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Contextos Clínicos

versão impressa ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.1 no.1 São Leopoldo jun. 2008

 

ARTIGOS

 

Desenho na pesquisa com crianças: análise na perspectiva histórico-cultural

 

Children's drawing in research: a historical-cultural analysis

 

 

Michelle Regina da NatividadeI; Maria Chalfin CoutinhoII; Andréa Vieira ZanellaIII

IProfessora do Curso de Graduação em Psicologia da Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL. Universidade do Sul de Santa Catarina, Curso de Graduação em Psicologia, Av. Pedra Branca, 25, 88132-000, Palhoça, SC, Brasil. michelleregina@gmail.com
IIProfessora Associada do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. UFSC-CFH Departamento de Psicologia, Campus Trindade, 88010-970, Florianópolis, SC, Brasil. chalfin@mbox1.ufsc.br
IIIProfessora Associada do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, bolsista em produtividade do CNPq. UFSC-CFH Departamento de Psicologia, Campus Trindade, 88010-970, Florianópolis, SC, Brasil. azanella@cfh.ufsc.br

 

 


RESUMO

Neste artigo discute-se o uso do desenho como procedimento complementar à entrevista em pesquisas com crianças. Esta discussão foi baseada em uma pesquisa que investigou os sentidos do trabalho atribuídos por crianças de 7 a 8 anos de idade, com a utilização do desenho como recurso. O desenho infantil é compreendido, à luz da perspectiva histórico-cultural em psicologia, como forma de linguagem na qual se expressa e constitui a imaginação criadora do ser humano. Para a análise dos resultados, sob esse enfoque, é importante considerar tanto o processo de desenhar, as condições de sua produção - que necessariamente requerem o olhar para as relações entre pesquisador e sujeito da pesquisa - quanto o produto final. Isto porque o desenho expressa significados compartilhados socialmente, porém os sentidos que o autor/criança atribui ao desenho produzido somente podem ser compreendidos com as explicações da criança sobre o que produziu. Por meio da verbalização sobre o desenho é que se podem obter informações significativas sobre o contexto histórico-cultural em que a criança vive e como o significa.

Palavras-chave: desenho infantil, pesquisa, perspectiva histórico-cultural.


ABSTRACT

This article discusses the use of drawing to complement interviews when doing research with children. It is based on a research project that investigated the attributed to work by children of 7 to 8 years of age by using drawing as a resource. In a historical-cultural perspective in psychology, the drawing of a child is understood as a form of language in which the human being creative imagination is expressed. To analyze the results in line with this approach, it is important to consider not only the process of drawing, but also the conditions in which it takes place - which necessarily includes the relationship between the researcher and the research participant - as well as the end product. Drawings express meanings that are socially shared, but the meanings the authors/children ascribe to their drawings can only be understood in the light of their own explanation. Through their on the drawings one can get important information on the historical and cultural environment where they live and how they signify it.

Key words: children's drawings, research, historical-cultural perspective.


 

 

Os estudos sobre o mundo do trabalho1 habitualmente mantêm o seu foco nos "adultos" ou nos jovens ao se inserirem no mercado de trabalho e/ou durante o processo de escolha profissional. Porém, também é relevante a vinculação desta temática com o chamado "universo infantil", uma vez que a criança, mesmo quando não exerce uma atividade produtiva remunerada, relaciona-se com o mundo do trabalho. Tal pressuposto decorre de uma concepção de sujeito constituído nas e pelas relações sociais, na intrincada trama em que cognição, afetos e vontade são historicamente produzidos no próprio movimento de produção da realidade em suas múltiplas dimensões2.

Mas por que e como dialogar com as crianças sobre a temática do trabalho? Em consonância com que pontua Kramer (2002) e Sarmento e Pinto (1997), considera-se que ouvir as crianças é buscar uma possibilidade de compreender a sociedade, porque esta não é formada apenas por adultos, para os quais se valoriza a expressão de suas idéias, mas também pelas crianças e pelos sentidos atribuídos por elas à realidade. A linguagem utilizada pelas crianças ao se comunicarem, no entanto, diferencia-se da dos adultos, na qual a palavra, a frase, o enunciado articulado predominam. Na comunicação com outros, a criança utiliza signos vários, como gestos, imagens, silêncios, expressões, palavras não necessariamente compreensíveis para quem não compartilha do seu universo de significações, o que requer a utilização de recursos auxiliares quando da pesquisa com esse público. Ciente disso, utilizou-se, em pesquisa que investigou os sentidos atribuídos por crianças ao trabalho (Natividade, 2007), o desenho como procedimento complementar à entrevista no processo de coleta de informações. Neste artigo, a utilização do desenho na pesquisa referida é discutida, considerando o seu valor heurístico para investigações com crianças.

