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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.3 no.2 São Paulo dez. 2011

 

 

"Indivíduo" e "pessoa": semelhanças e diferenças entre Kierkegaard e Rogers1

 

"Individual " and "person": similarities and differences between Kierkegaard and Rogers

 

Carlos Roger Sales da Ponte2

Universidade Federal do Ceará

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Fruto de uma investigação levada a termo no Mestrado em Psicologia da UFC, o presente artigo visa questionar que a dita influência da filosofia de Sören Kierkegaard na constituição da psicologia centrada na pessoa de Carl Rogers não passa, em verdade, de um mal entendido histórico e epistemológico. A fim de explicitar isso com mais clareza, confronta-se aqui o conceito de"Indivíduo" de Kierkegaard e o conceito de"Pessoa" em Rogers, estabelecendo suas semelhanças e diferenças. Conclui-se que a leitura de Kierkegaard proporcionou a Rogers elementos para uma meditação acerca da prática clínica e mesmo de ordem pessoal. Todavia, a perspectiva de uma abertura à novidade existencial em Rogers adveio de observações de fenômenos na psicoterapia. As fontes de Rogers estão ancoradas na prática clínica e não na filosofia existencial de Kierkegaard. Os conceitos de"Indivíduo" e de"Pessoa" servem de ilustração para estas teses.

Palavras-chave: Kierkegaard; Rogers; Indivíduo; Pessoa.


ABSTRACT

Fruit of a research conducted in the Masters Degree in Psychology at the UFC, this article seeks to question the fact that the influence of the Sören Kierkegaard philosophy's in the formation of psychology centered in the person of Carl Rogers does not pass a historical and epistemological misunderstanding. In order to clarify this with more clarity, it is confronted here the concept of "Individual" of Kierkegaard and the concept of "Person" in Rogers, establishing their similarities and differences. I conclude that the reading of Kierkegaard, Rogers provided elements for a meditation on clinical practice and even personal. However, the prospect of an openness to the new existential Rogers has come from observations of phenomena in psychotherapy. The sources of Rogers are anchored in clinical practice and not in the existential philosophy of Kierkegaard. The concepts of "Individual" and "Person" serve as illustration for this thesis.

Keywords: Kierkegaard; Rogers; Individual; Person.


RESUMEN

Resultado de una investigación llevada adelante en la Maestría en Psicología de la UFC, este artículo tiene por objeto cuestionar la influencia real de la filosofía de Søren Kierkegaard en la constitución de la psicología centrada en la persona de Carl Rogers no es nada, de hecho, una mala interpretación histórica y epistemológica. Para explicar esto más claramente enfrentamos aquí el concepto del Individuo" en Kierkegaard y de la "Persona" en Rogers, estableciendo sus semejanzas y diferencias. Se concluye que la lectura de Kierkegaard dio elementos de Rogers para una reflexión sobre la práctica clínica e incluso questiones personales. Sin embargo, la perspectiva de una nueva apertura a la novidad existencial en Rogers ha llegado a partir de observaciones de los fenómenos en la psicoterapia. Las fuentes de Rogers se anclan en la práctica clínica y no en la filosofía existencial de Kierkegaard. Los conceptos de "Individuo" y "Persona" servir como ilustración de estas tesis

Palabras-clave: Kierkegaard; Rogers; Individuo; Persona.


 

 

KIERKEGAARD E ROGERS: UMA LIGAÇÃO?

Dentro dos estudos históricos e epistemológicos levados a cabo pelos continuadores da Abordagem Centrada na Pessoa (ACP), há um certo consenso em considerar o filósofo danês Sören Kierkegaard como uma das influências"decisivas" no pensamento rogeriano porque o próprio Rogers assim afirmou (EVANS, 1979; ROGERS; ROSENBERG, 1977; ROGERS, 2009). Assim colocado, os estudiosos da ACP aparentemente aceitam este testemunho sem maiores problemas tendo apenas a palavra de Rogers como garantia (como por exemplo, as pesquisas de PINHEIRO, 2004; MOREIRA, 1993/1994; LEITÃO, 1986; ROGERS; WOOD, 1978).

Contudo, isso é totalmente verdade? Como um filósofo que se diz um autor religioso, deprimido, pietista, preocupado com o destino do Indivíduo, que respirou um Cristianismo sofrido, cuja visão do humano está ligada a uma culpa em que aparece a ideia cristã do Pecado Original e dependente de Deus, pode contribuir para uma psicologia norteamericana otimista, pragmática, que concebe o humano como"digno de confiança" e responsável?

Minha intenção é questionar esta filiação indevida e apressada de Rogers ao pensamento de Kierkegaard mediante a exposição dos conceitos de Indivíduo em Kierkegaard e de Pessoa em Rogers mostrando (1) em confronto as perspectivas de ser humano3 destes autores, muitas vezes aproximados dentro de uma perspectiva dita"existencialista" e (2) suas aproximações e diferenças.

 

KIERKEGAARD E ROGERS (1)

Não pretendo fazer aqui explanações exaustivas da filosofia de Kierkegaard e da psicologia de Rogers. Muito já se escreveu a respeito e ambos dispensam apresentações. Todavia, penso que alguns dados a título de lembrete sejam pertinentes para situar o questionamento que se segue.

Søren Kierkegaard (1813-1855) foi um filósofo cristão por excelência. Adentrando no cristianismo mais do que como um simples crente, ele é um pensador em que pulsava uma ânsia de esclarecimento conceitual e, sobretudo, pessoal. Ele atesta quando escreve em Diário que é necessário"compreender o meu destino de ver o que este Absolutamente Outro 4 quer propriamente que eu faça, isto é, de encontrar uma verdade que seja verdade para mim e pela qual quero viver e morrer" (KIERKEGAARD, 1986a, p.39).

Também como nos informa Amaral (2008, p.19) o"lugar a partir do qual fala Kierkegaard é o de um polemista, cuja perspectiva não se explicita senão pela relação com aquilo que lhe mobiliza mais direta e imediatamente, a fé". E o fez de modo tão apaixonado que o levou até a própria aniquilação quando, esgotado por uma querela com a Igreja Luterana danesa, cai na rua, agoniza e morre em um hospital.

Em sua trajetória de pensador e escritor eminentemente religioso, Kierkegaard foi um humano bastante atormentado e angustiado devido aos dissabores em sua vida. Além disso, era constantemente assaltado pela realidade cristã de sua época, na qual ouvia de homens e mulheres a afirmação de que eram"cristãos" sem que realmente o fossem (e que ele qualificava jocosa e ironicamente de"cristandade"). No entender de Kierkegaard, eles estavam longe de uma vida autenticamente cristã: uma existência de renúncias e de sofrimentos, os quais seriam as provas da verdadeira vida em Jesus Cristo. Se Cristo sofreu, deve o cristão também sofrer. Para Kierkegaard, não havia concessões a serem feitas ou meio termo: ou se era cristão ou não. Isso evidenciava o sentido de Tornar-se Cristão de que tanto falou: é um devir sempre a caminho e em constituição, e não uma condição que em algum momento se conseguiria de uma vez por todas. Como o humano não pode ser igual a Cristo com todas as vivências que este teve, pode, outrossim, comprometer-se com um vir-a-ser em direção a Cristo. Um Cristianismo às avessas e diferente da radicalidade da mensagem evangélica, impregnado de hegelianismo e ligado ao Estado eram, no seu entender,"sintomas da decadência do crístico" (PAULA, 2009, p.27).

