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Revista Psicologia Organizações e Trabalho

versão On-line ISSN 1984-6657

Rev. Psicol., Organ. Trab. vol.21 no.1 Brasília jan./mar. 2021

https://doi.org/10.5935/rpot/2021.1.21135 

Saúde mental e trabalho em profissionais do corpo de bombeiros militar

 

Mental health and work among military fire brigade professionals

 

Salud mental y trabajo entre los profesionales del cuerpo de bomberos militares

 

 

Karine Trarbach de OliveiraI; Thiago Drumond MoraesII

IUniversidade Federal do Espírito Santo (UFES), Brasil
IIUniversidade Federal do Espírito Santo (UFES), Brasil

Informações sobre os autores

 

 


RESUMO

Bombeiros militares compõem uma categoria profissional que lida com atividades em graus variados de complexidade, atuam frequentemente em caráter emergencial e estão em organização do trabalho militar. Tais contextos podem interferir na saúde mental destes profissionais. Esta pesquisa objetivou investigar indícios de ocorrência de depressão, ansiedade e estresse entre os bombeiros militares do Espírito Santo e sua relação com a organização do trabalho. Realizou-se pesquisa de tipo survey, por meio das escalas DASS-21 e ITRA e questionário sociodemográfico, em amostra de 297 bombeiros, 83,8% homens, idade média 35,84 anos (DP = 5,92). 65% dos respondentes apresentaram indícios de depressão, ansiedade ou estresse. Os fatores relacionados ao trabalho foram mais importantes que fatores sociodemográficos na caracterização dos aspectos de saúde dos bombeiros militares e com maior potencial de estarem associados à saúde mental destes profissionais, em relação aos desfechos pesquisados. Tais resultados podem contribuir com medidas para dirimir tais danos entre os trabalhadores.

Palavras-chave: saúde ocupacional, organização do trabalho, saúde mental.


ABSTRACT

Military firefighters is a professional category that deals with activities of varying degrees of complexity, often act on an emergency basis and are in a military work organization. Such contexts can interfere in the professional's mental health. This research aimed to investigate evidence of the occurrence of depression, anxiety and stress among military firefighters in Espirito Santo and their relationship with work organization. A survey was conducted using DASS-21 and ITRA scales and a sociodemographic questionnaire in a sample of 297 firefighters, 83.8% men, mean age 35.84 years (SD = 5.92). 65% of respondents showed signs of depression, anxiety or stress. Factors related to work were more important than sociodemographic factors in the characterization of the health aspects of military firefighters and with a greater potential to be associated with the professional's mental health, in relation to the researched outcomes. Such results can contribute to measures to resolve such damages among workers.

Keywords: occupational health, work organization, mental health.


RESUMEN

Los bomberos militares constituyen una categoría profesional que se ocupa de actividades de diversos grados de complejidad, con frecuencia actúan frecuentemente en carácter emergencial y se encuentran en la organización del trabajo militar. Tales contextos pueden interferir en la salud mental de estos profesionales. Esta investigación tuvo como objetivo investigar indicios de síntomas de depresión, ansiedad y estrés entre los bomberos militares de Espírito Santo y su relación con la organización del trabajo. Se realizó una encuesta mediante las escalas DASS-21 e ITRA y cuestionario sociodemográfico en una muestra de 297 bomberos, 83,8% hombres, edad media 35,84 años (DE=5,92). 65% de los encuestados presentaron signos de depresión, ansiedad o estrés. Factores relacionados con el trabajo fueron más importantes que los sociodemográficos en la caracterización de aspectos de salud de los bomberos militares y con mayor potencial de estar asociados con la salud mental de estos profesionales, con relación a los resultados investigados. Estos resultados pueden contribuir a la adopción de medidas para resolver dichos daños entre los trabajadores.

Palabras clave: salud ocupacional, organización del trabajo, salud mental.


 

 

Os bombeiros militares são profissionais que atuam em diversas circunstâncias, programadas ou não, simples e complexas, que abrangem desde vistorias e análises de projetos até ações de combate a incêndio, atendimentos pré-hospitalares, buscas e salvamentos (Corpo de Bombeiros Militar do Espírito Santo [CBMES], 2018). Apesar de todo o treinamento e dos cursos de habilitação pelos quais passam ao longo da carreira, muitas vezes estes profissionais têm que lidar com situações como pressão, risco e morte. Além disso, a instituição militar os situa em um modelo de carreira no qual trabalho, comportamento, valores e identidade se misturam e passam a constituir a subjetividade do sujeito. Assim, o ordenamento militar exerce influência, em maior ou menor grau, em todos os aspectos da vida dos bombeiros militares: na ascensão da carreira, na execução do ofício, no comportamento fora do local de trabalho, na disponibilidade para atuar, tendo forte efeito identitário entre os profissionais (Natividade, 2009).

Estudos que investigaram a dinâmica de saúde/adoecimento e sua relação com o trabalho indicam que tanto as atividades quanto a organização do trabalho trazem reflexos à saúde deste trabalhador e podem ser fontes de prazer ou de sofrimento. Na Paraíba, os bombeiros entrevistados por Lopes (2017) relataram que o exercício da profissão os expõe a fortes cargas emocionais, por lidarem com situações de dor, sofrimento e/ou morte; além de exigir destes profissionais responsabilidade, precisão e eficiência na atuação. Isso levou os autores à conclusão de que contextos como estes demandam altas exigências físicas e psicológicas do profissional. Lima, Assunção e Barreto (2015) sinalizaram a sobrecarga de trabalho devido ao crescimento da demanda por serviços emergenciais em grandes centros urbanos. Estes autores ainda identificaram que estressores organizacionais e operacionais contribuem, independentemente, para o hábito de fumar entre bombeiros de Belo Horizonte. Os estudos de Souza, Azevedo e Oliveira (2017) e de Mata, Pires e Bonfatti (2017) com bombeiros militares cariocas nos permite entender o quanto o reconhecimento pelos gestores e as condições de trabalho oferecidas pela instituição são relevantes no processo de saúde daqueles bombeiros militares, independentemente das atividades exercidas. Natividade (2009) concluiu que, apesar do sentimento de realização profissional, os bombeiros catarinenses possuem queixas sobre a falta de condições para exercer a profissão e sobre aspectos organizacionais. Resultados semelhantes foram os encontrados em uma das poucas investigações realizadas com bombeiros do CBMES (Cremasco, Teresinha, & Vivienne, 2010). Estes autores demonstraram que os participantes reconhecem dimensões positivas no trabalho (reconhecimento social e ajudar ao próximo), ao mesmo tempo em que relacionam sofrimento mental à organização do trabalho, à impossibilidade de expressão emocional e da subjetividade e ao militarismo. Dos estudos citados, depreende-se que prazer e sofrimento podem estar relacionados tanto à atividade de trabalho quanto ao contexto de trabalho, que engloba condições de trabalho, organização do trabalho e relações socioprofissionais (Mendes, Ferreira, & Cruz, 2007).

