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Revista da Abordagem Gestáltica
versão impressa ISSN 1809-6867
Rev. abordagem gestalt. vol.27 no.2 Goiânia maio/ago. 2021
https://doi.org/10.10.18065/2021v27n2.6
ESTUDOS TEÓRICOS OU HISTÓRICOS
Carl Rogers e Emmanuel Lévinas: caminhos éticos na Abordagem Centrada na Pessoa
Carl Rogers and Emmanuel Lévinas: ethical paths in the Person-Centered Approach
Carl Rogers y Emmanuel Lévinas: caminos éticos em el Enfoque Centrado em la Persona
Alice dos Santos VasconcelosI; Sandra SouzaII
IUniversidade Federal da Paraíba. Email: alicevaasconcelos@hotmail.com
IIUniversidade Federal da Paraíba
RESUMO
A ética do filósofo Emmanuel Lévinas (1906-1995) possui implicações diretas à psicologia, especialmente no que condiz ao status do Outro em relação ao Eu, enfatizando-se a importância dessa filosofia para a psicoterapia. Dentre os vários modos de se fazer psicoterapia, destacamos a Abordagem Centrada na Pessoa (ACP), da qual resultam consequências nas relações interpessoais e sociais. Contudo, muitas vezes, a dimensão ética da ACP parece passar despercebida. Assim, intentou-se refletir sobre possíveis implicações da ética de Lévinas para a abordagem, caracterizada por sua abertura à experiência, respeito à autonomia do paciente e ênfase na relação terapêutica. Conclui-se que a ACP evolui ao pensar mais amplamente o sujeito e que cada cliente é um Outro para o psicólogo, também encontrando no profissional um Outro. Propõe-se a terapia grupal como ambiente propício à alteridade, em que a psicoterapia também se depara com o Infinito, transcende a relação dual e evoca a figura do Terceiro, parte primordial da vida, em suas relações. Por fim, interrogamos: em uma abordagem tão centrada na pessoa, haveria espaço para a alteridade?
Palavras-chave: Abordagem Centrada na Pessoa; Emmanuel Lévinas; Ética.
ABSTRACT
The ethics of the philosopher Emmanuel Lévinas (1906-1995) has direct implications to psychology, especially in what concerns the status of the Other in relation to the Self, emphasizing the importance of this philosophy for psychotherapy. Among the various ways of doing psychotherapy, we high light the Person-Centered Approach (PCA), which has implications in interpersonal and social relations. However, the PCA ethical dimension often seems to go unnoticed. Thus, we at tempted to reflection possible implications of Lévinas' ethics for the approach, characterized by its openness to experience, respect for patient's autonomy and emphasis on the therapeutic relationship. It is concluded that the PCA evolves by thinking more broadly about the subject and that each clients an Other for the psychologist, also finding in the professional an Other. Group therapy is proposed as an environment conducive to alterity, in which psychotherapy also encounters the Infinite, transcends the dual relationship and evokes the Third, the primordial part of life, in its relationships. Finally, we question: in such a person-centered approach, would there be space for the alterity?
Keywords: Person-Centered Approach; Emmanuel Lévinas; Ethics.
RESUMEN
La ética del filósofo Emmanuel Lévinas (1906-1995) tiene implicaciones directas a La psicología, especialmente en lo que condice al status del Outro en relación al Yo, destacándose la importancia de esa filosofía para la psicoterapia. Entre los diversos modos de hacerse psicoterapia, destacamos el Enfoque Centrado en la Persona (ECP), de la cual resultan consecuencias en las relaciones interpersonales y sociales. Sin embargo, muchas veces, la dimensión ética de el ECP parece pasar desapercibida. Así, se intentó reflexionar sobre posibles implicaciones de la ética de Lévinas para el abordaje, caracterizada por su apertura a la experiencia, respeto a La autonomía del paciente y énfasis en la relación terapéutica. Se concluye que el ECP evoluciona al pensar más ampliam ente el sujeto y que cada cliente es un Otro para el psicólogo, también encontrando en el profesional un Otro. Se propone la terapia grupal como ambiente propicio a la alteridad, en que la psicoterapia también se depara con el Infinito, trasciende la relación dual y evoca la figura del Tercer, parte primordial de la vida, en sus relaciones. Finalmente, preguntamos: en un enfoque tan centrado en la persona, ¿habría espacio para la otredad?
Palabras clave: Enfoque centrado enla persona; Emmanuel Lévinas; Ética.
Introdução
A psicologia enquanto ciência se constitui como herdeira da filosofia ocidental, estando predominantemente voltada para a questão do significado do ser e sendo primeiramente ontológica (Miranda, 2012). De forma geral, embora esteja sempre inserida em um contexto social, ético e político (Freire, 2001; Miranda, 2012), acabou por se tornar reforçadora de um modelo societário hiperindividualista (Freire, 2001). Assim, na busca pelo status de científica, a psicologia se afastou da noção de intersubjetividade e do que é estranho ao ser (Coelho Junior & Figueiredo, 2004).
A filosofia da ética da alteridade radical de Emmanuel Lévinas rompe com a tradição ontológica e individualista, questionando sobre as implicações de reconhecer a primazia do Outro e da alteridade (Miranda, 2012), sendo, portanto, pertinente à psicologia. Há contribuições da teoria de Lévinas que são fundamentais para as discussões contemporâneas sobre a ciência psicológica (Coelho Junior, 2008) e a ética de Lévinas surge como um caminho para pensar as relações humanas e o conhecimento (Chacon, 2015).
Para Miranda (2012), a escuta da alteridade radical ainda se constitui como desafio. Freire (2003) destaca que a psicologia possui uma dimensão ética e pontua que o caminho para encontrar com a alteridade parte de rever teorizações e renovar práticas, a fim de acolher o que é estrangeiro. O autor ainda traz que a psicologia parece preocupada em reafirmar uma subjetividade indivisível e completamente consciente. Contudo, considerar a alteridade radical no atendimento psicológico seria promover condições para que a própria diferença irrompa; significa possibilitar o encontro da pessoa com o estrangeiro, com os Outros.
Assim como em Maia (2013), concordamos que é possível encontrar na obra de Lévinas implicações diretas à teoria e prática da psicologia, especialmente no que condiz ao status do Outro em relação ao Eu, e destacamos a importância dessa filosofia para a psicoterapia naquilo que é afetada pela noção de que o Outro não pode ser contido ou totalizado e que não há compreensão capaz de abarcá-lo.
Cada área e abordagem psicológica, em suas particularidades, possui uma compreensão do que é ser humano, que está atrelada a própria fenomenalidade da pessoa: em outras palavras, cada abordagem é criadora de seu próprio sujeito (Freire, 2003). Dentre os vários modos de se fazer psicologia e, mais especificamente, psicoterapia, destacamos a Abordagem Centrada na Pessoa (ACP), desenvolvida por Carl R. Rogers (1902- 1987).
Em uma época em que boa parte dos trabalhos em psicologia era embasada na Psicanálise e na Análise do Comportamento, a ACP surge buscando enfatizar a autonomia do sujeito, além de promover e destacar o papel ativo do cliente no processo terapêutico. Inicialmente desenvolvida enquanto uma vertente psicoterapêutica, posteriormente adquiriu abrangênciade aplicação às várias áreas de relações humanas, como a educação e a política, justificando a denominação de Abordagem Centrada na Pessoa (Moreira, 2010).
Amatuzzi (2012, p. 21) entende que a ACP seria "muito mais uma ética do que uma técnica". A partir do olhar desta abordagem, advêm consequências nas relações interpessoais, sociais, culturais e políticas, e as explicitar é construir uma ética. A ACP trata-se mais de um modo de ser, que leva a modos de fazer (Miranda, 2012) e, para Rogers (1983), a relação terapêutica transcende a si mesma, tornando-se parte de algo maior. Contudo, muitas vezes a dimensão ética, tão cara à ACP, parece passar despercebida em seu embasamento teórico.