De todo modo, Kierkegaard reflete, ele se interroga acerca da verdade, onde encontra sua ocupação infinita (KIERKEGAARD, 1986b). Deixou atrás de si uma obra que, em suas palavras,

Brotou de uma irresistível necessidade interior que [...] foi a única possibilidade oferecida a um melancólico profundamente humilhado, o honesto esforço de um penitente com vista a reparar, se possível, fazendo um pouco de bem à custa de todos os sacrifícios na disciplina ao serviço da verdade. (KIERKEGAARD, 1986b, p.23)

Tal entrega ao"serviço da verdade" deixa clara sua"necessidade interior" de busca de compreensão da vontade divina. Embora Kierkegaard diga que sempre foi um autor religioso (KIERKEGAARD, 1986b), ele é um philo-sophos: um humano que se disponibiliza a corresponder ao apelo do Ser (HEIDEGGER, 1979). Quanto a este apelo advindo do absoluto, entendido não hegelianamente, Paula (2009, p.26) explica que nas reflexões kierkegaardianas"diante do absoluto, resta decidir-se pela fé ou desesperar-se".

Carl R. Rogers (1902-1987), partindo de uma perspectiva nova a respeito do humano, compreende-o como possuindo em si mesmo potencialidades que o fazem progredir em direção a um crescimento biopsicosocial. Dentro deste parâmetro, Rogers postula que a Pessoa é a única capaz de guiar sua própria existência em termos de responsabilidade e autonomia. Ou seja, as potencialidades da pessoa não são possíveis de deter ou destruir sem que se destrua o humano mesmo.

 

A PROBLEMÁTICA

Assim colocados os pares deste percurso, a pesquisa confrontará um aspecto da psicologia rogeriana à filosofia kierkegaardiana do Indivíduo enquanto Matrizes epistemológicas, seguindo um raciocínio de Figueiredo (1995).

Na concepção deste autor, a ACP se tem sua inserção na Matriz Vitalista e Naturista, que centra sua atenção em aspectos qualitativos, espirituais, criativos e intuitivos do humano. Deixando de lado qualquer pretensão de conceituação exaustiva a respeito dos fenômenos estudados, prefere valorizar o processo de"tornar-se"; o"devir" da vida que merece ser vivida apaixonadamente. Portanto, esta Matriz não daria importância ao rigor epistemológico dos seus enunciados, importando mais a vivência existencial e exibindo uma visão ingênua e romântica do humano. Por conta disso, esta Matriz quer tão-somente apreender a vivência pré-reflexiva do humano, bastando a apreensão intuitiva. Em contrapartida, a filosofia kierkegaardiana faz parte do pensamento existencialista (dentro da Matriz Fenomenológica e Existencialista), isto é, todas aquelas correntes que partem de uma descrição-reflexão da existência concretamente vivida, fruto de atos da liberdade constitutiva do humano que se afirma como um ser livre. (FIGUEIREDO, 1995)

O confronto conceitual entre Kierkegaard e Rogers se torna viável, uma vez que o foco gira em torno da importância crucial que Kierkegaard dedica à noção de Indivíduo e na valorização humanística de Rogers com relação à Pessoa, esclarecendo estes aspectos. Uma razão a mais para aproximar estes autores se deve também a influência religiosa sofrida por Rogers em sua juventude. Leitão (1986) sugere que a influência familiar (de forte marca protestante) e a ida de Rogers, por algum tempo, para um Seminário que o tornaria um Pastor, lhe inculcou um certo espírito"missionário" e que sua fé e otimismo no humano (que transparece claramente no conceito de Tendência à Realização 3) em muito lembra algumas premissa básicas do Cristianismo a respeito do humano. Todavia, nada garante que Rogers tenha lido Kierkegaard ainda no Seminário, posto que em nenhum momento ele mencione explicitamente o filósofo danês até quase o final dos anos 50.

Em Kierkegaard,"a questão do Indivíduo é decisiva entre todas" (KIERKEGAARD, 1986b). O Indivíduo é aquele que pode se tornar"único" perante o Absolutamente Outro; alguém que nada tem de especial ou possuidor de algum dom. Simplesmente ele opta, decide querer, existencialmente, ser o Indivíduo. E ele só pode ser por auxílio da graça divina porque é algo do"mais elevado grau", ultrapassando"as forças humanas" (KIERKEGAARD, 1986b). Em suma, o humano em Kierkegaard é uma síntese tensa entre finito e infinito, muito mais definido por sua paixão do que por sua razão, posto que a subjetividade apaixonada seja a única que pode almejar chegar a esta condição ímpar, em sua relação pessoalíssima com o Deus cristão. (PENNA, 2004)

Em Rogers, o conceito de Pessoa coincide, em parte, com o conceito de Tendência à Realização, que é o constructo pilar da ACP. Mas não só isso: a pessoa não é só"tendência a...", mas um ser que busca sua autenticidade e liberdade experienciais, tentando ser o que ela é: alguém que se descobre como experiência em fluxo e não algo fixo; que se abre a esta experiência com um mínimo de defesas; que confia no próprio organismo como critério de seu comportamento, estando atento a um foco interno de avaliação de si e de sua relação com o mundo; e um desejo íntimo de continuar a existir como um devir em vez de ser alguém com uma identidade rígida. (ROGERS, 2009)

Pode-se ver que, apesar do tema da decisão existencial seja algo mais ou menos comum aos dois autores, o Indivíduo e a Pessoa, conceitualmente falando, a primeira vista, são bem diferentes.

Pergunto, pois: existem as correlações tantas vezes propagadas entre Kierkegaard e Rogers? Quais seriam? Sobre o Indivíduo kierkegaardiano e a Pessoa rogeriana existiriam outros pontos temáticos em comum? Todavia, a junção e o diálogo entre filosofia e psicologia quase sempre é um empreendimento temerário. Então, o que autoriza a juntar dois autores de regiões tão díspares? Significa que não pretendo usar aqui de um expediente por vezes usado por alguns psicólogos humanistas que é prover-se de um sistema ou pensamento filosófico e simplesmente"derramá-lo" dentro de uma psicologia. Tal procedimento pode incorrer em confusões acerca de como lidar com o humano, posto o caráter eminentemente clínicointervencionista das psicologias humanistas. Não se aplica filosofia na ciência. As relações entre as duas se dá por implicação: uma discussão que não se finda sobre o que uma pode contribuir em compreensão e destinação do humano. Penso que esta ideia de implicação também é válida para se encarar a problemática aqui abordada entre Kierkegaard e Rogers.

A metodologia por mim utilizada fez-se num confronto temático e interpretativo a partir da leitura dos textos de ambos os autores (e de comentadores, quando necessário) em que o questionamento incidiu sobre a visão de humano de cada um deles. Mostro como a figura de Kierkegaard surge na obra de Rogers e quais os reais efeitos deste encontro para a constituição do percurso rogeriano. Em seguida, os conceitos de Indivíduo e de Pessoa são em confronto aberto no intuito de mostrar as semelhanças e dessemelhanças entre os mesmos. Por fim, Kierkegaard é situado em relação na sua verdadeira importância (ou não) para a ACP. Tudo isso explorado tendo vista os contextos epistemológicos em ambos.

