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Contextos Clínicos

versão impressa ISSN 1983-3482

Contextos Clínic vol.12 no.2 São Leopoldo maio/ago. 2019

https://doi.org/10.4013/ctc.2019.122.13 

ARTIGOS

 

Processos de enfrentamento e resiliência em pacientes com doença renal crônica em hemodiálise

 

Confronting and resilient processes in patients with chronic kidney disease on hemodialysis

 

 

Jéssica Oliveira GalvãoI; Érica Tavares de Melo MatsuokaI; Alessandra Ramos CastanhaII; Francisca Marina de Souza Freire FurtadoIII

IUniversidade Federal do Pernambuco. Programa de Residência Multiprofissional Integrado em Saúde Avenida Professor Moraes Rego, 1235, Cidade Universitária, Recife, 50670-901, Pernambuco, PE, Brasil. jessicaogalvao@gmail.com
IIUniversidade Federal do Pernambuco. Departamento de Psicologia Avenida Professor Moraes Rego, 1235, Cidade Universitária, Recife, 50670-901, Pernambuco, PE, Brasil. alessandra_castanha@yahoo.com.br
IIICentro Universitário de João Pessoa. Departamento de Psicologia Rodovia BR-230, Km 22, S/n, Água Fria, 58053-000, João Pessoa, PB, Brasil. marinasfreire@hotmail.com

 

 


RESUMO

A Doença Renal Crônica (DRC) associada à hemodiálise implica em alterações na vida do paciente que têm impacto sobre a sua qualidade de vida. Todavia, a resiliência pode promover um novo significado e oportunidades de vida ao paciente. O objetivo do estudo foi compreender os aspectos envolvidos nos processos de enfrentamento e resiliência de pacientes em hemodiálise. A pesquisa, de caráter qualitativo, foi realizada em um hospital público de Recife-PE, com participação de 15 pacientes (oito do sexo feminino e sete do sexo masculino). Os instrumentos utilizados foram um questionário sócio demográfico e clínico e entrevista semiestruturada, analisados por meio de estatísticas descritivas e análise categorial temática. Os participantes tinham entre 23 e 89 anos, com tempo de tratamento dialítico entre 8 meses e 27 anos. Das entrevistas, emergiram duas classes temáticas: Vivências relacionadas ao adoecimento renal crônico e Processos de Resiliência. Constatou-se que o adoecimento marca uma ruptura na vida do indivíduo e, comumente, os pacientes estabelecem uma relação dual com a hemodiálise (vida x prisão). Diante dos fatores de risco, os fatores de proteção ajudam no processo de resiliência reduzindo o impacto negativo da doença, facilitando, para alguns destes pacientes, a ressignificação da experiência e superação desta.

Palavras-chave: Resiliência; doença renal crônica; hemodiálise.


ABSTRACT

Chronic Kidney Disease (CKD) associated with hemodialysis implies changes in the life of the patient that has an impact on their quality of life. However, resilience can promote a new meaning and life opportunities for the patient. The aim of the study was to understand the aspects involved in the confronting and resilient processes of hemodialysis patients. The qualitative research was performed in a public hospital in Recife-PE, with participation of 15 patients (eight females and seven males). The instruments used were a socio demographic and clinical questionnaire and semi-structured interview, analyzed through descriptive statistics and thematic categorical analysis. Participants were between 23 and 89 years old, with a dialysis treatment time ranging from 8 months to 27 years. From the interviews, two thematic classes emerged: Experiences related to chronic kidney disease and Resilience Processes. It was verified that the illness marks a rupture in the life of the individual and, commonly, the patients establish a dual relation with hemodialysis (life x prison). Faced with risk factors, the protective factors help in the process of resilience reducing the negative impact of the disease, facilitating, for some of these patients, the re-signification of the experience and overcoming it.

Keywords: Resilience; chronic renal disease; hemodialysis.


 

 

Introdução

A Doença Renal Crônica (DRC) se constitui em um grave problema de saúde pública, visto que atinge milhões de pessoas em todo o mundo, produzindo impacto na qualidade de vida das pessoas por ela acometidas e elevados custos com tratamentos e internações (Ministério da Saúde, 2014). A DRC é definida pela presença de dano nos rins ou diminuição do nível de função renal durante três meses ou mais, independentemente do diagnóstico (National Kidney Foundation, 2002). De modo progressivo e irreversível, a doença acarreta a redução global das funções renais (glomerular, tubular e endócrina), podendo ocorrer de maneira rápida ou lenta até a fase mais grave, de perda total de sua função (fase terminal), quando os rins não conseguem mais manter a normalidade do meio interno do paciente. Em razão disso, compromete, progressivamente, o metabolismo e a vida celular de todos os órgãos do corpo (Romão Junior, 2004; Freitas e Cosmo, 2010). No estágio final da doença, coloca-se a necessidade de terapia renal substitutiva (TRS), sendo as modalidades disponíveis: a hemodiálise, a diálise peritoneal e o transplante renal (Ministério da Saúde, 2014).

A hemodiálise é o tratamento mais comum para os pacientes portadores de DRC. Consiste na submissão a programas (sessões) recorrentes, geralmente realizados em três sessões semanais, com duração de 4 horas cada, onde há a circulação do sangue fora do organismo, através do acesso vascular. Esse procedimento realiza a limpeza e filtração do sangue, o controle da pressão arterial e auxilia o corpo a manter o equilíbrio de substâncias químicas como o sódio, o potássio e cloretos (Freitas e Cosmo, 2010).

O tratamento impõe diversas mudanças no estilo de vida do indivíduo acometido por essas terapêuticas, a exemplo de: restrições alimentares, afastamento do trabalho e consequente diminuição da renda, incertezas sobre o futuro, estigma e afastamento social, estresse, entre outros. Tais mudanças provocam transformações significativas na vida do sujeito e no processo de viver da família (Pedroso e Siqueira, 2016). Em consequência, os pacientes renais crônicos, comumente, apresentam dificuldade para aderir ao tratamento de hemodiálise e às restrições. Entretanto, de maneira geral, buscam meios para suportá-lo tendo em vista que esse tratamento lhes possibilita maior sobrevida. No processo de enfrentamento, mecanismos intersubjetivos podem se configurar fatores de proteção ao promoverem um novo significado à vida do paciente renal em hemodiálise, contribuindo para uma mudança no estilo de vida e na adesão ao tratamento, o que coloca em evidência a capacidade de resiliência que alguns pacientes renais possuem (Teixeira et al., 2012; Silva et al., 2016a).

A resiliência é um conceito polissêmico e multidisciplinar. Sua raiz etimológica remete ao latim resiliens, que significa saltar para trás, voltar, ser impelido, recuar, encolher-se, romper. Já pela origem inglesa, resilient corresponde à noção de elasticidade e capacidade rápida de recuperação (Pinheiro, 2004). Historicamente, o uso do termo deriva das ciências exatas, sendo relacionado à resistência de materiais. Uma metáfora comumente utilizada para ilustrar o fenômeno é a de um elástico que, quando esticado (pressão/tensão), volta ao seu estado original, ao findar a pressão exercida sobre ele (Benetti e Crepaldi, 2012).

