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Psicologia Ensino & Formação

versão impressa ISSN 2177-2061

Psicol. Ensino & Form. vol.4 no.1 Brasília  2013

 

RELATOS DE EXPERIÊNCIA

Formação em saúde e protagonismo estudantil: Grupo de Estudos e Trabalhos em Saúde Coletiva

 

Health education and student action: the Study Group and Work Group in Collective Health

 

 

Teresinha Eduardes KlafkeI; Bruna Rocha de AraújoII; Carine Guterres CardosoIII

IUniversidade de Santa Cruz do Sul/RS . Mestre em Psicologia Clínica (PUC-Campinas). tklafke@unisc.br
IIUniversidade de Santa Cruz do Sul/RS. Graduanda em Psicologia (UNISC). brunara.tk@gmail.com
IIIUniversidade de Santa Cruz do Sul/RS. Graduanda em Psicologia (UNISC). carineguterrescardoso@hotmail.com

 

 


RESUMO

Este trabalho discute a formação em saúde tendo como foco o protagonismo estudantil no processo formativo. Descreve a experiência do Grupo de Estudos e Trabalhos em Saúde Coletiva (GETESC) da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), abordando seu modo de funcionamento, bem como os pressupostos teóricos que amparam as práticas e as estratégias de ação: projetos de formação na universidade, representação dos estudantes nas instâncias de controle social e participação/construção do movimento estudantil. O trabalho desenvolvido pelos estudantes tem o reconhecimento institucional como potente movimento de mudança na formação em saúde.

Palavras-chave: Educação Permanente em Saúde; Saúde coletiva; Protagonismo estudantil; Formação em saúde.


ABSTRACT

This paper discusses health education and focuses on students' protagonist role in the education process. It describes the experience of the Study Group and Work Group in Collective Health at the Santa Cruz do Sul University (Universidade Santa Cruz do Sul), by examining the way it functions, as well as the theoretical assumptions that support the practices and strategies of action: education projects in the university, student representation at watchdog control levels, and the participation and construction of the student movement. The work developed by the students has been acknowledged by the institution as a powerful movement for a change in health education.

Keywords: Continuing education in health, Collective health, Student action, Health education.


 

 

INTRODUÇÃO

O processo de construção e de implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) nasceu, principalmente, a partir do Movimento da Reforma Sanitária como um amplo projeto de saúde coletiva, e consolidou-se na VIII Conferência Nacional de Saúde que, em 1986, delineou os princípios que são as bases do SUS, propostos pela Constituição de 1988.

Desde a criação do SUS, muito se tem avançado, mas ainda se fazem necessários diversos movimentos pela implantação do sistema de saúde brasileiro, pois há muitos pontos em torno da consolidação do SUS que não foram atingidos ou nos quais o movimento é incipiente, o que desafia diariamente os atores desse processo. A formação em saúde é uma área na qual tem havido modificações importantes nestes últimos anos no que se refere à formação para o Sistema Único de Saúde, conforme está preconizado na Lei Orgânica. A criação da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde, em 2004, foi um marco decisivo nesse sentido, e, a partir dela, os Ministérios da Saúde e da Educação têm articulado um conjunto de estratégias junto às instituições de ensino superior, visando à implantação de mudanças necessárias para uma formação que possa dar conta das necessidades de saúde da população.

No entanto, sabemos que essas mudanças ocorrem de forma lenta, com base no modo como estão organizadas as instituições de ensino, a rede de assistência em saúde, a gestão do sistema em suas diferentes instâncias e o controle social. Ceccim e Feuerwerker afirmam que existe uma articulação quadrilátera dos aspectos acima citados, e que cada "face libera e controla fluxos específicos, dispõe de interlocutores e configura espaços-tempos com diferentes motivações" (2004a, p. 47). Se a mudança, ou a manutenção do que está instituído, está no que se opera em cada uma dessas quatro faces, uma vez que elas atuam de modo articulado, é possível (e necessário) um olhar sobre cada uma para se entender os processos que podem alcançar as demais faces, estabelecendo um modo de funcionamento.