 

Considerações sobre o desenho e o processo de desenhar

O desenho infantil é aqui compreendido à luz da perspectiva histórico-cultural em psicologia, para o qual o processo de desenhar em si é tão relevante quanto o produto final. Segundo Ferreira, a teoria de Vygotski3 (2001, p. 40) traz um avanço na compreensão sobre o desenho, pois considera que "[...] a) a figuração reflete o conhecimento da criança; e b) seu conhecimento, refletido no desenho, é o da sua realidade conceituada, constituída pelo significado da palavra". Percebe-se, então, que a importância não incide sobre o produto, mas sim na significação que o autor atribui ao próprio processo de desenhar e sobre o que é possível compreender da realidade a partir da imagem produzida.

Ao prestar atenção às atividades das crianças, percebe-se que habitualmente elas gostam de desenhar, sendo o desenho um canal privilegiado de expressão de suas idéias, vontades, emoções, enfim, do modo como lêem a realidade (Derdyk, 1989; Ferreira, 2001; Gobbi, 2005; Pereira, 2005). O desenho parece mesmo pertencente ao mundo infantil, parece coisa de criança. Pode-se encontrar nos desenhos um mundo fantástico ou fantasioso onde a criança se expressa. Mas será esta expressão somente fantasia ou uma expressão de sua realidade? Como entender o desenho das crianças?

Através da revisão de literatura, pode-se compreender que o desenho, por se tratar de uma forma de linguagem, tem papel importante tanto no desenvolvimento da capacidade cognitiva e semiótica, como também na criatividade e expressão das emoções. Por meio do desenho, o pensamento e a emoção se objetivam (Souza et al., 2003), e a criança "libera seus repertórios de memória" (Vygotski, 1991, p. 127). Vygotski (1998) compreende o desenho infantil como uma forma de expressão da imaginação criadora do homem. Na criança, a arte enquanto capacidade criadora, segundo Leite (2004, s. p.), é o principal meio de expressão, pois

Podemos perceber através da observação da criança a quem é oferecida a liberdade de criar, que no fazer artístico ela conta o quê e como sente, o quê e como pensa e o quê e como vê/percebe o mundo à sua volta.

Falar sobre desenho infantil requer também que se reflita sobre linguagem, imaginação, percepção, memória, emoção, significação, ou seja, compreender os processos psicológicos envolvidos/constituídos no processo de desenhar e que não podem ser analisados de forma isolada, visto serem interdependentes. Ademais, o modo como estes processos se desenvolvem e se objetivam variam em razão das condições sociais e culturais, historicamente produzidas e particularmente apropriadas em razão dos lugares sociais que cada pessoa ocupa na trama das relações cotidianas das quais ativamente participa.

Silva (1998) afirma que a visão maturacionista é acentuada na literatura sobre esta temática, sendo que, nesta visão, o desenho é considerado como algo natural e espontâneo. Todavia, a autora esclarece que, na perspectiva histórico-cultural, o desenho é visto como sendo constituído socialmente, pois, sendo o sujeito um ser social em sua origem, toda sua produção é igualmente constituída a partir das relações sociais. "Assim como uma pessoa só aprende a expressar-se oralmente se conviver com falantes, a criança desenha porque vive em uma cultura que tem na atividade gráfica uma de suas formas de expressão" (Silva, 1998, s.p).

Vygotski (1998) deixa claro que compreende o desenho infantil a partir do contexto históricocultural no qual a criança está inserida, sendo este marcado pelas condições que lhe são disponibilizadas: "Não se trata agora de algo massivo, natural, espontâneo, isto é, do surgimento por si mesmo da criação artística infantil, mas sim que esta criação depende da habilidade, de hábitos artísticos determinados, de dispor de materiais, etc." (1998, p. 102)4. Seguindo a mesma perspectiva, Ferreira afirma: "Os significados das figurações do desenho da criança são culturais e produto das suas experiências com os objetos reais mediadas pela palavra e pela interação com o 'outro'" (2001, p. 35).

