mais naquilo que foi ventilado por Boss (1988) sobre a neurose do tédio como um mal que nos afeta no nosso tempo. Boss (citado por Feijoo & Silva, 2018) em Psychoanalysis & Daseinsanalysis apresentou uma situação clínica que recebeu o título de Tratamento modificado daseinsanaliticamente de uma neurose moderna do tédio com comentários do paciente. O psiquiatra contou que no início seu paciente fez questão de avisar que não confiava em tratamentos psicoterápicos, mesmo porque já havia passado por outros e que não obtivera nenhum resultado. Boss o ouviu pacientemente e logo pediu que ele se deitasse no divã e falasse tudo que lhe viesse à cabeça.
Do que o home m falou a Boss, este concluiu que se tratava de um paciente que se sentia perseguido por sentimentos de culpa severos e persistentes e consequentes atos autodestrutivos e autopunitivos. Boss chegou à conclusão que o homem que ele acompanhava clinicamente era tomado pela falta de orientação interior e de um vazio que o fazia enxergar tudo sob um olhar deformado e escarnecido da realidade.
O daseinsanalista interpretou que o tédio pelo qual seu paciente é tomado diz respeito a esse vazio que foi sendo superado por meio da comunicação que se apresentava pelos sonhos do analisando. O paciente sonhava com lugares sujos em que ele se encontrava trancado, Boss interpretava que esse sonho indicava que havia algo de mais profundo a ser revelado. E que só pelo aparecimento dessa experiência escondida é que o paciente poderia se libertar desse vazio que o imobilizava. Segundo Holzhey-Kunz (2018), Boss pensa o tédio em relação com o débito originário que no mundo moderno se configura como culpa. Logo em Boss o tédio e a culpa estão intimamente atrelados, como pudemos acompanhar no trecho acima.
A daseinsanálise, que pretendemos apropriar-nos, distancia-se em grande parte daquela que foi colocada em prática por Boss. Interessa neste estudo, a diferença no que diz respeito a temática do tédio e a prática clínica relacionado ao tema. Enquanto Boss relaciona o tédio ao débito ontológico ou culpa originária; pensamos a tonalidade afetiva do tédio como o modo em que o homem moderno lida com o tempo. E por isso, lembramos que o analista deve, em sua prática analítica, resistir a demanda de pressa de seu tempo, ou seja, ao modo de lidar com o tédio que o abarca. Assim, pensamos que para além de uma aceitação incondicional, da relação de confiança ou do amor propostos por outros estudiosos do tema; pensamos na lida que se demora, não tem pressa e, portanto, em paciência.
O que pretendemos, junto a Heidegger em diálogo com Kierkegaard, e ainda, junto às contribuições de pensadores atuais como Fogel e Han, é mostrar que para ir além do que foi anunciado por Boss, precisamos saber, a partir de outros estudiosos do tema, como podemos avançar. Não há dúvida de que Heidegger leu atentamente Kierkegaard. Em Ser e tempo (1988), o filósofo alemão afirma que algumas obras de Kierkegaard estiveram presentes em seus estudos, são elas: O conceito de angústia e Discursos edificantes. Han (2017a, 2017b) e Fogel (1998) são estudiosos da ontologia de Heidegger e inspiram-se no filósofo para articular seus modos de pensar. Logo, vamos buscar elementos nesses estudiosos que confirmem e ajudem a ampliar o modo de fazer clínica daseinsanalítica. Em Fogel (1998) podemos acompanhar um modo singular em que somos tomados pela cadência de nosso tempo.
E assim junto a Heidegger, Kierkegaard, Fogel e Han tentaremos nos demorar no exercício do pensamento para assim poder articular outro modo clínico na relação com o tédio que se diferencie da moderna psicologia clínica, que pretende a correção e o retorno à normalidade e, tudo isso, em um breve período de tempo.
Ora se este é o tempo que é nosso, é natural que nos como daseinsanalista também estejamos tomados pelas determinações que nos atravessam. Logo, também atuamos de modo a escapar da atmosfera do tédio como todo mundo. A questão que se impõe é: como então poder atuar clinicamente se sou tomada pela mesma cadência daqueles que buscam uma escuta capaz de sustentar transformações?