A formação em saúde tem sido um dos nós críticos no processo de consolidação do SUS, na medida em que se perpetuam as velhas formas de ensinar saúde, centradas no modelo hospitalo-cêntrico de atenção, em um modo fragmentário e biologicista de olhar o ser humano, no ensino centrado nas especialidades, na supremacia da teoria sobre a prática e no afastamento entre Universidade e serviço, ficando o ensino centrado no cenário da Universidade e a rede de serviços como um local de aplicação/experimentação/treinamento da teoria, e não como outro cenário de aprendizagem. Esse modo de operar a formação não dá conta da atenção integral à saúde, tornando-se pouco resolutivo e desprendido das necessidades de saúde da população, o que faz com que seja alvo de reflexões críticas (PINHEIRO; CECCIM, 2006).

Embora o texto constitucional federal (Art. 200, inciso III) determine como uma das atribuições do SUS o ordenamento da formação de recursos humanos no setor da saúde, são escassos os cenários para efetuar tal orientação. Fazem-se necessárias transformações no desenho dos cursos da área da saúde, na busca pela formação de profissionais para a integralidade que sejam comprometidos com a proposta do SUS e com a sociedade (HENRIQUES; MACEDO; ROMANO; PINHEIRO, 2005).

Neste artigo, pretendemos fazer uma análise do modo como se tem processado o ensino em saúde, relatando especificamente uma caminhada que acontece em uma instituição de ensino que realizou mudanças na formação em saúde a partir de ações e estratégias protagonizadas por um grupo de estudantes. Essas ações têm a articulação de diversos atores (estudantes, professores, trabalhadores de saúde, gestores e representantes do controle social) e diferentes setores (universidade, movimentos sociais, instâncias gestoras do SUS e do controle social). Consideramos, inicialmente, alguns pontos-chave da formação e como o movimento estudantil se coloca nesse contexto. A seguir, abordamos os modos de atuação do grupo, os conceitos que amparam o projeto e as estratégias de ação.

 

FORMAÇÃO EM SAÚDE E MOVIMENTO ESTUDANTIL

As instituições de ensino, de modo geral, ainda enfrentam problemas no que se refere a maior aproximação com os serviços de saúde de forma mais ampla e articulada, persistindo uma distância entre o que se ensina na Universidade e o que demandam as políticas públicas do setor.

Barros (2006, p. 138), para retratar processos formativos da Universidade desvinculados e descomprometidos com a realidade, usa a expressão "saberes que não sabem", na medida em que estes acabam não revelando ou transformando a realidade e, portanto, pouco têm a oferecer; esse cenário, porém, tem se alterado, principalmente com o processo de mudanças na graduação que aproximam a Universidade e a sociedade. Isso, segundo Ceccim e Feuerwerker (2004b), tem conseguido modificar a maneira como a Universidade se relaciona com a sociedade; em consequência, tal aproximação mobiliza questionamentos que geram mudanças nas práticas educativas.

Tem sido alvo de reflexões críticas a forma como os cursos da área da saúde organizam a formação em disciplinas que vêm marcando fronteiras muitas vezes rígidas na definição de seus objetos de pesquisa e/ou interesse, o que é problemático no sentido de formar para o trabalho em equipe e para a integralidade. As tentativas de quebrar essa barreira vêm, justamente, por práticas de flexibilização, em um "movimento de disciplinas que se somam na tarefa de dar conta de um objeto que, pela sua natureza multifacetada, exigiria diferentes olhares (multidisciplinaridade) [...]" (BENEVIDES; PASSOS, 2000 apud BARROS, 2006, p. 143).

Quando falamos da necessidade de diversos olhares sobre um objeto complexo e multifacetado, referimo-nos à busca pelo trabalho em saúde orientado para a integralidade, movimento que tem se colocado dentro da formação dos profissionais de saúde, como afirmam Ceccim e Carvalho:

Uma reorientação dos cursos de formação em saúde para a integralidade implica ampliação dos referenciais com que cada profissional de saúde trabalha na construção de seu repertório de compreensão e ação e, ao mesmo tempo, o reconhecimento da limitação da ação uniprofissional para dar conta das necessidades de saúde de indivíduos e populações (CECCIM; CARVALHO, 2005, p.78).

