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Analytica: Revista de Psicanálise
versão On-line ISSN 2316-5197
Analytica vol.9 no.17 São João del Rei jul./dez. 2020
ARTIGOS
A linguagem na estruturação do aparelho psíquico
Language in the Structuring of the Psychic Apparatus
Le langage dans la structuration de l'appareil psychique
El lenguaje en la estructuración del aparato psíquico
Sybele Macedo*
RESUMO
A psicanálise tem como objeto o inconsciente, um saber falado que é estruturado como uma linguagem. A linguagem é fundamental à vida do espírito, ela antecede o sujeito e é estruturante. Apenas por meio dela podemos dotar de significação o mundo em que vivemos e os absurdos de nossa existência. Os fenômenos da linguagem estão intimamente relacionados à vida psíquica e sua importância pode ser percebida desde os primeiros trabalhos freudianos. Diante disso, este artigo tem como objetivo discutir o papel da linguagem na estruturação do psiquismo, partindo dos modelos de aparelho psíquico desenvolvidos por Freud, especialmente no princípio de sua obra, a fim de compreender o aforismo lacaniano, segundo o qual o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Entende-se, assim, que não somente o inconsciente segue as leis da linguagem, mas que não há discurso possível sem a condensação (metáfora) e o deslocamento (metonímia). Conclui-se, assim, que a linguagem estrutura o psiquismo e que, por isso, somos servos do significante.
Palavras-chave: Psicanálise, Linguagem, Aparelho psíquico.
ABSTRACT
Psychoanalysis has as its object the unconscious, a spoken knowledge that is structured as a language. Language is fundamental to the life of the spirit, it precedes the subject and is structuring. Only by means of it can we endow the world in which we live and the absurdities of our existence with meaning. The phenomena of language are intimately related to the psychic life and its importance can be perceived from the earliest Freudian works. This article aims to discuss the role of language in the structuring of the psyche, starting from the models of psychic apparatus developed by Freud, especially at the beginning of his work, in order to understand the Lacanian aphorism according to which the unconscious is structured as a language. It is understood, therefore, that not only does the unconscious follow the laws of language, but that there is no possible discourse without condensation (metaphor) and displacement (metonymy). We conclude, then, that language structures the psyche and that we are, thus, servants of the signifier.
Keywords: Psychoanalysis, Language, Psychic apparatus.
RÉSUMÉ
La psychanalyse a pour objet l'inconscient, une connaissance parlée structurée comme un langage.Le langage est fondamental à la vie de l'esprit, il précède le sujet et est structurant.Ce n'est que par le biais de cela que nous pouvons donner un sens au monde dans lequel nous vivons et aux absurdités de notre existence.Les phénomènes du langage sont intimement liés à la vie psychique et son importance peutêtre perçue dès les premières œuvres freudiennes.Cet article vise à discuter du rôle du langage dans la structuration de la psyché, à partir des modèles d'appareil psychique développés par Freud, notamment au début de son travail, afin de comprendre l'aphorisme lacanien selon lequel l'inconscient est structuré comme un langage.Il est donc entendu que non seulement l'inconscient suit les lois du langage, mais qu'il n'y a pas de discours possible sans condensation (métaphore) et sans déplacement (métonymie). Nous concluons donc que le langage structure la psyché et que nous sommes donc les serviteurs du signifiant.
Mots-clés: Psychanalyse, langage, appareil psychique.