Outra questão que se impõe é: qual é a importância das discussões de Heidegger sobre o tédio em sua relação com a clínica psicológica? Primeiramente, podemos afirmar que o tédio não é algo que diz respeito a uma interioridade, ele nos fala de uma atmosfera que se apresenta em nosso tempo, que Heidegger (2012) denomina "Era da técnica". O mundo contemporâneo, marcado pela técnica, que convertida em tecnologia e tecnocracia, constitui-se na imediatidade de nossa inevitável, incontornável e irrevogável situação: ser-no-mundo. Época essa em que não encontramos em sua totalidade nenhum limite para o seu processo de apoderamento dos elementos em jogo em cada configuração de domínio. Tudo isso no domínio de uma duração relativa no interior do devir e de extensão do seu poder de estabelecer sempre novas configurações. Trata-se da passagem da vontade de poder para a vontade da vontade que se estrutura do mundo contemporâneo no modo da manipulação, intervenção e funcionalidade, como é afirmado por Fogel (1998) inspirado em Nietzsche e Heidegger quando ambos se referem à técnica. Assim, não estamos mais nos referindo há algo que diga apenas respeito a uma expressão de um sujeito, mas de um ritmo que nos atravessa e no qual estabelecemos a cadência de nossa existência. Assim, o homem contemporâneo transforma o coração que diz pulso, cadência, phatos que mobiliza em coração-máquina que significa seguir o ritmo, a cadência da máquina (Fogel, 1998).
Esse homem, totalmente desenraizado de sua existência em seu ritmo mais próprio, torna-se um autômato, transtorna-se, esquece-se de suas possibilidades. Assim sendo, ou busca a distração como modo de não se a ver com o tédio, ou entra na cadência do mundo sem se aperceber do tédio que o abarca, ou paralisa ou ainda desiste, ao modo de total supressão do tempo. Todo esse modo de lida com o tempo, marca do tédio, é compreendido no contemporâneo como doença. No entanto, o homem em seu caráter de abertura ainda pode ver, ouvir e sentir a chamada de seu poder ser. Portanto, ele pode afastar-se de si mesmo, mas não abandona a si mesmo, nisso ele guarda a possibilidade da recordação, por isso grita tomado pela angústia ou pelo tédio para retomar a si próprio em sua cadência, ritmo. Como nos diz Kierkegaard (2006) trata-se da possibilidade da retomada. Ou ainda, como nos esclarece Fogel (1998): "Repetição é retomada do puro singelo é isso a recordação, que é o existir" (p.97).
E assim resguardando a possibilidade de retomada da existência, cuidando do espaço de escuta para aquele que grita pela possibilidade de não permanecer no ritmo da técnica, fundamento nulo de tudo que é, é que encontramos a daseinsanálise clínica. Essa modalidade de atenção não toma os ensinamentos de Heidegger como mais uma teoria que determina os caminhos a seguir, portanto não se trata de um modelo ou método. Trata-se apenas de tomar no pensamento de Heidegger a possibilidade de libertar-se dos enraizamentos tecnocratas que dominam a psicologia em sua perspectiva clínica. E assim libertos dos paradigmas que dominam a psicologia, tais como a cisão sujeito e objeto, a soberania da vontade e a ideia de que os afetos aparecem oriundos a algo que acomete a interioridade do homem, podermos pensar a psicologia e mais especificamente a clínica psicológica em outros termos, como mostraremos a seguir.
Para poder pensar no tédio em sua expressão ôntica, e assim esclarecer um pouco mais sobre as considerações de Heidegger sobre o tema, vamos buscar o que nos diz Sören Kierkegaard (1843/2006). Ele defende que embora se pense que o ócio é a raiz de todos os males isso não é verdade. Para o filósofo a raiz de todo os males é o tédio do qual nos desviamos por meio de múltiplos e variados subterfúgios. E são os subterfúgios, na tentativa de ocupar em demasiado o tempo, que vão se constituir como os males de nosso tempo. Assim tudo é planejado desde o nascimento de uma criança para que ela não seja tomada pelo tédio. É preciso distraí-la e assim não permitir que ela se volte para si mesma e a sua situação. Em cada momento de vida do homem, uma distração se faz necessária. De distração em distração, o homem vai, pouco a pouco, afastando-se daquilo que mais próprio é da sua existência, ou seja, seu caráter de poder ser.
