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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.10 no.1 Porto Alegre jan./abr. 2020

https://doi.org/10.22456/2238-152X.99274 

ARTIGOS

 

Alinhavos para pensar o presente: arte de Rosana Paulino e Beth Moysés

 

Outlines to think about the present: arte de Rosana Paulino y Beth Moysés

 

Diseños para el pensamiento del presente: art of Rosana Paulino and Beth Moysés

 

 

Catia Paranhos Martins

Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Dourados, MS, Brasil

 

 


RESUMO

Neste texto busco articular mulheres, arte e política como dimensões para pensar o presente. A produção artística é utilizada como dispositivo para problematizar o que nos acontece e enxergar o que deveria ser intolerável, bem como procurar os germens de vida que possam descolonizar o pensamento e o desejo. Rosana Paulino e Beth Moysés são artistas com reconhecimento internacional e apontam questões sobre o que é ser/estar mulher e não branco ao desnaturalizarem as violências e violações cotidianas e históricas do projeto colonial e patriarcal. Quais são as dores e os silêncios nas obras comentadas? Quanto de violência há em ser/estar mulher ou em corpos generificados, feminizados e racializados? É sobre as políticas de vida e morte vigentes que as artistas contribuem para colocar em análise. Ambas usam a arte como estratégia de luta e resistência na construção de estéticas feministas com potência para produzir transformações na sensibilidade coletiva.

Palavras-chave: psicologia social; arte; feminismo.


ABSTRACT

In this text I seek to articulate women, art and politics as dimensions for thinking about the present. Artistic production is used as a device to problematize what happens to us and to see what should be intolerable, as well as to look for the germs of life that can decolonize thought and desire. Rosana Paulino and Beth Moysés are internationally recognized artists and raise questions about what it is to be female and non-white by denaturalizing the daily and historical violence and violations of the colonial and patriarchal project. What are the pains and silences in the commented works? How much violence is there in being a woman or gendered, feminized and racialized bodies? It is about the policies of life and death in force that the artists contribute to put into analysis. Both use art as a strategy of struggle and resistance in building powerful feminist aesthetics to produce transformations in collective sensibility.

Keywords: social psychology; art; feminism.


RESUMEN

En este texto busco articular a las mujeres, el arte y la política como dimensiones para pensar sobre el presente. La producción artística se utiliza como un dispositivo para problematizar lo que nos sucede y ver lo que debería ser intolerable, así como para buscar los gérmenes de la vida que pueden descolonizar el pensamiento y el deseo. Rosana Paulino y Beth Moysés son artistas reconocidos internacionalmente y plantean preguntas sobre lo que es ser mujer y no blanca al desnaturalizar la violencia y las violaciones cotidianas e históricas del proyecto colonial y patriarcal. ¿Cuáles son los dolores y silencios en las obras comentadas? ¿Cuánta violencia hay en ser mujer o en cuerpos de género, feminizados y racializados? Se trata de las políticas de vida y muerte vigentes que los artistas contribuyen a analizar. Ambas usan el arte como una estrategia de lucha y resistencia en la construcción de una poderosa estética feminista para producir transformaciones en la sensibilidad colectiva.

Palabras clave: psicología social; arte; feminismo.


 

 

O que é ou deveria ser público?

Neste texto busco articular mulheres, arte e política como dimensões para pensar o presente. Almejo um ensaio que está longe de um ponto final. Ensaiar uma cartografia, a partir do pensamento foucaultiano, é uma “experiência modificadora de si no jogo da verdade [...] um exercício de si, no pensamento” (Foucault, 1984, p.13). As artistas e as obras que serão comentadas a seguir são utilizadas como dispositivos, ou seja, como estratégia para pensar o que nos acontece, enxergar os intoleráveis no presente, recusar o que somos (Deleuze; Guattari, 2015; Foucault, 1995; 1984), bem como procurar os germens de vida que possam descolonizar o pensamento e o desejo na produção de outras saúdes (XXXXX, 2018; 2019).