Nas ciências humanas e sociais, ao se relacionar aos fenômenos humanos, há uma multiplicidade e complexidade de variáveis e fatores envolvidos. As investigações partem de questionamentos e comparações entre pessoas, grupos e comunidades que são capazes de superar dificuldades e traumas ocasionados por adversidades da vida, com aquelas que não conseguem superar (Azevedo, 2011; Benetti e Crepaldi, 2012). Na Psicologia, o estudo da resiliência é recente, datando das quatro últimas décadas, e ainda se encontra em processo de construção, apresentando algumas imprecisões e controvérsias. Segundo

Benetti e Crepaldi (2012), observa-se uma evolução na trajetória das pesquisas e no pensamento dos estudiosos quanto a esse fenômeno. Inicialmente, segundo as autoras, a resiliência era tratada enquanto um traço puramente individual de personalidade; recentemente, esse fenômeno tem sido compreendido no âmbito relacional, isto é, considera-se que seu desenvolvimento é construído com base no relacionamento que o sujeito estabelece com pessoas para ele significativas, ao ser confrontado com uma situação de risco.

Sob esta perspectiva relacional, a resiliência, de acordo com Ungar (2008), é concebida como um processo dinâmico e intersubjetivo associado à capacidade do indivíduo em utilizar recursos internos que promovam o seu bem-estar, mas que se encontra estritamente relacionado com a capacidade de suas comunidades e redes de apoio (familiar e social) promoverem esses recursos de formas culturalmente significativas. Assim, abrange atributos específicos relacionados ao indivíduo e ao contexto em que este está inserido, partindo de uma concepção de ser humano ativo, social e histórico, e de uma concepção dialética de mundo (Ungar, 2008; Azevedo, 2011).

Nessa linha de pensamento, Luthar et al. (2000, p. 544) conceituam a resiliência como: "(...) um processo dinâmico que abrange a adaptação positiva num contexto de adversidade significativa.". A partir dessa definição, Infante (2005) destaca três componentes essenciais: 1) a presença de uma condição adversa, ameaça ao desenvolvimento ou risco; 2) a adaptação positiva (superação) diante dessa adversidade; e 3) a concepção de resiliência como um processo dinâmico que envolve diversos mecanismos (emocionais, cognitivos e socioculturais) que agem no desenvolvimento humano. Volta-se, então, o estudo para os processos de resiliência que envolvem a compreensão dinâmica e interacional de alguns fatores denominados de risco e de proteção, inseridos no contexto temporal e de vida do indivíduo. A identificação desses fatores possibilita uma maior compreensão dos efeitos provocados pelas adversidades que a vivência de uma doença crônica pode acarretar no emocional e nas vidas das pessoas (Poletto e Koller, 2008; Azevedo, 2011).

A resiliência se apresenta, então, como um tema de extrema relevância no que diz respeito aos pacientes portadores de doença crônica, uma vez que estas pessoas passam por muitas alterações no seu estado físico, emocional, social, econômico, familiar; e a resiliência relaciona-se com o alcance de uma boa saúde psíquica (Marques, 2012). Apesar do forte impacto físico e emocional causado pelo diagnóstico de DRC e pelo tratamento, essa experiência pode ser ressignificada e potencializar mudanças e novas oportunidades diante da vida. Diante disso, o presente estudo teve como objetivo compreender os aspectos envoltos nos processos de enfrentamento e resiliência de pacientes com DRC submetidos à hemodiálise, frente às dificuldades inerentes à doença.

 

Método

Tratou-se de um estudo compreensivo e descritivo, com ênfase na abordagem qualitativa. Segundo Minayo (2012), a característica principal das pesquisas qualitativas consiste no verbo compreender, que traz a possibilidade de interpretação dos dados. Para isso, é fundamental considerar a singularidade do indivíduo de maneira contextualizada, levando em conta sua história pessoal e coletiva enquanto pessoa inserida em um grupo social.

A pesquisa foi desenvolvida no serviço de hemodiálise de um hospital público, localizado em Recife/Pernambuco, Brasil, referência no tratamento de pacientes renais crônicos. A unidade oferece serviços de exclusividade do Sistema Único de Saúde (SUS), atendendo em média 60 pacientes que realizam hemodiálise, comparecendo três dias na semana para as sessões que duram cerca de quatro horas consecutivas. A população deste estudo consistiu de pessoas com DRC, maiores de 18 anos, em terapia renal substitutiva na modalidade hemodiálise. Para o estudo, foram considerados os seguintes critérios de exclusão: pacientes que apresentassem lucidez ou orientação comprometida; déficit de comunicação oral; e, que estivessem sob efeito de medicamentos que alterassem o pensamento do paciente no momento da entrevista.

Participaram 15 pacientes, escolhidos por conveniência, seguindo o critério de saturação. Este consiste em uma ferramenta conceitual de aplicabilidade prática que pode nortear a finalização da coleta de dados, quando os dados obtidos passam a apresentar, na avaliação do pesquisador, uma certa redundância ou repetição, sendo seu uso muito comum em pesquisas qualitativas na área da saúde (Fontanella et al., 2008). Por preceitos éticos, visando manter o anonimato dos participantes, estes serão identificados por letras do alfabeto, nomeados de "paciente A" a "paciente O".

Para a coleta de dados, foram utilizados os seguintes instrumentos: 1) Questionário com dados sócio demográficos e clínicos; e, 2) Entrevista semiestruturada. O questionário teve por finalidade caracterizar os participantes através de informações como: sexo, idade, grau de escolaridade, renda familiar, situação conjugal, tempo de diagnóstico e de tratamento. Quanto à entrevista, esta foi do tipo semiestruturada, baseada em estudo de Azevedo (2011). Segundo a autora, esse instrumento possibilita o aprofundamento subjetivo de algumas questões relacionadas à resiliência, sendo um importante instrumento na compreensão desse fenômeno. A entrevista abordou questionamentos relacionados ao processo de enfrentamento frente às possíveis dificuldades relacionadas à doença e ao tratamento, abrangendo desde o momento em que recebeu o diagnóstico até a forma que tem lidado com a doença e se adaptado às novas vivências. Para melhor adequação do roteiro e verificação de sua compreensão, foi realizada previamente entrevista piloto com um dos pacientes renais crônicos.

Os instrumentos foram aplicados em uma sala reservada livre de interferências externas, visando preservar o sigilo e a privacidade do entrevistado. Os dados obtidos através do questionário foram analisados mediante estatísticas descritivas. Todas as entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas de modo literal. Após a transcrição, o material foi analisado a partir do referencial do método de análise de conteúdo, especificamente a técnica de análise categorial temática segundo proposta apresentada por Figueiredo (1993).