Assim, neste estudo, pretendemos refletir sobre possíveis implicações da ética de Lévinas para a abordagem rogeriana, que se caracteriza por sua abertura à experiência, respeito à autonomia da pessoa e ênfase na relação terapêutica. Para isto, contemplaremos o que se compreende como a ACP e apresentaremos alguns conceitos da filosofia de Emmanuel Lévinas. Por fim, discutiremos se haveria espaços para a alteridade na abordagem, quais os caminhos possíveis e como a filosofia levinasiana convoca e desafia a ACP. É por considerar uma postura de abertura daqueles envolvidos na abordagem (Vieira, 2017) que nos encorajamos nesta difícil empreitada.
Da Abordagem Centrada na Pessoa
Tratando da proposta deste artigo, inicialmente, traçaremos um esboço do que se compreende por Abordagem Centrada na Pessoa. Carl Rogers estruturou a ACP nos anos de 1940 nos Estados Unidos, sendo considerada uma representativa teoria no campo da Psicologia Humanista. Em dezembro desse ano, Rogers ministrou uma palestra na Universidade de Minnesota intitulada "Os mais recentes conceitos em psicoterapia", na qual revela sua crença no impulso do indivíduo na direção do crescimento e ajustamento. A partir desse momento, Rogers percebeu que sua proposta começava a ser vista como "nova, controvertida, radical e ameaçadora" (Wood, 2008, p. 174).
Wood (2008) considera que Rogers foi provavelmente o psicólogo mais importante do seu tempo, com grande contribuição para a ciência psicológica. Escreveu mais de 250 artigos, publicando cerca de 20 livros, além de ter muitas horas gravadas de áudios e vídeos de seus atendimentos, destacando seu investimento científico.
A ACP se apresenta, primeiramente, como uma reação ao comportamentalismo e à Psicanálise que dominavam as práticas psicológicas da época. Nesse prisma, ela traz um novo modo de perceber o indivíduo e, consequentemente, a relação terapêutica estabelecida. Ficou configurada, especialmente em seu início, como uma abordagem não-diretiva. É importante destacar que seu elemento não-diretivo se dá pela sua própria compreensão em torno da pessoa. Esta é eminentemente um ser dotado de liberdade, autonomia e poder de escolha (Borja-Santos, 2004), podendo ser capaz de autodirigir-se.
Rogers se tornou referência no cenário da Psicologia, seja como psicólogo, professor universitário ou pesquisador. No primeiro capítulo de seu livro "Tornar-se Pessoa", publicado originalmente em 1961, Rogers (2009) relata sua trajetória, o que leva o leitor a compreender como sua própria experiência foi facilitadora na estruturação de sua teoria. Criado, junto à família, em uma fazenda, desde cedo teve contato com livros de pesquisas e experiências científicas. Sempre buscou se afastar de todo método coercitivo e de pressão na clínica psicológica e descreve uma cena que muito o marcou ao atender uma mãe que tinha como queixa o filho problemático. Seu posicionamento era mostrar a evidente rejeição dela para com o filho, contudo, Rogers percebeu que a terapia só foi bem-sucedida quando se permitiu escutá-la sobre seu sofrimento e sentimentos de confusão e fracasso. Nesse momento, Rogers percebeu que é o próprio cliente quem dita a direção do movimento no processo terapêutico.
O autor desloca o papel do psicoterapeuta a partir do pressuposto de que o sujeito é quem deve guiar o tratamento, pois é quem pode melhor falar sobre si; nesse sentido, ao psicólogo cabe oferecer e promover a relação terapêutica de facilitação ao desenvolvimento da pessoa. O terapeuta rogeriano assume a posição de acolher e acompanhar, não guiar; assim, sua tarefa consiste em estabelecer uma relação com o cliente, na qual o último se tornará cada vez mais consciente e autodeterminado. Nesse sentido, há certa condução inerente à situação, mas tal condução não é arbitrária (Rogers & Kinget, 1977).
Em uma caracterização geral da ACP, Rogers escreve:
A hipótese central (...) pode ser colocada em poucas palavras. Os indivíduos possuem dentro de si vastos recursos para a auto compreensão e para modificação de seus autoconceitos, de suas atitudes e de seu comportamento autônomo. Esses recursos podem ser ativados se houver um clima, passível de definição, de atitudes psicológicas facilitadoras. Há três condições que devem estar presentes para que se crie um clima facilitador de crescimento (...) [e] se aplicam (...) a qualquer situação na qual o objetivo seja o desenvolvimento da pessoa (Rogers, 1983, p. 45).
Coerentemente ao exposto, na abordagem rogeriana, o terapeuta deve se esforçar para se conduzir não como especialista, mas como pessoa. A terapia embasada em Rogers não é fundamentada por técnicas, mas pelos princípios sob os quais se apoia (Rogers & Kinget, 1977). Desse modo, Rogers (1983, p. 09) destaca que o contato com a outra pessoa é estabelecido quando ela é ouvida verdadeiramente, em seus significados, além de palavras ditas e, à demonstração de que a pessoa foi ouvida, "muitas coisas acontecem"; tal encontro, para Rogers, é o momento real de humanidade.
Segundo Amatuzzi (2012), nenhum outro teórico levou tão a sério uma confiança irrestrita no potencial humano como Rogers. Nesse sentido, ao reconhecer o poder que o indivíduo tem sobre sua vida e que o psicólogo seria um facilitador do processo de crescimento do cliente, Amatuzzi discorre sobre a ACP enquanto uma ética humana, uma ética da relação. Nesse contexto, o outro é respeitado em seu saber sobre si mesmo, em sua diferença e pela disposição do terapeuta em estar com ele. Assim, a teoria rogeriana não está pautada em princípios técnicos, mas em termos de disposição, ou como mesmo diz Amatuzzi, seria o deparar-se com o campo das atitudes ou disposições do terapeuta.
Nesse campo atitudinal, Rogers (2008) descreve algumas características básicas que estruturam a condição ideal para que o terapeuta possa favorecer o indivíduo nesse seu processo de crescimento, quando no setting terapêutico. A primeira atitude, a autenticidade ou congruência, consiste em o terapeuta ser o que há de mais genuíno, integrado e congruente na relação com o cliente. Que ele consiga dar-se conta dos sentimentos presentes, simbolizando-os, ou tornando-os conscientes sem negá-los; como o autor pontua, não usar de fachadas diante do cliente, assumindo-se livremente. A segunda atitude se refere à aceitação ou consideração positiva incondicional que o terapeuta tem sobre a experiência do cliente no exato momento que o escuta profundamente, aceitando o vivido do cliente sem julgamentos. Por fim, a empatia se caracteriza por experimentar a compreensão do mundo do cliente a partir do próprio olhar deste, sem, contudo, perder o contato consigo mesmo.
Mas é importante questionar o que de fato o terapeuta estaria facilitando no processo do cliente? Em resposta, chega-se a uma noção básica da ACP que é a tendência atualizante, termo definido no livro Psicoterapia e Relações Humanas (Rogers & Kinget, 1977). Trata-se, portanto, de uma tendência inerente ao indivíduo, direcionada ao desenvolvimento da sua potencialidade. Como bem relembram Telles, Boris e Moreira (2014), a partir de Rogers e Kinget, é necessário um acordo "entre as necessidades do organismo e as necessidades do eu para que a tendência atualizante se manifeste integralmente" (p.14).