Inspirada pela proposta deleuziana de “escrever é lutar, resistir; escrever é vir a ser; escrever é cartografar” (Deleuze, 2005, p. 53), ensaio uma cartografia que tanto (re)conhece as violências e violações do direito de ser/estar quanto procura pelo que escapa. São nas brechas que é possível enxergar movimentos coletivos de pensamento, ação e criação de mundos outros e quiçá seja um antídoto contra as fomes e os adoecimentos gerados pelo deserto da monocultura1 que marcam o presente. Sentir e ser/estar são tomados aqui como estratégias de resistência frente às formas de assujeitamento e homogeneização da vida. Irei, sem a pretensão de ser conclusiva, problematizar corpos, políticas e produções artísticas como “territórios em mutação” (Lima, 2009), que possibilitam estranhar o que nos é comum e não deveria sê-lo, bem como quais são os novos comuns que estão em processo de criação (Blanchot, 2013).

A proposta é um convite às misturas, um exercício de pensamento que não tem a pretensão de esgotar a discussão nem no campo das artes e tampouco na produção de subjetividades. Embora ciente de que o presente está repleto de violências e violação de direitos, interessa-me procurar as “brechas, por minúsculas que sejam, para reativar nossa imaginação política, teórica, afetiva, corporal, territorial, existencial” (Pelbart, 2013, p.13).

Rosana Paulino e Beth Moysés são artistas brasileiras que trabalham com as problemáticas sociais, e seus trabalhos já alcançaram projeção nacional e internacional. A produção artística possibilita um constante movimento de espelho e reflexo das questões existenciais e permite “desaprender os princípios das obviedades que são atribuídas aos objetos, às coisas. Ela parece esmiuçar o funcionamento dos processos da vida, desafiando-os, criando para novas possibilidades” (Canton, 2009, p. 13). E, ainda, a arte tem potência para criar uma “narrativa paralela que areja a linguagem, como as minhocas arejam a terra” (Varejão, 2014).

Nesse exercício de pensamento a arte é dispositivo para esmuiçar e arejar as ideais sobre o cenário nacional e suas desigualdades sociais. O presente traz a necessidade de desnaturalizar os marcadores de gênero e raça/cor/etnia. Como ensina Mbembe, “a diferença se tornou um problema político e cultural no momento em que o contato violento entre povos, por meio da conquista, do colonialismo e do racismo, levou alguns a acreditarem que eram melhores que outros” (Mbembe, 2016). Somado aos marcadores, há em curso inúmeras estratégias biopolíticas e necropolíticas de silenciamento, assujeitamento e morte que balizam a vida cotidiana, aqui em especial na precarização da vida de mulheres, corpos feminizados, racializados e experiências outras.

Mbembe (2018), retoma e atualiza as discussões foucaultianas sobre o racismo, sendo uma “tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder, “este velho direito soberano de matar”. Na economia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição da morte e tornar possíveis as funções assassinas do Estado. Segundo Foucault, essa é “a condição para aceitabilidade do fazer morrer”” (Mbembe, 2018, p. 18). Em contextos pós-coloniais, a colonialidade define quais são os “corpos matáveis” ou as vidas precarizadas num estado constante de guerra. Assim, as violências do projeto moderno colonial-capitalista que funda, forma e conforma a sociedade brasileira produz “políticas de morte”, permitindo o direito de matar e mantendo populações e grupos como “mortos-vivos”. No atual diagrama de poder é almejado a aniquilação do outro considerado como inimigo. (Mbembe, 2018; 2016).

O que é e o que deveria ser público, o pessoal e o político, o masculino e a cor branca como referências, a arte e a vida, dentre outras dimensões e provocações compõem o meu breve passeio, a seguir, pelas artistas Rosana Paulino e Beth Moysés. Ambas, a partir de suas obras, produzem uma “estética feminista” (Rago, 2015), usam a arte como estratégia de luta e resistência e “borram as fronteiras entre ficção e realidade, intimidade e política, o eu e o mundo, [mulheres] especialistas que são na arte do questionamento dos mecanismos moleculares de sujeição” (Rago, 2015, p. 105).

Ao escolher as artistas para esta discussão, aproveito os indicativos de Herkenhoff compondo um “movimento cartográfico de bússola à procura de um norte” (2016, p.11). A direção que me interessa seguir não é o norte que se auto proclama global, com seus sistemas de avaliação, classificação e homogeneização da vida. O caminho a ser trilhado é na tentativa de abertura para outros modos de sentir, pensar e ser/estar ao “buscar a clareza entre sombras quando a ética social é do fazer desaparecer o discurso feminino em opacidade” (Herkenhoff, 2016, p.11), bem como de corpos racializados e generificados. Sendo assim, as artistas a seguir produzem estéticas feministas e/ou decoloniais/descoloniais, uma aberta para invenção de mundos outros desde o Sul (Bidaseca, 2019).