As categorias foram determinadas a partir dos temas suscitados nas entrevistas transcritas e processadas por meio de etapas que incluíram leituras recorrentes, recortes das unidades de análise e junção de acordo com a equivalência de conteúdos/significados, referindo-se às questões comuns, para a discussão. A etapa de análise foi realizada por três pesquisadoras psicólogas, sendo os dados constantemente partilhados e discutidos em reuniões com o objetivo de favorecer a compreensão, reflexão e validação das categorias, bem como resolver as divergências mediante decisão da maioria, conduzindo a uma maior confiabilidade na análise. Também foram realizadas leituras recorrentes sobre o tema.

Considerando o processo metodológico empregado, pode-se identificar dois elementos primordiais na presente pesquisa: a "palavra" e a "escuta". Ambos materiais, fundamentais no trabalho do psicólogo, por meio de uma atitude empática deram voz aos sentimentos e pensamentos dos entrevistados, valorizando sua fala e permitindo a compreensão dos fenômenos a partir do ponto de vista do sujeito, em uma perspectiva subjetiva.

O estudo foi realizado considerando os aspectos éticos da Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde pertinentes à pesquisa e teste em seres humanos. Foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Centro de Ciências da Saúde da UFPE, conforme o protocolo Nº 65612917.1.0000.5208, bem como foi autorizada a realização da pesquisa no local, através da carta de anuência. Antes da realização das entrevistas, os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE, mediante o qual foi obtida a aquiescência - escrita e assinada - para participação.

 

Resultados e discussão

Foram entrevistados 15 pacientes, sendo oito do sexo feminino e sete do sexo masculino. A idade variou de 23 a 89 anos, tendo como média de idade 49,26 anos. Entre os entrevistados, oito são casados, cinco solteiros e dois viúvos; dois trabalham e um cursa

o ensino superior - os demais são aposentados ou estão afastados devido ao adoecimento. Quanto ao tempo de tratamento dialítico, este variou entre 8 meses e 27 anos.

A partir da análise de conteúdo das falas obtidas nas 15 entrevistas, emergiram duas classes temáticas gerais: A primeira, denominada "Aspectos relacionados ao adoecimento renal crônico", foi composta por três categorias analíticas e a segunda, denominada "Processos de Resiliência", foi composta por duas categorias analíticas conforme demonstrado com maiores detalhes no Quadro 1, disposto a seguir.

 


Quadro 1 - Clique para ampliar

 

Classe Temática I: Vivências relacionadas ao adoecimento renal crônico

A Doença

A partir dos relatos dos participantes, percebe-se que a descoberta do diagnóstico marca uma ruptura na vida do indivíduo e no modo de perceber a si mesmo, o que pode infligir uma sobrecarga emocional a ele. De acordo com Lima e Lima Junior (2015), o momento do diagnóstico da DRC é crucial para o paciente, uma vez que este se vê diante de uma nova realidade, tendo que se adaptar às limitações e restrições impostas pela doença. Logo, comumente, envolve sentimento de tristeza, medo, revolta, preocupação, insegurança, além de pensamentos centrados em não conseguir melhorar de saúde e nas possíveis mudanças ocasionadas em sua vida, fazendo com que se sinta tenso e pressionado (Teixeira et al., 2012; Cruz et al., 2016). Nesse momento, o sujeito entra em contato com o medo, o imaginário e as incertezas sobre a patologia, a vida e o futuro, haja vista a gravidade e cronicidade da doença, bem como as especificidades do tratamento. Esses fatores podem provocar desesperança e acentuado sofrimento psíquico ao paciente e à sua família, como foi evidenciado nas falas.

"Eu senti um abalo, desespero...que disseram que quem fazia hemodiálise morria (...) Pra mim foi um baque, um abalo (...)" [Paciente O, 35 anos, masculino]

"E depois que eu fiquei sabendo do diagnóstico, eu fiquei muito mal. Sobretudo, na hora que o médico falou que ia colocar um cateter, eu fiquei desesperado. Eu chorei na hora. Não sou muito de chorar, mas chorei na hora. Porque eu fiquei estressado, com medo do que, do que viria pela frente." [Paciente E, 34 anos, masculino]

"(...) não é fácil nem pra mim nem pra minha família, né? (...) foi um choque, foi um choque, né? Eu até pensei em tirar a minha vida (...)" [Paciente F, 33 anos, masculino]

No momento da descoberta, é importante o acolhimento das angústias, o que pode favorecer a adequação ao tratamento e o fortalecimento de mecanismos adaptativos saudáveis para a elaboração da nova realidade imposta pela doença (Campos e Turato, 2010). Apesar do impacto inicial, agravado, muitas vezes, pelo desconhecimento da patologia e do tratamento, os sentimentos e percepções acerca da doença podem se modificar. Essa modificação pode ser vista na fala da paciente K, a seguir:

"(...) eu achava que já tava indo embora. Que eu não ia ter muitas chances não. Depois eu fui vendo que não era assim, que eu podia lutar e que eu podia viver um pouquinho mais. Não era o fim da linha." [Paciente K, 38 anos, feminino]

Segundo Lima e Junior (2015), após o diagnóstico, o paciente começa um processo de reelaboração. Com o decorrer do tempo, ele passa a conhecer e se apropriar da doença e do tratamento. Assim, a ideia inicial ou o desconhecimento absoluto são substituídos por uma nova percepção sobre a Doença Renal Crônica, fundamentada na experiência de adoecimento do indivíduo. Ainda que expostos à mesma doença e tratamento, estes são experienciados de modo singular por cada indivíduo, uma vez que se tratam de diferentes histórias de vida, contextos socioculturais e características individuais (Campos e Turato, 2010).

"Aquela doença é uma doença que pra mim é uma doença como qualquer outra. (...) Tem doença pior do que a minha." [Paciente B, 44 anos, masculino]

"Eu pensei que em poucos meses ou poucos anos eu ficava boa, mas, no entanto, a doença dos rins é pior do que a gente pensa. Porque ai a gente fica presa (...) É hemodiálise e outras coisas né. (...) Hoje em dia o médico diz 'é uma doença, doença do rins, quando aparece não tem cura'." [Paciente N, 89 anos, feminino]

No caso do paciente B, este ao retratar sua percepção sobre a DRC, sugere uma adaptação e aceitação frente à doença, considerando que não é tão grave quando comparada a outras. Já com relação à paciente N, seu discurso demonstra que aos poucos compreendeu a gravidade e cronicidade de sua doença, revelando também uma visão negativa quando diz "a doença dos rins é pior do que a gente pensa". Ao confrontar o paciente com a realidade do adoecimento, é de suma importância favorecer o conhecimento dele sobre a doença e o tratamento. Segundo a literatura pesquisada (Almeida, 2017; Ferreira et al., 2017), as orientações podem facilitar a aceitação e convivência com a doença, bem como promover maior comprometimento do paciente com seu tratamento, refletindo sobre modos de viver dentro das restrições, adequando seu estilo de vida.