Em uma perspectiva mais ampla sobre o conceito de tendência atualizante, Branco (2008), ao falar sobre a sabedoria organísmica afirma: "quanto mais uma pessoa implicar-se em suas experiências organísmicas, maior será o seu trabalho de potencializar os recursos para resolver os seus problemas e se atualizar, de acordo com o que há de mais genuíno em seu organismo" (p. 75). Por ser central na teoria da ACP, Telles, Boris e Moreira (2014) verificaram, em sua pesquisa sobre o conceito de tendência atualizante na clínica da contemporaneidade, que quase todos os participantes relacionaram as condições facilitadoras supracitadas com a tendência atualizante e percebidas em suas práticas clínicas, revelando, de certo modo, que o conceito de tendência atualizante é um dos pilares da ACP na intrínseca relação entre teoria e prática.
De modo crítico, Ponte (2011), ao propor um estudo questionando a provável influência do pensamento de Sören Kierkegaard no processo de formação da teoria centrada na pessoa, verificou que em Rogers, torna-se evidente uma ênfase no individualismo pelo próprio conceito de tendência à auto realizar-se, além do poder de ser autoconsciente e centrado. O autor discute ainda que, para Rogers, a autonomia, também um termo central no processo psicoterápico, se dá quando o indivíduo busca tomar suas decisões no seu campo de avalição interna, se responsabilizando e assumindo as consequências de suas próprias escolhas em constante processo de tornar-se.
Diante desse panorama, questiona-se se o conceito de pessoa em Rogers não é um elemento que necessita de maior aprofundamento para a compreensão do campo relacional tão presente na ACP, evidenciando, desse modo, a necessidade de se compreender o conceito de alteridade proposto por Emmanuel Lévinas.
Da Filosofia de Emmanuel Lévinas
Emmanuel Lévinas (1906-1995) foi um filósofo franco-lituano de base fenomenológica. De família judia, foi mantido num campo de concentração durante a dominação nazista na Europa, e sua história de vida parece ter sido permeada por muitos dos aspectos posteriormente elucidados em suas obras, como a importância e a primazia do respeito à alteridade e à ética.
Bindeman (2001) traz que a proposta de Lévinas de que estou aqui para o Outro e não o contrário, é uma das mais desorientadoras e chocantes proposições éticas na história da filosofia. Ele critica o pensamento ocidental, essencialmente ontológico, e propõe o primado da ética da alteridade radical (Vieira & Pinheiro, 2013). Lévinas pode ser entendido como um pensador que leva a fenomenologia a um novo patamar, ético e interpessoal (Coelho Junior, 2008). Seu pensamento é denso e traz novos paradigmas (Hutchens, 2009), caminhando na fronteira da ética e da metafísica, onde o homem busca pelo humano (Poirié, 2007). Não temos a pretensão de, neste artigo, trabalhar suas ideias exaustivamente, mas desenhar um panorama geral que permita algumas das reflexões que sua filosofia propõe.
Assim, inicialmente, destacamos a crítica de Lévinas que define a filosofia como "uma egologia" (Lévinas, 1980, p. 31). Na ontologia como filosofia primeira, a primazia é do ser, e na sua relação com o mundo há assimilação e destituição das diferenças (Miranda, 2012). Portanto, a Lévinas não interessa se debruçar sobre "a questão do ser", seguindo a hegemonia da filosofia ocidental, mas sim pôr o ser, e com isso toda a filosofia, em questão (Lévinas, 1980; Araújo & Freire, 2017; Maia, 2013). O filósofo anuncia a ética e a alteridade esquecidas, em toda a sua glória e fragilidade.
Assim, em Lévinas, a ética é anterior à ontologia (Vieira & Pinheiro, 2015; Araújo & Freire, 2017). Enquanto a ontologia seria sobre a assimilação da diferença e retorno ao Mesmo, a ética seria sobre processos de subjetivação (Coelho Junior, 2008), pois é no lançar-se ao mundo que o ser, de fato, se humaniza e se torna livre (Vieira, 2017). O Outro instaura o ser e exige responsabilidade indeclinável e absoluta (Freire, 2003) que o ser não assumiu voluntariamente, e que não é recíproca - a responsabilidade do Outro é algo que cabe somente a ele (Lévinas, 1985).
A responsabilidade infinita é a origem da ética da alteridade (Sidekum, 2013), ética esta que, para Lévinas (1980), é a impugnação da espontaneidade do eu pela presença do Outro em sua estranheza. Na consumação da ética, a responsabilidade produz proximidade. Aproximar-se do Outro é deixá-lo se revelar: um enigma sem fim e uma responsabilidade contínua (Araújo & Freire, 2017). Ao afirmar a ética como filosofia primeira, Lévinas provoca reflexões sobre os espaços de acolhida da estranheza(Vieira, 2017).
Em entrevista concedida a Poirié, Lévinas define a relação ética como:
Comportamento em que outrem, que lhe é estranho e indiferente, que não pertence nem à ordem de seus interesses nem àquela de suas afeições, no entanto, lhe diz respeito. Sua alteridade lhe concerne. Relação de uma outra ordem que não o conhecimento em que o objeto é investido pelo saber (...). Situado em uma relação ética, o outro homem permanece outro. (...) É precisamente a estranheza do outro, e se podemos dizer sua 'estrangeiridade', que o liga a você eticamente. É uma banalidade - mas é preciso espantar-se com ela (Poirié, 2007, p. 84-85).
O humanismo proposto por Lévinas funda-se na descoberta do Outro, um paradigma diferente, um humanismo do outro homem transpassado pela alteridade (Lévinas, 1993; Sidekum, 2013). Sua filosofia tece os conceitos de Totalidade, Infinito e Desejo. O primeiro, característica do saber ocidental, centrado no eu, alheio ao que não pode controlar; os últimos, da ordem do que escapa à totalização e transcende o conhecimento fechado em si mesmo.
Em Lévinas (1985), a totalidade é uma tentativa de redução da experiência a uma consciência absoluta. A relação, contudo, não pode ser reduzida e é de outra ordem: se encontra no face-a-face, na sociabilidade. O Infinito que emerge na relação rompe com a totalidade (Miranda, 2012; Maia, 2013), provocando um desejo que se atrai pela alteridade (Lévinas, 1980). O Infinito se concretiza na relação com o Rosto, signo sob o qual Lévinas pensa o Outro (Lévinas, 1980; Chacon, 2015).
Já o desejo é sequela da alteridade sobre a subjetividade (Araújo & Freire, 2017), pois é a ideia do Infinito que suscita o Desejo (Lévinas, 1980; Lévinas, 2010), sendo este base da relação e intrínseco ao homem, levando à compreensão de que o eu não basta a si mesmo. O movimento em direção ao Outro, nunca plenamente satisfeito, é da ordem do Desejo. Constrói-se justamente no excesso da diferença; o Outro transcende o eu (não é um outro eu) e escapa à totalidade do pensamento: é Infinito (Araújo & Freire, 2017; Maia, 2013).
Desse modo, não é possível pensar ou conhecer o Outro. Lévinas (1985) traz que não conhecer não significa uma privação de conhecimento, mas a relação com o Outro exige além de compreensão ou contemplação impassível: exige simpatia ou amor (Lévinas, 2010). Nos limites do conhecimento absoluto, que promete uma verdade sempre mais completa e adequada, o Outro é transformado no Mesmo. Em oposição a isto, se instala o paradoxo de pensar mais do que se pensa. Este desejo pelo Infinito é próprio do que constitui ser humano (Worsley, 2006). Assim, a interioridade do ser não é um lugar secreto e isolado dentro do eu, mas é o Infinito que o circunscreve, tornando um comando ético exterior em uma voz interior que aponta para o Outro (Lévinas, 1985). Este Outro, Lévinas pouco conceitua, mas voltase para as afetações que a sua presença causa. Tentar definir conceitualmente o Outro levinasiano, portanto, é um contrassenso. Simplesmente, "Outrem é o outro homem" (Lévinas, 2010, p. 137) e perceber que "o Outro é outro (...) seria o assombro primeiro e último de Lévinas" (Poirié, 2007, p. 49, grifo do autor).