Das artistas e obras: preto e branco

Rosana Paulino

Rosana Paulino2 é artista e pesquisadora das Artes Visuais e os seus trabalhos alcançaram projeção nacional e internacional no cenário artístico. Dentre as características para a sua identificação, destaco ser uma brasileira, mulher cisgênero e negra, dimensões que serão problematizadas em suas produções. Somo, ainda, o fato da artista coloca-se como educadora, com doutorado em Artes Visuais pela Universidade de São Paulo, uma das mais importantes universidades públicas do País. Em seu fazer criativo, há combinações que vão desde as memórias da infância, quando brincava com o barro no fundo de casa, até fotos de família e de desconhecidos aos elementos ordinários da vida doméstica e das religiões de matrizes africanas.

Dos trabalhos de Paulino, começo com “Bastidores”, de 1997, onde a artista apresenta uma sequência de fotos de mulheres negras que foram estampadas no tecido e emolduradas por bastidores, artefato utilizado para a confecção do bordado. As mulheres têm bocas, garganta e olhos costurados grosseiramente. A artista, na qualidade de pesquisadora de si e dos seus e suas, questiona qual o lugar das pessoas negras na sociedade brasileira e não se acostuma com as explicações. Sua obra tem a audácia de “gritar, mesmo que por outras bocas estampadas no tecido ou outros nomes na parede. Este tem sido meu fazer, meu desafio, minha busca” (Paulino, 2009).

O que não se pode ver e dizer? Quais vidas continuam nos bastidores, invisíveis e silenciadas? Quando irão compor o ato? Quanto da história brasileira há nas costuras da artista? O que dizem as mulheres, em especial as mulheres negras, ao descosturar as próprias bocas e olhos? Quais são as atuais estratégias de silenciamentos e cegueiras? Aceito as provocações feitas pelas obras de Paulino e abandono a pretensão de construir respostas únicas.

Na obra “Parede da memória”, que foi construída ao longo dos anos de 1994 até 2005, quando adquirida pela Pinacoteca de São Paulo, a artista estampa imagens de pessoas negras em pequenas almofadas e costura as bordas de forma rústica. As almofadas são como patuás, objetos de matrizes africanas utilizados para proteção espiritual, e apresentam uma sequencia de pessoas negras, como casais, crianças, adultos e famílias. Ao observá-las, questiono-me: as pessoas nas fotos são familiares de Paulino? Qual a origem dos seus e suas? Quais são as histórias contadas de quando foram trazidos à força ao Brasil? É possível conversar sobre a escravidão do passado quando a violência continua viva? Quantos morreram na travessia do Atlântico? Quais as divindades as e os protegem?

Em “Assentamentos”, instalação de 2011 e 2012, o passado/presente marcado pela invenção e hierarquia das raças é trazido à cena. A instalação é composta por uma foto frontal de uma mulher negra, nua e com os braços firmes posicionados ao longo do corpo. A artista corta a foto e depois a costura. A linha está aparente e os pedaços do corpo estão desalinhados. Um coração sangrando foi acrescentado ao peito da mulher e dele escorre um fino fio vermelho. A imagem está no centro e ao lado estão inúmeros braços e pernas de pessoas negras empilhados em cima de palets.

Paulino (2013; 2019), na qualidade de pesquisadora da nossa história, utiliza uma fotografia do final do século XIX que compõe a pesquisa de Louis Agassiz, zoólogo suíço e professor da Universidade de Harvard na época. No acervo há imagens de pessoas africanas que viviam no Brasil e que foram fotografadas nuas (nas posições de frente, costas e lado) para comprovar a suposta superioridade da raça branca sobre as demais. A artista usa uma das fotos como estratégia para enfrentar a história brasileira escravocrata e o fato de ser o último país das Américas a realizar a abolição.

A artista, quando amontoa braços e pernas pintados de preto ao lado da foto, faz o público não esquecer que as negras e os negros eram considerados como “lenha para se queimar”, sendo que “a mecânica da escravidão era tão perversa que a expectativa de vida de um escravo nascido no Brasil girava em torno de 19 anos” (Paulino, 2013). Sendo assim, as pessoas negras, seus membros e os palets atualizam a história brasileira, marcada pela colonização e escravidão, sendo o Brasil um país agrário que continua a exportar matéria-prima com altos custos humanos e ambientais.

