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Psicologia Ensino & Formação
versão impressa ISSN 2177-2061
Psicol. Ensino & Form. vol.5 no.1 Brasília 2014
ARTIGO
Educação, direitos humanos e compromisso social: interlocuções com a formação do professor de psicologia
Education, human rights, and social commitment: dialogue with the training of psychology teachers
Ana Mercês Bahia Bock
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Doutora em Psicologia Social (PUC-SP). anabock@compromissosocial.org
RESUMO
O texto procura relacionar educação, direitos humanos e compromisso social. A questão da educação se baseia na formação de psicólogos e docentes, considerando as orientações nacionais da educação em direitos humanos, problematizando os cenários da formação/licenciatura em psicologia e o espaço para a prática do docente em disciplinas de psicologia no ensino médio. O compromisso social se apresenta, no texto, como um modo de designar um projeto existente, hoje, para a psicologia brasileira. Consideram-se, como suas características, a preocupação e a inserção, na psicologia, dos aspectos da realidade, de modo a configurar epistemologias e metodologias marcadas pela relação entre a subjetividade, a constituição do sujeito e a transformação da realidade. Neste sentido, esses três elementos indicados no título podem se relacionar numa formação crítica em Psicologia.
Palavras-chave: Formação. Psicologia. Direitos humanos. Compromisso social.
ABSTRACT
This essay explores the relationship between education, human rights, and social commitment. The issue of the education of psychologist and teacher training is based on the national guidelines for education of human rights. It also brings into question the circumstances in which training takes place, as well as whether or not there is room for teaching this discipline in high schools. Social commitment today is seen as a way of designating an existing project to Brazilian psychology. The main components of this project are the concern and inclusion of the realistic aspects of the Science of Psychology in order to configure epistemologies and methodologies identified by the relationship between subjectivity, the subject's constitution, and social change. As such, it can be seen that education, human rights, and social commitment are interrelated in a critical approach to psychology education.
Keywords: Training. Psychology. Human rights, Social commitment.
INTRODUÇÃO
Neste artigo, são muitos os elementos presentes. Buscaremos relacioná-los em uma reflexão que tem a formação do professor de Psicologia como eixo. Começamos, então, pela LDB de 1996 (Lei 9394/96), que indicou, em seu artigo 62, a necessidade de formação especializada de professores nos diversos níveis da educação básica. A licenciatura aparece como qualificação dos professores em todas as áreas, inclusive na Psicologia. Assim, pela Resolução CNE/CES No.5 de 15/03/2011, a licenciatura como formação complementar ao bacharelado em Psicologia ficou instituída como parte das diretrizes curriculares para os cursos de Psicologia. Paralelamente, ocorriam discussões sobre o lugar da Psicologia no ensino médio.
Desde os anos 1920, quando das reformas de ensino baseadas nos pressupostos escolanovistas, a psicologia "...assumiu papel fundamental, constituindo-se numa das principais bases científicas desse projeto" (ANTUNES, 2011, p.18). As escolas normais foram construídas para formar professores que dessem corpo às reformulações da educação. Elas contavam, inclusive, com laboratórios de psicologia.
A pedagogia escolanovista elegia a Psicologia como um de seus principais fundamentos, a partir de estudos sobre desenvolvimento da criança, aprendizagem, relação professor-aluno, acrescentando-se os testes pedagógicos e psicológicos, considerados como meios para a racionalização da prática educativa (ANTUNES, 2011, p.19).
Assim, a psicologia ganhou espaço e importância nos currículos de formação, em especial, na formação de professores. A LDB de 1961 (Lei 4024/61) coloca a Psicologia como disciplina optativa, tanto para o clássico como para o científico, sendo obrigatória no currículo do curso normal, em seus três anos. A nova lei trouxe para o campo da educação a "...singularização dos currículos escolares, por meio da proposição de uma organização pautada por Parâmetros Curriculares Nacionais, para todas as etapas da educação brasileira" (CONDE, 2011, p.57). As mudanças introduzidas foram significativas; dentre elas, a possibilidade de compor o currículo diversificando disciplinas dentro dos eixos estabelecidos. Propiciou-se uma reformulação nas disciplinas e uma discussão sobre a importância de cada uma. Algumas já tinham lugar seguro e consensual, mas outras passaram a ser objeto de debate. A psicologia está dentre essas últimas.