Lévinas traz a ideia de que o Outro é um outro que não eu, absolutamente Outro, Outro de outro modo, logicamente indefinível (Poirié, 2007). A alteridade do Outro não é relativa, mas infinitamente transcendente e estranha (Lévinas, 1980). A alteridade levinasiana impõe o desalojamento do ser para estar em contato real com o radicalmente Outro (Coelho Júnior, 2008); "o chamado do Outro é disruptivo" (Bindeman, 2001, p. 8), desintegra a identidade egóica, questiona a consciência e a liberdade do eu e o deixa com uma obrigação ética independente de reciprocidade. Caminhar em direção ao Outro não é tarefa fácil, contudo, ainda assim a alteridade acabará sempre por inundar o Mesmo, resistindo e rompendo com os perímetros da totalização (Hutchens, 2009).
O Outro não pode ser tratado como objeto e sobre ele não se pode exercer domínio, ou estaríamos em um caminho de anulação da alteridade (Lévinas, 1980). Diante do Outro, institui-se a linguagem (Miranda, 2012). Contudo, Lévinas (1985) distingue entre o dito e o dizer: o primeiro seria àquilo que se limita à linguagem fechada em si mesmo, e o último é resposta à face. Todo dizer carrega um dito, contudo, sua significação é própria e vai além. A palavra, que não se restringe à verbalização e é da ordem do dizer, é relação entre liberdades que não se anulam, mas se transcendem e se afirmam reciprocamente (Lévinas, 2010).
O Outro não cabe em uma lógica exclusivamente racional, mas exige uma via de sensibilidade que se afeta com a diferença (Miranda, 2012). O chamado do Outro é algo a ser sentido corporalmente, na pele, nos nervos; é sensibilidade antes de ser racionalidade (Coelho Júnior, 2008; Bindeman, 2001). Em Lévinas, o ser é um "ser-para-o-outro" (Chacon, 2015, p. 19) e a responsabilidade não é exigência fria, mas peso e gravidade do amor (Lévinas, 2010).
O estranho, o estrangeiro - outro que chega, outro do outro e outro do eu - é o que constitui a subjetividade, pela afetividade (Freire, 2001). Para Lévinas (1985), a responsabilidade pelo Outro é a estrutura primária e fundamental da subjetividade. É uma reação indeclinável à exigência ética do Outro, que convoca o eu a agir sem esperar recíproca. Assim, a relação é assimétrica (Chacon, 2015) e o eu é para-o- Outro, responsável-pelo-Outro, sem poder estar ao seu lado em uma síntese (Lévinas, 1993).
O ser possui em si dimensões que lhe são estranhas. Contudo, diante da alteridade, o ser ainda é o Mesmo (Lévinas, 1980). Dessa forma, ainda que o ser tenha algo de estrangeiro em si, perante a alteridade absoluta, até o estranho de si é da ordem do Mesmo. Assim, entende-se que o Outro é absolutamente Outro, Estrangeiro, livre e alheio ao domínio do ser.
É pela via da responsabilidade que se dá o vínculo com o Outro (Lévinas, 1985) e o psiquismo se funda nesta responsabilidade (Lévinas, 2010).O Outro precede ao ser e a subjetividade se forma no encontro, em resposta a alteridade radical. Esta formação é traumática: se dá nos rompimentos e nas fraturas, em uma permanente inadaptação entre o ser e o Outro (Coelho Junior & Figueiredo, 2004;Araújo & Freire, 2017).Assim, Lévinas (1980) afirma a subjetividade fundada pela ideia do primado do Outro e do Infinito da relação.
Para Lévinas (1980), o papel original do psiquismo não consiste em refletir o que se é, mas é uma maneira - ou jeito - de ser que resiste à totalidade. O ser é processo de ser em que a subjetividade se constitui a partir da exterioridade (Lévinas, 2010). "O outro assume a primazia" (Chacon, 2015, p. 16) e o sujeito é conclamado a assumir uma responsabilidade intransferível, a partir da qual passa a ser único. A vinda do Outro exige uma implicação do ser que possibilita sua existência singular. Apenas o eu pode responder ao chamado do Outro e ninguém pode assumir seu lugar (Freire, 2003). Assim, Lévinas (2010) revira o sentido ontologia, em que o em-si é superado no sair-de-si-para-o-outro.
Embora para Lévinas a alteridade preceda o eu, não há alteridade a não ser em relação a um sujeito. Não há alteridade e nada, mas somente alteridade como constituinte de subjetividade (Coelho Junior, 2008). A responsabilidade inescapável é o princípio da individuação absoluta e a filosofia de Lévinas é a defesa da subjetividade baseada na responsabilidade (Lévinas, 1985). Em Lévinas, "a identidade do eu não é o resultado de um saber qualquer: eu me encontro sem me procurar" (Poirié, 2007, p. 87) e o ser-para-ooutro não anula a separação (Lévinas, 1980). Escreve Lévinas: "No momento em que sou responsável pelo outro, eu sou único" (Poirié, 2007, p. 108).
Após estabelecer tais colocações como base, Lévinas aponta para o conceito do Terceiro. Além do Outro e do eu, há sempre um Terceiro que representa a sociedade. É a sua presença que modera e limita o privilégio do Outro, estabelecendo a justiça (Lévinas, 1985), uma vez que o ser não pode dedicar-se somente ao Outro imediato, pois existem outras pessoas no mundo que reclamam a ética e a responsabilidade. Assim, a justiça soluciona a responsabilidade infinita e inacabável (Hutchens, 2009), pois o Terceiro perturba a intimidade e divide a responsabilidade do eu (Lévinas, 2010).O Terceiro evoca a humanidade como um todo e a justiça se estabelece sobre as bases da alteridade radical, em todas as estruturas do que se constitui como humano (Chacon, 2015; Miranda, 2012; Maia, 2013).
Entender as implicações da filosofia de Lévinas é entender que renunciar à responsabilidade é negar a própria humanidade. É ser interpelado para o "momento ético por excelência": sair de si mesmo em direção a uma relação com o Outro, Infinito (Chacon, 2015, p. 18). Destarte, ler Lévinas é se defrontar com um convite fundamental para à ética.
Como coloca Worsley (2006), as palavras de Lévinas podem parecer enigmáticas e frustrantes; contudo, a incerteza é o caminho para o esclarecimento. Embora sejamos tentados a inferir conceitos do pensamento de Lévinas, estes apenas estariam distantes da sua filosofia, que não conhece códigos ou determinismos prévios à relação (Poirié, 2007).
É interessante entender a complexidade de Lévinas a partir do que traz Hutchens (2009): uma maneira de desorientar o leitor sempre que este estiver perto de se satisfazer com sua interpretação aparentemente infalível; perder-se em seu texto é condição necessária para compreendê-lo. Fundamentalmente, para apreender algo da filosofia de Lévinas, é preciso "deixar a natureza estrangeira absoluta do Outro nos assombrar" (Bindeman, 2001, p. 04).
Do Caminho para a Ética
Lévinas é um pensador com importantes contribuições, porém pouco estudado na psicologia. Branco e Cirino (2017) realizaram uma pesquisa sobre as produções referentes à ACP nos periódicos brasileiros, entre 2002 e 2014. Dos 58 artigos analisados, somente 4 utilizaram o referencial teórico fenomenológico de Emmanuel Lévinas. É na esperança do apontada por Freire (2001) que seguimos: a Psicologia pode ser e, acrescentaríamos, deve ser, do estranho, do outro que está em mim e do outro do outro. O acolhimento da Psicologia, especialmente da ACP, deve voltar-se e escutar o estranho que habita o self e o estrangeiro a ser acolhido por ele.