A costura na poética da artista é uma das estratégias de resistência. É um elemento que caracteriza o universo doméstico, feminino e privado. O artesanato e as artes têxteis já foram sinônimos da arte feita por mulheres, logo, sem valor no sistema colonial, capitalista e patriarcal. O bordado e a costura, embora possam remeter à delicadeza, aqui é a linha e a agulha que se juntam para calar a voz das mulheres e pessoas negras e definir até onde e quando se pode ir.

Além disso, inspirada por Bidaseca, o ato de costurar remete a disposição da artista em cuidar e reparar uma “ferida impossível de curar imposta entre um ser humano e seu lugar de origem, entre mim e o verdadeiro lar: a tristeza essencial” (Bidaseca, 2016, p. 82, tradução nossa3). Embora a origem seja uma ferida marcada pela tristeza, a arte e suas linhas podem colaborar para inventar outro presente. Quiçá o ato de costurar feito pela artista possa produzir o início da cicatriz nessa “tristeza essencial” para enxergar a história da retirada forçada de pessoas de sua terra e colaborando para a sociedade brasileira questionar o “mito da democracia racial” que alimenta o racismo cotidiano (Carneiro, 2011).

A todo o momento a artista (re)conta a história, que é pessoal e coletiva. É a história de inúmeros povos diaspóricos, bem como os laços de solidariedade produzidos desde o cativeiro. Ainda em “Assentamento”, a artista acrescenta ao corpo da mulher nua ora um coração que sangra, ora um feto no ventre, ora raízes saindo dos pés e da cabeça. São linhas que provocam a pensar sobre a brutalidade do projeto colonial que condenava pessoas ao cativeiro, o futuro de violência das crianças nos ventres das mães e, ainda, o enraizamento dos corpos e suas conexões com a terra e com as divindades. Paulino enfatiza, inclusive, o necessário reconhecimento das inúmeras contribuições dos povos africanos que trouxeram os seus saberes e as suas práticas e que “assentaram aqui sua força, seu axé” na formação econômica e cultural do Brasil e das Américas (Paulino, 2013).

Assim, a poética da artista é marcada pelos fios da memória, pela vida e pelos corpos dos seus e suas para reafirmar os laços de reciprocidade entre os povos negros, que denuncia o horror da escravidão e do genocídio, bem como que trabalha e luta por reconhecimento e reparação. As linhas que ainda aprisionam corpos racializados e generificados provocam-me a pensar na potência para modificar as sensibilidades e alinhavar posicionamentos ético-políticos que desnaturalizam a história brasileira.

A história é contada a partir de qual perspectiva? Quais histórias precisam ser (re)contadas? Quais memórias precisam ser coletivizadas e quais feridas carecem de cuidados? O que é considerado conhecimento? Do passado escravocrata ao presente ainda marcado pelas desigualdades sociais, a obra de Paulino tem a ousadia de questionar o racismo na constituição do Estado-Nação e da Ciência Moderna.

Em 2016, a artista produz um livro com o título “¿História Natural?”. A obra coloca em evidência o racismo do projeto colonial que se utilizou do discurso científico da época para classificar, hierarquizar e inferiorizar povos a partir da invenção da raça. A perspectiva branca e européia autodeclarava-se como científica, neutra, superior e colocando-se como norma. Nas páginas do livro há costuras aparentes, imagens de azulejos portugueses, crânios desenhados, radiografias de mãos, pinturas da fauna e flora brasileiras e frases como “o progresso das nações/a salvação das almas/o amor pela ciência” (Paulino, 2019, p. 127).

De “¿História Natural?” destaco a imagem “As Gentes”, que é composta por uma sequência de azulejos em branco e azul, com caravelas ao mar ao fundo, e no primeiro plano três imagens: uma mulher negra e dois indígenas com os rostos recortados. Os corpos e os adornos da negritude e dos povos ameríndios estão sem rosto, são vazios. Quais rostos cabem nos vazios deixados nas imagens? Quais histórias ainda não foram desnaturalizadas? Dentre as inúmeras provocações, aproveito o questionamento de Herkenhoff que se indaga sobre a constituição das ciências humanas e a necessária emancipação do que é considerado como “objetos de conhecimento” (2016).