E ainda com Byung-Chul Han (2017a, 2017b) compreenderemos como o modo de evitar o tédio se faz presente no nosso mundo. Han refere-se ao tédio profundo como excesso de positividade, marca de uma sociedade positiva em que há uma pressão acentuada para a aceleração e uma produtividade incessante. A positividade excessiva refere-se também a estímulos e informações em excesso. Defende o autor que com o excesso há uma modificação na estrutura da atenção que se destrói e fragmenta. Ocorre então, cada vez mais, uma intolerância com relação ao tédio. O tédio que segundo o autor é capaz de potencializar a criatividade, ao desaparecer não deixa mais espaço para a vida contemplativa, para o dom de escutar, para a atenção profunda. Logo, com a abolição do tédio, aparecem os transtornos psíquicos na atualidade, que a psiquiatria considera como sendo algo da ordem de uma interioridade que se encontra fissurada. Assim aparecem os diagnósticos que apontam para anormalidades pelo excesso de movimento como a hiperatividade e a mania. Aparecem também os transtornos que se dão pelo cansaço frente à demanda pelo excessivo movimento, como o stress e a síndrome de Burnout. E ainda aparecem aqueles transtornos que se dão pela desistência em atender às demandas do mundo: depressão, déficit de atenção, transtorno da personalidade limítrofe. Segundo Han (2017a) tratam-se de enfermidades neuronais que ocorrem pelo excesso de positividade determinadas no começo do século XXI. Diz o autor: "Não são infecções, mas enfartos, provocados não pela negatividade de algo imunologicamente diverso, mas pelo excesso de positividade" (p. 8).
Han (2017b) relaciona o excesso de produtividade a uma sociedade da transparência que se estrutura a partir da liberdade de informação, diz ele que: "As coisas se tornam transparentes quando eliminam de si toda e qualquer negatividade" (p.9). Assim tornam-se rasas e planas. As ações se tornam transparentes quando são totalmente operacionais e subordinadas ao cálculo e ao controle. E o tempo torna-se um mero presente disponível. Han conclui: "Portanto, a sociedade da transparência é um abismo infernal (Hölle) do igual" (p. 10). Assim sendo, diz o autor: "A alma humana necessita naturalmente de esferas onde passa a estar junto a si mesma, sem o olhar do outro. Pertence a ela uma impermeabilidade. Uma total iluminação iria carbonizar a alma e provocar nela uma espécie de burnot psíquico" (p.13).
Perguntamos anteriormente como o analista pode se afastar daquilo que é a cadência, atmosfera do seu tempo no caso, como afirmado por Heidegger (2003), a tonalidade do tédio? E se não pode se afastar como fará o daseinsanalista a sua clínica? Outra vez, buscaremos a Kierkegaard (1843/1986) para uma orientação sobre o que fazer e como fazer. Diz o filósofo que é preciso que aquele que quer ajudar o outro a sair da ilusão, se aproprie da adição, de um diferencial. Ele deve para isso, no mínimo, acompanhar as determinações de seu mundo, saber delas para assim poder afastar-se daquilo que tenta nos iludir. Seria algo como não se deixar encantar pelo canto da sereia.
E como saber daquilo que encanta, conduz, leva a uma cadência dada pela impessoalidade? É nesse aspecto que precisamos andar lado a lado com a filosofia. Kierkegaard, Heidegger, Fogel e Han dentre outros nos ajudam a pensar, a meditar, a demorar-nos nas coisas que nos vem ao encontro.
Nesse aspecto, não tomaremos a ideia do amor, confiança no médico e nem no "eros terapêutico". Compreendemos que Heidegger (2001) já nos mostrou que precisamos nos debruçar mais sobre a questão do cuidado. Vamos caminhar lado a lado com Kierkegaard (1844/2001) e conquistar paciência, e assim abrir um espaço para a conquista do si mesmo. Em paciência o clínico pode conquistar a si mesmo, abrindo um espaço para que o outro também possa se conquistar. Continuemos com Heidegger (1959) para conquistarmos a serenidade, poder estar no mundo sem ser dele. Saber daquilo que nos determina, podendo dar um passo atrás. Paciência e serenidade a ser conquistadas dizem respeito à arte do demorar-se. No poder demorar-se já nos afastamos do ritmo acelerado, do excesso de produtividade, podendo então deixar que a medida de cada existir possa aparecer. Como coração simples singelo (Fogel, 1998) dar tempo para a recordação, dar tempo ao tempo, dar tempo à existência que no final das contas é tempo.