Assim como a compreensão e percepção sobre a DRC, a visão sobre a hemodiálise e os sentimentos relacionados ao tratamento também sofrem alterações. Segundo relatado pelos participantes, com o avançar do tempo de tratamento, a hemodiálise tornou-se um procedimento habitual e suportável, diferente do que concebiam inicialmente.

"Pensei que a diálise era um bicho papão, mas não (...). Eu tinha a hemodiálise, antigamente, como o fim da vida mesmo. Achei que eu não ia durar muito tempo. Eu ia morrer, num sei o que. (...) Mas depois que comecei a fazer hemodiálise, mudou isso." [Paciente B, 44 anos, masculino]

"(...) eu fazia da hemodiálise um bicho de sete cabeças mesmo! (...) fiquei com aquele medo de hemodiálise. (...) eu criei uma imagem ruim da hemodiálise. Hoje eu já vejo que não é a imagem que eu fazia. (...) Hoje eu vejo como um tratamento que eu to me dando bem." [Paciente C, 68 anos, feminino]

As expressões bicho-de-sete-cabeças e bicho papão utilizadas pelos participantes para definir a visão deles sobre a hemodiálise expõem uma situação difícil, complicada, que causa medo e preocupação. Quanto a isso, Campos e Turato (2010) refletem que o uso desse tipo de termo retrata bem o significado do tratamento para os pacientes, bem como a necessidade deles de enfrentá-lo, "lutando" pela vida e buscando conhecer, seguir e se acostumar ao tratamento. Com o convívio prolongado com a hemodiálise, observa-se uma desmistificação das ideias iniciais, tendo em vista o maior conhecimento, além de melhor adaptação do paciente - em alguns casos.

Nesse cenário, foi também evidenciado na fala dos participantes que eles estabelecem uma relação dual com a hemodiálise. Segundo estudo de Freitas et al. (2015), essa relação é vivida por muitos pacientes, sendo o tratamento visto como uma "prisão", pelo seu rigor, mas também como a "vida". Assim, ainda que tenham dificuldades com relação ao tratamento, os pacientes buscam meios de segui-lo de forma adequada, pois reconhecem os benefícios do mesmo para a sua condição física.

"O tratamento hoje é como se eu tivesse me acostumado. Não é fácil. Não vou mentir que não é fácil enfrentar 4 horas, mas eu tento preencher as 4 horas. Eu leio, assisto, converso. (...) Hemodiálise, assim, no dia que eu não faço dialise eu sinto que, fisicamente, eu fico mais detonada. O peso, né, o líquido. É como se o coração não suportasse. Quando faz dialise é mais leve, sabe que de alguma forma ta prolongando a vida, né? Dialise é a vida pra mim." [Paciente K, 38 anos, feminino]

Mudanças Biopsicossociais

O diagnóstico da doença e início do tratamento dialítico acarretam mudanças biopsicossociais na vida do indivíduo acometido pela DRC. Segundo Azevedo (2011), em seu estudo sobre a resiliência em pacientes com HIV, as mudanças decorrentes do contexto do adoecimento são elaboradas cognitiva e emocionalmente pelos sujeitos como ganhos e perdas. Ao discutir sobre a elaboração cognitiva frente à realidade do adoecimento, a autora reflete que, aos poucos, surge a necessidade de enfrentamento dos sentimentos envolvidos no impacto inicial, pois o indivíduo percebe que é preciso dar continuidade a sua vida. Apesar de se tratarem de doenças crônicas diferentes, os achados da autora foram semelhantes ao presente estudo, sendo evidenciado que as mudanças e ajustes no estilo de vida, frente ao novo contexto, foram expostos nos discursos dos participantes a partir de elaborações cognitivas/emocionais como perdas ou ganhos decorrentes do adoecimento, considerando o seu significado particular para o indivíduo.

No que diz respeito à subcategoria perdas, nesta foram abordadas as alterações biopsicossociais experimentadas pelos sujeitos como negativas. Algumas mudanças corresponderam aos efeitos físicos do dano renal, a exemplo da redução da energia e capacidade física, e aos ajustes nos hábitos alimentares e medicamentosos impostos pelo tratamento. Ademais, as perdas envolveram também modificações nos âmbitos pessoal, sexual, familiar e profissional do sujeito; isto é, na sua vida como um todo. Conforme evidenciado nas falas dos participantes, tais alterações modificam a própria percepção de si que o indivíduo tem.

"Ocorreram. Alimentação né. Mudei, eu que gostava de muita coisa que hoje em dia eu não como mais. Água, que eu gostava muito de beber água. E minha vida sexual também. (...) Não sei. Não sinto esse prazer todo não. Entendeu? Tenho relação com a minha esposa assim uma vez, duas vezes na semana assim. Eu não era assim. Entendeu?" [Paciente B, 44 anos, masculino]

"Eu era uma pessoa mais alegre, brincava, dançava, tudo isso, mas agora não faço nada disso mais. (...) Primeiro que não tenho essa chama pra ta fazendo mais graça. Aí eu... encerrei. (...) mudei." [Paciente G, 65 anos, feminino]

"Trabalhar e (...) não tinha cansaço físico. Namorava, é; saia; viajava e não sentia o cansaço que sinto hoje. (...) Eu era bem saudável. (...) Parece que tudo veio, né? Sintoma; veio falta de coragem, veio desanimo, veio insônia, que coisa que acaba comigo é insônia. É, alimentação não é a mesma mais, então a energia não existe, né? Fora as restrições, né? Medicação. A medicação altera muito o metabolismo. Que é muita medicação que eu tomo. É. A restrição de tempo porque tem que ta no médico, tem que saber as horas de remédio, tudo isso." [Paciente K, 38 anos, feminino]

Tais mudanças têm um impacto significativo na qualidade de vida dos sujeitos entrevistados, conforme exposto em estudo qualitativo realizado por Finnegan-John e Thomas (2013). De acordo com esses autores, a DRC reflete nos diferentes domínios da qualidade de vida, uma vez que comumente acarreta em repercussões negativas na energia e fadiga; atividades de vida diária; capacidade para o trabalho; restrição de tempo; relações pessoais; atividade sexual; auto estima; imagem corporal, entre outros aspectos, o que pode constituir perdas para o sujeito.

Além das perdas, os participantes também relataram alterações apontadas como ganhos ocasionados pelo adoecimento. Segundo Guzzo et al. (2017), além do viés negativo, a doença pode ser vista por um viés benéfico, a partir de suas repercussões positivas, como por exemplo, promover outras experiências que o sujeito não vivenciaria devido à rotina intensa diária, que foi modificada pela doença. Nesse sentido, foi visto que as próprias perdas podem gerar ganhos, como no caso do paciente B, em que as alterações no âmbito profissional acarretaram em benefícios na relação familiar e na utilização do seu tempo, e no discurso da paciente I, que relatou mudanças positivas como cuidar mais de si e aproveitar a vida, considerando esse período como o melhor de sua história.