A ampliação do olhar refere-se também à ampliação dos atores, incluindo-se, entre estes, os estudantes. O movimento estudantil tem provocado mudanças no cenário de formação, na medida em que os estudantes começam a se lançar para além da formação habitual, e passam a ocupar espaços potencializadores da reflexão crítica, desse modo olhando a Universidade de outra forma e trazendo-lhe outras demandas quanto à sua política pedagógica. Muitas vezes, os estudantes se dão conta de que a formação fechada em si mesma está distante da realidade ou, ainda, de uma formação que oriente para um posicionamento ativo frente à sociedade.

Assim, os estudantes são peça fundamental para a consolidação do SUS, não só por serem os futuros profissionais de saúde mas também por estarem em uma posição que lhes pode ser privilegiada na construção de si mesmos e do entorno como sujeitos sociais. Mesmo tendo participado das conquistas sociais do movimento sanitário e da elaboração dos ideais do SUS, os estudantes continuam à margem dos projetos e das ações que têm como objetivo as mudanças em sua própria formação (CECCIM; BILIBIO, 2004).

O movimento estudantil, em todo o País, sempre esteve unido em torno de grandes lutas, como no processo de redemocratização da década de 80. Porém, atualmente, o que se percebe é maior heterogeneidade de bandeiras e de organização, pois esta não se limita mais aos coletivos institucionalizados. Para Mesquita (2003), o processo de mudanças no movimento estudantil estaria ligado ao desgaste de sua forma tradicional de fazer política, que não contemplaria a diversidade e os anseios atuais da juventude. Além disso, os novos movimentos situam-se como contraponto às práticas tradicionais centralizadoras, hierárquicas e burocráticas. Mesmo assim, segundo o autor, as novas temáticas em torno das quais os estudantes têm se organizado acabam aproximando-os das entidades estudantis e permitem um importante espaço de inserção política dos jovens.

Esses diferentes movimentos têm se constituído, em parte, através dos coletivos organizados, como é o formato assumido na universidade onde está sendo desenvolvido o projeto aqui considerado, que tem como principal bandeira de luta a consolidação do SUS, com foco na atuação da formação em saúde.

Tendo em vista essas questões, descrevemos a seguir algumas características da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Trata-se de uma instituição comunitária localizada no interior do Estado do Rio Grande do Sul. Na área da saúde, conta com nove cursos de graduação (Educação Física, Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia, Medicina, Nutrição, Odontologia, Psicologia e Serviço Social), cursos técnicos e de pós-graduação (stricto e lato sensu). Possui diversas pesquisas, serviços e projetos de extensão integrados com o SUS em nível municipal, estadual e federal. Desde 2004, vem se inserindo na Política Nacional de Educação Permanente em Saúde, bem como tem organizado seus cursos em consonância com as Diretrizes Curriculares Nacionais, o que tem provocado uma série de mudanças no seu modo de funcionamento. Em 2005, iniciou o projeto de extensão Educação Permanente em Saúde: Ações Estratégicas para o Desenvolvimento de Cenários na UNISC (EPS) e o Fórum de Saúde da UNISC, iniciativas que tiveram/têm papel disparador de discussões e de problematização da temática da formação.

Nessa trajetória de mudanças, os estudantes vêm desempenhando papel central. Em 2003, criaram o Núcleo de Estudos e Trabalhos em Saúde Coletiva (NETESC), em decorrência do Projeto Vivências e Estágios na Realidade do Sistema Único de Saúde (VER-SUS), uma das estratégias da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde. O NETESC surgiu com a pretensão de gerar um espaço de diálogo sobre a saúde coletiva e o SUS que se aproximasse das demandas sociais e preenchesse lacunas da formação acadêmica. Cinco anos depois, por questões institucionais, o NETESC passou a ser denominado Grupo de Estudos e Trabalhos em Saúde Coletiva (GETESC), vindo a atuar junto ao projeto de extensão EPS, acima referido.