O leitor, no entanto, pode perguntar: Ao posicionar a clínica e a tarefa do clínico dessa forma não estaríamos positivando a atitude correta, certa, ideal do daseinsanalista? Não seria o mesmo que dizer que o clínico deve manter uma atitude de aceitação incondicional? Para responder a tais questões, vamos caminhar lado a lado com Han (2017a). O autor nos diz que o movimento de aceleração caminha lado a lado com a desconstrução da negatividade. Ou seja, o ritmo apressado, no qual buscamos resultados eficientes e efetivos. Ele denomina a esse modo de agir como sociedade positiva. Ele ainda nos alerta que é preciso aprender a ver é habituar o olho ao descanso, à paciência, ao deixar-se aproximar-se de si. É justamente essa paciência que se apresenta muito mais como negatividade do que como uma atitude positiva. Esquecer-se e abandonar-se naquilo que se apresenta, em um mundo em que a cadência, ritmo, é a da produtividade incessante de modo a poder se afastar do tédio, é a valorização do vazio, da negatividade que se abre pela tonalidade afetiva fundamental do tédio.
Isso quer dizer que antes de disfarçar, dissimular, impedir que o tédio profundo se apresente em seu caráter de negatividade, na daseinsanálise trabalhamos no sentido de que possamos ouvir afinal o que o tédio tem a nos dizer. É poder ouvir que todo homem guarda em seu cerne um poder ser, seja ao modo do autômato, seja ao modo da liberdade frente às determinações hegemônicas.
Considerações Finais
A psicologia clínica na tentativa de corresponder à exigência da ciência de que toda disciplina científica, para que fosse considerada como tal, tivesse seu objeto posicionado e definido, os estudiosos da Psicologia procuraram seu próprio objeto com suas determinações. Ora eles caminharam na direção da manutenção de um substrato biológico que dê sustentação ao psicológico, ora apontavam para sua gênese em um substrato ambiental ou social ou, ainda, pela conquista da autonomia do seu objeto, criando ou descobrindo o psiquismo com suas determinações e propriedades. Essa repetição quase que automática do que se pensa, não é pensamento em seu sentido mais peculiar. A posição que defendemos é aquela que posiciona a clínica como um espaço que sustenta a experiência do pensamento. Heidegger denominou esse modo de pensar como pensamento de sentido ou pensamento meditante (Heidegger, 1959).
Heidegger (2012) alertou-nos que a experiência do pensamento é algo que na atualidade encontra-se esquecida. As ciências e as diferentes áreas do saber que se organizam em uma ordem disciplinar pensam ao modo do cálculo, da antecipação e da repetição do anteriormente dito. O pensamento de sentido se desvia de todos esses modos de pensar que predominam no mundo da ciência e do sistema para, então, buscar o sentido que se encontra no âmbito mais originário, lugar onde ser e pensar são o mesmo (Heidegger, 1991). A daseinsanálise que queremos colocar em prática não compartilha da atividade psicoterapêutica como algo de uma ordem disciplinar. Muito pelo contrário, assumimos uma posição crítica a tal posicionamento, redirecionando a clínica para um espaço (éthos) em que o outro em seu caráter de abertura possa se decidir por si mesmo. O analista assume um saber que desconhece o caminho. Esse analista só pode dar algo, justamente por que não possui algo a dar, como esclarece Leão (2013).
Logo, a daseinsanálise que propomos, a qual denominamos, de daseinsanálise hoje atua na negatividade, de modo a sustentar a abertura de espaço para outras possibilidades de realização. Ou seja, no caso da tonalidade afetiva fundamental fática do tédio, trata-se de afinar a escuta ao que o tédio tem a nos dizer. E assim resistir a surdez promulgada em nosso tempo, de modo que na distração nada se possa escutar, permanecendo em um vazio onde o espaço torna-se totalmente irrelevante e o tempo totalmente recuado. Trata-se de poder permanecer na experiência grega de aletheia, sustentando um espaço para a verdade que traz consigo o poder de libertação para um nada criativo.
Referências
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Recebido em 11.07.2018
Primeira Decisão Editorial em 23.04.2019
Aceito em 17.10.2019
1 O termo Stimmung é a substantivação do verbo stimmen, que significa afinar e ao mesmo tempo estar de acordo com algo. De modo a perfazer este duplo sentido, tonalidade afetiva indica o tom em meio ao qual mundo se mostra como mundo, isto é, como de fato se revela. Desta forma, optou-se por essa possibilidade de tradução do termo, uma vez que tonalidade afetiva remete tanto ao tom quanto ao fato desse tom ser o próprio "afeto" daquilo que mundo é.
2 Mais adiante será visto como tal sensação agradável gerada pelo passatempo se dá como tônica e caminho de aprisionamento no sem tempo do mundo contemporâneo. Não apenas isso, mas como o passatempo se relaciona com diversão, entretenimento e prazer de um modo aprisionante.