É importante destacar que não intentamos, com este estudo, uma aplicação direta da filosofia à psicologia. Antes, compreendemos e demarcamos a existência de diferenças fundamentais entre estes campos de conhecimento, especialmente no que se refere à aplicação prática da psicologia. De fato, nesta proposição de um diálogo entre Rogers e Lévinas, pretendemos navegar pelas implicações e questionamentos éticos da abordagem.
Embora Rogers não tenha se aprofundado em aspectos teóricos relacionados à ética, à alteridade ou mesmo à filosofia, é possível identificar rastros fenomenológicos, existenciais e dialógicos na teoria e prática da abordagem,que possibilitam novas perspectivas para a alteridade (Araújo& Freire, 2017). Nesses rastros, pretendemos trilhar caminhos. O próprio Rogers não se coloca como um 'rogeriano', no sentido cristalizado do termo (Moreira, 2010), o que nos dá abertura para pensar além da tradição.
Inicialmente, é preciso compreender que, de forma geral, o humanismo de Rogers distancia-se do de Lévinas (Freire, 2001). Enquanto Rogers trata predominantemente da valorização da pessoa a partir de uma perspectiva centrada no self, Lévinas discorre sobre um "humanismo do outro homem", expressão que dá título a uma de suas obras (Lévinas, 1993).
Em Rogers (2009, p. 25), "toda pessoa é uma ilha (...); a pessoa só pode construir uma ponte para comunicar com as outras ilhas se primeiramente se dispôs a ser ela mesma". Isto significaria que, em sua concepção, o self precede o Outro, na medida em que seria preciso aprofundar-se em si mesmo antes de ir em direção àquilo que o excede. A relação terapêutica, por sua vez, partiria de um encontro simétrico. Rogers a conceitua como "algo de imediato, igual, um encontro de duas pessoas em bases iguais" (Rogers & Buber, 1957/2008, p. 238).
Em Lévinas, contudo, o Outro chega antes e o encontro com ele seria o que, para utilizarmos as palavras de Rogers, originalmente fundaria a ilha. Além disso, na perspectiva levinasiana, "o espaço intersubjetivo é inicialmente assimétrico" (Lévinas, 1995, p. 144), ou seja, toda relação de encontro com o Outro possui uma desigualdade fundamental entre as partes. O Outro, totalmente diferente do ser, está na posição daquele que é servido, e o ser é convocado à responsabilidade para servir. Não há condição de igualdade no encontro. Assim, partindoda ética de Lévinas, psicoterapeuta e cliente estariam em posições contrárias um ao outro, sendo essencialmente diferentes (Vieira, Bezerra, Pinheiro & Branco, 2018).
Martin Buber (1878-1965), autor de uma filosofia dialógica, em seu diálogo clássico com Carl Rogers (Rogers & Buber, 1957/2008), confronta o psicólogo com algumas destas questões. Buber destaca a assimetria inerente à relação terapêutica; embora Rogers afirme que a sua terapia é, essencialmente, um encontro de pessoas - em oposição às terapias voltadas a rótulos diagnósticos - Buber remete à ausência da surpresa, ou alteridade, na clínica. A isto, Rogers reforça sua posição e responde que, embora a surpresa possa estar presente na terapia, quando a pessoa entra em contato com algo em si que desconhecia, essa alteridade "nela mesma, não é algo a ser valorizado (...). Nesse tipo de diálogo a que me refiro, dentro da própria pessoa, é que há essa alteridade que seria, provavelmente, destruída" (p. 240). Assim, o processo terapêutico parece que se conduziria para uma integração cada vez maior da experiência ao self e aquilo que é excêntrico seria deixado de lado na estruturação da psique.
Neste sentido, a ACP se distanciaria do imprevisível que não pode ser totalizado e estaria mais voltada para a autoconsciência do ser que, por sua vez, possui uma subjetividade independente de outrem e uma responsabilidade primeiramente para consigo mesmo. A alteridade que poderia emergir a partir do dizer não seria necessariamente valorizada na relação; e a postura de abertura ao Outro seria tratada somente a partir da interioridade do ser.
Diante da ideia de Rogers (2009) do processo terapêutico como um processo de "ser o que se é", é possível concordar com Vieira e Freire (2006), que colocam em questão o fechamento desse ser saciado em sua interioridade e a aparente falta de aprofundamento da ACP no que se refere ao que é estranho à subjetividade consciente, e que, contudo, é inerente ao sujeito. De fato, o conceito de "pessoa em funcionamento pleno" de Rogers (2009) define a "vida boa" como um processo de uma pessoa interiormente livre, mergulhada em seu processo de tornar-se o que se é, e que é o próprio crivo diante da vida. Esta concepção ilustra o completo centrar-se no self proposto pela abordagem e que parece ignorar aquilo que não pode ser apreendido na consciência, o que irá sempre exceder o sujeito e a sua compreensão.
Mesmo considerando que tanto Rogers como Lévinas dão, em seus escritos, a destaque a outra pessoa, os autores se distanciam em seus conceitos sobre a relevância da alteridade. O enfoque na pessoa dado por Rogers diz respeito à promoção do indivíduo em seu "modo de funcionamento pleno". Em outras palavras, não há valorização da alteridade ou do que excede ao self; mas, ao contrário, a abertura dada à outra pessoa ocorre em um contexto de relação em que o cliente aprenderá a ser mais centrado em si mesmo. Voltar-se para si é considerado como condição primordial para encontrar os outros que estarão sujeitos ao crivo do indivíduo autocentrado. Já em Lévinas, encontramos uma valorização da alteridade como condição da própria humanização. O centrar-se não em si, mas nos Outros, é o que funda a subjetividade de forma plena e o crivo do sujeito não se origina em si mesmo, mas na ética que surge em resposta à responsabilidade imposta pela presença do Outro.
Rogers (1983) afirmava que funcionar de maneira mais integral não significa estar consciente de absolutamente tudo em si, mas se trata de estar livre para viver uma experiência, tanto subjetivamente quanto conscientemente. Entretanto, também afirmava que as condições facilitadoras têm como objetivo maior promover a autoconsciência. Assim, é possível discutir que, embora em certos momentos fazendo ressalvas quanto à impossibilidade de um sujeito totalmente autoconsciente, Rogers ainda priorizou o ser que se volta para si, em uma sintonia processual com seu próprio organismo e seus parâmetros valorativos criados em si mesmo, e o definiu como o indivíduo que está aberto a experiência.
Esta experiência vivida pelo sujeito torna-se, para Rogers (2009), a suprema autoridade. Embora definida em oposição a uma intelectualização exacerbada, também podemos entender que o autor caminha num direcionamento que é quase isolamento de si, pois, afinal, tudo dependeria da própria experiência, do que o ser acha, sente e pensa, sendo essa a última palavra, sem espaços para lapsos ou deslizes. Enquanto para Rogers o processo individual é central, a partir de Lévinas entendemos que somente na experiência com o Outro, em seu chamado de pura alteridade, o processo irá convergir para o crescimento.
O que Rogers parece não examinar é que este sujeito que pauta-se somente em seu próprio crivo, na verdade poderia tornar-se exatamente o contrário daquilo que pretende, fechado ao que da experiência sua consciência não pode abarcar e aquilo que não lhe concerne. Em oposição a isto, está a ética de Lévinas: voltar-se para aquilo que não diz respeito ao self e ao seu crivo seria justamente no que consiste estar aberto.