A título de analogia, vale a pena atentar o que Almeida (2005, p.230) aponta a respeito das trocas filosóficas no universo psicanalítico. Discorrendo ele sobre o pensamento kierkegaardiano e sua relação com a psicanálise, o autor diz que Freud certamente não leu Kierkegaard. Afirma também que é uma"tarefa inútil" saber se (e o quanto) um pensador leu outro. Importa mais"tirar proveito das intuições de ambos, uma vez que elas se iluminam e se enriquecem mutuamente". É disto que se trata aqui com Kierkegaard e com Rogers.

 

KIERKEGAARD E ROGERS (2)

Kierkegaard respirou o clima pietista e deísta advindo da austera educação cristã lhe imposta por seu pai, e que o direcionou para a teologia (ainda que tenha abandonado a ideia de abraçar a"profissão" de pastor); além do romantismo literário que impregnou sua estilística de escrita a fim de que pudesse expressar suas inquietações do devir cristão, sobretudo, na forma dos pseudônimos.

Por sua vez, Rogers viu-se desde cedo enredado no ambiente familiar bastante religioso vivido numa fazenda, o qual lhe proporcionou ainda criança, entre outras características, o interesse por experimentos de biologia. Estas foram, então, suas primeiras heranças. A atmosfera pragmática se perpetuou e consolidou na sua vida universitária, percebendo-se que Rogers, como psicólogo e cientista, foi alguém com grande espírito experimentalista, embora não pudesse ser rotulado de dogmático, pois constantemente revia seus posicionamentos e conceitos de acordo com o que descobria em suas pesquisas.

Não é preciso grande esforço para notar que Kierkegaard e Rogers encontravamse (e desenvolveram-se) em solos epistemológicos completamente heterogêneos. Neste momento quero deixar o mais claro possível que entre Kierkegaard e Rogers existem semelhanças temáticas. Contudo, entre eles vigoram grandes distanciamentos conceituais.

 

O CONTATO DE ROGERS COM KIERKEGAARD

Em um texto escrito nos anos 70 (ROGERS; ROSENBERG, 1977) no qual faz um balanço a respeito de sua atividade profissional até aquele momento, Rogers assevera enfaticamente quais foram as fontes de seu modo de trabalhar nos atendimentos e nas suas pesquisas. Argumenta ele que, sobretudo, foram seus"clientes e as pessoas com quem trabalhei em grupos". Elas são a"fonte mais importante". Sem eles, escreve Rogers,"eu não seria nada" (ROGERS; ROSENBERG, 1977, p.40). Isso não significava, todavia, que Rogers desprezava o estudo que auxiliasse na compreensão do modo de ser do humano: quis mostrar somente que a leitura não está acima do contato interhumano. Contudo, no aspecto aqui em relevância a respeito das supostas influências kierkegaardianas no pensamento rogeriano, o próprio Rogers deixa entender que quaisquer obras de qualquer pensador só mereceriam sua atenção desde que fornecesse apoio ao que ele (Rogers) estivesse desenvolvendo em pesquisa (ROGERS; ROSENBERG, 1977). Tal postura, a meu ver, é perigosa: parece querer ouvir apenas o que quer ouvir, confirmando os próprios pensamentos. Assim procedendo, Rogers corria o risco de se fechar para perspectivas diferentes na compreensão do humano. Arriscava-se a ser dogmático.

Na verdade, são pontuais as referências de Rogers a Kierkegaard ao longo de seus escritos. E quase sempre a história que ele relata a respeito do contato com o pensador danês é sempre a mesma. Se não, vejamos.

Em outro texto, também da década de 70, em que expõe como desenvolveu sua filosofia das relações interpessoais, Rogers conta que quando se encontrava na Universidade de Chicago, por sugestão de alguns estudantes de teologia, leu Kierkegaard e Buber. O sentimento de Rogers foi de um "feliz encontro" com estes pensadores. De igual modo, Rogers crê que eles"o precederam" em algumas temáticas e ideias. Todavia, apenas confirmavam os fenômenos que observara rigorosamente na relação terapêutica.

Posteriormente, numa longa entrevista com Evans (1979), mais uma vez, ao ser inquirido a respeito de suas influências epistemológicas anteriores, Rogers reafirma que seus pacientes e participantes de grupos foram os que imprimiram uma marca indelével em seu trabalho e no modo de perceber o humano (EVANS, 1978, p.118) e uma vez mais relata a história do encontro com o pensamento de Kierkegaard e Buber. Na compreensão de Rogers, tais pensadores o anteciparam. Isso o fez julgar que estaria próximo deles e que, diante do fenômeno deste encontro, deu o estranho nome de"serendipidade"5

Lastrada em conclusões de diversos estudiosos da ACP, Belém (1996) assevera que o contato com Kierkegaard e Buber que fez de Rogers um autor e um psicólogo mais próximo do pensamento existencial. O reflexo deste encontro, ainda segundo Belém (1996), está na mudança de perspectiva rogeriana de uma psicoterapia centrada no cliente para uma psicoterapia encarada como um encontro interpessoal existencial, o que denotaria a importância da intersubjetividade na mútua constituição dos humanos, meditada, sobretudo, por Martin Buber.

Tomando por base este encontro com o pensamento de Kierkegaard e Buber, Rogers parece mais afinado com as considerações buberianas, mesmo admitindo que tivesse pouca intimidade com este filósofo (com quem chegou a se encontrar pessoalmente) e com o pensamento existencial em geral,6. Com Kierkegaard, todavia, a distância é maior.

Numa autobiografia publicada postumamente (ROGERS; RUSSEL apud BRANCO; CAVALCANTE JÚNIOR; OLIVEIRA, 2008), Rogers afirma, uma vez mais, que se sentiu"confirmado" por Buber e Kierkegaard, mas"não muito iluminado por eles", isto é, aprendeu algo com eles, mas, antes de tudo, foi apenas uma confirmação do que fazia e pensava. Tal colocação aponta que estes pensadores não poderiam ser considerados como influências anteriores e nem cumpriram um papel de"divisores de águas". No entender de Rogers, qualquer filosofia deveria ser aplicada à realidade prática e que fosse passível de experiência concreta.

Aqui não se trata de uma mera opinião pessoal: é o próprio Rogers que, por suas próprias palavras ditas e escritas, não autorizaria uma forte aproximação epistemológica com a filosofia em geral e com Kierkegaard, em específico. O danês não passaria de uma boa leitura e que, por uma feliz coincidência, fez ressoar ainda mais os questionamentos que Rogers já vinha ruminando a partir dos resultados de suas investigações clínicas.

Postados em pontos de vista tão díspares na compreensão da existência humana, ainda é possível querer aproximar estes dois autores como o fazem vários comentadores da ACP? As considerações a seguir falam por si mesmas.

 

"INDIVÍDUO" E"PESSOA": SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS

Humano centrado/humano descentrado

Uma das primeiras temáticas que aproximam estes pensadores é sobre a presença mais ou menos manifesta de uma visão do humano em termos fortemente individuais em detrimento de uma visão voltada para o aspecto coletivo. Ou seja, ambos possuem uma visão centrada no humano individual. Rogers, é verdade, nunca foi um psicólogo social em sentido pleno. Sem pretensões a universalizar e generalizar seus ditos para âmbitos sociais, Rogers fala apenas da pessoa em terapia. E não é sem razão que a psicologia rogeriana foi, e ainda é, conhecida por ser uma psicologia centrada no individual.