"A diálise também mudou o conviver também na minha família; assim de eu dar mais atenção. Eu não tinha esse tempo pra dar atenção à minha família. Hoje em dia, eu tenho. Hoje em dia eu tenho. Através da doença, eu tenho essa (...) eu tenho esse tempo pra minha família, que eu não tinha. Eu não dava tempo pra ela. Trabalhava de noite; de dia, trabalhava. Sempre trabalho. (...) Minha vida era trabalho. Trabalho." [Paciente B, 44 anos, masculino]

"Me cuido mais. (...) Hoje eu tô muito bem, eu acho. Eu acho que a melhor fase da minha vida é agora. Porque antes, como eu lhe disse, tinha preocupação, né? Muita responsabilidade, muita obrigação. (...) eu me via tão atarefada, tão sem tempo de nada, entendesse? Tanta coisa pra resolver, tanta coisa pra fazer. (...) Graças a Deus. Hoje eu descanso mais. [Paciente I, 76 anos, feminino]

Ao adotar uma visão positiva, o sujeito coloca a doença e o tratamento como algo que faz parte da sua vida, entre outros momentos e aspectos que trazem à tona o potencial existente dentro de si (Guzzo et al., 2017). Logo, os ganhos dizem respeito também à própria percepção de si e seu modo de se colocar no mundo. Os excertos abaixo das pacientes G e K relataram um amadurecimento decorrente da experiência de adoecimento, demonstrando um movimento de transformação e atualização de si.

"(...) eu to me sentindo bem. Muito bem mesmo. To me sentindo mais leve. (...) Eu me acho mais adulta." [Paciente G, 65 anos, feminino]

"Quando orava, não orava como oro hoje. (...) Porque antes eu sempre tive amor, sempre tive. Não é de hoje não. Mas eu tenho muito mais porque esse sofrimento foi importante porque me "borilou" muito. (...) Me "borilou"(...) é, me lapidou bastante né." [Paciente H, 71 anos, feminino]

Expectativas para o Futuro

Nas entrevistas, os participantes expuseram suas expectativas para o futuro, abordando medos, incertezas e sonhos. No que diz respeito aos medos e incertezas, estes estão relacionados à presença de uma doença grave, atrelada a um tratamento difícil que pode deixar o paciente debilitado, e ao medo da morte. Apesar de o tratamento possibilitar a continuidade da vida, também confronta o paciente com a angustiante possibilidade da finitude (Campos e Turato, 2010).

"É porque eu não sei o dia de amanhã. (...) Eu não sei o dia de amanhã, como é que vai ser. Por causa desse tratamento meu aí, eu não sei. Posso amanhã ta bem, posso ta mal. É isso, eu penso assim. (...) Eu não sei o que vai ser daqui a 10 anos; se eu vou ta no mesmo pique. Que eu acho que não." [Paciente B, 44 anos, masculino]

"(...) meu tempo de vida diminuiu bastante, apesar de que você não dá pra saber não. Você pode até, ce ta bem de saúde, e amanhã, quem sabe? Mas eu acho que com a questão da da da, da doença, meu tempo de vida reduziu." [Paciente E, 34 anos, masculino]

Apesar das limitações do tratamento, incertezas e medos relatados pelos participantes, eles também expuseram sonhos, que revelam a continuidade e reconstrução de projetos de vida. Ressaltou-se, nos discursos deles, o desejo de realizar o transplante, mesmo naqueles participantes que se consideram adaptados à hemodiálise.

"Eu tenho desejo, eu tenho desejo de um dia assim viajar. Eu falo isso direto pra minha esposa, tal. Conhecer o Cristo no Rio. Meu desejo só é esse na minha vida, que eu penso. (...) Se um dia eu for transplantado, eu vou conseguir fazer isso. Se um dia não; eu vou conseguir." [Paciente B, 44 anos, masculino]

"Veja bem, é fazer um transplante de novo. Fazendo uns exames aí para fazer outro transplante. (...) Vê se melhora mais um pouquinho, sai das máquinas e descansa o corpo, né? (...) Ficar forte, mais forte, melhorar um pouquinho pra dar uma volta pelo mundo." [Paciente D, 66 anos, masculino]

O sonho de realizar o transplante revela a esperança de recomeçar; a simbologia de renascer em meio à doença crônica para uma vida que os pacientes consideram melhor, com novas oportunidades e a possibilidade de retomar o controle do seu tempo e a normalidade nas atividades diárias, de lazer e de trabalho, livres das regras da hemodiálise (Knihs et al., 2013; Lopes e Silva, 2014; Borotta e Pupulim, 2015). Embora o sonho de realizar o transplante tenha sido bastante evidenciado, não abrangeu todos os discursos. Também foram relatados sonhos e planos de vida não relacionados à realização do transplante; mas, adaptados ao contexto de tratamento dialítico.

"Só pretendo mesmo viver e até quando Deus quiser. Eu do lado da minha família. O que vir daqui pra frente é lucro." [Paciente J, 56 anos, masculino]

"Eu tenho plano de voltar a morar na cidade em que eu morava, né? Mesmo fazendo diálise numa cidade vizinha. Que lá eu sei que não tem diálise. Eu tenho plano de ver meus filhos se formarem, casarem, crescerem. Eu tenho plano de ir à França porque é um sonho, é um sonho antigo. (...) Eu sei que viajar à França com a doença renal, eu vou ter que ter todo um amparo médico, né? A companhia aérea, ter todo um transtorno. Até pra tirar passaporte de novo vai ser difícil, mas eu acredito que eu consigo. E fazer um trabalho voluntário voltado pra isso também porque ultimamente multiplicaram-se muito os pacientes renais. (...) tem muita coisa que eu posso fazer." [Paciente K, 38 anos, feminino]

Diante das falas dos entrevistados, percebe-se a influência da experiência de adoecimento na elaboração dos seus sonhos e futuro, de diferentes formas. Por um lado, o paciente J não relata projetos de vida, mas demonstra um conformismo diante de sua situação na fala "O que vir daqui pra frente é lucro". Por outro lado, tomando como exemplo a paciente K, esta pensa em realizar trabalhos voluntários voltados para pessoas com DRC, buscando formas de ajudar outros e de dar um novo sentido à sua vida, ressaltando também as variadas possibilidades diante da vida ao falar "tem muita coisa que eu posso fazer".

Conforme visto, são necessários novos reajustes no estilo de vida para que o sujeito consiga viver com uma melhor qualidade de vida frente à doença. Considerando também que a dependência da máquina de diálise pode trazer um estresse adicional, o bem-estar psicológico é essencial, sendo importante que ele adote uma nova postura, a partir da ressignificação da vida diante da nova realidade (Lima e Lima Júnior, 2015).