Neste mesmo direcionamento, Vieira e Freire (2006) questionam até que ponto o eu autêntico e centrado rogeriano não seria um sujeito neurótico, distante do Outro, preso ao mesmo e à necessidade de assimilar as experiências, não atentando para a dimensão daquilo que excede, do desejo. Ao contrário, a tensão inerente à condição humana no encontro com o estranho, que se evidencia na psicoterapia, não deveria ser suprimida em um acordo interno, mas ouvida (Vieira & Pinheiro, 2013). Lévinas traz ao centro da existência humana o chamado para responder a outrem e esta perspectiva 'centrada no Outro' se coloca em contraste à ética da terapia individual da ACP, como normalmente concebida (Sayre, 2005).
Temos, por outro lado, as atitudes facilitadoras para o desenvolvimento pessoal apontadas por Rogers: a congruência, a consideração positiva incondicional e a empatia. Tais atitudes surgiriam em um contexto de relação terapêutica, e consequentemente, tratam do que ocorre no encontro de um terapeuta com outra pessoa, se referindo de certa forma, seja em abertura ou exclusão, à alteridade que existe na relação.
Rogers (2009) define a congruência como a adequação entre a experiência, a consciência e a comunicação. Este estado produziria uma melhor comunicação interpessoal e promoveria a empatia. Uma pessoa congruente seria uma pessoa unificada em todos os seus níveis: fisiológicos, conscientes e de comunicação. Não haveria interferência relevante entre os níveis e a pessoa experienciaria uma vivência mais próxima do processo de "vida boa" a que Rogers alude. Já a empatia, Rogers (2009) a conceitua como a compreensão do mundo interior do cliente como se, expressão enfatizada por ele, fosse o mundo interior do terapeuta. Reforçando a importância da empatia como atitude facilitadora, Rogers cita estudos descrevendo bons terapeutas como os que são capazes de compreender os sentimentos dos pacientes e nunca têm dúvidas sobre o que o paciente quis dizer.
Em Lévinas (1985), contudo, o processo que envolve a completa unificação em uma autoconsciência completa e absoluta é a totalização, que excluiria o estranho que surpreende e não pode ser abarcado. Já a pretensão de uma compreensão integral do Outro, em seus afetos e em sua linguagem, seria uma tentativa de destruir a alteridade e a distância infinita que existe entre o ser e outrem. Neste sentido, na ótica levinasiana, a congruência e empatia descritas por Rogers estariam muito mais relacionadas ao self totalitário e pouco poderiam ser concebidas como uma atitude ética e de respeito à diferença.
A consideração positiva incondicional, por sua vez, é descrita por Rogers (2009) como um respeito e apreço pelo outro como uma pessoa separada, e quanto mais abertura houvesse para os outros, menos haveria uma busca por remediar as coisas. Enxergamos nesta concepção uma possibilidade de espaço para o estabelecimento da diferença de forma ética. Embora Rogers não siga este caminho a partir da ideia de alteridade, seu conceito de consideração incondicional que delimita uma distinção entre os sujeitos torna-se, talvez, sua condição facilitadora mais aberta ao que transcende o self.
Enquanto a congruência e a empatia estabelecerse- iam em um ideal de totalização, a consideração positiva incondicional torna aquele que a pratica vulnerável ao imprevisível. Dispondo-se a aceitar, sem reservas, o sujeito que se desnuda na relação, o terapeuta se coloca à mercê do que aparecerá do outro, independente do que seja. Em uma posição de espera e expectativa, sem a pretensão de alcançar ou apreender tudo em sua consciência, o terapeuta se torna vulnerável ao impacto do estranhamento que o encontro com outro inevitavelmente irá causar. Nesta disposição, a alteridade encontraria abertura para suas manifestações. Semelhantemente, Vieira (2017) propõe que considerar incondicionalmente o cliente pode ser maneira de afetar-se pelo Outro, em uma compreensão que não se trata de apreensão racional, mas de ser afetado e ser transformado por outrem.
Quanto à congruência e a empatia, embora distantes da alteridade, é possível reiterar que, na medida em que são conceitos de atitudes que podem surgir na relação, dispõem de serem lidas de outras maneiras. A exemplo disso, Vieira e Freire (2006) fazem uma leitura ética da autenticidade rogeriana em sua possibilidade de ser excêntrica, entendida como vulnerabilidade ao excesso, em abertura à afetação do que não pode ou deve ser explicado. Do mesmo modo, trazem o conceito de empatia ligado mais à compreensão dos sentidos trazidos, e não a uma apreensão racional, deixando-se impactar pela excentricidade trazida pelo outro.
Destarte, é possível encontrar aproximações entre Rogers e Lévinas. Destaca-se que a concepção centrada na pessoa, no contexto da ACP, não fatalmente culmina em um isolamento de si; como já mencionado, esta ideia surgiu como oposição a psicoterapias centradas nos problemas e diagnósticos. Desta forma, o centrarse proposto por Rogers significaria evidenciar que a pessoa não é determinada absolutamente, seja por rótulos, diagnósticos, psicólogos ou psiquiatras.
Também refletimos que embora Rogers (2009) se refira à aceitação de si como passo primordial para o cliente antes de qualquer mudança, tal aceitação não é necessariamente conformidade ao já conhecido; compreender o que se sente (ainda que a compreensão completa seja inalcançável), não significaria conformar-se. De fato, seria a partir disso que o eu poderia confrontar-se. Entender esse confronto em termos levinasianos é entender que a pessoa é, também, ambígua e plural; sendo assim, é aí que pode confrontar-se sem deixar de ser autêntica. Abrir-se à experiência é reconhecê-la e até mesmo modificá-la.
Este movimento de vida e crescimento, nomeado por Rogers como tendência atualizante, é condição essencial do humano. Como destacam Vieira e Freire (2006) esse pode ser um processo que "se alimenta da diferença" (p. 430), impactando o sujeito centrado e trazendo à tona novos aspectos de si. Nesse sentido, o processo psicoterapêutico como facilitador dessa tendência seria muito mais do que um conhecer-se, mas a desconstrução de uma imagem rígida do eu, pelo estranhamento e vulnerabilidade. É possível conjecturar, inclusive, que esse seria o caminho para ser autêntico: quando o ser vulnerável se deixa confrontar pelo Outro de si, suas diferenças se evidenciarão, podendo ser apreendido quem se é com mais propriedade; não em uma conscientização final, mas pela experiência de como tais diferenças se opõem e se relacionam, num constante embate.
No entanto, esse jeito de ser, atravessado pela tendência atualizante, não se daria somente internamente, mas também, e talvez principalmente, nos aspectos relacionais da personalidade. A forma primordial de esse encontro interno acontecer é, primeiramente, na abertura externa à alteridade do Outro, que origina a alteridade própria do ser. O Outro, enigma infinito, provoca o eu a uma resposta e responsabilidade indeclinável. Desta forma, a alteridade do ser será revelada no encontro original: com o Outro em sua diferença, contexto e chamado à responsabilidade. O que daí resultará só o encontro efetivo poderá dizer.
Rogers (2009) também falava sobre a afetação de si quando compreendia realmente a outra pessoa. Para ele, no terapeuta, há uma experiência profunda de comunidade. Parece-nos que Rogers tentava falar do encontro com os Outros, e com a humanidade evocada no Terceiro. Além disso, Rogers afirmava que é o sentimento que impele o ser humano para o outro; em Lévinas (1980), este sentimento é o Desejo pelo excesso, pela alteridade.
Ademais, também temos que na ACP o psicoterapeuta precisa olhar para si e deve estar inteiro na relação. Seu lugar não se desenha somente como profissional, mas como ser humano; em outras palavras, o profissional não é neutro, mas é também uma pessoa com uma história, experiências, uma visão de mundo que lhe é própria, sentimentos e percepções. Nesta base estabelecida pela abordagem rogeriana, é possível recuperarmos a ideia de que a diferença entre o terapeuta e o cliente deve ir além dos papéis desempenhados por cada um no ambiente terapêutico. É possível trazer à luz a diferença fundamental entre eles, o que a filosofia levinasiana aponta da alteridade inerente a qualquer relação humana, e que inauguraria na relação terapêutica a legitimidade de um espaço para o que é estranho e o que não poderá ser compreendido pela consciência do self, sem que se busque fazê-lo.