Apesar de Rogers ter se dedicado ao trabalho com grupos nos 20 últimos anos de sua vida; ter dado atenção aos direcionamentos e adaptações da ACP em outros campos das relações humanas como no ambiente de trabalho ou no ambiente escolar; e de suas exposições teóricas falarem de uma"revolução silenciosa" onde humanos abertos à sua experiência, fluidos em seu existir e confiantes em suas avaliações organísmicas como que"contaminariam" outros humanos a serem congruentes com suas próprias experiências, é com justiça que a psicologia proposta por Rogers é, com todas as letras,"centrada na pessoa", ou seja, não possui suporte teórico para uma abrangência explicativa direcionada às dinâmicas sociais. Assim, no cerne da ACP vigora aí um certo individualismo.

Por seu turno, em Kierkegaard algo semelhante pode ser vislumbrado uma vez que"a questão do Indivíduo é decisiva entre todas". O pensador danês empreende uma luta para não ver o humano relegado à condição de"rebanho" ou"multidão". O humano pode e deve tornar-se Indivíduo: decidir-se se vive sua existência de modo singular ou se ele decairá na massa do amontoado de gente. Para Kierkegaard,"a multidão é sempre a mentira".

Contudo, se em Kierkegaard e Rogers vê-se a preocupação de ambos com o humano individual, ambos os pensadores distanciam-se se levarmos em conta que, se há este centramento no conceito de Pessoa em Rogers, esta tese se coaduna perfeitamente com a visão do humano proposta pela psicologia humanista: um humano autoconsciente, centrado e detentor de uma tendência à auto-realizar-se. Sua verdade está na expressão de sua autenticidade advinda do desdobrar-se desta tendência. Em contrapartida, em Kierkegaard o humano é descentrado. O indivíduo kierkegaardiano encontra-se perpetuamente numa dialética sem mediações ou sínteses. Em meio a desassossego que vige em seu íntimo, o indivíduo deve lançar-se, amparado pela fé apaixonada, nos braço de Deus, se realmente decidir tornar-se o Indivíduo. Pode tornar-se"único" perante Deus porque assim decidiu. Em Kierkegaard, o descentramento do indivíduo não poderia apoiar a tese de uma potencialidade interna que conteria a natureza da verdade individual, posto que esta advém da Graça Divina, e que só na relação deste indivíduo com este Absolutamente Outro está sua verdade.

Humano racional/humano justo e pecador

Fazendo coro com esta perspectiva"centrada" e, em especial, com a concepção positiva e otimista do humano preconizado pela psicologia humanista, advém a imagem bem conhecida que Rogers faz deste mesmo humano como intrinsecamente racional.

Não aceitando o humano apregoado pela psicanálise freudiana como um ser pulsional, destrutivo, cindido e incestuoso (assim ele compreendia as teses freudianas), a psicologia de Rogers sublinha com muita força a unidade positiva do humano que auxilia na constituição da natureza pró-social do ser humano. Isto é, o comportamento social construtivo é uma direção básica. Estes aspectos pró-sociais advindos da Tendência à Realização são: capacidade para identificação que leva a sentimentos de simpatia por outras pessoas; capacidade para empatia; tendência para afiliação; vinculação; comunicação; cooperação e colaboração social; capacidade para formação de regras morais e éticas e o esforço para viver de acordo com tais regras (ROGERS, 1986). Esta"natureza construtora" do humano visa promover a integridade e a atualização dos seus potenciais. Depreende-se que o substrato da mudança pessoal e de racionalidade é de origem bios, e não no caráter de abertura do humano.

Já em Kierkegaard vemos algo bem diferente. Ligado diretamente a uma tradição cristã que remonta até Lutero, o danês vê o humano a encarnar a mais difícil e tensa contradição: ele é, simultaneamente, justo e pecador. Bem entendido: como o humano se encontra perpetuamente na atmosfera do pecado, não está em suas mãos escolher, de forma autônoma, justificar-se perante Deus, senão em optar, no ritmo devídico do existir, pela fé.

Além de descentrado, o humano não dispõe de uma"tendência a realizar" ou"atualizar". Sua essência é cisão; seu sentido é uma escolha que procura continuamente para além de si mesmo e, ao mesmo tempo, quer justificar-se em Deus. O humano é, assim, uma síntese de escolhas e de pecado. A justificação que o Indivíduo dá a si mesmo não é baseada num"logos grego" (um pensar racional; analítico), mas num"logos cristão", amalgama de razão e encarnação de uma escolha de fé perante o Absolutamente Outro. No Cristianismo em geral (e para Kierkegaard não será diferente), qualquer pretensa autonomia do humano leva também o nome de"pecado", pois negaria qualquer necessidade de uma relação com Deus. Esta busca relacional jamais cessaria, posto que, em sentido pleno, seria o próprio devir cristão. (FARAGO, 2006)

Tais assertivas a respeito do Indivíduo kierkegaardiano não poderiam estar mais longe das teses rogerianas acerca da Pessoa. O humano em Kierkegaard é saudoso de algo que perdeu. Ou que nunca teve. Ou talvez nem venha a ter. O humano em Rogers não exibe tais fissuras ontológicas carentes de um sentido.

Liberdade na autonomia/liberdade na fé: existência autêntica

Outro ponto de contato entre Rogers e Kierkegaard é questão da liberdade e decisão apaixonadas. Tanto em um como em outro, é possível perceber uma busca de condições de possibilidade e valorização da decisão e da liberdade que o humano pode fazer por si mesmo. Porém, o modo como Kierkegaard e Rogers compreendem este processo de tornar-se livre são bem diferentes.

Em Rogers, a autonomia existencial do humano encontra-se quando toma suas decisões organismicamente tendo um foco de avaliação interna, assumindo a total responsabilidade e as consequências das escolhas em congruência consigo e em devir. Na filosofia kierkegaardiana, o humano pode se ver na condição de escolher sair da imobilidade do espírito para o devir cristão, isto é, sair do meio da multidão para ser Um. Como Abraão, o Indivíduo está inapelavelmente só e lança-se no salto da fé e na possibilidade de poder, experienciando a simpatia antipática da angústia, onde também convivem fé e decisão. Este aspecto da decisão e da liberdade inevitavelmente leva a uma outra questão: a da existência autêntica.

Nas ponderações de Kierkegaard e de Rogers encontram-se algumas reflexões a respeito do quão é relevante e sobre o que significa existir autenticamente.

Na psicologia de Rogers, a pessoa plena, estando sempre aberta à sua experiência, não vive mais as ameaças do desacordo interno, apreciando todas as experiências que lhe sobrevém numa fluidez prazerosa e com um sentimento de completude que nunca havia experienciado. A sua autenticidade está, digamos, num tornar-se mais e mais organísmico. Na contramão vem Kierkegaard, ao apontar para a autenticidade na existência que o Indivíduo deve levar diante de Deus, afirma que aquele deve escolher assumir-se existencialmente e constituir sua singularidade. A categoria do Indivíduo mostra-se num autêntico devir cristão, ainda que imerso na multidão crescente da cristandade. Entretanto, não é uma existência tranquilamente romântica: em um verdadeiro Cristianismo, o ser autêntico é viver uma fé obediente e submissa à grandiosidade inefável de Deus, fruto de uma relação individual, assimétrica e intransferível com a divindade. O indivíduo escolhe estar só consigo mesmo, mas nas proximidades de Deus. Nada há aqui de"organísmico".