Para alcançar um melhor entendimento daquilo a que esses profissionais estão expostos e como isso afeta deleteriamente sua saúde mental, há que se analisar os riscos psicossociais que, decorrentes dos efeitos negativos da organização do trabalho e dos estilos de gestão, podem acarretar em sofrimento patogênico e danos físicos, psicológicos e sociais do trabalhador que comprometem a qualidade do trabalho (Facas, 2013). Existem diversas formas de compreender os fenômenos que envolvem saúde e trabalho (Bendassoli & Sobol, 2011). A Psicodinâmica do Trabalho (Psicodinâmica do Trabalho), desenvolvida por Dejours a partir de 1980, buscar compreender a relação do trabalhador com seu trabalho e como ele lida, individual ou coletivamente, com as provações geradas nesse contexto. Dejours (2018) observou que mesmo em algumas profissões com atividades ou contextos altamente adoecedores, os indivíduos, regra geral, não desenvolviam transtornos mentais. A não-passividade do sujeito diante da organização do trabalho naquilo que o faz sofrer leva-o a lançar mão de artifícios para lidar com seu mal-estar em busca de um estado de normalidade. Nesses contextos, os trabalhadores criam defesas coletivas que, embora não transformem o grau de risco a que estão expostos, atuam na percepção que têm acerca deste risco, e isso contribui com a formação de uma identidade coletivamente compartilhada. Dejours (2018) denominou esse mecanismo de estratégias coletivas de defesa. Ressalta-se que, ainda que alguns trabalhadores consigam alcançar a normalidade por meio de estratégias defensivas, essa estabilidade não deve ser entendida como algo resolutivo porque ela não atua sobre o que gera o sofrimento, mas na forma de lidar com ele. Trata-se, pois, de um equilíbrio precário que pode ser, a qualquer tempo, posto em questão; seja pelo esgotamento em se manter em uma organização exigente, seja pela exposição aos riscos, seja pela própria negação de um sofrimento, muitas vezes evidente. Ressalta-se que, para Dejours (2011), mais importante do que o conteúdo das tarefas ou do que as condições de trabalho é a organização do trabalho a variável-chave que mais fortemente se relaciona ao sofrimento mental relacionado ao trabalho.

Diante do exposto, e no escasso quantitativo de pesquisas visando a identificar o contexto de trabalho e suas relações à prevalência de indícios de transtornos mentais entre os bombeiros do CBMES, foi realizada esta pesquisa que objetiva identificar a percepção de riscos psicossociais do trabalho no contexto de trabalho dos bombeiros militares capixabas, e a sua relação com a prevalência de indícios de depressão, ansiedade e estresse. Mais especificamente, as afinidades entre relações socioprofissionais, condição e organização do trabalho e os efeitos nos profissionais, em termos dos custos e danos físicos, psicológicos ou sociais relacionados ao trabalho, e nas dinâmicas de prazer ou sofrimento no trabalho.

 

Método

A presente pesquisa é de tipo survey, de corte transversal, com amostragem não-probabilística, por conveniência e foi analisada a partir dos referenciais conceituais da Psicodinâmica do Trabalho (Dejours, 2011). Nesta abordagem teórica, argumenta-se frequentemente contra métodos quantitativos, e em prol de grupos clínicos em Psicodinâmica (Dejours, 2018). Contudo, diante de problemas que o método proposto pela teoria não permite resolver, alguns autores, ainda inspirados pelas contribuições da teoria, propuseram analisar as relações entre a vivência subjetiva no trabalho e suas relações com o prazer e o sofrimento por meio da construção de escalas (Mendes & Vieira, 2014). Segundo esses autores, essas escalasvalidadas passam a ser mais uma ferramenta que possibilita compreender o fenômeno investigado. Facas (2013) afirma que, mesmo que de maneira indireta, tais instrumentos podem alcançar a intersubjetividade dos trabalhadores, permitindo entender aspectos da relação sujeito-trabalho-saúde. Foi com base nessa linhagem investigativa que se desenhou e realizou a presente investigação.

Participantes

Participaram da pesquisa 331 bombeiros militares do CBMES em atividade profissional durante o período de aplicação dos questionários, de uma população de 1134 bombeiros, dentre os quais se encontraram oficiais e praças, homens e mulheres, e bombeiros que atuam em atividades administrativas ou operacionais. Por tratar-se de um questionário longo, foram inseridas questões verificadoras de atenção do respondente, tais como solicitar ao respondente para marcar, entre alternativas que iam de 1 a 5, o número 3, ou o 5, etc. Dos 331 profissionais que responderam integralmente os formulários, foram eliminados os questionários que apresentaram resposta incorreta em pelo menos uma das questões verificadoras, resultando no montante de 297 questionários analisados nesta pesquisa.

Instrumentos

Para identificar possíveis relações entre indícios de transtornos mentais e o contexto de trabalho de bombeiro militar capixaba, foram utilizados o Inventário sobre Trabalho e Riscos de Adoecimento (ITRA) e a Depression, Anxiety and Stress Scale (DASS-21). O ITRA (Mendes et al., 2007) é constituído de 128 itens distribuídos nas seguintes escalas: Escala de Avaliação do Contexto de Trabalho (EACT), Escala de Custo Humano no Trabalho (ECHT), Escala de Indicadores de Prazer e Sofrimento no Trabalho (EIPST) e Escala e Avaliação de Danos Relacionados ao Trabalho (EADRT).