A artista, em suas obras e na reflexão que faz sobre si, está “atenta à dimensão linguística da história. Paulino pouco menciona o 'escravo', mas os escravizados para expor a violência ativa do processo e denunciar a ideia de um destino manifesto no cativeiro” (Herkenhoff, 2016, p. 175). Além de não nos deixar esquecer o fato de que pessoas foram e ainda são escravizadas em pleno século XXI, para Herkenhoff a artista também “trabalha sobre a biopolítica para ampliar, com contornos invulgares, a grande escrita do feminino na cultura brasileira” (Herkenhoff, 2016, p.167).

A artista coloca a sensibilidade coletiva para estranhar e pensar sobre as políticas racistas que definem a vida e a morte. Desafio atual e necessário quando “as formas contemporâneas em que o político, por meio da guerra, da resistência ou da luta contra o terror, faz do assassinato do inimigo seu objeto primeiro e absoluto” (Mbembe, 2018, p. 6).

É com ousadia que a poética de Paulino insiste em produzir deslocamentos no que está naturalizado na subjetividade brasileira. As obras trazem os marcadores de desigualdades - cor de pele e vagina -, que ao se juntarem num mesmo corpo potencializam as vulnerabilidades e demarcam as experiências de si. Embora ainda afetada pelas provocações de Paulino e suas mulheres silenciadas de inúmeras formas, levarei o pensamento do preto ao branco, da carne negra como “a mais barata do mercado”, como denuncia a voz de Elza Soares (2020), ao trabalho de Beth Moysés, a seguir, com o vestido de noiva como o ícone da política patriarcal.

Beth Moysés

Beth Moysés4 é mulher, cisgênero, branca, cursou Artes Plásticas na FAAP e fez mestrado em Artes pela Universidade Estadual de Campinas, ambas escolas importantes que indicam o seu investimento na formação. Suas obras são reconhecidas aqui e no exterior ao problematizarem o feminino no patriarcado há quase três décadas. Utiliza-se de instalações, fotografias, objetos, desenhos, costuras, bordados e performances, que são adaptadas a partir das características locais.

A artista relata que é de seu cotidiano doméstico, quando criança, que começa a observar as relações amorosas e familiares marcadas pela desigualdade entre homens e mulheres (Moysés, 2004). Já na juventude, assume que o seu fazer artístico reúne a paixão pela arte com viés político e ressalta: “quero colaborar para as mudanças necessárias. Quero que as pessoas cresçam, quero que as pessoas tenham mais solidariedade umas com as outras e que as relações afetivas se transformem também” (Moreau, 2014).

No início da carreira, a artista adiciona objetos do universo dito feminino à tela, como luvas, meias de seda e pedaços de tule, e abusa da tinta branca. Ao retirar os objetos da tela, observa os vazios. Depois, abandona a tela para experimentar o branco e coleciona vestidos de noiva. Desde 1990, o vestido de noiva torna-se, de forma concomitante, tema e matéria-prima, já que é um artefato que a artista considera como “abrigos da memória”, carregados de “memória afetiva”. É com e a partir dos vestidos de noiva que a artista passa a se debruçar e o seu fazer está marcado por colocar-se “fragmentando o traje, corto as mangas, tiro as pérolas, aproveito o plissado. Desmistifico o sonho” (Moysés, 2004, p. 93).

Em 1995, expõem os pedaços dos vestidos delicadamente emoldurados e as obras recebem os nomes das mulheres que doaram as peças, tal como “Rosângela”. Em 1996, pendura-os no teto da Capela Morumbi, um dos bairros mais elitistas da cidade de São Paulo. Os vestidos estão longe, no alto, como as nuvens, e a obra é intitulada de “Forro de Sonhos Pálidos”. Na sequência, a artista cobre o chão de uma importante galeria com as peças, convida o público a tirar os sapatos e pisar nos vestidos. Em 1998, na obra intitulada “Luta”, utiliza-se de um par de luvas de boxe e acrescenta pedaços de vestido, como as rendas e as pedrarias ao objeto esportivo, que é marcado pela participação masculina e pela violência.

A artista resolve rechear os vestidos de vida, convida mulheres, muitas vítimas de violências, a usá-los e caminhar pela cidade no exato dia 25 de novembro de 2000, data internacional da não violência contra as mulheres. A performance intitulada como “Memória e Afeto” foi realizada em São Paulo pela primeira vez e depois repetida em vários outros países, acrescida com características locais. A artista, também vestida de noiva, reuniu mais de 150 mulheres vestidas de noiva num cortejo pela Avenida Paulista e arredores. As noivas caminharam juntas pelas ruas do centro da cidade de São Paulo, chegaram até uma cova, já preparada, e lá depositaram o que sobrou dos buquês de rosas brancas que eram despetalados ao longo do percurso realizado em silêncio (Moysés, 2004).