De fato, o estranho sempre se mostrará, ainda que não convidado ou não bem recebido. No contexto de terapia, a fala autêntica que surge, como referida por Amatuzzi (2008), é uma das formas que desencadeia algo novo e traz um caráter de exterioridade, onde o próprio discurso da relação reconfigura as intenções da pessoa, descentrando aquele que o pronuncia e criando novas possibilidades (Vieira & Freire, 2006). A fala que transcende o dito é da ordem do dizer e não pode ser totalizada ou completamente destruída. O dizer de si mesmo, em Lévinas, não partiria de uma congruência completa, como compreendido na ACP, mas da sensibilidade e vulnerabilidade ao que não é passível de totalização (Vieira & Freire, 2006), afetando, ferindo e até traumatizando a subjetividade daquele que escuta (Maia, 2013).
Em um ambiente terapêutico, repleto de afetos e afetações tão profundas que se desenrolam entre os sujeitos ali envolvidos, aquilo que não se compreende irá inevitavelmente surgir no desnudar de um Outro diante do terapeuta que também será, ainda que não completamente consciente disto, transformado. A proposta de uma leitura levinasiana não é a de compreender este estranho que se mostra, mas de legitimar seu espaço. A revelação do Outro não é meramente fenomenológica, mas manifestação absoluta de sua alteridade (Sidekum, 2013) e considerar o Outro requer reconhecer a alteridade da relação, no encontro possibilitado pela diferença (Vieira et al., 2018).
No reconhecimento e valorização da alteridade se consolida a concepção de que o cliente não poderá ser compreendido por completo. Não compreendê-lo, contudo, não significa indiferença. Ao contrário, é pelo estabelecimento da diferença que o terapeuta pode colocar-se como disponível e aberto ao que se posiciona de encontro a ele. Apenas pela diferença pode haver diálogo (Loewenthal & Kunz, 2005). Embora a relação com outrem possa ser atravessada pelo desejo de compreender, tal compreensão sempre será excedida (Maia, 2013) e ao terapeuta cabe reconhecer o Outro e afirmar sua alteridade, oferecendo sua presença como disponibilidade para a imprevisibilidade da relação (Vieira et al., 2018). Aproximar a teoria levinasiana da ACP é propor uma consciência de um Outro de si e de um si que é para outrem, indo além do ser para consigo mesmo (Vieira e Freire, 2006).
Compreendendo que Rogers priorizou a relação em detrimento de técnicas, o psicólogo austríaco Peter Schmid considera que a alteridade do Outro é a real questão da ACP e que Rogers teria deixado vários indicativos em direção a uma saída do ser. Para Schmid (1998; 2002a), a abordagem rogeriana não é individualista, embora admita que o aspecto relacional tenha sido mais enfatizado em fases posteriores do pensamento de Rogers e não tão sistematizado teoricamente. O autor entende que a psicoterapia deve se constituir como resposta a uma demanda do Outro. Neste sentido, a direção vem do Outro, em uma relação Tu-Eu (Schmid, 2006). Schmid (2002b) também refere que a psicoterapia é, em si, uma jornada ética; para ele, o terapeuta deve ser afetado e questionado pelo Outro e, em estágios mais avançados, o cliente também poderá ser afetado pelo Outro do terapeuta. Assim, o objetivo final da terapia seria abrir espaço para encontros (Schmid, 2002a).
O autor em tela destaca que, na terapia, somos confrontados com as contradições entre proximidade e separação simultâneas, empatia e compreensão, desconexão e dificuldade de entender. É a diversidade que é o desafio e o potencial em cada relação, dialógica, centrada na pessoa. Como retoma o Schmid (2006): "as pessoas no ambiente terapêutico são diálogo - psicoterapia é diálogo ou não é psicoterapia" (p. 251). Em sua concepção, o que caracterizaria o humano é justamente a tensão entre a autonomia e o relacional, independência e interdependência e encontrar outra pessoa é reconhecer que ela também se posiciona 'contra' mim, em sua diferença (Schmid, 2002b).
De semelhante modo, Armenta (2007) destaca que a tendência atualizante dificilmente existe em um isolamento total, mas que emerge em um ambiente relacional e dialógico. Assim, as condições necessárias e suficientes postuladas por Rogers implicam em relações com um outro significativo, e é nessa vinculação que o crescimento do sujeito se dá.
Concordamos com Araújo e Freire (2017, p. 223) em que a obra de Rogers apresenta certa ambiguidade: por um lado, entende a experiência humana em seu caráter relacional; por outro, submete as experiências com a diferença ao "crivo do sujeito autocentrado". Dessa forma, transitando entre estes polos de pensamento, Rogers não chega a aprofundar-se na ética da relação terapêutica. Nesta lacuna, Sayre (2005) critica duramente a ACP ao apontar que, ao negligenciar as questões éticas e de alteridade, a abordagem não somente falharia em despertar o cliente para a sua responsabilidade diante do Outro, mas seria estruturada de forma a impedir o confronto com esta responsabilidade, sendo antiética para o sujeito.
Partindo da ótica de Lévinas, é possível pontuar que uma relação se tornaria terapêutica precisamente ao reconhecer a obrigação ética como fundamental (Vieira & Pinheiro, 2015) e a psicoterapia estaria além de um cuidado consigo mesmo, sendo também sobre a revelação da responsabilidade pelo cuidado do Outro (Maia, 2013). Assim, se considerarmos a ideia de que há uma conexão inerente entre o que é ético e o que é terapêutico, poderia ser buscada, na ACP, a promoção um processo de descentramento de si também para o cliente. Destarte, a ética de Lévinas não somente traria reflexões para o psicoterapeuta, mas também seria um desafio radical à experiência do cliente em terapia (Sayre, 2005). Neste direcionamento, Araújo e Freire (2017) propõem para a abordagem a concepção de infinição, em termos levinasianos, que significaria ir em direção à diferença do Outro, oferecendo empatia e possibilitando que o cliente também trilhe este caminho.
Diante do exposto, compreendemos que, por vezes, o direcionamento da terapia de abordagem rogeriana recai sobre uma totalização centrada no ser. O terapeuta, o cliente e seus outros são direcionados para estarem a serviço da consciência do self. Como, então, poderia ser promovido o rompimento desta totalidade dentro da ACP, criando espaços para a alteridade emergente ser parte da construção da relação terapêutica?
Apontamos que, para Lévinas (2010), refletir-se sobre si, construtivo que possa ser, não é suficiente: a autorreflexão relata apenas a aventura pessoal, que retorna sempre a si. Deste modo, considerando as possibilidades de diálogo entre Rogers e Lévinas elencadas neste estudo, propomos a reflexão de que a terapia grupal dentro da ACP pode ser a configuração terapêutica mais propícia ao acolhimento da diferença.
A terapia de grupo seria uma terapia com Outros (Sayre, 2005). Para Schmid (1998), os grupos poderiam ser considerados como o setting 'original' da ACP e esta modalidade terapêutica, naturalmente, tenderia a superar o individualismo, já que não existe a separação estrita entre o terapeuta e o cliente. O grupo é caminho que leva ao Infinito, transcendendo a individualidade de seus membros e tornando-se algo que não se pode totalizar.