RESUMEN
El psicoanálisis tiene como objeto el inconsciente, un saber hablado que es estructurado como un lenguaje. El lenguaje es fundamental para la vida del espíritu, precede al sujeto y es estructurador. Sólo por medio de ella podemos dotar de significación al mundo en que vivimos y los absurdos de nuestra existencia. Los fenómenos del lenguaje están íntimamente relacionados con la vida psíquica y su importancia puede ser percibida desde los primeros trabajos freudianos. En este sentido, este artículo tiene como objetivo discutir el papel del lenguaje en la estructuración del psiquismo, partiendo de los modelos de aparato psíquico desarrollados por Freud, especialmente en el principio de su obra, a fin de comprender el aforismo lacaniano según el cual el inconsciente es estructurado como un lenguaje. Por lo tanto, se entiende que el inconsciente no solo sigue las leyes del lenguaje, sino que no existe un discurso posible sin condensación (metáfora) y desplazamiento (metonimia). Concluimos, entonces, que el lenguaje estructura la psique y que somos, por lo tanto, servidores del significante.
Palabras claves: Psicoanálisis, Lenguaje, Aparato psíquico.
No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.
(João 1:1)
1 Introdução
A linguagem antecede o sujeito. Ela é o anteparo entre eu e o outro e aquilo que nos permite ser no mundo. A linguagem é fundamental à vida do espírito, é estruturante e, por meio dela, podemos dotar de significação o mundo, a natureza e os absurdos da nossa existência.
A Psicanálise tem como objeto o inconsciente, um saber falado que, assim como propôs Freud, deve ser lido como um sistema de inscrições. Podemos afirmar que só há o inconsciente - e a Psicanálise - porque há linguagem, já que é ela que permeia as relações entre o eu e o outro. Os fenômenos da linguagem estão intimamente relacionados à vida psíquica e sua importância pode ser percebida desde os primeiros trabalhos freudianos.
O papel da linguagem e da ordem simbólica é fundamental na inauguração do psiquismo e na estruturação de seu aparelho. Em 1891, Freud escreveu um estudo crítico intitulado Sobre as concepções das afasias (1891/2016), obra de cunho neurológico, mas que já apresentava indícios do que viria a ser a Psicanálise, além de conter as sementes de alguns dos conceitos fundamentais dessa nova ciência. O texto sobre as afasias não só demarca a ruptura de Freud com o campo da neurologia, mas também oferece o primeiro modelo de aparato psíquico, ali chamado de aparelho de linguagem. Outros modelos seriam propostos, como o aparelho neurônico do Projeto para uma Psicologia Científica (1895/2006) e o aparelho de memória da Carta 52 a Fliess (1896/2006), até que Freud desenvolvesse o assim chamado aparelho psíquico em A interpretação dos sonhos (1900/2006). Em todos eles, linguagem e memória aparecem como sendo de ordem estruturante.
Diante disso, este artigo pretende discutir, a partir de um retorno aos modelos de aparelho psíquico propostos por Freud, o papel da linguagem na constituição psíquica, buscando, nos rastros de alguns dos primeiros trabalhos freudianos, as bases que viriam a sustentar o aforismo lacaniano, segundo o qual o inconsciente é estruturado como uma linguagem.
2 O aparelho de linguagem e o aparelho neurônico: a passagem da neurologia à Psicanálise
Freud, em 1891, estava às voltas com questões concernentes ao funcionamento da linguagem. Seus achados na clínica colocavam em xeque algumas das importantes teorias de neurólogos da época, muitos deles seus mestres. É nesse cenário que Freud escreve seu estudo sobre as afasias (1891/2006), texto mantido à margem das compilações de suas obras por ser considerado de cunho altamente neurológico. Entretanto, esse trabalho não só assinala a radical ruptura de Freud com a Neurologia Ortodoxa Alemã, mas destaca-se também pela "lucidez com que procura separar o âmbito da anatomofisiologia daquele da Psicologia, intimamente vinculado à problemática da linguagem" (Rossi, 2016, p. 153).