Segundo Conde (2011)
A presença nos currículos escolares incluiria, desta forma, duas categorias de disciplinas escolares, do ponto de vista de suas relações com os alunos. Na primeira, estão as que devem ser levadas a sério ou estudadas com afinco, e que tanto produzem prestígio escolar e social, quando os alunos são bem sucedidos, quanto reprovação escolar e social, nos casos de dificuldades no desempenho. Na segunda, ficam as disciplinas de enriquecimento, complementares, nas quais tanto o sucesso como o fracasso importam pouco do ponto de vista da valorização escolar e social do estudante." (p.61)
Assim, Conde (2011) conclui que a Psicologia ocupou lugar no núcleo duro do currículo da escola normal e em alguns cursos técnicos. Em outros casos, teve participação complementar, às vezes presente e às vezes ausente dessas formações, como no caso do ensino secundário.
Em agosto de 2006, pela Resolução No 4 da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CEB/CNE), a Sociologia e a Filosofia, disciplinas acompanhadas da psicologia no debate sobre a obrigatoriedade no ensino médio, foram consideradas obrigatórias em todo território nacional, passando a compor o currículo básico do ensino médio das redes pública e privada. A Psicologia, apesar dos esforços de entidades junto ao MEC, não teve o mesmo destino, permanecendo facultativa sua inserção no currículo. Em junho de 2008, foi sancionada a Lei 11.684 que alterou a LDB (Lei 9394/06), incluindo Filosofia e Sociologia como disciplinas obrigatórias nos currículos do ensino médio.
Neste cenário, a licenciatura em Psicologia foi aprovada em 2011, como formação complementar ao bacharelado e como modalidade obrigatória em instituições com cursos de Psicologia. Essas, que haviam reformulado seus currículos com base nas Diretrizes Curriculares para os Cursos de Psicologia (RESOLUÇÃO Nº 8, 7 de maio de 2004), viram-se frente à nova exigência de reformular suas propostas de curso para incluir a modalidade da licenciatura.
Uma história de importância, como fundamento científico da educação, não pode se refletir no reconhecimento da psicologia como disciplina obrigatória no ensino médio.
Cabe aqui relembrarmos as pesquisas de Rosane G. D. Silva (2011) com estudantes sobre as contribuições da Psicologia ao ensino médio. A autora pesquisou a opinião de estudantes sobre as contribuições, para a vida cotidiana, dos conteúdos programáticos estudados na disciplina de Psicologia, em escola no Paraná. Eram 59 sujeitos, alunos de Psicologia por três anos em escola que decidiu incluir a disciplina no currículo. Nos resultados, a autora destaca a construção de um conceito de psicologia como ciência, possibilitado pelo contato com a disciplina. A concepção formulada indica uma ciência preocupada em estudar os fenômenos psicológicos, ou seja, processos internos, construídos no decorrer de nossa existência. Quanto à importância da disciplina, os estudantes indicaram, primeiramente, seu crescimento pessoal, depois a compreensão do mundo ao redor. Os aspectos eram de diversos campos da vida: sexualidade, relações afetivas, drogas, depressão, sentimentos variados, violência, ética. Acreditam que a psicologia propicia autoconhecimento, assim como ajuda nas relações entre indivíduo e sociedade; contribui nos relacionamentos em geral, no trabalho, na resolução de problemas ou em todos os momentos.