Classe Temática II: Processos de Resiliência

Fatores de Risco

O conceito de resiliência pressupõe a presença de condições adversas, isto é, fatores de risco que impõem desafios ao indivíduo e que podem ser internos e externos a ele, bem como agir de diferentes formas e em diferentes fases do desenvolvimento (Benetti e

Crepaldi, 2012). Segundo Shaffer e Yates (2010), os fatores de risco têm sido identificados e estudados em diferentes níveis de análise, que podem ser considerados: individual; familiar e no contexto sociocultural mais amplo, os quais são relativos às categorias identificadas no estudo.

Os fatores de risco individuais abrangem situações adversas a nível individual (Shaffer e Yates, 2010). No caso, nesse nível a própria situação de adoecimento e as limitações e mudanças impostas ao indivíduo configuraram-se como fatores de risco. E estes fatores, segundo Azevedo (2011), podem gerar outros fatores de risco, sendo identificados no presente estudo: a sobrecarga emocional; sentimento de menos valia; estresse; sintomas depressivos; limitação para o trabalho; prejuízo financeiro; além de ressaltar características e respostas não adaptativas do indivíduo, o que pode ser visto nas falas a seguir:

"Quando eu tava assim debilitado, que eu cheguei um tempo em que eu pensava em fazer muita merda, besteira na minha vida. Entrei em uma depressão. Passei quase um mês com depressão. Fazer besteira, tomar veneno, (...) tirar minha própria vida." [Paciente B, 44 anos, masculino]

"Tem a parte financeira também que não é muito bom porque eu perdi o (...) quando você vai pro auxílio doença você perde os adicionais, então fica muito restrito o dinheiro pra você lidar. Principalmente eu que tenho de sustentar 3 filhos. E tem também a parte psicológica pra ta sempre forte, né? (...) Eu tenho que ta forte pros meus filhos, pra eles não sofrerem pensando que vai perder a mãe. Eu tenho que ta forte pra mim mesma, pra suportar estar (...) fazer mais uma hemodiálise, que não é fácil. Eu tenho que ta forte pra ver a discriminação das pessoas e nem ligar. Tenho que ser forte o tempo todo. (...) Desabo." [Paciente K, 38 anos, feminino]

"Assistir televisão, que eu não faço nada. Só assisto televisão, comer e dormir. (...) Eu me acho inútil." [Paciente N, 89 anos, feminino]

No que diz respeito à subcategoria fatores de risco familiares, como o próprio nome diz, abarca condições adversas concernentes ao âmbito familiar, como a existência de conflitos ou ausência de suporte emocional (Shaffer e Yates, 2010). Estes foram encontrados na fala da paciente K, que relatou eventos negativos (conflitos, violência psicológica e preconceito) que impõem desafios mais intensos do que a própria doença, segundo sinalizado por ela: "(...) chegar em casa é mais pesado do que fazer as coisas. É quando eu saio daqui pra chegar em casa, é o que eu vou ouvir".

"Arranjei um problema familiar enorme porque a família não me aceitou de volta dentro de casa. (...) a falta de respeito da minha família em relação a minha doença. (...) Xingação, é (...) xingar meus filhos. Isso machuca. Separar as coisas de mim e tipo, a bacia de lavar roupa, prato, copo, talher (...) porque tem nojo. (...) eu chegar da hemodiálise tem que tomar banho correndo, não posso sentar, não posso comer, não posso nada porque tem nojo do hospital. Isso machuca muito. Acho que a maior dificuldade hoje pra mim é isso. O tratamento. (...) O preconceito da minha família. (...) É o que mais dói. (...)." [Paciente K, 38 anos, feminino]

O inter-relacionamento familiar, a segurança e a estabilidade advindas dessa rede de apoio são de extrema relevância na aceitação da doença e do tratamento; logo, a ausência desse suporte pode interferir negativamente nesse processo e na saúde do indivíduo (Rudnicki, 2014; Castro e Dias, 2009). Nesse sentido, o suporte deficitário, somado a situações de conflitos e violência na família constituem fatores de risco que merecem destaque, considerando as possíveis repercussões desse contexto para o indivíduo.

Quanto aos fatores de risco sociais, estes remetem ao contexto social mais amplo, externo ao âmbito familiar (Shaffer e Yates, 2010). As falas evidenciaram situações de preconceito e que desencorajam e entristecem os pacientes. Ademais, o discurso do paciente D exibiu suporte não adequado no sistema de saúde e condutas da equipe que podem causar danos ao paciente.

"E assim, porque geralmente quem tem paciente de câncer, que faz hemodiálise, as pessoas rejeitam logo, ficam com nojo por não conhecer o problema. Eu já tive, senti isso na pele antes (...)." [Paciente K, 38 anos, feminino]

"É o tratamento de alguns profissionais. (...) Tem umas que não sabe nem trabalhar direito ainda. (...) Falta de prática, não sei, alguma coisa. Falta de, de um curso, um treinamento bom que não tiveram. (...) Eu me sinto chateado porque tem de ver mesmo. A pessoa chamou, tem que vir. A pessoa ta presa ali, ta amarrada, não vem saber o que a pessoa ta sentindo, se a pressão baixou, se alguma coisa, a vista escureceu, tendeu?" [Paciente D, 66 anos, masculino]

O tratamento da equipe, quando centrado na finalidade do cuidar - isto é, na doença - e não no meio - ou seja, no paciente -, é impessoal e mecânico. Essa relação marcada pela impessoalidade e predomínio do tecnicismo nas ações profissionais pode impedir o diálogo, gerar insatisfação com a equipe, o afastamento do paciente, seu silêncio e a permanência de dúvidas, aspectos que podem ser prejudiciais ao tratamento e ao

paciente. O cuidado humanizado ao paciente deve voltar seu olhar para o ser humano que adoece e não apenas ao órgão que adoece. Nesse sentido, envolve também o acolhimento e suporte social, sendo necessárias condutas e modos de se relacionar que podem complementar a assistência ao paciente, trabalhando novas possibilidades diante da DRC (Cavalcante et al., 2015). Além disso, o profissional de saúde também tem o papel de orientar e esclarecer sobre a doença, propagando um conhecimento adequado. O desconhecimento sobre esta, bem como a dificuldade de admitir a possibilidade desta realidade a qual ninguém está imune, podem gerar confusão, preconceito, abandono e reforçar a visão negativa do tratamento, o que pode ser visto nas famílias e na população em geral (Campos e Turato, 2010; Cavalcante et al., 2015).

A identificação dos fatores de risco deve ser realizada associada à identificação dos fatores de proteção (buffers), que podem desencadear processos de resiliência (Poletto e Koller, 2008). Nesse sentido, a próxima categoria exposta diz respeito aos fatores de proteção.