Preocupado com questões relativas à dinâmica associativa das representações que compõem o substrato da linguagem, Freud (1891/2016) viu-se diante da insuficiência dos esquemas propostos na época, que tentavam correlacionar os distúrbios afásicos a lesões orgânicas, localizadas emá reas específicas do córtex. Partindo de problemáticas neurológicas, o vocabulário utilizado por Freud vai sendo
[...] gradativamente revestido de novos sentidos, à medida que a atenção às estruturas físico-biológicas - nas quais supunha poder "localizar" a linguagem e o psiquismo - dá lugar às abstrações estruturais - funcionais que fazem da própria linguagem o substrato para a compreensão do psiquismo. (Tavares, 2016).
Fazendo uso de exemplos clínicos, Freud (1891/2016) critica fortemente as chamadas teorias localizacionistas da é poca, apresentadas, entre outros, por Meynert, Broca e Wernicke, e propõe uma abordagem dinâmica para a tentativa de compreender não somente as afasias, mas também o funcionamento da linguagem. Surge, assim, o seu Sprachapparat - o aparelho de linguagem.
O texto sobre as afasias já apresenta os rudimentos daquilo que viria a ser a Psicanálise e, como Tavares (2016, p. 13) chama a atenção, denota a "importância atribuída à linguagem desde os primórdios das proposições freudianas acerca do funcionamento e da estruturação do psiquismo". Freud oferece, em seu texto, o substrato para a compreensão do psiquismo e concebe um modelo de aparelho que "transborda seus próprios limites para se constituir no primeiro modelo de aparelho anímico" (Garcia-Roza, 1991, p. 17).
Alguns importantes conceitos da Psicanálise, como Besetzung (ocupação, investimento, catexia), Nachträglich (a posteriori, só depois), Projektion (projeção), já aparecem na monografia sobre as afasias. Entre eles, encontra-se o conceito de representação (Vorstellung), a partir do qual Freud pôde desenvolver sua tese sobre o paralelismo psicofísico, transpondo "as fronteiras dos estudos meramente fisiológicos rumo às elocubrações psicanalíticas" (Rossi, 2016, p. 156). Em seu estudo, e considerando sua experiência clínica, Freud (1891/2016) compreendeu a necessidade de tratar o córtex como um grande campo da linguagem, rejeitando assim o modelo anatomopatológico de explicação para o seu funcionamento, destacando a "dinâmica associativa simbólico-imagética" (Rossi, 2016, p. 160) subjacente, desvelada por seu aparelho de linguagem.
Freud (1891/2016) apropria-se do discurso da Psicologia de sua é poca, segundo a qual a palavra - representação complexa composta por elementos visuais, acústicos e cinestésicos - seria a unidade mínima, mas recusa a ideia de que a representação seria apenas um efeito mecânico da estimulação externa, captada pelo sistema perceptivo e, em termos mais amplos, como explica Garcia-Roza (2004b), rejeita também a ideia de que o processo psicológico seja um epifenômeno do processo fisiológico, como uma duplicação ou efeito secundário. Assim, passa a estabelecer o seguinte acerca das representações: a) a representação deixa de ser concebida como algo contido na célula nervosa; b) a representação não pode mais ser pensada com o independente das associações, ambas constituem um mesmo processo; c) a representação deixa de ser concebida como um simples efeito mecânico da estimulação periférica; d) a representação passa a ser entendida como a diferença entre duas séries de associações, o que implica que o aparelho seja concebido em termos estruturais (Garcia-Roza, 2004b) e não mais como a soma de áreas corticais distintas, como propunham as teorias localizacionistas. As associações passam a ser consideradas com o responsáveis pela própria estruturação do aparelho.