Segundo Pereira (2005), a garatuja é a fase inicial do grafismo, já o termo desenho passa a ser utilizado a partir do momento em que a criança reconhece um objeto no traçado produzido por ela. Vygotski (1998) não trata sobre esta fase da garatuja, mas, pautando-se nas experiências de Kersensteiner, apresenta quatro etapas do desenho infantil5, mostrando como a criança representa a sua realidade no desenho. A primeira etapa corresponde aos esquemas, onde a criança representa esquematicamente os objetos, desenhando o concreto através de traços essenciais. Na segunda etapa, encontra-se o formalismo e o esquematismo na representação, começando a surgir a forma e a linha, onde o desenho busca uma relação de forma entre as partes. Esta segunda etapa se diferencia da primeira por apresentar mais detalhes na representação dos objetos. A terceira etapa é denominada pelo autor de representação veraz, na qual os esquemas desaparecem e dão lugar ao contorno plano e os objetos desenhados parecem com o aspecto verdadeiro. Na quarta etapa, surge a imagem plástica, onde o desenho reflete aspectos reais do objeto e apresenta perspectiva.

Na primeira e segunda etapa, há a presença do desenho radiografado, onde a criança desenha também o que não vê no objeto, mas sabe que existe (Vygotski, 1998). Esta característica demonstra que, nas fases iniciais do desenho, a memória se destaca, pois a criança desenha o que lembra e conhece do objeto (Ferreira, 2001)6. Desenhar a partir de um modelo presente, isto é, copiar, é característica de um grau maior de desenvolvimento do desenho infantil, ao qual, de acordo com Vygotski (1998), poucas crianças chegam.

No desenvolvimento do desenho infantil, primeiro a criança se fixa no todo para realizar seus desenhos e somente depois passa a dar atenção às partes, às peculiaridades do objeto que pretende desenhar (Vygotski, 1998). Isto pode ser compreendido também em relação ao desenvolvimento da linguagem verbal, pois "[...] o desenho é uma linguagem gráfica que surge tendo por base a linguagem verbal. Nesse sentido, os esquemas que caracterizam os primeiros desenhos infantis lembram conceitos verbais que comunicam somente os aspectos essenciais dos objetos" (Vygotski, 1991, p. 127)

No processo de elaboração do desenho também está presente a imaginação, pois a criança observa a realidade e registra desta aquilo que lhe é significativo, sendo os diversos recortes dessa realidade combinados imaginativamente e objetivados por meio do desenho. "O desenho configura um campo minado de possibilidades, confrontando o real, o percebido e o imaginário. A observação, a memória e a imaginação são as personagens que flagram esta zona de incerteza: o território entre o visível e o invisível" (Derdyk, 1989, p. 115).

A imaginação requer objetivação por intermédio da atividade criadora; a imaginação recria (re-elabora, re-combina, res-significa) fragmentos da realidade, do que já existe. Enquanto a memória registra o que é significativo para o sujeito, a imaginação objetivada no desenho o projeta para o futuro, pois o sujeito faz uma elaboração criadora desta realidade significada. Vygotski (1998) compreende imaginação como sinônimo de fantasia e a atividade criadora como a objetivação da imaginação; sendo assim, toda realização humana é criadora. Partindo desta compreensão, entende-se que desde a infância já existem atividades criadoras7, como nas brincadeiras e desenhos infantis.

Para Vygotski (1998), a atividade criadora compreende tanto os aspectos cognitivo e volitivo quanto o emocional, pois é a significação da realidade que é objetivada através do desenho e, por seu intermédio, transformada. Considerando o desenhar como uma atividade criadora, pode-se pensar que este expressa os sentimentos do autor e o modo como a realidade é por este apropriada. Porém, ao desenhar, esses sentimentos e significações são transformados, dado a inexorável vinculação entre objetivação e subjetivação que caracterizam o movimento de constituição do sujeito8. Ler um desenho, por sua vez, não é tarefa simples, posto que os signos ali traçados não falam por si só: é preciso interpretá-los, proceder à escuta do que dizem, o que não raro somente pode ser feito com o auxílio da palavra. Isso é particularmente necessário quanto se intenciona conhecer/explicar uma dada realidade, o que se apresenta como objetivo da pesquisa acadêmica. Nesse caso, para compreender o desenho infantil e aquilo que seu autor diz por meio de traços e cores lançados em uma folha de papel, necessário se faz escutar o que o próprio autor fala sobre sua produção.