Ao acompanhar o movimento da artista com suas noivas que caminham em silêncio para o próprio enterro, questiono-me: qual a história de cada vestido e de cada mulher que o usou? O que as mulheres contam sobre o casamento e o que não se permitem dizer? Por que colocá-los no teto da igreja, perto do céu, local do sagrado? E depois o convite para pisá-los, sentir com os pés ou como pano de chão? Que caminho é esse da festa à cova? Como romper com o violento ciclo que vai das finas luvas de noiva às de boxe? O que sobra após o combate, cujos oponentes estão em desigualdade desde antes do seu nascimento?

Na performance “Reconstruindo Sonhos” ou na série de fotografias “Mãos Bordadas”, de 2004, o que se vê é uma sequência de mãos com luvas brancas, usadas pelas noivas em casamentos, e que foram bordadas com linhas pretas. Algumas luvas têm a linha da vida refeita com delicadeza, em outras formam um emaranhado grosseiro. Muitas luvas foram produzidas por mulheres vítimas de violências enquanto conversavam sobre o tema em momentos coletivos organizados por movimentos sociais.

Assim como na produção de Paulino, há aspectos do universo feminino como o ato de costurar e bordar. Quem são as pessoas que costuram os vestidos? Em quais condições? Quem pode vesti-los? Como se tece o casamento (na igreja) como valor? Quais ainda são as obrigações de uma mulher casada? Quais pessoas e seus amores têm permissão para celebrar? Quais costuras compõem a poética da artista?

Continuo sem a pretensão de responder às questões elencadas e reafirmo o meu interesse por pensar a partir das obras. São as relações amorosas e privadas entre homens e mulheres no patriarcado que ganham destaque na produção de Moysés. A luta, em alinhamento com a obra de 1998, é pela dignidade das mulheres e pelo fim das violências. As performances e demais produções de Moysés levam-me a questionar a ascensão da condição de senhorita a senhora com o casamento, do sonho branco da igreja, do véu com a grinalda à morte - não só a biológica - em decorrência das violências de gênero, domésticas e sexuais, além de demais violações do direito de ser/estar no mundo que ainda demarca a vida de mulheres, corpos feminizados e experiências outras.

Artista, obra e público se alimentam na produção de Moysés. É uma combinação entre a Beth que planeja as performances, as noivas-beths que caminham pelas ruas, as que costuraram as peças, as que doam os vestidos e os buquês, as pessoas que se emocionam ao assistirem um cortejo que denuncia as violências. Essas mulheres, num peregrinar pela cidade, questionam o que é público e o que deveria sê-lo, interrogam os rumos considerados naturais das experiências de si. Dentre inúmeras provocações, destaco o sonho reiterado pela colagem vagina/mulher/mãe/normal, cujo casamento e os filhos são destinos e sinônimos de sucesso a despeito de sofrimentos e renúncias.

Na poética de Beth Moysés há períodos nas delegacias da mulher no Brasil, articulação com movimentos sociais e em equipamentos de proteção às mulheres na Espanha. A artista também se coloca na difícil tarefa de acolher e conversar com as vítimas de violências. Parece-me que a artista também almeja descosturar bocas e (re)montar corpos e sonhos, como propõe Paulino com suas obras. Do que não se pode ainda dizer? Quais outras tantas invisibilidades compõem o presente?

Na performance “Diluídas em água”, em 2008, a artista convida as mulheres a escreverem, com canetinha vermelha, as suas histórias em vestidos brancos e muitas duvidam que têm algo a dizer, conta a artista (Moreau, 2014). Na sequência, numa grande roda, outras mulheres colocam os vestidos e se despem em praça pública. Depois, os vestidos são lavados em bacias e a água fica vermelha. A intervenção questiona o ditado popular 'roupa suja se lava em casa'. É o privado, o casamento, a intimidade e o amor romântico colocados na rua para o debate. É o sonho que se transforma em sangue que denuncia as inúmeras formas de violência contra as mulheres e corpos feminizados nas relações afetivas no patriarcado.