Em 1986, foi publicado livro com proposta de conteúdo para a disciplina de Psicologia no 2º grau. A publicação era de responsabilidade do sindicato dos psicólogos no Estado de São Paulo e do Conselho Regional de Psicologia da 6ª Região-SP. Estavam lá os conteúdos e as orientações para uma contribuição crítica da psicologia como disciplina no ensino médio. Leite (2007) retoma, com propriedade, essa história e esses conteúdos, defendendo a presença da disciplina no currículo. Já se apontava, em 1986, para a necessidade da formação crítica e da contribuição que a Psicologia poderia dar; a importância da apresentação da Psicologia em sua diversidade téorica; concepções inovadoras eram indicadas, como a de adolescência, superando a visão naturalizadora que nos caracterizava; questões epistemológicas, como a da neutralidade da ciência, estavam colocadas; o debate sobre os conceitos de normal e anormal, alienação, comunicação. Emoções, afetividade, agressividade, trabalho e profissão também eram temas indicados como centrais para a formação no ensino médio. A psicologia deveria contribuir à formação de cidadãos críticos e transformadores. Mas, apesar disso, a disciplina permaneceu complementar, sem se tornar obrigatória.
Outro elemento importante são os direitos humanos e sua relação com a Psicologia. Em 2006, foi lançado o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. O documento, assinado por três ministros (Secretaria de Direitos Humanos, Educação e Justiça), expressava, de forma clara, o
compromisso oficial com a continuidade da implementação do PNEDH (...) como política pública capaz de consolidar uma cultura de direitos humanos, a ser materializada pelo governo em conjunto com a sociedade, de forma a contribuir para o aperfeiçoamento do Estado Democrático de Direito" (PNEDH, 2009).
O documento apresenta as concepções, princípios, objetivos, diretrizes e linhas de ação, contemplando a educação básica, educação superior, educação informal, educação dos profissionais dos sistemas de justiça e segurança pública e educação e mídia.
A educação em direitos humanos é "compreendida como um processo sistemático e multidimensional que orienta a formação do sujeito de direitos..." (PNEDH, 2009, p.25). Articula, para isso, cinco dimensões: apreensão de conhecimentos sobre direitos humanos; afirmação de valores, atitudes e práticas que expressem a cultura dos direitos humanos; formação de uma consciência cidadã; desenvolvimento de processos participativos e de construção coletiva; fortalecimento de práticas individuais e sociais que gerem ações e instrumentos em favor da promoção, da proteção e da defesa de direitos humanos.
O documento segue indicando objetivos e linhas de ação. No trecho sobre educação superior, o plano traz a LDB, ressaltando a finalidade deste nível da educação:
...participação no processo de desenvolvimento a partir da criação e difusão cultural, incentivo à pesquisa, colaboração na formação contínua de profissionais e divulgação dos conhecimentos culturais, científicos e técnicos produzidos por meio do ensino e das publicações, mantendo uma relação de serviço e reciprocidade com a sociedade (PNEDH, 2009, p.37).
As universidades, então, assumiam um compromisso com a formação crítica, a criação de um pensamento autônomo, a descoberta do novo e a mudança histórica.
A conquista do Estado Democrático delineou, para as instituições de Ensino Superior (IES), a urgência em participar da construção de uma cultura de promoção, proteção, defesa e reparação dos direitos humanos, por meio de ações interdisciplinares, com formas diferentes de relacionar as múltiplas áreas do conhecimento humano com seus saberes e práticas (PNEDH, 2009, p.37).
As universidades aceitaram o desafio e passaram a buscar formas de introduzir a temática dos direitos humanos nas atividades do ensino de graduação e pós-graduação, pesquisa e extensão. Podem ser constituídas disciplinas obrigatórias ou optativas, linhas de pesquisa e áreas de concentração, no projeto político-pedagógico de cada instituição e curso. Interessante reproduzirmos os princípios da educação em direitos humanos no seu formato para a educação superior:
a) a universidade, como criadora e disseminadora de conhecimento, e instituição social com vocação republicana, diferenciada e autônoma, comprometida com a democracia e a cidadania;
b) os preceitos da igualdade, da liberdade e da justiça devem guiar as ações universitárias, de modo a garantir a democratização da informação, o acesso por parte de grupos sociais vulneráveis ou excluídos e o compromisso cívico-ético com a implementação de políticas públicas voltadas para as necessidades básicas desses segmentos;
c) o princípio básico norteador da educação em direitos humanos como prática permanente, contínua e global, deve estar voltado para a transformação da sociedade com vistas à difusão de valores democráticos e republicanos, ao fortalecimento da esfera pública e à construção de projetos coletivos;
d) a educação em direitos humanos deve se constituir em principio éticopolítico orientador da formulação e crítica da prática das instituições de ensino superior;
e) as atividades acadêmicas devem se voltar para a formação de uma cultura baseada na universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos, como tema transversal e transdisciplinar, de modo a inspirar a elaboração de programas específicos e metodologias adequadas nos cursos de graduação e pós-graduação, entre outros;
f) a construção da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão deve ser feita articulando as diferentes áreas do conhecimento, os setores de pesquisa e extensão, os programas de graduação, de pós-graduação e outros;
g) o compromisso com a construção de uma cultura de respeito aos direitos humanos na relação com os movimentos e entidades sociais, além de grupos em situação de exclusão ou discriminação;
h) a participação das IES na formação de agentes sociais de educação em direitos humanos e na avaliação do processo de implementação do PNEDH (PNEDH, 2009, p.38).