Angústia como"defesa" /angústia como fundo ontológico

Outro ponto de aproximação entre Rogers e Kierkegaard é a questão da angústia. Embora Rogers tenha dedicado considerações breves à mesma, a angústia na psicologia centrada na pessoa pouco tem a ver com as profundas descrições existenciais empreendidas por Kierkegaard. As diferenças aqui são gritantes.

Ao explicitar a qualidade da"atmosfera" que se deve propiciar em uma relação terapêutica, Kinget (ROGERS; KINGET, 1977, p.88) afirma que"a angústia não é uma emoção específica, mas um estado generalizado que penetra todo o organismo nos seus aspectos tanto fisiológicos [...] quanto experienciais". Porém, para que o paciente possa sentirse seguro para expor a si mesmo na psicoterapia, deve-se reduzir a angústia que o acomete. Com o correr do tempo e imerso no clima de uma consideração positiva incondicional proporcionada pelo terapeuta, mostrando que ele (o paciente) é livre para expressar-se, este pode, gradativamente, deixar cair seus mecanismos de defesa para explorar suas possibilidades existenciais em psicoterapia. Logo, a redução da angústia torna-se"condição indispensável do processo terapêutico" (ROGERS; KINGET, 1977, p.132). Por outros termos, para que o humano cresça, angústia tem de diminuir.

Ainda nesta mesma obra, Rogers (ROGERS; KINGET, 1977, p.170), conceitua formalmente a angústia como um mal-estar difuso vivenciado pelo paciente e que encontra sua origem no conflito entre a experiência organísmica e uma rígida imagem do"Eu". Quanto maior for o perigo de uma tomada de consciência deste desacordo que vigora em seu ser, tanto mais forte será a angústia experienciada pelo paciente. Ela pode tornar o humano tão vulnerável que, enquanto ela persistir, ele usará de quaisquer mecanismos de defesa para evitar o confronto direto com seu desacordo interno. No transcorrer do processo terapêutico, o paciente, resguardado pelo ambiente seguro da relação psicoterápica, vai se confrontando com seus desacordos e, na medida em que a Gestalt do"Eu" for sendo reconfigurada numa convergência com a experiência organísmica, a angústia tenderá a diminuir.

Vista deste modo, a angústia e seu conceito no pensamento rogeriano, mostra-se, antes de tudo, como um fenômeno clínico em que o terapeuta pode vislumbrar o quão o seu paciente está mais próximo ou não das questões que o aperreiam no desacordo interno que vigora. A angústia deve ser superada; mitigada. Rogers não aponta para nenhuma suposta condição ontológica ou apela para algum filósofo ou filosofia existencial como suporte para suas teses acerca da angústia.

Nada mais distante do que Kierkegaard pensa sobre a angústia.

Publicado em 1844, a obra O Conceito de Angústia é uma tentativa de Kierkegaard de mostrar o conceito cristão do Pecado Original sob outro ângulo. A fim de compreender a angústia é preciso que se compreenda primeiramente a condição de pecador que o humano é. Sendo todos nós"pecadores", significa dizer que nossa existência encontrase em um estado onde não há certeza nenhuma de que somos seres"completos". Kierkegaard assevera que o pecado é um acontecimento. E quais são as condições de possibilidade deste acontecimento? Apenas uma: a atmosfera da possibilidade de pecar que continuamente vigora no íntimo da subjetividade. Logo, encontramos aqui um caráter ontológico nas feições da angústia descrita pelo danês.

Recorrendo à história bíblica do jardim do Éden, Kierkegaard diz-nos que antes da queda, Adão e Eva encontravam-se numa condição estranha a nós: eles eram ignorantes e inocentes. Como tudo estava à mão e chegavam a"ouvir os passos de Deus", eles estavam mais aparentados a semideuses do que com humanos. Porém, Kierkegaard quer fazer ver que, quando eles foram confrontados com o interdito divino de que podiam fazer o que bem entendessem... com exceção de não comer do fruto da Árvore do Bem e do Mal, uma nova"atmosfera" começou a vigorar. Como Deus não colocou anjos, cercas, muro ou cães de guarda para afasta-los da Árvore, estando ela, literalmente, ao alcance das mãos, surge a possibilidade de se realizar uma escolha. Algo inédito para Adão e Eva que se viram em uma nova situação, neste clima totalmente diferente do que já haviam experienciado: a angústia. O resto da história é bem conhecido: eles transgridem a ordem de Deus, trazendo com eles o modo de ser humano e a experiência da angústia, apanágio dos possíveis e das escolhas.

Como humanos, Kierkegaard nos diz, somos incompletos e finitos. Mas como criaturas de Deus, guardamos uma"centelha divina" que nos possibilitaria realizar uma síntese que nos"completasse". Mas como poderemos nos tornar completos quando sabemos, por experiência, que não somos e jamais seremos tal coisa? Certamente não é a"completude" entendida como fim de todas as carências existenciais e com plenitudes perpétuas. Esta seria uma conclusão ilusória. Se voltarmos nossa atenção a Deus, como quer Kierkegaard, podemos chegar, ao mesmo tempo, a sermos"inteiros e finitos". Mas como isto parece uma enorme contradição, Kierkegaard diz que nosso espírito estará permanentemente em uma constante tensão. Segundo ele, esta é a"mancha tensa" que o Pecado Original nos legou: somos seres condenados à tensão do viver; somos"espíritos": algo que reúne o finito e o infinito; o temporal e o eterno, mas sem que haja síntese possível que os apazigúe. É desta"mancha" que advém a consciência da própria culpa, o consequente sofrimento e, é claro, a angústia. Mas, observe-se o seguinte: o humano, por ser"pecaminoso", pôde perceber que agora lhe é dado a possibilidade de escolher, mesmo sabendo que sempre será intranquilo fazer escolhas. Escolher é sempre dar um"passo no escuro", um"salto", uma possibilidade optada. Justificase o dito kierkegaardiano da angústia como uma antipatia simpática e uma simpatia antipática.

Vê-se, para estes dois pensadores, como a angústia possui contornos tão diferenciados! Em Rogers, um conceito clínico de um fenômeno igualmente clínico o qual indica o desacordo psicológico do paciente em terapia. Em Kierkegaard, um conceito que reflete uma condição ontológica da liberdade e da possibilidade existencial. Por comparação, não se pode trazer (ou mesmo aproximar) a angústia kierkegaardiana sem mais nem menos para dentro dos fenômenos humanos"angustiantes" correntes na clínica psicoterápica. A meu ver, esta é uma tendência perigosa de aplicação que mencionei mais atrás. Se conflitarem os pontos de vista (filosofia e psicologia), conflitarão também o modo como compreenderemos o humano que ali se encontra a nossa frente. Todavia, a reflexão por implicação acerca da angústia em Kierkegaard na psicologia de Rogers é algo que ainda está para ser feito.

Humano concreto/humano abstrato

Provavelmente o ponto mais incisivo de semelhança entre Kierkegaard e Rogers é que, apesar das visões divergentes acerca do humano como centrado (Rogers) ou descentrado (Kierkegaard), ambos tem em mira este mesmo humano entendido como um ser concreto, isto é, nem um dos pensadores possui uma concepção abstrata em suas respectivas antropologias.