Ao denunciar as dores e os silêncios que marcam a vida coletiva, em especial das mulheres e corpos feminizados, a obra de Moysés é um convite a enxergar outras suavidades, tonalidades e costuras. A artista cita o poema Resíduo, de Drummond, “De tudo fica um pouco... Sempre fica um pouco. E é nessa construção criativa do ser humano que os resíduos vão se transformando em outras coisas, como arte” (Moreau, 2014), e quiçá, possam transformar as sensibilidades.

Considerações provisórias

Rosana Paulino e Beth Moysés são artistas que apontam questões sobre o presente, sobre o que é ser/estar mulher e não branco e desnaturalizam as violências e violações, tanto as cotidianas quanto as históricas. Quanta dor cabe no silêncio das produções aqui comentadas? Quanto de violência há em ser/estar mulher ou corpos feminizados e racializados? O que é ou deveria ser púbico, coletivo, comum?

As artistas e obras apresentadas discutem o nosso cenário. Em ambas, temos histórias pessoais, memórias da vida e corpos que compõem as produções e que se somam aos inúmeros anônimos e anônimas que dão vida aos trabalhos. Obras que (re)contam histórias, que são tão pessoais quanto políticas, e que não se eximem de problematizar as desigualdades raciais e de gênero.

Moysés (2004), quando estava finalizando os bordados no par de luvas de boxe que intitulou de “Luta”, recorda-se da importante artista Louise Bourgeois, que também incluiu a costura e o tecer em sua poética e para quem “as agulhas servem para reparar os estragos” (2004, p. 97). Parece-me que as artistas comentadas aqui indicam que as linhas que aprisionam também carregam a potência para produção de outras sensibilidades na reparação de estragos provocados pelo projeto colonial, escravocrata e patriarcal. Ambas trazem novos ares ao pensamento e à sensibilidade, como as minhocas arejam a terra, produzindo “assentamento”, como propõe Paulino (2019), colocando as peças em seu devido lugar para enxergar os intoleráveis no presente.

Nada mais questionador do que a produção de artistas mulheres que ousam habitar a rua ou o museu, lugares ainda brancos e masculinos, com problemáticas sociais. Sobre a cena artística, cito o projeto “A história da _rte”, que pesquisou os 11 livros mais estudados sobre a temática e observou-se que: do total de 2.443 artistas, apenas 215 (8,8%) são mulheres, 22 (0,9%) são de pessoas negras e 645 (26,3%) são não europeus (Moreschi, 2017). O questionamento do coletivo de ativistas feministas Guerrilla Girls continua atual: “As mulheres precisam estar nuas para entrar no Metropolitan Museum?”. O cartaz foi confeccionado em 1989, evidenciando a desigualdade de gênero na Arte americana, e atualizado para a exposição que ocorreu em 2017 no Museu de Arte de São Paulo. Segundo as estatísticas do Museu, que compõem a versão brasileira do cartaz, de todo o acervo paulista somente 6% são artistas e 60% dos nus são femininos (MASP, 2017).

É com e a partir dessas artistas que alinhavo os fios de uma cartografia que se utiliza das produções de brasileiras na Arte Contemporânea para questionar da escravidão ao patriarcado, das mulheres negras silenciadas aos vestidos de casamento, como dispositivos que fazem funcionar a política patriarcal, heteronormativa, racista e machista, bem como outras dimensões que despotencializam a vida. Há um longo caminho para minhas reflexões e por isso questiono: quais outras políticas e poéticas precisam ser reinventadas?

Para artistas e obras aqui comentadas o pessoal é político, tal como marca o movimento feminista desde a década de 1970. As artistas destacam a função política de seus trabalhos, entretanto desconheço se fazem pessoalmente declarações públicas como feministas. Entendo a definição como irrelevante, já que ambas produzem “estéticas feministas” (Rago, 2015) e emprestam suas ousadias para questionar as dimensões do público e privado tornando-as “fronteiras que se diluem, já que a luta pelos direitos civis não se dissocia, no feminismo, das questões colocadas pela crítica do sujeito e pelas tentativas de criação de novos modos de existir no feminino” (Rago, 2015, p.105) e, também, nos modos não binários e não brancos de ser/estar.

Embora a discussão aqui esteja centrada nas mulheres, é a vida que difere da norma e que questiona as políticas identitárias que me interessam. São as mulheres/devires, em especial as que se produzem a despeito da biologia, que resistem e se reinventam, vidas que escapam do padrão normativo e, de forma concomitante, indagam os lugares de verdade. São experimentações de si, tanto pessoais quanto políticas, que inauguram outras perspectivas, dimensões nas quais as fronteiras entre a arte e a vida já não existem mais.