Nas ações programáticas, estão indicadas possibilidades de efetivação desses princípios, como a presença da temática nos cursos, a divulgação à sociedade, os programas voltados à educação em direitos humanos, o apoio das agências de fomento, a realização de pesquisas e a elaboração de metodologias pedagógicas para a educação em direitos humanos. Também são recomendados a formação continuada, o apoio a fóruns, núcleos, comissões, centros de pesquisa e extensão destinados à promoção dos direitos humanos, a articulação entre as IES para trabalhos cooperativos, publicações específicas e presença dos direitos humanos em eventos, seminários, congressos etc. São sugeridos, ainda, criação de prêmios em educação em direitos humanos, projetos de capacitação e formação de professores e corpo discente e a inserção de temas sobre a história dos direitos humanos no Brasil.
Caberia ainda um destaque para o fato de que os docentes que ministram aulas no ensino básico devem estar atentos ao PNEDH. Assim, em suas práticas, poderão contribuir com sua difusão, fortalecendo a cultura universal em direitos humanos no Brasil.
E a Psicologia, como participou dessas iniciativas? Os primeiros e principais protagonistas, no campo institucional da Psicologia, foram, sem dúvida, os Conselhos Profissionais. Em 1997, foi instalada a Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia. Em 1998, todos os Regionais instalaram as suas comissões próprias. A partir daí, realizaram-se encontros das comissões, seminários de Psicologia e direitos humanos (aconteceram sete entre 1998 e 2011), campanhas, inspeções e outras iniciativas para:
• Incentivar a reflexão e o debate sobre os direitos humanos inerentes à formação, à prática profissional e à pesquisa em psicologia;
• Estudar os múltiplos processos de exclusão enquanto fonte de produção de sofrimento mental, evidenciando não apenas seu modo de produção socioeconômico como também os efeitos psicológicos que constituem sua vertente subjetiva;
• Intervir em situações concretas, nas quais existam violações dos direitos humanos que estejam produzindo sofrimento mental;
• Participar ativamente das lutas pela garantia dos direitos humanos na sociedade brasileira;
• Apoiar e prestar solidariedade aos movimentos nacionais e internacionais de direitos humanos;
• Intervir em situações em que ações do Estado ou de setores sociais específicos produzam algum tipo de sofrimento mental;
• Buscar soluções para a omissão de ações do Estado, especialmente relativas ao sofrimento psíquico dos excluídos (Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFP, ANO).
Este movimento se expandiu para outras entidades da Psicologia e mesmo entidades da América Latina, como a ULAPSI - União Latino Americana de Entidades de Psicologia -, que tem entre seus objetivos a defesa e difusão dos direitos humanos. (Declaração de Princípios, acesso em 24/07/2014 www.ulapsi.org)
Em 2008, a ABEP - Associação Brasileira de Ensino de Psicologia - nos convidou para um estudo sobre a presença, a partir de 2006, dos direitos humanos nos cursos de psicologia (BOCK e GIANFALDONI, 2009). Dos cursos cadastrados no MEC em 2008 (total de 354), apenas 27 responderam ao chamado feito pela ABEP. Essa informação é importante porque pode indicar que as altas frequências dos direitos humanos se devam ao fato de que os respondentes sejam justamente os cursos que introduziram os direitos humanos em seu projeto pedagógico. Assim, 96,3% dos cursos indicaram tratar do tema; 66%, em projetos de extensão; 63%, em palestras e debates. Com esses dados, o estudo a concluiu que a presença dos direitos humanos se dá, com mais vigor, nas atividades mais tradicionais do curso.