Para ilustrar as vicissitudes desse processo, apresentam-se informações sobre uma pesquisa que teve o desenho como ferramenta complementar à entrevista em uma pesquisa com crianças sobre os sentidos do trabalho (Natividade, 2007). A referida pesquisa teve como objetivo investigar os sentidos do trabalho atribuídos pelas crianças, de modo a estabelecer relações com o contexto de vida cotidiano e com o mundo do trabalho contemporâneo.

 

Método

Participantes

A pesquisa contou com a participação de sete crianças, sendo 4 do sexo feminino e 3 do sexo masculino. A faixa etária variou entre 7 e 8 anos de idade. A Tabela 1 apresenta uma síntese do perfil dos sujeitos.

Procedimentos

O critério inicial para seleção dos participantes foi contatar crianças não trabalhadoras, pois se pretendia analisar os sentidos atribuídos por sujeitos que ainda não tivessem experiência concreta com o trabalho. Pretendeu-se com esta escolha compreender os sentidos atribuídos ao trabalho, mesmo antes deste sujeito realizar efetivamente alguma atividade produtiva sistematizada e/ou remunerada. Efetivou-se o contato com uma Instituição de Ensino como meio de acesso para localizar essas crianças, tendo sido escolhida uma escola pública do município de São José-SC para a realização da pesquisa em razão da facilidade de acesso da pesquisadora principal9.

Após contato com a orientadora e com a professora de uma turma da 2ª série da escola10, a pesquisadora agendou um dia para o primeiro encontro com a turma. Na ocasião, os objetivos e procedimentos da pesquisa foram apresentados a todos os alunos, e estes foram convidados a participar, quando 10 crianças se mostraram interessadas. Desta forma, por contato telefônico, os pais destas crianças foram contatados. A maioria dos pais se disponibilizou para um encontro, para que, pessoalmente, maiores dados da pesquisa pudessem ser informados. Após estes contatos, somente sete pais se disponibilizaram e autorizaram a participação de seu filho11. Delimitados os participantes, iniciou-se o processo de agendamento das entrevistas, deixando a decisão do local e horário a critério dos pais.

Instrumentos

A entrevista com as crianças compreendeu dois procedimentos, que serão aqui denominados de procedimento principal - uma entrevista semi-estruturada - e o procedimento complementar - o desenho.

O uso do desenho como procedimento para coleta de informações mostrou-se propício para ser aplicado na população alvo desta pesquisa, corroborando o ponto de vista de Vygotski (1998, p. 93), ao afirmar que "[...] o desenho constitui o aspecto preferencial da atividade artística das crianças com menor idade"12. Vygotski cita dois autores que indicam a idade em que ocorre o enfraquecimento do interesse pelo desenho - para Luquens é entre os 10 e 15 anos, e para Barnés essa transição ocorre entre 13 e 14 anos. Considerando que as crianças investigadas tinham entre 7 e 8 anos de idade, estavam, portanto, no período em que o desenho é um meio de comunicação freqüente.

No início da coleta de informações, todas as crianças afirmaram gostar de desenhar, o que facilitou o envolvimento e o diálogo entre pesquisadora e sujeitos da pesquisa. Com cada criança individualmente, foi disponibilizada sobre a mesa uma variedade de materiais - canetinhas hidrocor, lápis de cor, giz de cera, régua, borracha, lápis, canetas esferográficas - e explicado que poderiam utilizar o que quisessem. Então, solicitou-se à criança que fizesse um desenho representativo do que era trabalho para ela e, ao término da elaboração, a criança explicava sua produção.