Em princípio, esta observação pode ser questionada apontando-se que o conceito que Kierkegaard tem do humano é aquele advindo do Cristianismo: pecador e culpado. Seria um modo de entender a existência que beiraria a metafísica ou a teologia. Do mesmo modo, é fácil apontar que, em Rogers, sua visão do humano é herdeira direta das concepções da psicologia humanista: um humano dependente de uma"força" para conseguir se autogerir e crescer. Tudo isso é completamente verdadeiro.

Conquanto a Kierkegaard, o tratamento a que ele submete o humano pecador e culpado em suas descrições da subjetividade o afasta de qualquer pretensa"teologia dogmática", a qual se inclinaria inevitavelmente a construções metafísicas e que ele não tinha a menor afeição. De acordo com o danês, o humano possui sua"essência" nas mãos de Deus que o criou. Todavia, uma vez que foi"jogado" neste mundo, criatura que é, o humano passa à condição de existência em contínuo devir, tornando-se Indivíduo. E, como nos assevera o pensamento kierkegaardiano, a existência é dom de Deus. Esclarece-nos Almeida e Valls (2007, p. 50):

Existir é por a diferença entre ser e essência na concretização do indivíduo singular, sempre em devir, e se realiza como este indivíduo singular (den Enkelte), que constrói sua individualidade, opondo-se ao formalismo que nega e reduz o existir a uma padronização da ordem estabelecida ou a uma generalidade. Cada indivíduo singular é mais importante do que o gênero humano em sua abstração. (Os negritos são meus)

Também pouco afeiçoado a construções filosóficas abstratas, Rogers compõe suas ideias acerca do humano com o relevo próprio das observações clínicas por ele empreendidas, adquirindo feições particulares dentro da ACP e marcando as diferenças entre ele e outros psicólogos humanistas, ainda que o conceito de Tendência à Realização resvale em contornos confessadamente metafísicos.

A"Pessoa" a que se refere Rogers todo tempo é aquela que, sofrendo os amargores mais próprios do existir e que a tolhem, vem em busca de compreensão acerca de si mesma. A psicoterapia centrada na pessoa trabalha dentro dos âmbitos da consciência; porém, não se esquece da totalidade existencial que se posta à minha frente (se eu estiver na condição de psicoterapeuta) na forma do humano. Rogers, como pesquisador e terapeuta, deve ter vivido momentos de grande dilema ao se ver confrontado com fenômenos que escapavam às escalas de medições tradicionais na psicologia. Entretanto, nunca se deixou seduzir pelas respostas simples de generalizações filosóficas ou científicas que"explicassem tudo".

A verdade do"Indivíduo" está na relação com o Absolutamente Outro. Na"Pessoa" autêntica da psicologia centrada na pessoa, sua verdade dormita em si mesma. Um humano não desabrocha suas verdades: ela pari a si mesmo com o fórceps de suas decisões. Nisto, Kierkegaard e Rogers talvez concordassem.

 

KIERKEGAARD E A ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA

Após terem sido elencadas as semelhanças e dessemelhanças entre Kierkegaard e Rogers em suas respectivas antropologias, afastando-se mais do que aproximando-se, pergunta-se: por que a insistência (para não dizer teimosia) em colocar Kierkegaard na posição de uma das influências epistemológicas na constituição da ACP?

De tudo o que foi exposto, sustento que não há razões suficientes para tanto. O fato de que existam algumas referências de Rogers a algumas obras do danês e a simpatia expressa por aquele a este pensador, não servem de apoio para que se alinhe Kierkegaard no rol daqueles que imprimiram uma marca relevante no percurso rogeriano. Apoiados somente nas palavras de Rogers, os argumentos de alguns comentadores são simplórios, superficiais; frutos de leitura apressada, além de pouco preocupada em fundamentar epistemologicamente uma compreensão pouco clara das teses dos dois pensadores sobre suas visões do humano.

Em sua cosmovisão, Kierkegaard nos apresenta um Indivíduo que busca tornar-se mais próximo de Deus em um devir tenso e nada gratuito: ele deve doar-se ao enigma deste Absolutamente Outro sabendo que se seu sentido de existir efetivamente depende deste Outro. A perene possibilidade de dissolução do ser finito/infinito do Indivíduo encontra-se perigosamente próxima, como se estivesse andando a beira de um abismo sem saber ao certo se cairá ou voará aos braços divinos. A angústia é dilacerante, e mesmo a mais profunda experiência cristã autêntica não garante ao Indivíduo uma felicidade cega e perpétua, mas uma tristeza em saber que, enquanto caminha neste vale de lágrimas, não se encontrará ao lado de Deus. Não há como pensar que existiria no Indivíduo uma brecha que deixe entrever uma"essência" que se"atualizaria", tal como encontramos nas teses básicas da psicologia humanista. Só há o estar-no-mundo existente enquanto abertura e o enigma. A suposta"essência" do Indivíduo, a Deus pertence.

Rogers, a seu modo, também foi um pensador. Com certeza não um pensador religioso, mas um pensador da Pessoa que busca pela sua verdade pessoal. Contudo, quando Rogers diz que"já tinha percorrido parte do caminho" (EVANS, 1979, p.50) que Kierkegaard e Buber já tinham andado e, sobretudo, em uma área que ele possuía pouca intimidade como a filosofia existencial, fica-se a pensar em quanta coisa ele fechou os olhos por este tipo de atitude. E como ele mesmo assegura, o estudo de Kierkegaard e Buber não lhe proporcionou nenhum"insight" em sua vida profissional, mas apenas uma confirmação e não uma mudança de compreensão nova acerca do humano (EVANS, 1979).

Se houvesse verdadeiramente a tão propalada influência de Kierkegaard em Rogers, este teria de assimilar (e assumir) a dimensão da abertura existencial: o humano como existente e em perpétua dissolução de si, dispensando qualquer referência a um"potencial inato" de crescimento. Poderia até corroborar a ideia do"Eu" que se constrói enquanto Gestalt mutável a partir de suas experiências. Contudo, não poderia atribuir tal construção do"Eu" à Tendência à Realização para justificar tal trajetória.

E quanto à"Pessoa Plena" (a meu ver, nunca questionada e/ou revisitada) descrita por Rogers e tão incansavelmente repetida por seus continuadores? Ainda permanece imersa no discurso vitalista, postulando a existência de uma"força ou impulso vital" que não encontra sua explicação nem em processos bioquímicos e nem pelas ciências naturais. Simplesmente toma-se a vida como uma forma de energia auto-evidente não passível de ser explicada. Como Rogers nunca abriu mão do conceito de Tendência à Realização (nem o reviu), fica difícil pensar que ele pudesse assimilar aspectos da categoria de Indivíduo proposta por Kierkegaard, ou mesmo qualquer categoria existencial que pudesse confrontar/questionar aquele seus pressupostos mais básicos.

A pouca afeição de Rogers à reflexão filosófica que dialogaria com outros filósofos, surge, inclusive, em outro momento. Quando ele comenta, em um trecho de sua autobiografia, a respeito de como ele percebia a atividade de Abraham Maslow e Rollo May, dizendo que o primeiro é"um bom filósofo" e o segundo, um"bom acadêmico", completando seu raciocínio asseverando que"nunca senti que nenhum deles fosse muito bom em aplicar a sua filosofia na prática" (ROGERS; RUSSEL apud BRANCO; CAVALCANTE JÚNIOR; OLIVEIRA, 2008), este último comentário torna-se uma acusação apressada e superficial.