A EACT é composta por 31 itens que investigam os seguintes fatores: 1) Organização do Trabalho (confiabilidade de 0,72), avalia a divisão e conteúdo das tarefas, normas, controles e ritmos de trabalho (p. ex.: "As tarefas são repetitivas"); 2) Condições de Trabalho (confiabilidade de 0,89), diz respeito a qualidade do ambiente físico, posto de trabalho, equipamentos e o material disponibilizados para a execução do trabalho (p. ex.: "O ambiente físico é desconfortável"); e 3) Relações Socioprofissionais (confiabilidade de 0,87), são os modos de gestão do trabalho, comunicação e interação social (p. ex.: "A autonomia é inexistente"). Os escores, pontuados em uma escala de frequência de cinco pontos (entre 1 e 5), são classificados nos níveis: grave, acima de 3,7; moderado ou crítico, entre 2,3 e 3,69; e satisfatório, abaixo de 2,3.

A ECHT reúne 32 itens referentes à percepção da intensidade da dimensão dos custos físico, cognitivo e emocional no trabalho. Custo Físico (confiabilidade de 0,91), se refere ao dispêndio fisiológico e biomecânico imposto ao trabalhador pelas características do contexto de produção (p. ex.: "Fazer esforço físico"). Custo Afetivo (confiabilidade de 0,86), é definido como o dispêndio emocional, sob a forma de reações afetivas, sentimentos e de estado de humor (p. ex.: "Disfarçar os sentimentos"). Custo Cognitivo (confiabilidade de 0,84), significa dispêndio intelectual para aprendizagem, resolução de problemas e tomada de decisão no trabalho (p. ex.: "Usar a memória"). Os escores, pontuados em uma escala de cinco pontos (entre 1 e 5), são classificados nos níveis: grave, acima de 3,7; moderado ou crítico, entre 2,3 e 3,69; e satisfatório, abaixo de 2,3.

A EIPST é composta por 32 itens que investigam quatro fatores, dois negativos e dois positivos. Realização Profissional (confiabilidade de 0,93) é o primeiro fator positivo que se apresenta e diz respeito a vivência de gratificação profissional, orgulho e identificação com o trabalho que faz (p. ex.: "Valorização"). Liberdade de Expressão (confiabilidade de 0,80) também é um fator positivo que indica vivência de liberdade para pensar, organizar e falar sobre o seu trabalho (p. ex.: "Confiança entre os colegas"). Os dois fatores negativos são Esgotamento Profissional (confiabilidade de 0,89), que avalia a vivência de sofrimento do trabalhador em termos de vivência de frustração, insegurança, inutilidade, desgaste e estresse no trabalho (p. ex.: "Sobrecarga"); e o fator Falta de Reconhecimento (confiabilidade de 0,87), que se refere à vivência de indignação, injustiça e desvalorização pelo não reconhecimento do trabalho (p. ex.: "Inutilidade"). Os escores, pontuados em uma escala de frequência de sete pontos (entre 0 e 6), quando classificados nos níveis iguais ou acima de 4,0 indicam avaliação satisfatória nos dois fatores positivos e grave nos dois fatores negativos. Quando estão entre 2,1 e 3, 9, indicam avaliação moderada ou crítica nos quatro fatores. A avaliação é classificada como grave nos dois fatores positivos, e como satisfatória nos dois fatores negativos, quando os escores estão abaixo de 2,1.

A EADRT é composta por 29 itens agrupados em três fatores e se propõe a identificar indícios da presença de adoecimento entre os respondentes. O fator Danos Físicos (confiabilidade de 0,88) diz respeito a dores no corpo e distúrbios biológicos (p. ex.: "Dor de cabeça"). Danos Psicológicos (confiabilidade de 0,93) retratam sentimentos negativos em relação a si mesmo e a vida em geral (p. ex.: "Mau humor"). Danos Sociais (confiabilidade de 0,89) são definidos como isolamento e dificuldades nas relações familiares e sociais (p. ex.: "Vontade de ficar sozinho"). Na EADRT, danos físicos e danos psicológicos apresentaram classificação crítica, evidenciando uma situação mediana, porém limítrofe, na qual devem ser tomadas providencias no curto e no médio prazo. Os escores, pontuados em uma escala de frequência de sete pontos (entre 0 e 6), são classificados nos níveis indicativos de presença de doenças: acima de 4,1, grave; entre 3,1 e 4,0, moderado; entre 2,0 e 3,0, crítico; e abaixo de 2,0, satisfatório.

Além de buscar informações nos aspectos destacados pelo ITRA, identificamos indícios da prevalência de transtornos mentais com o auxílio do DASS-21 (Vignola & Tucci, 2014). Ele é um instrumento composto por três fatores - Depressão, Ansiedade e Estresse - cada um com sete itens. O DASS-21 se propõe a avaliar indícios de sintomas dos referidos transtornos através da frequência e intensidade de itens percebidos pelo respondente na semana anterior, em uma escala de quatro pontos, avaliados entre 0 e 3. A dimensão Depressão é avaliada pelos seguintes itens: disforia, desesperança, desvalorização da vida, autodepreciação, falta de interesse / envolvimento, anedonia e inércia (p. ex.: "Senti-me depressivo (a) e sem ânimo"). A dimensão Ansiedade avalia a excitação autonômica, os efeitos do músculo esquelético, a ansiedade situacional e a experiência subjetiva do afeto ansioso (p. ex.: "Senti que ia entrar em pânico"). Na dimensão Estresse são avaliados os níveis de excitação crônica inespecífica, como: dificuldade de relaxar, excitação nervosa, perturbação fácil /agitação, irritabilidade / super-reação e impaciência (p. ex.: "Achei difícil me acalmar"). A escala foi construída tanto para identificar indícios dos transtornos avaliados quanto o seu respectivo nível de severidade, classificados nos seguintes níveis: normal, leve, moderado, grave e extremamente grave.