Em 2011, frente à criação do Núcleo de Saúde Coletiva e à posição que os estudantes vêm assumindo no processo de formação, o Grupo de Estudos e Trabalhos em Saúde Coletiva (GETESC): Protagonismo Estudantil na Formação em Saúde foi credenciado como projeto de extensão. Esse projeto é composto por estudantes de diferentes cursos da área da saúde , que participam como bolsistas de extensão (alguns são remunerados pela instituição, e outros são voluntários), e que juntos avaliam e realizam ações tendo como base os preceitos teóricos da saúde coletiva e da Educação Permanente em Saúde. As estratégias desenvolvidas pelo grupo têm sido importantes na transformação da Academia, especialmente porque se constituem como um dispositivo de aproximação dos que compõem o que Ceccim e Feuerwerker (2004a) denominam o "quadrilátero da formação": ensino, atenção, gestão e controle social.

O grupo trabalha com a ótica de que o acadêmico deve participar desde a concepção até a implementação das ações educacionais, o que possibilita, assim, a participação/construção da realidade social e o fortalecimento do movimento estudantil. A responsabilização dos acadêmicos por sua própria formação tem demonstrado potencialidade para a constituição de indivíduos mais comprometidos com as necessidades de saúde da população, com o cuidado em saúde e com as questões sociais.

 

MODOS DE ATU(AÇÃO)

O GETESC adota uma forma de funcionamento e de organização diferente de outros projetos da universidade, uma metodologia de trabalho em que os alunos têm autonomia total em relação à estruturação de seus encontros e às estratégias de atuação, e também quanto ao planejamento, à organização e à execução de suas ações, e, nos momentos de decisão, quanto à participação em espaços de representação estudantil. Dessa forma, mantém-se com o coordenador do projeto, denominado aqui de professor de referência, uma relação próxima e de igual poder nas decisões. A autonomia do grupo permite a elaboração de projetos baseados nas ideias e necessidades dos estudantes que, para a execução dos mesmos, recorrem à articulação e à negociação com os demais atores envolvidos na formação, como professores, alunos e gestores da universidade e integrantes da rede de serviços local.

O protagonismo de todo o projeto é dos estudantes, que planejam, executam e avaliam o processo. Esta talvez seja a grande aprendizagem para docentes, estudantes e setores de gestão e administrativos, tanto da universidade quanto da rede de saúde onde o processo se desenvolve [...] Reconhecer o estudante como autor, e estes reconhecerem-se como tal, implica uma mudança de paradigma do processo de aprendizagem (KLAFKE; LARA; SANTIN, 2010, p. 38).

Esse formato, em grande parte, tem origem na criação do grupo como movimento estudantil e na sua implicação com a ideia de cogestão, que vem do projeto VER-SUS. A cogestão, como modelo organizativo, força os envolvidos a posicionar-se e a agir, na medida em que o planejamento das ações não é hierarquizado, mas pactuado no coletivo. A cogestão permite um movimento de circularidade entre autonomia e trabalho em grupo, com movimentos para dentro e para fora da universidade e/ou do grupo. O coletivo define as ações que serão realizadas; cada estudante assume uma tarefa e a realiza com certa autonomia, mas tem o compromisso de retornar às reuniões semanais do grupo trazendo os relatos de sua experiência, trocando ideias com os demais e pensando, com o grupo, sobre novas possibilidades de atuações, engendradas no coletivo e assumidas pelos integrantes do grupo.

Sobre essa experiência da cogestão, Menezes afirma que se trata de "uma dança de ajustes, de sinfonias e ritmos, que pode nos levar a mudanças de percepção sobre nossa saúde e nossas formas de organização social, pois, ao falarmos em cogerir e participar, estamos falando de encontros e práticas compartilhadas" (2010, p. 106). Além disso, acrescenta que a vivência da cogestão quebra o individualismo ao conectar as individualidades ao grupal, ao pertencimento social, gerando olhares e ações reflexivas que impulsionam o diálogo, nem sempre consensual, mas que permite trocas entre todos os envolvidos.

O trabalho de cogestão do grupo é perpassado pela multiprofissionalidade, sendo esta o carro-chefe para que se possa construir projetos conjuntos que venham a abranger as demandas dos cursos da área da saúde como um todo. É também nesse espaço construído no grupo que ensaiam, como acadêmicos, as primeiras experiências de discussão, reflexão e decisão conjuntas, um ensaio para o trabalho em saúde sob a perspectiva da interdisciplinaridade.