Na perspectiva de Rogers (1983), em situações grupais, a individuação é o que permite o sentimento de comunhão. Este entendimento corrobora com sua aplicação também na terapia individual, onde Rogers trata da importância primordial do autoconhecimento, para só então poder ir em direção ao outro. Nesse sentido, Rogers coloca que no grupo é "justamente essa característica de acentuada individuação da consciência que parece elevar o nível do grupo a uma unidade de consciência" (p. 69), ou, em outras palavras, "a comunhão desenvolve-se a partir da individuação" (p. 70). Considerando apenas estas suas colocações, seria possível considerar que, mesmo na terapia de grupo de abordagem rogeriana ainda haveria certa primazia da subjetividade em detrimento do Outro.
Entretanto, nesta mesma obra, Rogers também aponta que, dentro do movimento grupal, o exclusivismo e individualização se perdem na formação de uma comunidade, proporcionando um sentimento mais sólido do 'eu'. Portanto, é possível concluir que, embora Rogers destaque a individuação como pressuposto para comunhão, ele também reconhece a força de um movimento contrário, onde o 'eu' é solidificado a partir de um movimento que sai de si (exclusivismo) e vai em direção à comunidade (aos outros). Tal perspectiva seria mais condizente com a proposta levinasiana, ainda que esta última tenha uma maior radicalidade no posicionamento, atribuindo a própria formação do eu a um Outro específico.
Na filosofia levinasiana, é o Terceiro que apresenta o nós, o grupo. Dessa forma, a terapia poderia não apartar o sujeito do mundo, mas trilhar com ele o caminho de encontro a essas alteridades (Araújo & Freire, 2017). De fato, os trabalhos de grupo na ACP foram essenciais para ressaltar o aspecto relacional do que significa ser pessoa (Schmid, 1998). Assim, embora no espaço terapêutico individual da ACP também possamos encontrar lugar para o estranhamento, indicamos que na terapia grupal este espaço pode ser mais facilmente encontrado: espaço propício ao florescimento da valorização da alteridade.
As distâncias teóricas apresentadas entre os autores não necessitam ser superadas, afinal, como já pontuado, Rogers e Lévinas trabalham em diferentes áreas do conhecimento. Antes, provocar o embate conceitual entre estes pensadores é o que poderia trazer contribuições importantes para a ACP (Araújo & Freire, 2017). Além disso, acreditamos que a partir deste diálogo é possível repensar a abordagem e suas configurações, em uma relação de contato e abertura aos seus elementos estrangeiros (Vieira & Pinheiro, 2013).
É importante ressaltar que reconhecer ausências de aprofundamento ético na ACP não significa afirmar a ausência de perspectivas para a escuta ética do Outro em sua diferença, mas partir dessas reflexões para vislumbrar caminhos de acolhimento ao estrangeiro. Assim, acreditamos que, além de um encontro consigo mesmo, a abordagem também pode apontar na direção de um encontro com a diferença radical (Vieira & Pinheiro, 2013) e corroboramos com Schmid (2006) de que, ao contrário de epistemologias totalitárias que se sustentam em paradigmas de análises e diagnósticos, a epistemologia genuína da ACP seria Infinita.
Considerações Finais
Entendemos que a teoria de Rogers não se resume ao aqui apresentado; há diferentes fases, releituras e aplicações. Contudo, fugiria ao escopo deste trabalho tratar de forma detalhada tais aspectos a partir de Lévinas. Aqui, nos interessou apresentar as bases teóricas que definem o que é central na ACP e parece ter maior influência nos terapeutas rogerianos, trazendo as reflexões como possibilidades e fomentando novas questões. Considerar as implicações das ideias de Lévinas para a pesquisa e a prática da psicoterapia é sofrer impactos e mudanças ontológicas, epistemológicas e metodológicas (Loewenthal & Kunz, 2005).
Outros estudos para aprofundamento da temática se fazem necessários. Contudo, é preciso também, como apontam Vieira e Pinheiro (2015), ir além de reconhecer o lugar do Outro na teoria, mas colocar esta perspectiva ao teste da prática, realizando pesquisas de campo, partindo do pressuposto de que o terapeuta pode genuinamente se abrir à alteridade - que sempre estará presente, reclamando seu lugar. Concordamos com os autores quando afirmam que a maior afetação da abordagem não virá apenas de discussões teóricas, mas dos encontros e desencontros diários com as diferenças radicais de cada Outro. Nesse sentido, colocam, é que nos tornamos cada vez mais rogerianos.
O cliente diante do terapeuta é um Outro, que remete ao infinito em sua distância, ainda que próximo. Cabe ao terapeuta acolher o constante mistério de sua subjetividade (Vieira & Freire, 2006). Como pontuam Vieira e Freire (2006) e Vieira e Pinheiro (2015) e aqui corroboramos, não se trata de construir ou afirmar uma ACP levinasiana, mas refletir, tanto na teoria quanto na prática clínica, o lugar do Outro.
Diante do exposto, faz-se valer os questionamentos: na abordagem rogeriana, seria possível responder eticamente ao cliente em terapia, em um dizer que se origina da afetação diante da alteridade do Outro e que não tem a pretensão de compreendê-lo? Além disso, há condições de certa provocação do terapeuta para que o cliente também se abra à responsabilidade pelo Outro?
A estas perguntas, respondemos com caminhos possíveis de serem trilhados, apontando que o chamado ético deve ser o ponto de partida de qualquer discussão da psicoterapia. Afinal, a convocação a sofrer-com é anterior à intervenção terapêutica, em um ato ético, além de uma técnica empática (Gantt, 2000).
Em Tornar-se Pessoa, Rogers (2009, p. 37) questiona: "Como posso proporcionar uma relação que essa pessoa possa utilizar para seu próprio crescimento pessoal?". Esta pode ser uma pergunta que guia a ACP, que trata, essencialmente, sobre o cuidar do Outro. É um questionar sobre o cuidado para com o Outro, e sobre certa responsabilidade para com ele, ainda que não plenamente elaborada ou compreendida. É neste terreno apontado por Rogers que pode florescer a responsividade à ética de Emmanuel Lévinas.
Assim como Rogers, perguntamos o mesmo e, com este artigo, buscamos espaços férteis à alteridade, intentando abrir e descobrir caminhos possíveis para futuras imersões. E como Lévinas, finalizamos este estudo sem finalizar, na esperança de novos começos, apontando possíveis trilhas para a ACP e para a psicologia como um todo - trilhas ainda a serem desbravadas neste mundo hostil a e, ao mesmo tempo, desejoso da alteridade radical.
Conclui-se que a ACP evolui ao pensar mais amplamente o surgimento e a vivência do sofrimento, entendendo que a pessoa também se constitui em contextos sociais, econômicos, coletivos e mesmo midiáticos (Vieira, 2017). Cada cliente é um Outro para o psicólogo; porém, também encontra no profissional um Outro, possui um Outro em si mesmo (transcendente à sua consciência de self), além de estar imerso em relações éticas com seus Outros. Assim, a psicoterapia se depara com o Infinito, transcende a relação dual e evoca a figura do Terceiro, parte primordial da vida, em suas relações.
Como pontua Freire (2001), a Psicologia deve olhar para o excesso, o inesperado, as rupturas e os cortes característicos da existência humana. Para isso, é preciso compreender a pessoa partindo da alteridade constituinte da subjetividade; e a própria pessoa precisa partir da intimação do Outro, enxergando o avesso de si e sua fragilidade sem autoconsciência plena e constante, escutando o excluído, o indizível e o destempero.
Por fim, indicamos que ACP possui espaços que podem ser ocupados pela alteridade, à medida que se propõe a ter a pessoa como centro. Em suas lacunas e rastros, pode emergir aquilo que não é totalizável; na sua tentativa de retorno ao conhecido e ao Mesmo, pode irromper o Outro; nos seus tropeços, pode descobrir-se novos caminhos. O Outro conclama e, aos que fazem a abordagem, cabe ser resposta.
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Recebido em 06.11.2020
Primeira decisão editorial 15.04.2020
Segunda decisão editorial 20.05.2020
Aceito em 15.02.2021