Fatores de Proteção

Os fatores de proteção são aqueles que atuam de modo a atenuar e neutralizar os efeitos nocivos do risco, promovendo a construção da resiliência. Do mesmo modo que os fatores de risco, os fatores de proteção operam mediante diferentes níveis de análise que podem ser classificados em três grupos: individuais, familiares e socioculturais (Shaffer e Yates, 2010; Benetti e Crepaldi, 2012). Esses níveis de análise correspondem às subcategorias identificadas no presente estudo, acrescendo a espiritualidade, dado o seu caráter singular e significativo evidenciado nas falas.

Os fatores de proteção individuais referem-se aos atributos da personalidade do sujeito, tais como habilidade para solução de problemas, autoestima, autonomia, orientação social positiva, entre outros (Shaffer e Yates, 2010; Benetti e Crepaldi, 2012). A presença e desenvolvimento desses fatores podem influenciar positivamente a adaptação e favorecer o desenvolvimento da resiliência (Marques, 2012). Tais atributos fora evidenciados nos discursos dos participantes, a exemplo do paciente A que, ao falar sobre suas características individuais, enfatizou: "Eu não sei porque assim, é uma coisa de mim mesmo".

"É que a doença não me deixou abalar. Eu sinto alegria em tudo que eu faço, mesmo estando nessa situação que eu estou, eu continuo a mesma pessoa alegre. Quem me conheceu antes da doença e quem me conhece hoje diz até que eu sou uma pessoa mais alegre e mais feliz e que não me deixei abalar pela doença. (...) Eu sempre fui bem ativo; era ativo; continuo ativo, mesmo tendo esse problema. (...) Eu sou uma pessoa que tem uma cabeça feita pra essas coisas. E não me abalou em nada. (...) Eu não acho dificuldade em nada. Eu não sei porque assim, é uma coisa de mim mesmo." [Paciente A, 23 anos, masculino]

"Me sinto guerreira. Me sinto forte. Apesar de tudo o que já aconteceu comigo, eu tô aqui de pé. (...) tem que ter força, tem que ser forte. (...) a doença deixa um pouco de limitações, mas a gente não pode se apegar a isso e ficar triste num canto não (...) Você tem que pensar sempre positivo. Sempre sair, conversar e não ficar triste dentro do quarto né, tá sempre bem (...) você tem que ter força." [Paciente L, 36 anos, feminino]

A espiritualidade também se destacou no discurso dos participantes enquanto fator de proteção. De acordo com Chequini (2007), a espiritualidade tem sido entendida como uma experiência que dá sentido e significado para a existência e considera o reconhecimento de uma verdade universal ou de um poder absoluto que leva a uma sensação de plenitude, de comunhão e de bem-estar com o mundo. Sendo assim, não se limita a um sistema específico de crenças ou prática religiosa, mas vale destacar que, mediante estas, o indivíduo pode explorar sua dimensão espiritual. Nos recortes das falas, dispostos a seguir, percebe-se a relevância da espiritualidade e de práticas religiosas para o indivíduo.

"Deus. Sem ele eu não era nada, não sou nada. (...) Ele me ajuda muito. Né? (...) mesmo acontecendo essa fatalidade comigo aí, é (...) Ele sempre teve comigo, nunca me abandonou. (...) Sinto falta de tudo aquilo. Mas, felizmente, Deus escreve nossas linhas assim e eu tenho que aceitar." [Paciente F, 33 anos, masculino]

"Fé, amor e caridade, são as três palavras importantes na minha vida. Isso me deu muita força, muito animo e me faz feliz. Eu, eu não procuro falar em doença, não procuro pensar em doença. Eu só procuro pensar na misericórdia divina que ta me dando (...)." [Paciente H, 71 anos, feminino]

"A minha religião ajuda a gente pensar em progresso. (...) Que eu só penso no bem, só penso muito em Deus e em todos os santos. Que quando eu peço eu alcanço. (...) me dá força pra viver." [Paciente N, 89 anos, feminino]

Diante dos excertos acima e da literatura pesquisada, infere-se que a espiritualidade pode promover a resiliência à medida que atua como um mediador capaz de dotar o indivíduo de recursos importantes para a superação dos riscos. Deve, então, ser considerada pelos profissionais, uma vez que também está relacionada com pontos importantes na relação profissional-paciente, qualidade de vida e enfrentamento da doença (Chequini, 2007; Luchetti et al., 2010).

Na subcategoria fatores de proteção familiares encontra-se a presença de laços afetivos familiares, oferta de suporte emocional dentro da família, existência de pessoas de referência para seguir, entre outros fatores relacionados a esse contexto que atenuam o impacto dos fatores de risco e favorecem o fortalecimento do indivíduo (Shaffer e Yates, 2010; Benetti e Crepaldi, 2012). No contexto familiar, os principais familiares apontados pelos participantes foram os genitores, cônjuges e filhos, surgindo também, em menor número, netos, sobrinhos e outros familiares com grau de parentesco mais distante.

"Pra mim, família é o que mais me ajuda a se manter mais forte, mais alegre, mais (...) a seguir na caminhada que é isso (...) Meus pais e minha esposa. (...) Me dando incentivo, conselhos, é, cuidando de mim como é pra ser cuidado de um paciente renal crônico. Assim, dessa forma." [Paciente A, 23 anos, masculino]

"Minha família que convivem comigo. Principalmente minha filha. Tem mais compreensão. (...) Minha irmã, ela cuida do meu alimento. Se preocupa com meu medicamento, com tudo. Ela se preocupa com a minha saúde. E minha filha cuida de mim. (...) E meus sobrinhos que cuida da parte financeira, né? Tem dia que eles cuidam de tudo. Paga o apartamento com o meu dinheiro, faz tudo de pagamento é com ele." [Paciente H, 71 anos, feminino]

A condição crônica de saúde de uma pessoa suscita mudanças na dinâmica familiar, sendo necessário que a família mobilize recursos para lidar com a situação e as demandas de saúde do membro portador da doença, com o objetivo de superar positivamente o evento estressor (Fráguas et al., 2008). Segundo os relatos dos entrevistados, os familiares ajudam de diversas formas, oferecendo suporte emocional, conselhos, palavras de incentivo, assim como auxiliando nas atividades de vida diária e facilitando a adesão ao tratamento - com a preparação dos alimentos de acordo com a dieta, por exemplo. A família tem, então, um papel de grande importância, sendo onsiderada como um sistema cultural de cuidado à saúde que oferece apoio, auxilia na rotina diária e no tratamento (Teixeira et al., 2013).