As informações acerca dos respondentes foram complementadas através de uma escala com dados sociodemográficos que abordaram aspectos relativos a características pessoais e laborais dos participantes. Essas características eram: idade, sexo, estado civil, quantidade de filhos, escolaridade, se possui prática religiosa ou espiritualista, tempo de trabalho no CBMES, graduação/patente, atividade/setor em que trabalha, se possui outra atividade remunerada, se foi afastado do trabalho nos últimos 12 meses por questões de saúde que considera relacionadas ao trabalho, e como percebe a saúde.

As escalas do ITRA são interdependentes e, por isso, quando interpretadas em conjunto, mostram os fatores antecedentes do processo saúde-adoecimento, como: as exigências provocadas por esse contexto, o modo como os trabalhadores vivenciam esse cenário e a existência de danos físicos, psicológicos e sociais que podem ter sido gerados nesse cenário. Por isso, a escala Danos Psicossociais com as respectivas subescalas Danos Físicos, Danos Psicológicos e Danos Sociais foram utilizadas como desfecho, juntamente com os indícios de transtornos mentais referenciados pelo DASS-21: depressão, ansiedade e estresse. Ou seja, foram adotados seis desfechos no total, que foram analisados em relação às outras três escalas do ITRA e em relação aos dados sociodemográficos. Ressalta-se que, no caso do DASS-21, escolheu-se como desfecho trabalhadores/as que apresentaram indícios de sintomas de transtornos acima do nível normal, conforme a escala.

Procedimentos de Coleta de Dados e Cuidados Éticos

O CBMES possui uma intranet acessível a todos os bombeiros militares capixabas e aos servidores civis da instituição, mediante uso de login e senha funcionais. Por seu amplo uso interno, o canal foi o escolhido para noticiar a pesquisa e convidar aos interessados para responder o questionário, autoaplicado, que estava disponível na plataforma Google. Eles poderiam responder ao questionário durante o horário de trabalho ou fora do horário de trabalho. Para participar, foi necessário ler e assinar o aceite do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A realização desta pesquisa foi aprovada pelo CBMES e pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Espírito Santo, sob o parecer n° 3.344.305.

Procedimentos de Análise dos Dados

Os dados obtidos foram estatisticamente analisados com o auxílio do software Statistical Packcage for Social Science-23 (SPSS-23) e os resultados gerados foram interpretados em consonância com a teoria da Psicodinâmica do Trabalho, usada neste trabalho como referencial teórico conceitual para compreensão do fenômeno pesquisado. Esse processo iniciou-se com o cálculo da correlação linear dos fatores do ITRA e do DASS-21 entre si (tabela 3), para análise do grau de correlação entre as variáveis, assim como do sentido dessa correlação. Paralelo a isso, foi concluído o cálculo do qui-quadrado entre cada desfecho e as variáveis sociodemográficas, oportunidade na qual foram selecionadas todas associações que apresentassem p<0,20. Isso resultou em um banco de dados no qual cada desfecho possuía variáveis sociodemográficas especificamente associadas a ele. Essas informações foram utilizadas no cálculo da regressão logística binária, com os desfechos definidos como variáveis dependentes (VD). Os dados sociodemográficos, variáveis independentes (VI), foram correlacionados a cada VD, no bloco 1, e às demais subescalas do ITRA (referentes a EACT, ECHT e EISPT) no bloco 2. Foi utilizado o método Forward Stepwise: LR (Field, 2020), que inclui variáveis a cada passo do processamento, a fim de melhorar a explicação do modelo inicial, composto somente pela VD. Aqui, a significância estipulada foi de p<0,05. As VD necessariamente devem ser dicotômicas. Dessa maneira, os desfechos foram classificados em "normal" ou "acima do normal", "suportável" ou "acima do suportável", de acordo com a nomenclatura usada por seus autores nos instrumentos citados. Todos os testes para avaliar as condições e pressupostos para uma regressão logística foram avaliados e apresentaram-se adequados.

 

Resultados

A amostra desta pesquisa é composta por 297 respondentes, dos quais 83,8% homens e 16,2% mulheres. A idade dos bombeiros que responderam ao questionário variou de 26 a 53 anos, apresentando média de 35,84 anos (M=35,84; DP=5,92). Caracterizada em sua maioria por praças (87,5%), 63% dos profissionais atuam em atividades operacionais. O tempo de trabalho na corporação para esta amostra foi desde os três aos 30 anos, resultando em um tempo médio de 11,48 anos de trabalho (M=11,48; DP=6,12). A maioria dos entrevistados, 79,8%, não exerce outra atividade remunerada além da ocupação de bombeiro militar. Do total, 46,8% dos participantes possuem ensino superior em nível de graduação e 34% dos entrevistados são pós-graduados.

Sobre absenteísmo e saúde, 15,8% deles afirmaram terem se afastado do trabalho nos últimos 12 meses por questões de saúde que consideraram relacionadas ao trabalho. De modo geral, sobre saúde: 15,5% dos entrevistados perceberam sua saúde como ótima, 35% muito boa, 27,3% como boa, 16,2% como ruim, 4,4% como muito ruim e 1,7% a perceberam como péssima.

Inventário sobre Trabalho e Riscos de Adoecimento

Com base na pesquisa de Anchieta, Galinkin, Mendes e Neiva (2011), foi calculado o alfa de Cronbach de cada uma das escalas do ITRA, além do cálculo de estatísticas descritivas. Na Tabela 1 apresentam-se a distribuição de frequência dos fatores com os respectivos níveis de classificação de risco (Mendes et al., 2007), além da apresentação do alfa de Cronbach dos resultados de cada subescala.