Primeiramente, aqueles psicólogos (inclusive Rogers) preocupavam-se com a existência concreta do humano, sempre tecendo construções teórico-práticas que os auxiliaram na compreensão do existir. Com certeza, Rollo May, de longe, foi o mais bem fundamentado em fenomenologia e filosofia existencial para que corresse o risco de perder de vista a dimensão subjetiva do humano no mundo, bem como seu modo de perceber o dilema humano, ao mesmo tempo, como sujeito e objeto (MAY, 1977). Certamente, algumas de suas obras dedicam-se mais a reflexões filosóficas do que descrições extensas do processo psicoterápico ou de pesquisas. Entretanto, mesmo aí as elucubrações de May não se distanciam da vida humana, tomando-a sempre por base. Ao contrário do que acreditava Rogers, tanto May como Maslow não"adoravam abstrações" (ROGERS; RUSSEL apud BRANCO; CAVALCANTE JÚNIOR; OLIVEIRA, 2008). Rogers, no momento em que fez tais assertivas, estava completamente alheio acerca das ideias e da trajetória de seus colegas.

Abstração por abstração, Rogers se dedicava a fazê-las sem pestanejar, sobretudo na extensa descrição de sua teoria da personalidade que sustenta a prática terapêutica (ROGERS; KINGET, 1977). Sua raiz experimetalista e pragmática não poderia ser invocada como critério demarcador e diferenciador. E essa herança não o eximiu de fazer abstrações ou distanciar-se de Maslow e May. E como ele disse que foi apenas"confirmado" por aquelas filosofias existenciais, não tinha porque sentir-se"iluminado" por elas (ROGERS; RUSSEL apud BRANCO; CAVALCANTE JÚNIOR; OLIVEIRA, 2008).

Colocando deste modo, estaria eu querendo atestar uma certa"pobreza" do pensamento rogeriano em seus fundamentos filosóficos? Penso que não. Como Rogers não se deixou influenciar em demasia pelas reflexões kierkegaardianas (bem como de outros aportes filosóficos), é justo afirmar que ele possuía grande independência de pensamento, pelo menos no que se referia à filosofia. Se assim era, tanto melhor para ele e para ACP.

Numa leitura fria e objetiva das obras de Rogers, uma pergunta pode surgir: afinal, a ACP precisa de Kierkegaard? Se nos atermos à produção rogeriana, a resposta será negativa. O máximo que a leitura de Kierkegaard proporcionou a Rogers foram alguns elementos para uma meditação de ordem pessoal acerca do seu dilema em como conseguir balancear a prática de uma ciência objetiva de inspiração positivista da qual era herdeiro, com o modo de ser que atentasse, também, para a dimensão subjetiva e existencial na pesquisa do humano. Tal inquietação Rogers a expressou bem no seu conhecido artigo"Pessoa ou ciência? Um problema filosófico" (ROGERS, 2009).

Por seu turno, a prática clínica não depende das categorias kierkegaardianas na sua implementação. Ou seja, não existe uma"psicoterapia centrada na pessoa de inspiração kierkegaardiana". É de conhecimento geral que Rogers, nos anos 60, reconhecia que o processo terapêutico pode proporcionar ao humano uma existência mais fluida e autêntica; onde ele confie em seu organismo, tendo um foco de avaliação interno e desejoso"de ser um processo". Uma psicoterapia mais"existencial", como Rogers chega a propor. Porém, estas observações advêm dos fenômenos clínicos frutos do trabalho direto do terapeuta em conseguir proporcionar um clima adequado para o humano poder"tornar-se". Dito de modo mais claro: tudo está na"potencialidade inata" do humano em poder vir-a-ser uma"pessoa autêntica". Rogers também fala de abertura para a novidade da existência. Mas nada disso veio da leitura de Kierkegaard que fala do inacabamento de uma subjetividade que experiencia o paradoxo absoluto do devir cristão. As fontes de Rogers estão pesadamente ancoradas, em sua maior parte, na prática clínica e não na filosofia existencial de quem quer que seja.

 

PALAVRAS FINAIS

Nunca conheci (nem ouvi falar) de um psicólogo acepista que dissesse praticar a psicoterapia centrada na pessoa com melhor desempenho porque tinha estudado com profundidade a filosofia de Kierkegaard. Isso mostra, primeiramente, que não houve mudanças epistemológicas, nem na visão do humano (e muito menos na clínica) pelo pouco estudo que Rogers empreendeu de Kierkegaard. Qualquer lacuna teórica que a ACP contenha, deve ser suprida usando-se dos conceitos da própria teoria e apoiando-se nos dados da pesquisa empírica. Um segundo modo, é fazer a ACP dialogar com algum ramo filosófico que tenha alguma afinidade (ou não) com as propostas da psicologia rogeriana. E este diálogo (é bom lembrar: deve ser de implicação e não de aplicação) deve conduzir a caminhos que inspirem criações conceituais inéditas, ainda que possam ser tímidas em seus inícios. Certamente Kierkegaard é um grande guia para compreensões mais profundas acerca das dimensões humanas. Mas não é o único. As filosofias da existência de Karl Jaspers ou de Gabriel Marcel podem ser promissoras em possíveis diálogos.

Entretanto, Kierkegaard pode dar a nós, psicólogos acepistas, excelentes imagens das posturas e imposturas humanas com seus"tipos psicológicos" nos diversos pseudônimos que figuram em suas obras. As categorias kierkegaardianas podem servir como chaves de leitura para uma gama variada de reflexões sobre nós, humanos, demasiadamente humanos. De todo modo, a apropriação indevida, irrefletida e selvagem de uma filosofia deve ser evitada a todo custo.

Rogers mostrava-se ele mesmo na relação terapêutica que ele pretendia que fosse a mais autêntica, humana e próxima possível. Poderia ele pensar em fazer-se um"ator" perante o outro, como o fez Kierkegaard, e interagir com o paciente por meio de uma modalidade de"comunicação indireta"? Não é preciso ir longe para saber que Rogers não se deixaria influenciar por uma perspectiva tão pesadamente angustiante e de um Cristianismo que ele já havia abandonado fazia tempo.

Por fim quero trazer aqui Rollo May (1977) que, dissertando a respeito em como lidar com o dilema humano na psicologia, faz referência a uma aula proferida por Rogers em 1963 e que pode ser esboçada na seguinte pergunta: para onde a ACP e seu conceito de humano nos levam?

Sobre o que ele chama de paradoxo da experiência humana, diz-nos Rogers de que ele está

certo de que uma parte da existência moderna consiste em enfrentar o paradoxo de que, encarado por uma certa perspectiva, o homem é uma máquina complexa... Por outro lado, numa outra dimensão de sua existência, o homem é subjetivamente livre; a sua escolha e responsabilidade pessoal explica sua própria vida; ele é, de fato, o arquiteto de si mesmo... Se, em resposta a isto, o leitor diz: 'Mas esses pontos de vista não podem ser ambos verdadeiros', a minha proposta é esta: 'Aí está um profundo paradoxo com o qual temos de aprender a viver' (apud MAY, 1977).