As aprendizagens de cogestão e multiprofissionalidade do grupo proporcionam aos acadêmicos um ensaio do agir em concerto, o que Gomes, Guizardi e Pinheiro (2005) diriam ser uma forma ideal de conceber e de organizar o trabalho em equipes multiprofissionais na saúde. Como em um concerto musical, estaria presente uma polifonia de vozes e de instrumentos (de trabalho), que alcançariam a harmonia não pela ausência da discordância, pela homogeneidade ou pela tranquilidade, mas como elementos diferentes reunidos por uma relação de pertinência.

Porém, nenhuma dessas experiências coletivas que colocam o estudante frente ao outro e ao funcionamento do grupo é simples. Há sempre diversas forças em movimento, principalmente pelo fato de que os modelos aprendidos por eles, em grande parte, se baseiam na educação centrada em uma autoridade, da qual o estudante/profissional não é protagonista.

 

PRINCÍPIOS QUE AMPARAM A ATUAÇÃO DO GETESC

As ações desenvolvidas pelo grupo têm como base teórica e metodológica fundamental a saúde coletiva e a educação permanente em saúde, o que proporciona um modo de compreender a saúde e, dessa perspectiva, uma forma de organizar o GETESC.

A saúde coletiva é uma área que envolve múltiplos saberes referentes à formação profissional em saúde, buscando a compreensão do ser humano nos limites do biológico e do social. De igual forma, interessa-nos sua perspectiva por investigar os determinantes da produção social das doenças e da organização dos serviços de saúde e, ainda, o modo como possibilita a compreensão da historicidade do saber e das práticas de saúde. Por constituir um campo de conhecimento multipragmático, interdisciplinar, formado por diferentes disciplinas, que se estendem das ciências naturais às sociais e humanas, torna-se referência para a atenção integral em saúde (NUNES, 2006).

Outro ponto importante para o GETESC em relação à saúde coletiva é que, como uma das áreas integrantes da grande área da saúde, traz uma forma bastante complexa de avaliação e, desse modo, é um alicerce para propor outras maneiras de se pensar sobre a formação e a educação em saúde para as demais áreas, principalmente por possibilitar uma visão ampliada do campo e contribuir para que os profissionais tomem posse dos saberes e das práticas que auxiliarão em sua atuação profissional (CARVALHO; CECCIM, 2006).

É da saúde coletiva a preocupação com os perfis das novas gerações profissionais, porque a sua pergunta não é a da proporção de expedição de diplomas, mas a capacidade de impacto das profissões de saúde na qualidade de vida das populações (CARVALHO; CECCIM, 2006, p. 141).

Em consonância com a saúde coletiva, o GETESC trabalha também com outra concepção teórica e metodológica, a Educação Permanente em Saúde (EPS), que se propõe a promover mudanças na formação a partir de propostas que sejam articuladas, descentralizadas, ascendentes e transdisciplinares, partindo de problematizações da realidade. Tendo como objetivo a transformação das práticas (sob o aspecto técnico e social), essa concepção se baseia na aprendizagem significativa e na possibilidade de transformar as práticas profissionais (BRASIL, 2009).

A educação permanente pode ser entendida como aprendizagemtrabalho, ou seja, ela acontece no cotidiano das pessoas e das organizações. Ela é feita a partir dos problemas enfrentados na realidade e leva em consideração os conhecimentos e as experiências que as pessoas já têm. Propõe que os processos de educação dos trabalhadores da saúde se façam a partir da problematização do processo de trabalho e considera que as necessidades de formação e desenvolvimento dos trabalhadores sejam pautadas pelas necessidades de saúde das pessoas e populações (BRASIL, 2009, p. 20).

 

ESTRATÉGIAS DE AÇÃO

O GETESC trabalha com três estratégias básicas: projetos de formação na universidade, representação dos estudantes nas instâncias de controle social e participação/construção do movimento estudantil.