 

 

A escala EACT apresentou classificação crítica nos três fatores, indicando uma situação mediana, porém limítrofe, na qual devem ser tomadas providências no curto e no médio prazo para evitar a ocorrência de danos físicos, psicológicos e sociais nos trabalhadores. A ECHT apresentou resultado crítico no que se refere aos fatores Custo Físico e Afetivo e resultado grave quando se trata do Custo Cognitivo do trabalho. De acordo com Mendes et al. (2007), o resultado grave é negativo e produtor de custo humano e sofrimento no trabalho e indica forte risco de adoecimento, o que requer providências imediatas nas causas que visem a eliminá-las e/ou atenuá-las. Os itens mais pontuados nesta escala (pontuação nível grave) foram, nesta ordem: 1) usar a visão de forma contínua; 2) ser obrigado a lidar com imprevistos; 3) ter concentração mental; e 4) ter que resolver problemas. Já a escala EIPST apresentou resultados críticos, tanto nos fatores positivos quanto nos negativos que a compõem, e sinaliza que se deva ter atenção às dinâmicas de prazer e sofrimento avaliadas pela escala. Na EADRT, os fatores Danos Físicos e Psicológicos exibiram classificação crítica, enquanto o fator Danos Sociais apresentou classificação suportável. Isso evidencia um nível satisfatório, resultado positivo e produtor de prazer no trabalho, aspecto a ser mantido e consolidado no ambiente organizacional. Os itens com as menores pontuações (nível satisfatório) foram, nesta ordem: 1) dificuldade com os amigos; 2) insensibilidade em relação aos colegas; 3) dificuldades nas relações fora do trabalho; e 4) agressividade com os outros.

Escala de Depressão, Ansiedade e Estresse - DASS-21

Na amostra pesquisada, 35% dos participantes não relataram sintomas que indicam nível de depressão, ansiedade ou estresse acima de normal. Já os outros 65% relataram sintomas de algum dos transtornos em algum nível de severidade acima do normal. Entre estes, 35,3% manifestaram indícios de sintomas dos três transtornos simultaneamente em nível acima do normal. Na Tabela 2, apresenta-se o nível de severidade dos sintomas relativos a cada transtorno mental e uma estimativa do percentual de cada um entre os bombeiros militares pesquisados a partir dos dados coletados pelo DASS-21.

 

 

Correlação Linear Entre Subescalas do ITRA e Transtornos Mentais do DASS-21

Na Tabela 3 apresenta-se correlação linear dos fatores do ITRA e do DASS-21, com a finalidade de identificar a força e a direção das relações entre estas variáveis.

Conforme Field (2020), considerou-se o tamanho dos efeitos da correlação entre ± 0,1 representando um efeito pequeno, ± 0,3, um efeito médio e ± 0,5, um efeito grande. Vignola e Tucci (2014) sinalizaram a forte correlação entre os fatores Depressão, Ansiedade e Estresse, algo que também encontramos em nossa análise. No entanto, destaca-se a baixa correlação entre esses fatores e os fatores Custos Físicos e Custos Cognitivos na amostra estudada. Dentre as subescalas do ITRA, houve forte correlação entre Falta de Reconhecimento e Esgotamento Profissional; as subescalas Liberdade de Expressão, Realização Profissional e Relações Socioprofissionais apresentaram forte correlação entre si. As subescalas Realização Profissional e Liberdade de Expressão são fomentadoras de prazer no trabalho. Por isso, apresentaram correlação negativa em relação às outras subescalas, que avaliam aspectos prejudiciais no trabalho.

Regressão Logística Bivariada dos Desfechos com Dados Sociodemográficos e ITRA

Nesta etapa, serão apresentadas as taxas de razões de chance entre os desfechos do DASS-21 (indícios de prevalência de depressão, ansiedade e estresse) e do ITRA (fatores Danos Físicos, Danos Psicológicos e Danos Sociais), assim como o sentido dessas relações. Foram considerados como indícios de transtornos os respondentes que relataram sintomas de transtorno acima do nível normal de severidade, nos fatores constituintes da escala DASS-21. Na Tabela 4, apresenta-se a regressão logística dos fatores referentes a indícios de depressão.

 

 

Considerando as variáveis sociodemográficas, foi possível perceber que duas são relacionadas ao trabalho: graduação/patente (1 - oficial) e afastamento (1 - sim) por questões que o sujeito julga relacionadas ao trabalho. No entanto, a graduação/patente (oficial) mostrou-se estatisticamente insignificante na explicação do modelo. Por outro lado, a variável afastamento do trabalho mostrou que os indivíduos que não se afastaram tiveram 6,17 vezes mais chances de apresentarem indícios de depressão do que aqueles que se afastaram do trabalho por questões de saúde nos últimos doze meses. Da mesma forma, pessoas com percepção positiva do estado de saúde (1 - negativa) apresentaram 11,63 mais chances de pertencer ao desfecho do que aquelas com a percepção negativa. A escala que se relacionou à indícios de depressão foi a EISPT, na subescala Falta de Reconhecimento, associando-se positivamente ao desfecho, tanto no nível satisfatório (1) quanto no nível crítico (2). O modelo construído foi significativo [χ2(2) = 120,68; p < 0,001, R2 Negelkerke = 0,45] com 75,9% das variáveis classificadas de forma adequada.

Na Tabela 5, se apresenta a regressão dos fatores referentes a indício de ansiedade. Assim como no desfecho anterior, não ter se afastado do trabalho e ter uma percepção positiva da saúde resultaram em maiores chances de pertencer ao desfecho; nesse caso, a ansiedade. Aqui, duas escalas apresentaram associação positiva e significativa com a ansiedade: a EACT, o fator Relações Socioprofissionais nos níveis satisfatório (1) e crítico (2); e a EIPST, no fator Esgotamento Profissional, nos níveis satisfatório (1) e crítico (2). O modelo construído foi significativo [χ2(2) = 121,69; p < 0,001, R2 Negelkerke = 0,46] com 75,2% das variáveis classificadas de forma adequada.

 

 

Na Tabela 6, se apresenta a regressão dos fatores referentes a indício de estresse. Estresse e afastamento do trabalho não tiveram associação estatisticamente significante. Quem avalia a saúde positivamente teve 4,78 mais chances de apresentar sintomas de estresse em relação aos que a percebem como negativa (1). Os fatores Relações Socioprofissionais e o Esgotamento Profissional se apresentaram relacionados a indícios de estresse desde seu nível satisfatório (1), em uma relação forte e positiva, que aumenta quando a subescala indica o nível crítico (2). O modelo construído foi significativo [χ2(6) = 137,32; p < 0,001, R2 Negelkerke =0,5] com 78,6% das variáveis classificadas de forma adequada.