Após as explicações da criança sobre o desenho, a coleta de informações prosseguia com a entrevista. Segundo Aguiar e Ozella (2006), por meio desta pode-se investigar o discurso sobre determinado assunto apresentado por um sujeito, além de permitir o acesso às significações que este atribui à realidade. Deve-se ponderar que este discurso não encerra a compreensão dos sentidos e significados que o sujeito atribui, já que eles continuarão se modificando de acordo com as relações estabelecidas pelo sujeito.

A utilização do procedimento de entrevista com crianças não é habitualmente apontada pela literatura, e isso ocorre, segundo Carvalho et al. (2004, p. 291-292) "[...] inclusive porque, usualmente, pensa-se a criança como incapaz de falar sobre suas próprias preferências, concepções ou avaliações"; todavia, as autoras afirmam que novos estudos sobre crianças vêm alterando essa concepção.

As entrevistas duraram entre 22 minutos e 1 hora. Somente uma entrevista foi realizada na residência da criança; todas as outras foram realizadas na escola. Todos os encontros foram gravados e, posteriormente, transcritos com vista à análise de seus conteúdos.

 

Análise dos dados

As categorias de análise foram construídas a posteriori, após várias leituras do material transcrito.

Para a análise dos desenhos, partiu-se do pressuposto de que são constituídos socialmente e, em decorrência, não se buscou uma análise interpretativa das produções gráficas das crianças em si, mas sim compreendê-los a partir de suas próprias verbalizações. Foi também valorizado, nas análises, não só o produto final, mas todo o processo de sua produção.

 

Resultados e discussão

A vinculação entre os sentidos do trabalho para estas crianças e sua realidade social ficou evidente nos desenhos produzidos. Com exceção de uma criança15, todas as outras fizeram seus desenhos e pautaram suas explicações com base em alguma atividade que elas ou os familiares realizam.

Essa vinculação pode ser mais bem compreendida com as informações que constam na Tabela 2. Na coluna central, consta uma breve descrição do desenho no que se refere à imagem produzida pela criança, descrição essa feita pela mesma ao ser solicitada a contar o que desenhou. Na coluna da direita, por sua vez, constam informações sobre aspectos da vida de cada criança que ela mesma apresentou ou que a pesquisadora identificou, no contato com os pais, como diretamente vinculados ao desenho.

A partir das informações apresentadas na Tabela 2, é possível verificar que, de maneira geral, as crianças realizaram desenhos que se relacionam com atividades que os pais ou elas próprias realizam ou com contextos de seu cotidiano.

As questões relacionadas ao gênero, embora não sejam foco desta pesquisa, também emergiram nos dados coletados. Ao analisar os desenhos realizados pelas crianças, observou-se que três das quatro meninas realizaram desenhos vinculados com atividades domésticas: varrer, limpar, lavar louça, etc.

O padrão familiar que se pauta no papel de um homem/provedor e mulher/dona-de-casa/ cuidadora, uma família hierárquica (Souza e Ramires, 2006), entrou em declínio a partir de meados do século XX (Oliveira, 2005; Souza e Ramires, 2006). Com base nesse padrão, a educação das mulheres se pauta na aprendizagem das atividades domésticas, tendo o espaço privado da família como seu ambiente "natural". Picanço (2005, p. 152) esclarece que "[...] arranjos familiares estão sendo construídos a partir da constituição de redes familiares e não-familiares para a criação dos filhos, assim como novos significados para família, mulher e homem estão sendo produzidos, convivendo e sendo negociados com os significados mais tradicionais". Dessa forma, embora haja mudanças nas discussões sobre as relações de gênero, os desenhos produzidos pelas crianças sugerem que elas ainda estão vinculadas ao discurso tradicional, em que as atividades domésticas são prioritariamente relacionadas ao papel feminino.

A proximidade entre os desenhos produzidos e o contexto de vida e relações cotidianas estabelecidas pela criança é confirmada teoricamente, tanto em relação à concepção de constituição do sujeito, como também sobre o processo do desenho infantil. Segundo o enfoque histórico-cultural em psicologia, o sujeito se constitui a partir das relações sociais e ativamente significa a realidade no embate com os múltiplos sentidos produzidos sobre esta no contexto do qual ativamente participa. Com a análise dos dados coletados, verificou-se que a constituição dos sentidos do trabalho começa já na infância, a partir basicamente das relações familiares e/ou de outras pessoas que exercem atividades de cuidado das crianças.