Cabe aprofundarmos os dados e procedimentos do estudo. Na primeira etapa, investigaram-se as publicações que relacionavam psicologia com direitos humanos. Excluídas as repetições e desconsiderados os trabalhos que não tratavam dos direitos humanos, foram encontradas 21 referências: seis delas na BVS-PSI, duas no Portal CAPES, três no Google acadêmico periódicos e dez no Google acadêmico livros. Os resultados destacaram a forte presença das publicações de responsabilidade do Conselho Federal de Psicologia, a abrangência dos estudos, a forte presença das questões sobre infância, saúde mental e violência e também a representação social como o conceito mais utilizado nos estudos. Concluiu-se que há relação entre psicologia e direitos humanos, revelando a busca dos psicólogos por suas práticas e seus conhecimentos.
Nos dados sobre a formação, como citado, 96,3% dos cursos que responderam ao questionário enviado pela ABEP afirmaram a presença dos direitos humanos em disciplinas da grade curricular. 63%, em palestras, 66%, em projetos de extensão, 26%, em atividades organizadas pelos alunos, 22%, em adesão a campanhas e 37%, em pesquisas. Na análise das ementas das disciplinas, encontramos 19 cursos que possuíam claramente bibliografia e conteúdos sobre direitos humanos.
A publicação sobre a pesquisa afirmou em determinado trecho:
...pode-se considerar importante, como política para a ABEP, alertar os cursos para a importância de se ampliar o conhecimento sobre educação em DH algo mais disseminado: nas atividades fora da sala de aula, nas formas de organização e na dinâmica dos cursos, nas relações entre os segmentos que participam do processo, no estímulo a maior autonomia dos estudantes e nas formas democráticas de funcionamento dos cursos (BOCK e GIANFALDONI, 2010, p.108).
O estudo analisa as formas de presença dos direitos humanos nos cursos e, ao concluir, afirma:
A presença dos direitos humanos na formação dos Psicólogos é ainda muito tímida, mas já é presente... É preciso desenvolver o conceito de direitos humanos entre os psicólogos e professores, pois a falta de tradição da Psicologia nesse campo coloca os psicólogos distantes de uma concepção mais atualizada e abrangente do conceito. É preciso oferecer visibilidade aos trabalhos e experiências de formação bem sucedidos que incluam a relação da Psicologia com os direitos humanos, trazendo referências para os cursos. É preciso propor alternativas de educação em direitos humanos que, se contemplarem práticas tradicionais, podem adquirir a perspectiva da educação permanente feita de diferentes modos e em diversos grupos. É preciso introduzir material para que os cursos tenham acesso a uma produção de Psicologia e direitos humanos (BOCK e GIANFALDONI, 2010, p.114).
Foram colocadas informações sobre a presença da Psicologia na educação, em especial no ensino médio. Abordaram-se também a licenciatura em Psicologia (o professor do ensino médio), o bacharelado (o professor da graduação em Psicologia), a relação histórica da psicologia com os direitos humanos e a presença desses nos cursos de psicologia. Nosso desafio neste artigo girava em torno dos temas: educação, direitos humanos e compromisso social; interlocução com a formação do professor de psicologia.
Talvez caibam ainda algumas palavras sobre o projeto do compromisso social da psicologia. Em 1997 (com publicação em 1999), em tese de doutorado, apontamos que "a natureza do compromisso do psicólogo passa de uma preocupação mais humanista e voltada ao atendimento de necessidades individuais para uma preocupação com o engajamento pela transformação social" (BOCK, 1999, p.167).