No que se refere aos projetos de formação na universidade, sabemos que as ações de formação tradicionalmente são elaboradas a partir da gestão da universidade, especialmente pelas instâncias de gestão dos cursos. Na UNISC, os cursos se articulam diretamente com a reitoria, sem uma organização específica por área de conhecimento, sendo ainda incipientes os movimentos da gestão superior que caminham nessa direção. No entanto, desde a criação do Fórum de Saúde, em 2005, um coletivo de estudantes, docentes, representantes dos serviços formadores e representantes da reitoria e do controle social vem inventando formas de enfrentar o isolamento cotidiano dos cursos, com a criação de eventos/ações que levem à organização multiprofissional e interdisciplinar. Nessa trajetória, os estudantes têm desempenhado um papel tanto de articuladores entre os diferentes setores e atores quanto de autores de denúncias de isolamentos, autoritarismos e fragmentações nos processos de aprendizagem.

Na área de promoção de eventos, estes começaram de forma muito tímida, com a realização de aulas inaugurais, em conjunto, dos cursos da saúde. Até o momento, foram realizadas oito edições – no início, promovidas por um pequeno número de cursos e, atualmente, promovidas por todos os cursos da graduação da área da saúde e pelo Programa de Pós-Graduação em Promoção da Saúde. A essa iniciativa, na quinta edição, agregou-se a realização de Semanas Acadêmicas Integradas dos Cursos da Saúde, estratégia ampliada no ano seguinte pela aproximação com os serviços de saúde, realizando-se desde então também as Rodas de Integração Ensino-Serviço. A cada ano, define-se um tema (em 2011, foi Interdisciplinaridade em Saúde: Trabalho, Formação e Pesquisa; em 2012, Construindo Redes). Constituem-se comissões de trabalho que são coordenadas por um estudante e um docente (visando à horizontalização das relações), que organizam todo o processo. O evento segue uma metodologia de participação, privilegiando rodas de conversa facilitadas por estudantes, docentes e profissionais da rede. Esse evento constitui hoje um grande momento de encontro entre estudantes de diferentes cursos, docentes e trabalhadores do Sistema Único de Saúde. Todo o processo é amparado logisticamente pelo GETESC, que é responsável institucionalmente por sua realização.

Ainda no campo da organização de eventos, o GETESC tem promovido a realização de cursos de extensão sobre a temática da saúde coletiva. Até o momento, foram realizadas duas edições do curso Introdução à Saúde Coletiva, e, em 2011, foi realizado o curso Diversidade Cultural e Saúde Coletiva: Discutindo Temas Atuais. Esses cursos tiveram a duração de 40 horas e grande procura por parte de estudantes e de profissionais da rede.

Um projeto de formação que tem sido estratégico na formação dos estudantes é a realização do VER-SUS. Desde 2002, temos participado/organizado o projeto, tanto no formato VER-SUS/ Brasil quanto no VER-SUS/Extensão (cuja experiência foi registrada em livro por MENEZES, 2010). Mesmo quando o Ministério da Saúde deixou de financiar essa experiência, ela continuou existindo, com financiamento da universidade em parceria com os gestores de saúde da região.

O investimento no VER-SUS como estratégia ao longo dos anos decorre de sua potencialidade para gerar mudanças na formação em saúde, como demonstra Santin:

É visível que tanto a formação em saúde como o próprio sistema de saúde enfrentam desafios constantes e precisam melhorar em muitos aspectos, mas esses pequenos movimentos, como o VER-SUS, possibilitam visualizar que é possível avançar e que os estudantes, muito mais do que simples receptores de um conhecimento dado e cristalizado, possuem um potencial transformador dentro da universidade e no cotidiano dos serviços de saúde (SANTIN, 2011, s/n).

Essas atividades são fundamentalmente ações disparadoras de educação permanente em saúde, e por isso o GETESC vislumbra a continuidade desses eventos e a operacionalização de outras ações à medida que aqueles se institucionalizam na universidade. Os projetos de formação contribuem para a aprendizagem significativa, a convivência com profissionais da rede e a prática dos acadêmicos, visto que propiciam reflexões sobre as ações/intervenções que são e que podem ser realizadas a partir do referencial teórico da saúde coletiva e da Educação Permanente em Saúde.