Inspirado por este dito (que me parece muito mais de um existencialista do que um psicólogo vitalista), devo acrescentar que tudo o que foi mostrado neste artigo é que Kierkegaard, em seus profundos questionamentos do que deveria ser uma existência autêntica subjetiva, amalgamando a tragicidade com uma argumentação ensaística e cômica, deixa claro a ideia de que existir vem em primeiro lugar: minha a"essência" não me pertence. Sou meu próprio percurso como humano pecador e culpado.

Com Rogers podemos perguntar uma vez mais: Para onde nos leva o conceito do humano na ACP? Para a simples experiência de que a verdade que o humano quer encontrar em psicoterapia pode ser algo, lá na frente, que o cinda; que o fragmente. O que ele pode fazer numa tal situação em que seus pedaços dispersos, paradoxalmente, o angustiam? Ele se volta para si mesmo e busca, como humano singular, outros sentidos dialogais que esclareçam a própria existência, tentando libertar-se de um"Eu" estranho a qualquer biologicismo e simplesmente tornar-se abertura e risco. Não há essência a atualizar. Só uma subjetividade em trânsito e existindo.

A subjetividade é valorizada tanto por Rogers como por Kierkegaard. Nestes termos e com esta ênfase, os dois podem ser considerados como"pensadores existenciais", posto que a subjetividade seja o que é mais característico do existir

A meu ver, Rogers foi muito lúcido em não deixar que a influência de qualquer filosofia lhe nublasse a visão dos fatos observados e os sentidos que o conduziam. Com toda a certeza, um modo de proceder semelhante à atitude fenomenológica husserliana. E não perdeu de vista também a capacidade do humano em dar direções a si mesmo em sua existência concretamente vivida. Rogers fez isso vendo e escutando o humano de carne, osso e abertura. Não precisou de filosofia alguma para perceber esse"rio heraclítico". Não estou defendendo que o estudo filosófico seja algo dispensável: a filosofia abre perspectivas outras que, às vezes, a ciência psicológica não permite. As filosofias existenciais e a fenomenologia são grandes parceiros de diálogo com as psicologias de base existencial-humanista (que o diga Rollo May). Mas que fique claro o seguinte: Rogers pode até mesmo ter dispensado um aprofundamento filosófico em sua trajetória de psicólogo e pensador da Pessoa. Mas ele o fez ciente da extrema liberdade de pensamento que possuía e que supria esta carência filosófica. Todavia, nem mesmo nós, psicólogos acepistas (sobretudo se não formos espíritos livres como Rogers), podemos dispensar a filosofia para perceber o humano à nossa frente. Mas ela é uma lente a mais e não o nosso olhar mesmo.

Como uma"psicologia kierkegaardiana" me parece algo estranho e fora de propósito – embora nada impeça que existam tentativas a este respeito como, por exemplo, um estudo empreendido por Feijoo (2007) – e a objetividade da pesquisa psicológica é uma presença da qual nenhum psicólogo pode escapar, posto que a psicologia ainda seja uma ciência empírica, cumpre realizarmos uma outra ordem de Husserl: voltemos às coisas mesmas. Neste caso, voltemos a Rogers, que possui suas riquezas e méritos próprios, independentes de qualquer filósofo. Mas voltemos também os olhos para o existir e ver que o humano pode vir a ser subjetivamente livre, mesmo num mundo da técnica e da objetividade os quais também o constituem. Portanto,"aí está um profundo paradoxo com o qual temos de aprender a viver".

 

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1. Este artigo é o resumo da minha pesquisa de cunho epistemológico que foi levada a termo no Programa de Pós- Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará, defendida em 06 agosto de 2010 e que teve por título "Sobre os conceitos de Indivíduo em Sören Kierkegaard e de Pessoa em Carl Rogers: semelhanças e diferenças", sob a primorosa orientação do Prof. Dr. Ricardo Lincoln Laranjeira Barrocas, a quem dedico este trabalho.
2Psicólogo; Mestre em Filosofia e Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Atualmente é Professor Assistente do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (Campus de Sobral) e Coordenador do grupo VEREDAS – Círculo de Estudos em Fenomenologia, Existencialismo e Psicologia Humanista.
3 Neste artigo uso abundantemente o termo humano e não 'homem', 'sujeito', 'pessoa' ou 'indivíduo'. Com 'humano', falo de nós mesmos: este húmus que não encontrou e talvez nunca encontre uma tradução total de si mesmo no mundo, próprio ao devir que somos. Decidi assim para evitar extensos esclarecimentos conceituais daqueles termos. Exceção será feita quando se tratar do conceito de Indivíduo em Kierkegaard e do conceito de Pessoa em Rogers, uma vez que são estes os termos que os autores utilizam e dão uma significação muito precisa. Fora estes casos, o termo utilizado será"humano".
4 Acatando a oportuna sugestão da professora Ilana Amaral, neste artigo, usarei a expressão "Absolutamente Outro" como sinônimo do que Kierkegaard chamou de "Deus".
5 É comum encontrarmos nas traduções brasileiras dos textos de Rogers e dos seus comentadores o termo "Tendência Atualizante". O termo, por mim utilizado, "Tendência à Realização" merece, pois, um esclarecimento. Numa troca de e-mails com meu colega, Paulo Coelho Castelo Branco, psicólogo estudioso da ACP e professor do Curso de Psicologia da Faculdade Leão Sampaio (Juazeiro do Norte/CE), sobre a melhor tradução para a língua portuguesa do termo "actualization tendency", ele me reportou que tanto Rogers como
Maslow e May usavam termos semelhantes ao conceito de "auto-realização". E que este foi pensado pela primeira vez por C.G. Jung no livro "O Eu e o Inconsciente", significando um modo de realização de si mesmo. Todavia, na psicologia junguiana o termo corrente é Individuação. Esta tese se justifica. Segundo Whitmont, "[...] o potencial não realizado de um indivíduo, suas necessidades de crescimento não desenvolvidas, podem tornar-se seu destino. Aparentemente, a vida exige não apenas a adaptação à realidade exterior, mas igualmente a adaptação à realidade interior, para aquilo que o indivíduo está "destinado a ser’ [...]. Parece existir no indivíduo um impulso irresistível para adaptar-se àquilo que ele está destinado a ser – a sua vida interior – que pode ter muito pouco ou nada a ver com suas ideias e propósitos conscientes. Jung chamou a isso de anseio de individuação" (1990, p.45). Assim, a individuação aponta para a trajetória inconclusa do humano que não vislumbra um término e está sempre a caminho enquanto o humano viver. Castelo Branco também diz que Kurt
Goldstein, Erich Fromm, Karen Horney e Otto Rank foram influenciados por este conceito, utilizando-o amplamente em suas obras. Como estes psicólogos migraram para os EUA, suas ideias encontraram solo fértil entre os psicólogos humanistas (sobretudo a psicologia organísmica de Goldstein), os quais deram impulso a toda uma geração de "Psicologias da Realização". No caso específico de Rogers, a noção de "actualization tendency" pode ser traduzida, sem problemas, por Tendência à Realização e que seria tão-somente uma tendência presente em todo organismo para auto-realizar todas as suas potencialidades de crescimento.
6 Bem diferente de seu colega psicólogo, Rollo May, muito mais bem fundamentado epistemologicamente na filosofia e psicologia fenomenológica e existencial européias. A este respeito, ver Barrocas (s/d) que faz um interessante apanhado sobre a fundamentação filosófica deste eminente psicólogo e o próprio livro Existence, organizado por May, Angel e Ellenberg e publicado nos EUA em 1959.

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