 

 

Na Tabela 7, é apresentada a regressão dos fatores referentes a indícios de danos físicos. Bombeiros que trabalham no setor administrativo apresentaram três vezes mais chances de pertencerem ao grupo de pessoas que apresentam indícios de danos físicos acima do suportável. Em relação a esse desfecho, a percepção (negativa) do estado de saúde não teve significância estatística relevante. Quanto maior o fator Custo Afetivo, maior a probabilidade de o indivíduo ter demonstrado indícios de danos físicos acima do normal, sendo seis vezes maior naqueles que apresentaram o fator Custo Afetivo em nível crítico. O fator Esgotamento Profissional em nível crítico esteve associado à 12 vezes mais probabilidades de danos físicos em nível acima do suportável. O modelo construído foi significativo [χ2(7) = 120,29; p < 0,001, R2 Negelkerke = 0,46] com 79% das variáveis classificadas de forma adequada.

 

 

Na Tabela 8, apresenta-se a regressão logística dos fatores referentes a indícios de danos psicológicos. De acordo com a tabela acima, o desfecho esteve associado aos fatores Esgotamento Profissional em nível crítico (2) e Falta de Reconhecimento tanto em nível satisfatório (1), quanto em nível crítico (2), sendo 31 vezes maior a chance de pessoas na condição crítica de apresentarem indícios de danos psicológicos. Não ser solteiro implica em 2,52 mais chances de apresentar danos psicológicos acima do normal em relação aos solteiros (estado civil 1). Ter relacionamento estável (estado civil 2) não teve significância estatística, assim como morar e trabalhar na mesma região (1), afastar-se do trabalho por questões de saúde (1) e percepção negativa (1) da saúde. O modelo construído foi significativo [χ2(9) = 177,6; p < 0,001, R2 Negelkerke = 0,61] com 82,8 % das variáveis classificadas de forma adequada.

 

 

Na Tabela 9, é apresentada a regressão dos fatores referentes a indícios de danos sociais. As variáveis sociodemográficas associadas ao indício de danos sociais apresentaram-se como diminuidoras de chances de pertencer ao desfecho. Não ser solteiro implicou em 2,5 vezes mais chances de pertencer ao desfecho do que os indivíduos solteiros (estado civil 1). Perceber a saúde de maneira positiva significou apresentar 2,6 vezes mais chances de pertencimento ao desfecho do que os indivíduos que percebem a saúde como negativa (1). Estar em um relacionamento (estado civil 2) e afastar-se do trabalho por questões de saúde não mostraram significância estatística na explicação do modelo. Na EIPST, os fatores Esgotamento Profissional e Falta de Reconhecimento estão positivamente associadas ao desfecho; sendo que, em níveis críticos, o Esgotamento Profissional aumenta em 18,2 vezes as chances de apresentar danos sociais, enquanto a Falta de Reconhecimento aumenta em 7,4. O modelo construído foi significativo [χ2(8) = 138,43; p < 0,001, R2 Negelkerke = 0,51] com 74,2% das variáveis classificadas de forma adequada.

 

 

 

Discussão

Com a análise dos dados podemos observar que as dimensões do trabalho e as dimensões sociodemográficas apresentaram-se associadas aos efeitos deletérios na saúde dos bombeiros. Pode-se observar tendência das dimensões do trabalho apresentarem-se mais frequentemente como fatores de risco à saúde, ao passo que as dimensões sociodemográficas se apresentaram mais como fatores protetivos, já que tendiam a reduzir as chances de os indivíduos apresentarem os desfechos analisados.

O fator Custo Cognitivo do trabalho, avaliado como grave pelos critérios do ITRA, referiu suas maiores pontuações nos itens: "15 - usar a visão de forma contínua", "13 - ser obrigado a lidar com imprevistos", "19 - ter concentração mental", "12 - ter que resolver problemas". Em uma análise superficial, esses resultados poderiam conduzir à ideia de que é o conteúdo da tarefa que exige dos trabalhadores da atividade operacional mais do que o fisicamente suportável; e que, consequentemente, intensifica o sofrimento mental. Contudo, tanto a ausência de associação entre o fato Custo Cognitivo e os desfechos investigados pela regressão quanto a fraca correlação entre essas variáveis sugerem não ser o conteúdo da tarefa o fator de maior constrangimento à saúde mental, mas sim a maneira como ele é organizado, considerando-se outros dados apresentados. Aliado a isso, os dados conferem ao setor administrativo, e não ao operacional, a forte associação com os indícios de danos físicos. No fator Danos Físicos, os itens com maior pontuação (nível crítico) foram "10 - alterações no sono", "1 - dores no corpo", "6 - dores nas costas" e "3 - dor de cabeça". Esses resultados se diferem dos sugeridos pela pesquisa de Santos, Ascari, Sá e Ascari (2018), na qual se verificou pior percepção de qualidade de vida entre bombeiros do setor operacional em relação aos do setor administrativo.

O fator Danos Sociais, que compões a Escala de Danos Relacionados ao Trabalho, recebeu a classificação satisfatória, o que pode ser entendido como resultado da satisfação gerada pela repercussão positiva que o trabalho do bombeiro militar tem junto a população. Isso corrobora os estudos de Souza et al. (2017) e Natividade (2009), nos quais esses aspectos surgem como fatores positivos da profissão, além da importância das relações entre os trabalhadores para minimizar o sofrimento no trabalho. Considerando-se os resultados críticos nos demais fatores do ITRA, pode-se indagar em que medida a importância dessas relações seriam sugestivas da mobilização de defesas coletivas e/ou individuais em uso, na tentativa de evitar o adoecimento. No entanto, as defesas são mecanismos que não agem sobre a fonte do sofrimento, mas sobre o trabalhador, no sentido de minimizar a percepção de seus efeitos sobre ele (Dejours, 2018). Logo, isso pode explicar por que, apesar de seu possível uso, se encontram indícios expressivos de depressão, ansiedade e estresse nos bombeiros pesquisados, sendo que 65% deles relataram sintomas acima no nível normal de pelo menos um dos transtornos mentais investigados.