A mobilização dos movimentos de mulheres, pessoas negras, LGBTTQI+, indígenas, dentre inúmeros sujeitos que estão no lugar de outra/outre/outro, e os avanços em alguns direitos sociais e civis podem ser indicativos de mudanças na sensibilidade coletiva? Faço coro às perguntas de Moysés: “qual a medida do poder da arte no sentido de alterar a vida? A arte pode mudar a realidade? São essas as questões que frequentemente nos formulamos nos embates de arte-vida ou ao considerar arte e política” (Amaral, 2010).

A arte é uma experiência de delicadeza, segundo Celso Favaretto (1999) e, como tal, com potência para produzir novas suavidades ao inaugurar fissuras no que se apresenta como natural, verdadeiro, como o mesmo desde sempre. Sendo assim, quiçá as mulheres costuradas, as noivas caminhando para seus próprios enterros e as lenhas ainda queimadas no cotidiano racista possam produzir inúmeros estranhamentos sobre o mundo que construímos ao viver.

Sujeitos e seus corpos estão em mutação, para Paul Beatriz Preciado (2011; 2014). Este pensador propõe dessacralizar os textos, ou seja, não há texto, corpo, autor, norma, saber ou posição inquestionável. O corpo é uma tecnologia de inscrição jurídico-normativa, um texto a ser construído e que pode escrever/reescrever a sua história. Preciado (2011) considera como “ficções políticas” as posições de feminino, masculino, hetero, homo, bi, cis, trans, dentre tantas outras formas de nomear, capturar e adoecer as experimentações de si, a partir das práticas sexuais ou do essencialismo biológico.

A produção artística nacional, aqui em especial com Rosana Paulino e Beth Moysés, é um indicativo da construção de resistências e desvios às formas de subjetivação vigentes, numa aposta ético-política que “não repousa sobre uma identidade natural (homem/mulher) nem sobre uma definição pelas práticas (heterossexual/homossexual), mas sobre uma multiplicidade de corpos que se levantam contra os regimes que os constroem como 'normais' ou 'anormais'” (Preciado, 2011, p.16). A tarefa é dessacralizar os corpos, abri-los às inscrições e renunciar “à condição natural de mulher e de homem, a todo privilégio (social, econômico, patrimonial) e a toda obrigação (social, econômica e reprodutiva), derivados de minha condição sexual no sistema heterocentrado naturalizado” (Preciado, 2014, p. 44), bem como renunciar à condição natural de raça e enxergar aos privilégios da branquitude.

Por fim, continuo essa cartografia que toma a arte como dispositivo para pensar o presente, em especial na perspectiva feminista e descolonizadora/decolonial. Há inúmeras artistas brasileiras cujas poéticas desnaturalizam e reinventam dimensões vitais, tais como: corpo, gêneros, raça/cor/etnia, obrigações e privilégios, modos padronizados de ser/estar/desejar. Quiçá a arte possa produzir outros olhares e modos de cuidar das feridas do passado e do presente ao alivanhar os fios para as necessárias mutações na sensibilidade coletiva no enfrentamento do empobrecimento da existência.

 

Notas

1 Uma das características de Mato Grosso do Sul (MS), de onde escrevo, é a alta produtividade do agronegócio. Parece-me que a monocultura produz desertos e fomes de várias ordens já que o MS também lidera as violências e as violações de direitos contra as mulheres, pessoas LGBTTQI+ e os povos indígenas.

2 Os trabalhos artísticos e acadêmicos de Rosana Paulino podem ser acessados em sua página pessoal no seguinte endereço: http://www.rosanapaulino.com.br/.

3 No original: “es la grieta imposible de cicatrizar impuesta entre un ser humano y su lugar natal, entre yo y suverdadero hogar: la essencial tristeza'” (Bidaseca, 2016, p. 82).

4 Os trabalhos artísticos de Beth Moysés podem ser acessados em sua página pessoal no seguinte endereço: http://bethmoyses.com.br.

 

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Enviado em: 29/12/19
Aceito em: 06/03/20

 

 

Catia Paranhos Martins é Psicóloga com graduação, mestrado e doutorado em Psicologia pela UNESP/Assis. Docente da Faculdade de Ciências Humanas, Curso de Psicologia e do Programa de Pós-gradução em Psicologia da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Mato Grosso do Sul.
E-mail: catiamartins@ufgd.edu.br

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