Como a criança desenha o que significa da realidade, pode-se dizer que, ao desenhar, ela objetiva a sua subjetividade, a realidade tal como a significa, significação essa por sua vez constituída a partir dos muitos outros com os quais convive/dialoga e dos sentidos que circulam nesses contextos. Sendo assim, compreende-se que o desenho expressa não apenas fantasia, mas também aquilo que a criança se apropria e o que ela significa da realidade, daí se afirmar que as crianças "desenham o que elas sabem acerca das coisas, o que lhes parece mais importante nelas e, não em modo algum o que estão vendo ou o que, em conseqüência, imaginam das coisas"16 (Vygotski, 1998, p. 95). Desta forma, ao desenhar, a criança expressa a sua "realidade conceituada" (Ferreira, 2001; Pereira, 2005; Souza et al., 2003). Então, ao analisar os desenhos produzidos, é possível observar que as crianças ali objetivam muitos sentidos sobre o trabalho, os conhecimentos de que se apropriaram a respeito do tema. Na Tabela 2, fica evidente que esse conhecimento está relacionado às relações familiares ou escolares.

O desenho, segundo Gobbi (2005), conjugado à oralidade, fornece informações sobre como as crianças percebem a realidade na qual estão inseridas. Pereira (2005) enfoca a importância do acompanhamento da produção do desenho e do registro das verbalizações durante o processo, para poder utilizar o desenho infantil como material de estudo para a compreensão do pensamento da criança. Já Souza et al. (2003, p. 103) acrescentam que essa junção da verbalização com o desenho pode ser um meio de aproximação com a "[...] trama afetivo-volitiva oculta atrás do pensamento". Assim sendo, foi importante observar que todas as crianças estabeleceram diálogo com a pesquisadora durante a elaboração do desenho, ainda que algumas tenham falado pouco, como, por exemplo:

Eu tô achando engraçado ... a cabeça do boneco (Francine)17;

Errei (Joaquim).

No entanto, outras crianças buscaram um diálogo contínuo, em alguns momentos, sobre temáticas afins à pesquisa, mas também sobre assuntos do cotidiano infantil:

Qualquer dia assim... ah, tu já pegaste assim uma chuva, um trânsito bem grande, na hora do trabalho? [Já] Assim, nunca deu um incômodo, assim, no trabalho, nada? [No meu trabalho, se eu já me incomodei?] É, por causa do trânsito. [Ah, por causa do trânsito, de ficar chateada, assim?] É. [Já, por quê?] Humm, porque me deu vontade de perguntar por que... (Elisa)

Tem, não tem aquele jogo ... do Power Rangers, que passa na televisão? [Ahn, desenho do Power Rangers?] Tem Lilo e Sticht, tem BlaiBlaid, espiã, Verdadeiras Espiãs ... Pequena Sereia eu não sei, mas eu acho que tem. Tem Blaiblaid. [Jogo de vídeo game, tu tá falando?] É, é, o vídeo game, tem Blaiblaid, eu acho que também tem Pequena Sereia. Tem um jogo de balé, meu amigo me mostrou ali no... (José)

A questão da fala antecedendo a criação ficou evidente no processo de elaboração do desenho destas crianças:

O que eu vou fazer mesmo? [fala bem baixinho] Vou fazer uma mulher, que ela trabalha de empregada. (Carolina).

Fazer o sol com olhinho. (Reginaldo).

Uhumm, que às vezes eu vou fazer a casa, eu faço assim. É, agora eu vou fazer a mesa. É, só que tem um armário que é pra guardar a louça, e ele é muito complicado pra fazer. (Paola).