Dentre os fatores sociodemográficos, seis apresentaram alguma chance de estarem relacionados aos desfechos investigados: ter se afastado do trabalho por motivo de saúde relacionada ao trabalho nos últimos 12 meses, uma percepção negativa da saúde, ter uma patente de oficial, atuar em função administrativa, morar e trabalhar na mesma região e ser solteiro. Algumas destas variáveis se apresentaram em sentido contrário às variáveis dependentes, podendo ser entendidos como dimensões que diminuem as chances de pertencimento ao desfecho, atuando como fatores de proteção.

Como fator de proteção se destacou a percepção negativa da saúde, que apareceu em todos os desfechos, tendo sua relevância estatística nos indícios de depressão, ansiedade, estresse e danos sociais. O afastamento do trabalho apareceu com sentido negativo em todos os desfechos, com exceção de danos físicos, e mostrou-se significativo em relação à depressão e à ansiedade. Ter a percepção de que a saúde não vai bem é positivo e pode, inclusive, possibilitar ao trabalhador fazer algo a respeito; como, por exemplo, afastar-se das atividades laborais, obtendo daí um efeito benéfico, principalmente nos quadros de depressão e ansiedade. Outro fator de proteção em relação aos danos psicológicos e sociais é ser solteiro. Algumas pesquisas, como a de Natividade (2009), retratam que a profissão de bombeiro militar se estende à vida privada e acaba por interferir nas relações familiares. Assim, ser solteiro poupa a pessoa de lidar com as dificuldades de conciliar trabalho e vida pessoal.

Várias subescalas do ITRA apresentaram-se associadas aos indícios de transtornos mentais, físicos e sociais investigados, indicando relação entre o contexto de trabalho, as vivências subjetivas e o adoecimento. Assim, tanto o contexto de trabalho, quanto o custo humano do trabalho e os indicadores de prazer e sofrimento devem ser observados e melhorados caso se busque atuar positiva e diretamente na saúde dos bombeiros militares capixabas. No caso da dimensão relações socioprofissionais, mensuradas pelo respectivo fator da EACT, observou-se que, quando elas eram avaliadas como satisfatórias, os trabalhadores apresentavam 2,5 e 3,6 mais razão de chances de relatarem indícios de ansiedade e estresse respectivamente; ao passo de que, quando essas relações eram avaliadas em nível crítico, os trabalhadores apresentavam entre 15,8 e 17,5 vezes mais chances de apresentarem sintomas desses mesmos transtornos. A dimensão relações socioprofissionais indicam o modo de gestão do trabalho, passando pela comunicação e interação profissionais e foram um dos principais fatores explicativos de transtornos mentais em nossa pesquisa. Os itens com maior pontuação (nível crítico) foram: "25- funcionários são excluídos das decisões", "27- existem disputas profissionais no local de trabalho", a "23- autonomia é inexistente", a "24- distribuição de tarefas é injusta". O modelo institucional do CBMES é baseado em hierarquia e disciplina, no qual as ordens partem das patentes mais altas para as mais baixas, sem grandes possibilidades de negociação, o que afeta tanto a autonomia do militar e quanto a distribuição das tarefas. As disputas profissionais neste modelo de instituição são fomentadas pelo formato no qual acontece a ascensão na carreira (LC911/2019). Esses dados reforçam os indicados na pesquisa de Cremasco et al. (2010) e de França e Ribeiro (2019), onde evidenciam-se os efeitos deletérios do militarismo na saúde mental dos trabalhadores/as. Chama a atenção, porém, o fato de o fator Danos Sociais não estar associado ao fator Relações Socioprofissionais, suscitando a hipótese de mobilização das relações coletivas entre os pares, por meio de defesas coletivas, como forma de fazer frente às exigências do trabalho, da organização do trabalho e dos modelos de gestão.

No caso do custo humano mobilizado pelo trabalho, o fator Custo Afetivo esteve fortemente relacionado aos indícios de danos sociais. Os itens com maior pontuação (grave) foram: "21- ter controle das emoções", "23- ter custo emocional", "28- ser obrigado a cuidar da aparência física", "25- disfarçar os sentimentos". O cerceamento da expressão das emoções e o cuidado com a aparência física, por outro lado, mostraram-se fortemente associados aos danos físicos, principalmente entre os bombeiros em atividade administrativa. O contexto do trabalho administrativo expõe os profissionais ao contato direto com superiores hierárquicos, o que exige dos subordinados alto grau de decoro, os obriga a modular a expressão das emoções e a cuidar da aparência física. Esse cuidado implica tanto na autovigilância sobre seus comportamentos quanto na exigência de se manter a barba feita todos os dias, o cabelo curto, e ter atenção redobrada às condições do fardamento. Um desajuste em alguns desses aspectos, pode resultar em Processo Administrativo Disciplinar - uma punição - que interfere em toda a carreira profissional do militar.

A EIPST apareceu em todos os desfechos, através de dois fatores, a saber: Falta de Reconhecimento e Esgotamento Profissional. A Falta de Reconhecimento inclui vivência de injustiça, indignação e desvalorização pelo não reconhecimento do seu trabalho (Mendes et al., 2007). Apresentou-se nos desfechos de indícios de depressão, danos psicológicos e sociais, aumentando a razão de chances na medida em que aumenta o nível de Falta de Reconhecimento, de satisfatório para crítico. Os itens destacados nesta subescala (nível crítico) foram: "27- desvalorização", "26- falta de reconhecimento do meu desempenho", "25- falta de reconhecimento do meu esforço", "28- indignação". Já o fator Esgotamento Profissional não apareceu como variável independente associada à depressão, mas mostrou ter forte razão de chances nos demais desfechos. Os itens "19- estresse" e "21- sobrecarga" obtiveram médias que os classificaram como graves, enquanto "18- esgotamento emocional" e "20- insatisfação" estão em nível crítico. A Falta de Reconhecimento, associada ao Esgotamento Profissional, apareceu relacionada aos indícios de danos psicológicos e danos sociais, indicando maiores chances de se vivenciar sentimentos negativos em relação a si mesmo e à vida, além de isolamento social quando se apresentam indícios de estresse, sobrecarga, esgotamento emocional e insatisfação. Já o Esgotamento Profissional e o Custo Afetivo aparecem associados a indícios de danos físicos, indicando que as vivências negativas no trabalho são percebidas pelo trabalhador como de alto custo afetivo, acarretando esgotamento profissional, que culminam em dores no corpo e distúrbios biológicos. Dada a maior chance de trabalhadores do setor administrativo indicarem danos físicos, pesquisas futuras podem explicar os processos psicodinâmicos das relações entre o custo afetivo, as manifestações sintomáticas e o tipo de atividade nessa população.