Já mais distante de sua posição de neurólogo e tomado por suas experiências clínicas com as histéricas, ao lado de Charcot, em 1895 Freud escreve seu Projeto para uma Psicologia Científica (1895/2006), trabalho que permaneceu inacabado, mas que é chave para a compreensão da evolução de suas ideias acerca do aparelho psíquico. O texto demonstra a tentativa de Freud em aproximar a Biologia e a Psicologia e tem um forte viés naturalista, uma vez que nele o autor se propõe a buscar as bases naturais para a compreensão das atividades do espírito humano. Nele, marca-se a passagem de Freud de uma tentativa de empreender uma Biologia da mente para a construção do que viria a ser a Psicanálise. Unindo convicções epistemológicas profundas acerca das imbricações entre o psíquico e o somático a observações clínicas inovadoras que resistiam a explicações de ordem meramente fisiológicas, nas palavras de Bezerra Junior (2013, pp.28-29), o Projeto é uma tentativa de "articular os conhecimentos adquiridos nas pesquisas neurológicas e os resultados de suas investigações na clínica das psicopatologias" e de "construir uma Psicologia Científica capaz de elucidar cientificamente a conexão entre o funcionamento biológico do sistema nervoso e a vida anímica".
Freud, no Projeto (1895/2006), considera que a vida anímica emerge da atividade do organismo e que a dinâmica do sistema nervoso seria a base da atividade psíquica. Embora em trabalhos posteriores Freud tenha abandonado essa tentativa de encontrar uma solução neurofisiológica para os enigmas do psiquismo, ele nunca admitiu a ideia de "uma Psicologia suspensa no ar, sem uma base orgânica" (Bezerra Jr., 2013, p. 32). Assim, o texto tenta dar conta da quantidade e da qualidade na descrição dos processos psíquicos que eram por ele considerados como expressão do corpo agindo na vida.
No desenvolvimento de seu Projeto (1895/2006), Freud reafirma sua posição antilocalizacionista e, como já havia feito em sua monografia sobre as afasias, critica a ideia do cérebro como órgão da mente, chegando à conclusão de que os distúrbios psíquicos apresentados por seus pacientes tinham uma complexidade específica que exigia uma análise de sua natureza funcional que elucidasse sua lógica, algo do qual as explicações anatomopatológicas não conseguiam dar conta. Os adoecimentos da mente pareciam apontar para uma intrincada organização interna que poderia ser desvendada ao se explorar a lógica subjacente a elas, sem a necessidade de correlação entre os funcionamentos fisiológico e psicológico. Desse modo, Freud chega à conclusão de que
Os sintomas psicológicos e os eventos mentais em geral têm uma natureza dinâmica própria. Não são eventos isolados, mas processos, que emergem do funcionamento articulado de uma complexa rede de funções elementares, que vai se reestruturando no tempo, em resposta às injunções impostas pelo ambiente, pelas circunstâncias, pelo jogo interpessoal. (Bezerra Jr, 2013, p. 86-87).
"A histeria se comporta como se anatomia não existisse, ou como se não tivesse conhecimento dela" escreve Freud (1893-1895/2006). Os sintomas histéricos não pareciam aceitar explicações de ordem orgânica e para Freud parecia inútil procurar lesões anatômicas ou alterações que pudessem justificar o adoecimento. Essas questões já influenciavam o pensamento de Freud desde a concepção de seu Sprachapparat (1891/2016) e, no Projeto (1895/2006), apresentam-se na forma de duas questões fundamentais: como conceber uma teoria do funcionamento psíquico de um ponto de vista quantitativo, ou seja, que forneça uma espécie de economia das forças nervosas e, também, como extrair da psicopatologia um entendimento da vida psíquica normal. É tentando dar conta dessas questões que Freud concebe seu aparelho neurônico.
O aparelho neurônico se estabelece, segundo Freud (1895/2006), obedecendo a dois princípios fundamentais: o da inércia, segundo o qual haveria uma tendência natural a evitar o desprazer, por meio da eliminação de excitações; e o da constância, que assinala a função conservadora de um montante de energia necessário para ação. Ambos operam em sintonia, com o objetivo de viabilizar que a energia (Q) seja descarregada, uma vez que um aumento de Q levaria ao desprazer e sua diminuição ao prazer.