A carta de Serra Negra (documento resultante de encontro de coordenadores de curso de psicologia promovido pelo Conselho Federal de Psicologia, 1992), em seu primeiro princípio norteador da formação em Psicologia, apontava: "desenvolver a consciência política de cidadania e o compromisso com a realidade social e a qualidade de vida." Em 1994, o I Congresso Nacional da Psicologia - CNP - teve um de seus eixos dedicado à formação em Psicologia. Uma de suas deliberações indicava o "compromisso com uma formação em psicologia que contribui para a transformação da realidade brasileira" (caderno de deliberações do Congresso Nacional Constituinte da Psicologia, 1994, p.24). Em 1995, a Comissão de Especialistas de Psicologia do MEC publicou dez diretrizes para a formação e avaliação curriculares. Nelas, já se encontra o compromisso da Psicologia com o atendimento das demandas sociais. No mesmo caminho, poderíamos citar várias publicações e resoluções de congressos e encontros que, a partir dos anos 90, passaram a indicar o que estamos chamando de novo projeto para a Psicologia brasileira: o projeto do compromisso social da Psicologia.
(...) compromisso com a sociedade a Psicologia sempre manteve, mas seu compromisso foi, na maior parte do tempo, um compromisso com as elites e seus interesses. O novo projeto de profissão significa um rompimento com esta tradição e a construção de um novo lugar para a Psicologia; a construção de uma nova relação da Psicologia com a sociedade. Queremos uma Psicologia a serviço dos interesses da maioria da sociedade; uma psicologia acessível a todos (BOCK, 2008, p.3).
Aos poucos, os psicólogos e estudantes de psicologia desenvolveram a ideia desse novo projeto. A preocupação central era a possibilidade de a Psicologia responder às necessidades e às urgências da maior parte da população brasileira, escapando da trajetória de aliança com a elite do país. Passava-se a falar de uma psicologia voltada para a sociedade. O conhecimento tomaria como objeto um humano que se constitui ao mesmo tempo em que constrói a realidade em que vive. A perspectiva histórica, enquanto marca epistemológica, apresentava-se como fundamental.
A ideia do compromisso social não é uma única visão política para a profissão e para a ciência. Tampouco se relaciona exclusivamente com uma perspectiva teórica. É na diversidade da psicologia que o projeto do compromisso social tem se constituído. As diversas teorias e os diversos fazeres contribuem para o projeto, criando novas formas de pensar, de pesquisar, de fazer psicologia.
Falamos, até aqui, da formação dos professores para ensinar Psicologia no ensino médio (a licenciatura). Falamos dos professores que ensinam Psicologia nos cursos de graduação (o bacharelado). São professores que encontram cenários bastante distintos para trabalhar. No ensino médio, a psicologia tem lugar de disciplina complementar. Isso tem esvaziado e fragilizado sua presença nesse nível de ensino. O jovem do ensino médio pode encontrar, na Psicologia, uma disciplina que o ajuda a ampliar sua visão de mundo, dando visibilidade a uma dimensão nem sempre conhecida ou reconhecida: a dimensão subjetiva da realidade. Mas os espaços são poucos e os poucos profissionais acabam isolados e solitários em seu trabalho.
O ensino nas instituições de ensino superior, por outro lado, ganha cada vez mais espaço. São cursos de psicologia que se ampliam no país com grande interesse dos jovens. São cursos em outras áreas que reconhecem a importância de incluir a psicologia como área de saber que complementa seu conhecimento específico. Para isso, preparam-se bacharéis em psicologia que buscam a docência como forma de entrar no mercado. Mas é importante pontuarmos que poucos alunos dos cursos de psicologia afirmam, durante o curso, que desejam ser professores ou pesquisadores no ensino superior. Isso nos leva a crer que eles não se preparam e o curso tampouco lhes oferece temas, conteúdos, debates, questões relacionadas a esta prática. Acredita-se que, quando se forma bacharel, escolhe área para aprofundar (ênfases curriculares) e estagiar, o formado assegura, com isso, conteúdos e experiências para que se torne um bom professor no ensino superior. Os cursos de pós-graduação contribuem, em certos casos e áreas, para melhorar a qualidade do professor, mas nem sempre cuidam especificamente desse aspecto.