Uma segunda estratégia do GETESC é a representação dos estudantes nas instâncias de controle social. Como os Conselhos e Comissões de Saúde atuam na formulação de propostas e no controle da execução das políticas de saúde, é de extrema importância a participação de estudantes nessa instância, tendo em vista que essa inserção aproxima o acadêmico da concepção, implementação e fiscalização das propostas de atenção à saúde da população. Em Santa Cruz do Sul, Município sede da universidade, o GETESC possui participação ativa nas seguintes Comissões e Conselhos:

  • Comissão de Integração Ensino-Serviço (CIES-13) – a participação dos estudantes nessa comissão teve início no final do ano 2009. Nesse espaço, os estudantes participam na formulação, condução e desenvolvimento da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde em nível regional. A participação dos estudantes nessa instância contribuiu significativamente para uma sensibilização dos gestores quanto ao compromisso do SUS na formação dos novos profissionais. Assim, nas últimas edições do VER-SUS, os gestores optaram por participar do financiamento da vivência tanto com recursos dos Municípios quanto com parte da verba de Educação Permanente em Saúde da região.
  • Conselho Municipal de Saúde (CMS) de Santa Cruz do Sul – desde 2004, os estudantes ocupam uma vaga como representantes dos usuários e já integraram a Mesa Coordenadora do Conselho na função de secretários. Os conselheiros de saúde manifestam reconhecimento por essa participação, dizendo que os estudantes trazem contribuições importantes para as discussões. Segundo palavras de uma estudante do GETESC, representante dos estudantes no Conselho Municipal de Saúde de Santa Cruz do Sul, a participação nas instâncias de controle social "proporciona aos estudantes uma vivência relevante para a formação acadêmica, desmitifica paradigmas relacionados ao SUS, garante que o estudante acesse o conhecimento e o construa com suas próprias vivências" (AMBROSI; BITTENCOURT; GOMES; CUNHA, 2011, p. 62).
  • Comissão Municipal de Saúde Mental (CMSM) de Santa Cruz do Sul – é uma comissão do Conselho Municipal de Saúde que tem como atribuição assessorá-lo nas questões referentes à saúde mental. A representação da UNISC se dá através do segmento Instituições Formadoras, com representante docente e discente, desde 2008.
  • Conferências de Saúde – os estudantes têm participado ativamente na organização de conferências municipais e regionais de saúde. A participação abrange a integração das comissões organizadoras, mobilização de estudantes para participar das conferências nos Municípios em que residem, discussão/elaboração de teses e proposições e participação como delegados nas instâncias estadual e nacional. Especificamente no que se refere à participação como delegados, essa tem sido ainda uma experiência pioneira e às vezes de tensionamento com os demais participantes do segmento de usuários. O espaço de participação que estudantes de graduação reivindicam muitas vezes não é visto como legítimo, sendo-lhes dito que essa participação deve aguardar pelo dia em que serão profissionais. Esse talvez seja um dos fatores que contribuam para a sua pequena participação nessas instâncias.

A terceira estratégia refere-se à participação/construção do movimento estudantil, tanto em termos de estratégias internas à universidade quanto de articulação com o movimento estudantil nas instâncias regional, estadual e nacional. Internamente, durante esses nove anos de existência do grupo, foram realizados grupos de estudos com encontros semanais para debates teóricos sobre as ações acima referidas, procurando-se envolver um grande número de alunos na organização e na implementação de tais ações.

Esses momentos de encontro possibilitaram a articulação e a atuação política, que se tornaram importantes características do nosso grupo. No decorrer da existência do GETESC, foi ficando evidente a necessidade da construção de um movimento estudantil ligado a questões sociais, principalmente, à saúde e à defesa do SUS. Nos encontros, há um espaço para que sentimentos e pensamentos se engendrem e, sobretudo, para que ações sejam gestadas, buscando dar conta das lacunas na formação profissional quanto ao conhecimento da realidade de saúde da população, do funcionamento do SUS e dos princípios da saúde coletiva. É importante ressaltar a existência de uma relação de proximidade e apoio entre o GETESC e os movimentos estudantis organizados através dos Diretórios Acadêmicos dos cursos e do Diretório Central dos Estudantes existentes na universidade.

O que nasce dentro do grupo ao longo dos anos é uma movimentação política que permite que os estudantes ocupem espaços que visam tanto à mudança na formação em saúde quanto à aproximação com as instâncias de participação social, o que possibilita aos estudantes do GETESC a representação estudantil na discussão de projetos e na tomada de decisões.