A linguagem é constitutiva do psiquismo humano e, segundo Smolka, ela "[...] emerge no contexto das práticas sociais" (1993, p. 8); a autora explica que "os processos verbais [...] organizam e estruturam a atividade mental" (Smolka, 1993, p. 9). A partir disso, compreende-se a fala que acompanha a produção do desenho como organizadora da própria produção. Ao planejar seu desenho, a criança ordena sua intenção de produção por meio da fala; entretanto, Silva (1998) afirma que "a fala organiza o desenho", mas também "o desenho organiza a fala", pois esse processo se constitui dialeticamente. Uma das crianças entrevistadas expressou essa relação entre pensamento, fala e ação:

É, que que eu vou fazer? Às vezes eu consigo eu, no meu pensamento eu falo uma coisa, o meu pensamento fala uma coisa, daí eu faço, mas eu não falo nada o que que eu vou fazer. [Não entendi, peraí. Repete.] Às vezes, eu, no meu pensamento eu fico pensando uma coisa que que eu vou fazer. [Tá.] Daí às vezes eu vou pintar, fazer o que que eu tô pensando, mas eu não falo que que eu vou fazer (Paola)

Paola deixa claro em sua fala que algumas coisas ela pensa e faz; outras, no entanto, ela fala o que vai fazer e depois executa. As relações entre fala e atividade, portanto, podem ser variadas e cumprir papéis diferentes no processo de desenvolvimento. Desse modo, por intermédio da verbalização sobre o desenho, é possível ter acesso tanto aos sentidos que o sujeito atribui à sua produção e, conseqüentemente, à sua realidade, bem como investigar o modo como a linguagem participa no processo de desenvolvimento psicológico da criança.

É relevante esta compreensão sobre a linguagem verbal, pois, segundo Vygotski (1991), ela medeia o desenvolvimento do desenho infantil. A linguagem é constitutiva do psiquismo humano, pois "os processos verbais [...] organizam e estruturam a atividade mental" (Smolka, 1993, p. 9).

A partir disto, compreende-se que a fala que acompanha ou antecede a produção do desenho serve para organizar a própria produção gráfica. Nos primeiros desenhos da criança, este ganha um nome - é reconhecido - somente após sua conclusão; ao longo do desenvolvimento infantil, este processo de nomeação do desenho passa a ocorrer no início do processo de desenhar, ou seja, antes de iniciar sua produção a criança já anuncia a sua intenção (Pereira, 2005; Silva, 1998; Vygotski, 1991). Percebe-se, então, um deslocamento da linguagem verbal, o qual, segundo Silva (1998, p. 207), "[...] reflete a mudança da participação da fala na organização dos processos psíquicos". Ao planejar seu desenho, a criança ordena sua intenção de produção através da fala, intenção essa que é também modificada com o próprio processo de desenhar, visto a dialeticidade das relações entre atividade e constituição do sujeito.

A fala antes, durante ou depois do desenho acaba demonstrando um outro "desenho" além daquele que se pode observar no papel, pois, ao falar sobre sua produção, a criança pode relacionar elementos que graficamente estão isolados (Silva, 1998). Sendo assim, estas verbalizações são de fundamental importância para a compreensão do sentido da produção gráfica, que ganha destaque na pesquisa com crianças aliada à possibilidade de fala sobre a própria produção.

 

Considerações finais

Com a pesquisa aqui apresentada, ainda que sinteticamente, procurou-se demonstrar a importância do desenho como procedimento de coleta de informações na pesquisa com crianças e, ao mesmo tempo, a necessidade de que este seja complementar à entrevista. Isso porque é somente por intermédio das verbalizações das crianças a respeito de seus desenhos que é possível compreender os sentidos de sua produção.

A análise do desenho em si, por sua vez, é limitada, pois "subjetivamente, cada um de nós, ao interpretar o desenho todo, atribui significados que podem ou não ser coincidentes entre si e com o do autor" (Ferreira, 2001, p. 36). O desenho em si traz preciosas informações sobre os significados que são compartilhados socialmente, ainda que sua leitura possa ser tarefa árdua em razão de sua dimensão imagética. Porém, os sentidos que o autor em particular atribui ao desenho produzido, somente ele poderá explicar. A verbalização sobre o seu desenho é, pois, ferramenta importante para se compreender o contexto histórico-cultural em que a criança vive e os sentidos atribuídos por ela a esse contexto.