Por fim, os fatores de proteção sociais abrangem sistemas externos de apoio advindos de grupos e pessoas não familiares que encorajam e reforçam a capacidade da pessoa para lidar com circunstâncias adversas (Shaffer e Yates, 2010; Benetti e Crepaldi, 2012). Entre os grupos e pessoas que têm favorecido a superação frente às adversidades, nos discursos, surgiram a equipe de saúde, colegas de tratamento, amigos, vizinhos e grupos religiosos, alguns exemplificados nas falas abaixo:

"A equipe [de saúde]. (...) A hora que a gente precisa, eles ajudam. Tratam a gente direitinho, com muito amor, com muito carinho, brinca com a gente tudinho e tudo isso faz a gente enfrentar com mais clareza a vida, né? (...) Até os colegas de tratamento (...) Tudo pessoas que a gente brinca, conversa, ajuda a passar hora e quando pensa que não já ta terminando mais um tratamento pra enfrentar o próximo." [Paciente J, 56 anos, masculino]

"Minha igreja, a igreja batista, ela é muito acolhedora. Eles me acolheram muito, em tudo. Eles fazem de tudo pra eu me sentir bem." [Paciente K, 38 anos, feminino]

"Meus vizinhos conversam comigo, as vezes não vê eu, aí 'sai pra fora, pra sentar, conversar', todo mundo conversa comigo. (...) Me chamam, conversam comigo (...) tem um vereador lá que ele gosta muito de mim, aí ele manda o carro (...) Meu vereador manda, não quer nem saber, 'qualquer coisa se o rapaz faltar, ligue pra mim'." [Paciente M, 65 anos, feminino]

A atuação em conjunto de pessoas e grupos relacionados ao paciente, tais como família, amigos e equipe de saúde, configura-se como uma rede importante de apoio social (instrumental e emocional) ao enfrentamento da doença e pode levar à obtenção de resultados positivos no tratamento e a uma melhor qualidade de vida (Teixeira et al., 2013; Silva et al., 2016b). Revela-se que com o adoecimento, novos vínculos afetivos são construídos, a exemplo da equipe de saúde, na oferta de cuidados físicos e emocionais, e com outros pacientes, compartilhando experiências e sentimentos (Pereira e Guedes, 2009).

Tendo explanado sobre os processos envolvidos na resiliência, é importante ressaltar que a presença de fatores protetivos e a resiliência não denotam a invulnerabilidade do sujeito. Como Benetti e Crepaldi (2012) esclarecem, apresentar-se

resiliente não significa que o indivíduo seja imune psicologicamente ao evento adverso e saia ileso dele. Isso pode ser visto na fala do paciente J, que relata o impacto inicial, as dificuldades enfrentadas e a adaptação positiva diante destas.

"(...) não foi uma mudança muito fácil no início porque não é fácil a gente aceitar isso aí, mas depois eu caí na real e achei que viver era muito e tinha que fazer isso aí e partir pra real mesmo. Sou paciente de hemodiálise, não posso mentir nem admitir que não faço, e faço e faço e faço com amor que (...) é como eu já lhe disse algumas vezes que viver depende disso, então não tenho o que reclamar da vida não." [Paciente J, 56 anos, masculino]

A doença e o tratamento estabelecem uma situação de ameaça ao indivíduo, comumente gerando insegurança e desgaste psicológico, o que pode levar a uma desorganização no seu senso de identidade e em sua vida (Macedo e Teixeira, 2016). Diante dessas adversidades, a busca de sentido na vida pode modificar esse contexto (Marques, 2012). Ainda que a autora aborde a resiliência enquanto um fator a nível individual, e não como um processo que envolve diversos mecanismos, ela discute algo importante: "a pessoa quando não tem condições de transformar uma situação, se permite ser transformada por ela, de forma que possa dela tirar algo que lhe seja útil para um viver mais pleno" (Marques, 2012, p. 10).

 

Considerações Finais

Conforme discutido no presente estudo, a DRC, desde o momento do diagnóstico, ocasiona mudanças, suscitando reações e sentimentos variados e infligindo uma sobrecarga emocional ao paciente e sua família. O tratamento dialítico, embora passe a ser considerado um procedimento habitual e suportável que garante a continuidade da vida, é também visto como uma prisão pelos pacientes, configurando assim, uma relação dual entre eles e a hemodiálise. A rigidez do tratamento compromete e causa alterações em diversas áreas de suas vidas. Apesar das perdas, restrições e dificuldades relatadas, os discursos sinalizam ganhos relacionados à experiência do adoecimento, tais como a construção do aprendizado, o amadurecimento e o planejamento de novos planos futuros, demonstrando formas de ressignificação do problema, aspecto presente no processo de resiliência.

Foram evidenciados também fatores de risco e de proteção que influenciam no processo de resiliência. Conforme visto, os fatores de risco podem ser internos e externos ao indivíduo, destacando-se: a própria situação de adoecimento e de tratamento; sobrecarga emocional; sentimento de menos valia; estresse; sintomas depressivos; prejuízo financeiro; conflitos familiares; ausência de apoio familiar; preconceito; suporte não adequado do sistema de saúde e condutas da equipe que podem causar danos ao paciente. Todavia, apesar destes fatores adversos e da desorganização gerada por eles, os fatores de proteção tendem a reduzir o impacto negativo da situação, facilitando, para alguns pacientes, a ressignificação da experiência e superação desta. Entre esses fatores, foram descobertos: atributos da personalidade, como habilidade para solução de problemas, autoestima, autonomia; a espiritualidade; suporte familiar e social.

Constatou-se que a resiliência não é um construto estável ou interno ao paciente, mas envolve a dinâmica entre os fatores de risco e de proteção em variados níveis, promovendo a superação da condição adversa. Esse processo ocorre de maneira singular para cada paciente. Compreender os fatores envolvidos na resiliência de pacientes renais crônicos possibilita desenvolver ações que visem fortalecer e promover positivamente alguns mecanismos de proteção, podendo levar a benefícios na adesão ao tratamento e na vida destes pacientes. Assim, é imprescindível dar voz ao paciente, às suas dores, medos, queixas, adversidades e ter uma escuta qualificada e um olhar diferenciado para a sua história. A partir disso, podem ser oferecidos a ele recursos que favoreçam o enfrentamento positivo da situação.

O presente estudo não se propôs a encerrar a discussão sobre o assunto, mas fomentá-la. Destacou-se como dificuldade as controvérsias quanto à definição de "Resiliência", uma vez que este conceito, na Psicologia, ainda se encontra em processo de construção. Ademais, as discussões em volta deste conceito provocaram interrogações sobre as possibilidades de como promover uma atitude resiliente, considerando o cuidado integral ao paciente com nefropatia crônica. Ressalta-se a importância da realização de outras pesquisas relacionadas à vivência e ao processo de enfrentamento de pacientes renais, englobando todo o processo de adoecimento, e de trabalhos voltados para a atuação dos profissionais de saúde na promoção da superação das adversidades advindas do adoecimento, objetivando embasar atividades voltadas para essa população. Além disso, tendo em vista a relevância do tema relacionado à resiliência, é imprescindível a continuidade de estudos e debates, na tentativa de compreender melhor esse fenômeno.

 

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Recebido em: 02.03.18
Aceito em: 10.12.18

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