A função do princípio da inércia é a de manter o equilíbrio por meio de duas funções, a primária, responsável pela descarga ou eliminação da quantidade de Q, e a secundária, responsável pela fuga do estímulo. Com isso tenta-se dar conta dos estímulos endó genos ligados às exigências da vida, como a fome, a respiração e a sexualidade - chamados por Freud de Not des Lebens -, que, obedecendo ao princípio da inércia, deveriam ser eliminados ou descarregados de acordo com o esquema do arco reflexo. Como explica Bezerra Jr. (2013), o desprazer provocado pelo aumento da tensão só é reprimido mediante uma ação específica que permitirá a obtenção do objeto capaz de aplacá-la. Para a realização dessa ação específica, o sistema nervoso vê-se obrigado a abandonar a tendência inicial à inércia e tolerar a permanência de uma quantidade mínima de Q que seja suficiente para que o organismo tenha condições de satisfazer as exigências energéticas dessa ação ao mesmo tempo emque resiste ao seu aumento.
Trata-se de uma concepção quantitativa, isto é, há um montante de energia Q que circula pelo sistema nervoso, que está constantemente exposto a e stímulos internos e externos que acarretam o surgimento de excitações capazes de aumento, diminuição e deslocamento e que produzem alterações fisiológicas subjacentes aos fenômenos psíquicos. Há que se considerar, também, a teoria neuronal presente no Projeto (1895/2006) e suas implicações para o entendimento do papel da linguagem na estruturação do aparelho psíquico.
A teoria neuronal proposta por Freud (1895/2006) considera a existência de dois tipos de neurônios, os neurônios phi, que recebem estímulos externos; e os neurônios psi, que recebem estímulos endógenos. Esses neurônios podem ser permeáveis ou impermeáveis, os primeiros conduzem, mas não retêm Q e os segundos retêm Q; assim, os neurônios podem estar ocupados de uma quantidade de Q ou vazios. O conceito de ocupação (Besetzung) viria a ser posteriormente conhecido como catexia ou investimento. Entre os neurônios encontra-se o que Freud denominou de barreiras de contato, as quais opõem uma resistência que pode ser eventualmente ultrapassada e são responsáveis pela constituição de certas vias de facilitação entre os neurônios, tornando possível que certos feixes de neurônios permaneçam investidos ou ocupados por uma quantidade de Q.
Enquanto nos neurônios phi a energia escoa livremente, fazendo com que, após a sua passagem, a célula retorne ao seu estado anterior, uma vez que, por receberem, do exterior, estímulos muito intensos, superiores à capacidade de resistência das barreiras que lhes deixam passar livremente, os neurônios psi são atingidos por estímulos internos de intensidade mais fraca e, por isso, conseguem fazer resistência. Como consequência, os neurônios psi ficam em um estado diferente após a passagem dos estímulos que ultrapassam a barreira de contato. Quando neurônios psi se associam para pressionar o movimento de descarga e a energia consegue superar a resistência, cria-se naquela barreira uma facilitação (Bahnung), uma permeabilidade maior a estímulos posteriores, explica Bezerra Jr. (2013). Estabelecem-se, então, níveis diferentes de facilitação e caminhos preferenciais para a passagem dos estímulos. Está aí a base mecânica da memória, que, para Freud (1895/2006), é constituí da pelos traços de facilitação que trilham caminhos e que diferem de uma mera reprodução idêntica de um traço inalterado devido ao entrelaçamento e à mobilidade das redes de facilitação. Trata-se de uma memória de traços, e todo traço é traço de uma impressão.
Cabe assinalar aqui que a memória em Freud não é de modo algum a memória tomada como objeto de estudo da Psicologia, mas, sim, a memória do sistema psi de neurônios, portanto, a memória inconsciente. Como explica Garcia-Roza (2004a), na concepção freudiana de aparelho psíquico, a memória não é entendida como uma faculdade ou propriedade desse aparelho, uma vez que não surge depois do aparelho já constituído e é por ele processada, mas sim como algo que é formador desse aparelho. "Não é o aparato psíquico que é pré-condição para a memória, mas, ao contrário, esta que é pré-condição para que se forme o aparato psíquico. Para Freud, não há psíquico sem memória" (Garcia-Roza, 2004a, p. 45).