Tendo em vista a concepção aqui apresentada, compreende-se, portanto, que, para fins de pesquisa, não é suficiente a interpretação de traços do desenho a partir de critérios preestabelecidos e generalizados, mas sim se deve considerá-lo enquanto produção cultural. A criança desenha porque vive em uma cultura em que a produção gráfica é utilizada como uma forma de expressão (Silva, 1998), ou seja, dependendo do contexto histórico-cultural, o desenho se apresentará de formas diferentes, assim como os sentidos do que é desenhado variarão em razão das experiências de seu autor. Nesta perspectiva, sendo o desenho entendido como expressão da imaginação criadora do ser humano (Vygotski, 1998), é por intermédio da imagem produzida e da verbalização sobre esta que se pode ter acesso aos sentidos atribuídos pelo sujeito à sua produção e, conseqüentemente, à realidade em que vive.

 

Referências

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Submetido em: 25/03/2008
Aceito em: 10/05/2008

 

 

1 Segundo Borges e Yamamoto (2004), o "mundo do trabalho" abarca múltiplas e interdependentes dimensões, organizadas didaticamente nas seguintes dimensões: concreta, gerencial, socioeconômica, ideológica e simbólica.
2 Sobre a constituição do sujeito na perspectiva do enfoque histórico-cultural em psicologia, ver Vygotski (2000), Pino (2000), Zanella (2004, 2005).
3 Há uma variação da grafia do nome de Vygotski nas diferentes bibliografias utilizadas; sendo assim, optamos por seguir uma única padronização, mantendo apenas, em caso de citação literal que faça menção ao nome do autor, a grafia original utilizada.
4 "No se trata ahora de algo masivo, natural, espontáneo, es decir, del surgimiento por si mismo de la creación artística infantil, sino que esta creación depende de la habilidad, de hábitos artísticos determinados, de disponer de materiales, etc." (Vygotski, 1998, p. 102).
5 Vygotski (1998) afirma que os temas prediletos nos desenhos infantis são a representação da figura humana e de animais.
6 Este desenhar de memória também está relacionado à significação que a criança faz de sua realidade, pois "a criança memoriza o que faz sentido para ela. Assim, os esquemas figurativos dos objetos reais, que dispõe na memória, estão carregados de significação" (Ferreira, 2001, p. 33).
7 Sobre processos de criação ver: Zanella et al. (2000) e Maheirie (2003). Sobre o brincar ver: Zanella et al. (2002), Pinto (2003), Meira (2003) e Barbosa (1997).
8 Sobre o tema, ver Maheirie (2002), Zanella (2004, 2005), entre outros.
9 Todos os procedimentos aqui relatados foram submetidos, por meio do projeto de dissertação, ao Comitê de Ética na Pesquisa com Seres Humanos da UFSC e devidamente aprovados.
10 Foi escolhida uma turma de 2ª série por considerá-la já ambientada ao contexto escolar, facilitando assim o contato com a criança. A turma foi indicada pela orientadora educacional da escola.
11 Apesquisa também contemplou a entrevista com os pais, com o intuito de contextualizar a fala das crianças. Como este artigo tem como foco a discussão sobre o uso do desenho, os aspectos metodológicos de contato e coleta de dados com os pais não serão aqui descritos.
12 "[...] el dibujo constituye el aspecto preferente de la actividad artística de los ninõs en su edad temprana" (Vygotski, 1998, p. 93).
13 Todos os nomes apresentados ao longo do artigo são fictícios.
14 E.F: Ensino Fundamental; E.M.: Ensino Médio.
15 Há, porém, um fato que vincula também esta criança que não desenhou atividades que algum conhecido realiza: o menino fez um desenho de pessoas trabalhando em um banco. Durante a entrevista com os pais, estes não relataram nenhum fato que contribuísse para que se pudesse compreender um pouco melhor o desenho que o menino havia realizado; então se questionou se eles conheciam alguém que trabalhasse em banco, e eles explicaram que há uma tia que tem transtornos mentais, que mora com eles, e que ela, ao cumprimentar as pessoas, pergunta se elas trabalham no banco. Com esta informação, é possível relacionar este desenho, da mesma forma que os das outras crianças, às vivências cotidianas.
16 "Dibujan lo que ya saben acerca de las cosas, lo que les parece más importante en ellas y, no en modo alguno lo que están viendo o lo que, en consecuencia, se imaginan de las cosas"(Vygotski, 1998, p. 95).
17 As falas dos sujeitos serão apresentadas em bloco de citação separado do texto, sendo as falas da pesquisadora apresentadas entre colchetes.

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