De acordo com a teoria da Psicodinâmica do Trabalho, o processo de transformação do sofrimento em saúde passa, necessariamente, pela construção da identidade do sujeito. É necessária flexibilidade na organização do trabalho para que os elementos necessários ao processo dinâmico da construção de identidade possam acontecer (Alderson, 2004). Os níveis críticos de Falta de Reconhecimento, Esgotamento Profissional, Relações Socioprofissionais e do Custo Afetivo mostraram-se como dificultadores desse processo, facilitando a instalação dos desfechos pesquisados entre a amostra estudada, como observado nas associações.

O objetivo maior deste trabalho foi identificar se há prevalência de indícios de transtornos mentais entre os bombeiros capixabas e, em havendo, investigar sua relação com a organização do trabalho. Dejours (2018) é categórico ao afirmar que o sofrimento mental resulta da organização do trabalho, no que diz respeito à divisão do trabalho, ao conteúdo da tarefa, ao sistema hierárquico, às relações de poder etc. A partir dos dados apresentados, as variáveis que se associaram aos desfechos referem-se às exigências que lhe são impostas, ou seja, estão relacionadas ao cerceamento da sua liberdade de expressão, que não pode ser exercida plenamente devido ao rigoroso autocontrole emocional e à forte competitividade profissional que acaba por afetar o sentimento de reconhecimento profissional e as relações socioprofissionais em uma profissão que extrapola os limites do trabalho e se funde à vida privada. As exigências impostas, aliadas à falta de reconhecimento da instituição não poderiam eximir o custo psicológico, afetivo e o esgotamento profissional de se manifestarem e se fazerem percebidos, resultando na prevalência de indícios de depressão, ansiedade e estresse, assim como de danos físicos, psicológicos e sociais.

Dejours (2011) salientou que, embora as sintomatologias sejam individuais, o sujeito consegue identificar nelas a marca do trabalho. Assim, questões como estresse, por exemplo, que correriam o risco de serem admitidas como particularidades, conseguem ser apreendidas como produtos do adoecimento laboral. Por fim, resta a conclusão de que as relações interpessoais dos bombeiros militares são a fonte primordial de seu adoecimento mental, por estarem moldadas por modelos de gestão e regramentos que impedem a plena expressão da singularidade dos indivíduos enquanto os coloca a mercê de regramentos que afetam diretamente o grau de confiança e de companheirismo, em uma profissão na qual os trabalhadores expõem suas vidas aos mais diversos riscos e, por isso, precisam confiar uns nos outros e ter o reconhecimento desta doação. Observação semelhante foi levantada por Dal Forno e Macedo (2019), ao ressaltar a importância do reconhecimento e do apoio da instituição aos bombeiros militares, o que se daria, com essa compreensão, em termos de legitimação do sofrimento vivido e da consideração deste como pertencente ao humano que trabalha.

 

Considerações Finais

Nesse estudo, o uso dos inventários não pôde alcançar as estratégias de defesa utilizadas pelos trabalhadores. O uso de tais recursos, ainda que justificado em autores como Mendes e Vieira (2014), não reflete as prerrogativas do modelo de intervenção proposto por Dejours (2018). As circunstâncias para realização da pesquisa acabaram por impossibilitar o uso da teoria da Psicodinâmica do Trabalho como processo metodológico e restringir sua lógica à referência conceitual. Pesquisas futuras podem descrever as estratégias defensivas utilizadas pelos profissionais diante da organização do trabalho, bem como seus custos psíquicos e relacionais. Além disso, é necessário investigar a forte associação entre trabalho no setor administrativo e percepção de dano físico, além das relações entre a organização real do trabalho, as dimensões que caracterizam o militarismo- hierarquia e disciplina - e os processos psicodinâmicos do adoecimento mental.

Quanto às limitações a serem consideradas, podem-se indicar: a) cautela na generalização dos resultados, por ser um estudo não-probabilístico; b) a estratégia para convite ao participante - intranet institucional - pode ter propiciado viés na amostra (p. ex.: apenas pessoas com potencial maior para críticas, insatisfação, ou maior afeição à profissão tenham aceitado participar da investigação); c) tal estratégia pode ter gerado desconfiança sobre o questionário e influenciado nas respostas dos participantes; d) o convite não foi encaminhado para profissionais em situação de afastamento, impedindo capturar a percepção de profissionais nessa condição.

Os resultados dessa pesquisa indicam ser necessária transformação em práticas de gestão no CBMES. Além disso, é relevante reafirmar, entre os trabalhadores, os resultados positivos e benefícios que podem ser obtidos em situações de afastamento do trabalho nas situações pertinentes. Os resultados da presente pesquisa serão apresentados para o setor de atenção psicossocial da instituição, responsável pela elaboração de práticas de saúde.

 

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Informações sobre os autores:
Karine Trarbach de Oliveira
Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Espírito Santo - Centro de Serviço Social
Rua Tenente Mário Francisco de Brito, nº 100, Enseada do Suá
29050-555 Vitória, ES, Brasil
E-mail: ktoliveira@gmail.com

Thiago Drumond Moraes
E-mail: tdrumond@gmail.com

Submissão: 14/07/2020
Primeira decisão editorial: 14/10/2020
Versão final: 05/11/2020
Aceite: 16/11/2020

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