Poderíamos dizer que temos uma graduação (bacharelado) que não se volta para a qualificação do educador/ docente. Os cursos falam pouco da inserção dos profissionais na educação como docentes. Os professores se aprimoram no ensino de teorias ou técnicas da psicologia, mas não refletem, especificamente, sobre a inserção que fazem, como psicólogos, no processo educacional. Desconhecem as leis, o debate da didática e das metodologias de trabalho na educação e, pior do que isso, não discutem um projeto de formação/educação.
Este debate sobre um projeto de formação permitiria aos psicólogos aprimorarem suas reflexões sobre o compromisso social e sobre os direitos humanos. Aqui se exigiria que o debate incluísse temas da formação de um profissional psicólogo ou não. Não nos interessa apenas aderir aos princípios dos direitos humanos. É preciso saber lidar com estes valores no processo de formação e educação de outras pessoas. Não nos interessa apenas aderir ao projeto do compromisso social da psicologia. É preciso saber lidar com este projeto para levá-lo aos alunos, fomentando um debate democrático, aberto, capaz de respeitar e dialogar com as diferenças - um debate educativo.
Aqui se defende uma educação voltada aos direitos humanos, cumprindo o que determina o PNEDH. O compromisso social é o projeto que nos orienta nessas formações. Em síntese, o que se defende é uma formação voltada para a sociedade, suas urgências e necessidades, guiada por princípios e valores
comuns a todos, a partir da matriz de direito à vida, sem distinção alguma decorrente de origem geográfica, caracteres do fenótipo (cor da pelo, traços do rosto e cabelo), da etnia, nacionalidade, sexo, faixa etária, presença de incapacidade física ou mental, nível socioeconômico ou classe social, nível de instrução, religião, opinião política, orientação sexual ou de qualquer tipo de julgamento moral. São aqueles que decorrem do reconhecimento da dignidade intrínseca de todo ser humano (BENEVIDES, 2007, p.337).
Há uma interlocução necessária com a formação do professor de Psicologia, pois não estamos falando de um projeto de educação consensual, natural ou único. Estamos falando de um campo de disputa em que vários projetos podem se apresentar. Aqui se defende, com apoio em documentos governamentais, consensos de grupos, posicionamentos de entidades, que a formação do professor de Psicologia seja guiada pelos princípios dos direitos humanos e pelo projeto do compromisso social. Se tomarmos os direitos humanos como "mediações para a construção de um projeto alternativo de sociedade: inclusiva, sustentável e plural" (CANDAU, 2007, p.408), para uma "cidadania coletiva, que favorece a organização da sociedade civil, privilegia os atores sociais comprometidos com a transformação social e promove o empoderamento dos grupos sociais e culturais marginalizados" (CANDAU, 2007, p.408), estamos reunindo direitos humanos e compromisso social de modo fecundo.
Em síntese, é preciso que a formação em Psicologia (bacharelado) seja vista como potencial formação de professores e, nesse sentido, deve haver espaços de reflexão sobre o papel do professor e o sentido da educação, permitindo aos futuros psicólogos discutir o projeto de Psicologia. Caso se tornem professores, devem debater sobre como estes conteúdos podem ser apresentados como elementos fundamentais de qualquer formação. A contribuição da Psicologia para a formação de profissionais (a docência) deve ser tomada como conteúdo fundamental. A educação, os direitos humanos e o projeto do compromisso social devem ser partes obrigatórias desta formação.
A licenciatura, por sua vez, deve se aproximar das diretrizes para a formação na educação básica, com o PNEDH como referência. Os psicólogos/ licenciados em psicologia devem ser colaboradores incansáveis do desenvolvimento de uma cultura de direitos humanos. Devem utilizar seus conhecimentos específicos para dar visibilidade à dimensão subjetiva da realidade, contribuindo para que os jovens construam visões críticas e pautem suas práticas pelos direitos humanos e pelo compromisso social assumido pela Psicologia.
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