No que se refere à articulação externa, levamos nossa marca para as organizações de projetos nacionais, como o VER-SUS/Brasil e o VERSUS/Extensão. Nosso trabalho torna-se conhecido por publicações e pela apresentação em eventos de natureza científica, na articulação com coletivos de estudantes em eventos e nas redes sociais. Essa comunicação é importante, pois, na medida em que são conhecidos diferentes modos de organização do movimento estudantil, ocorre o surgimento de novos coletivos estudantis em diferentes universidades.

No ano 2011, iniciou-se a rearticulação do projeto VER-SUS no Estado em meio ao movimento nacional de reorganização e refinanciamento do mesmo. No Rio Grande do Sul, através de encontros de estudantes, representantes de universidades, serviços e associações, o projeto foi se fortalecendo, e nós, do GETESC pudemos compartilhar experiências e participar do processo de organização de diversas vivências em todo o Estado, inclusive integrando-as em diversos Municípios, como facilitadores.

Participamos da rearticulação do movimento estudantil no Estado, um processo extrema-mente colado à organização dos estágios de vivências, pois estas partiram dos diversos coletivos estudantis criados e/ou recriados em todo o Estado. É possível perceber que o intercâmbio de experiências foi fundamental para o fortalecimento ao mesmo tempo da proposta do VER-SUS e do movimento estudantil.

 

CONCLUSÃO

Sobre uma formação que não se pressupõe crítica frente à realidade, Martins afirma que apenas reproduzir o que nos foi transmitido, sem criticidade, sem problematização, nos leva a correr o "risco de nos formarmos perfeitos executores de regras e técnicas, rápidos, práticos e produtivos, estabelecendo relações com pessoas percebidas como objetos" (2010, p.139).

As instituições governamentais e as de ensino têm inventado novas formas de fazer frente às necessidades contemporâneas de formação em saúde e, entre elas, as que são oriundas do movimento estudantil e apostam no protagonismo dos estudantes na construção de projetos de formação. Os estudantes podem ser agentes potentes de mudanças pelo lugar que ocupam no sistema de ensino, pois são menos comprometidos com as normas institucionais e mais críticos, inquietos e abertos a formas ainda pouco usuais de ensinar/aprender.

Para Ceccim e Bilibio, a proposta de intervir no próprio processo de formação acadêmica é extremamente promissora, porque trata-se de

(...) um período em que garotos e garotas estão significativamente abertos a novos valores, sedentos por objetivos justos e buscando uma estética para a própria existência. Essas tendências aliadas ao conhecimento das diferentes realidades, necessidades, oportunidades, demandas, urgências, potencialidades, dificuldades, possibilidades, desafios, enfim, alegrias e tristezas do sistema de saúde brasileiro, podem representar um verdadeiro fluxo de força na direção de uma significativa qualificação profissional das pessoas que trabalham no SUS (CECCIM; BILIBIO, 2004, p. 19).

A experiência do GETESC tem sido significativa na universidade, principalmente, por estar disparando a construção de ações e de estratégias metodológicas que vêm enriquecendo o fazer cotidiano de estudantes, docentes e trabalhadores da saúde. Investir no protagonismo estudantil tem nos obrigado a repensar os lugares estabelecidos, como o do professor, o do estudante, o do profissional da saúde. Novos modos de se relacionar, com mais simetria, são construídos, e essas aprendizagens têm sido significativas para todos os envolvidos no processo.

REFERÊNCIAS

AMBROSI, C. B.; BITTENCOURT, G.; GOMES, A.; CUNHA, A. Z. S. O movimento estudantil e o controle social no SUS. In: MENEZES, A. L. T. de; HELFER, C. L. de L. (Org.). Integração entre ensino e extensão: aprendizagem e conhecimento. 1. ed. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2011.         [ Links ]

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Recebido em: 14/04/2012
Aceito em: 06/09/2012

 

 

1Cabe destacar o protagonismo dos estudantes do Curso de Psicologia desde o início do processo, o que talvez esteja relacionado com o perfil do curso fortemente identificado com a construção de políticas públicas (que pressupõem trabalho em equipe multiprofissional) e com um movimento estudantil que tem início com a criação do curso em 1993 e se mantém operante até os dias atuais.

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