Já nos primeiros trabalhos freudianos (1891/2016; 1893-1895/2006; 1895/2006), é possível perceber o papel central ocupado pela memória, em torno da qual são elaborados seus modelos de aparelho psíquico. Concebido em 1891/2006 como aparelho de linguagem, seu Sprachapparat é, também, um aparelho de memória. Para esse aparelho, nem a linguagem, nem a memória são acidentais (Garcia-Roza, 2004a); sem uma ou a outra não haveria aparelho psíquico. O modo como a memória se constitui e, ao mesmo tempo, constitui o aparelho não pode ser pensado de maneira desarticulada da linguagem. Sem linguagem não há memória, tampouco aparelho psíquico.
3 Marca, traço e inscrição
Desde que nascemos, ou mesmo antes disso, estamos constantemente expostos a uma miríade de estímulos. Apesar disso, nem tudo aquilo a que estamos expostos produz marca, ou seja, nem todos os estímulos se inscrevem. O bebê humano é caracterizado por sua prematuridade e ao nascer é lançado em uma condição de desamparo original que lhe é constitutiva. Não há, no nascimento, aparato psíquico capaz de se esquivar dos estímulos endógenos e produzir sozinho a ação que levaria à satisfação, este ainda precisa ser constituído. Incapaz de dar conta de sua sobrevivência, o neonato é exposto a estados de necessidade ou privação que produzem tensões internas que precisam ser descarregadas para que o desprazer provocado por elas possa ser apaziguado. Tomado por sensações de desprazer, o bebê chora e grita. Sua agitação é percebida pelo outro como demanda. Esse outro, em geral a mamãe ou seu substituto, decifra, nomeia e atende a sua necessidade, e o que era apenas descarga de tensão pela via motora ganha sentido e é introduzido como uma mensagem no universo simbólico. O atendimento à necessidade por meio do objeto oferecido pelo outro produz a inscrição de um traço mnêmico do objeto que propiciou a satisfação, por exemplo, o seio (Bezerra Jr., 2013).
Cada vez que o estado de tensão se repetir, haverá um impulso psíquico para ocupar as imagens mnêmicas do objeto que propiciou a satisfação original, aquela obtida na primeira mamada, cujos traços ficam inscritos no aparelho psíquico que, daípor diante, tentará revivê-la em sua plenitude, fracassando inevitavelmente. Essa primeira experiência de satisfação e seu objeto estão para sempre perdidos. Esse objeto da falta é o que Freud chama de das Ding - a Coisa - e que traz as bases do que Lacan nomeará de objeto a - o objeto causa do desejo.
Quando novamente surgir o aumento da tensão provocado pelo estado de urgência, o sistema psi tenderá a repetir o mesmo caminho bem-sucedido de sua experiência anterior, investindo as mesmas trilhas. Tudo ocorre como na percepção original, explica Bezerra Jr. (2013), mas se o objeto não estiver presente, a excitação não é eliminada. Ocorre, então, uma intensa ocupação da representação desse objeto (o traço mnêmico), ativado pelo desejo. O resultado disso é uma experiência de alucinação, algo idêntico a uma percepção na ausência de um objeto. Para não ficar preso a esse circuito, chamado por Freud de processo primário (1895/2006), o bebê precisa encontrar meios que lhe possibilitem diferenciar objeto e representação, evitando, assim, a confusão entre percepção e alucinação. É o desenvolvimento de sua estrutura interna, que Freud (1895/2006) chamará de eu, que lhe dará os meios para fazer essa diferenciação.
Acerca das inscrições psíquicas produzidas a partir do vivido, Julieta Jerusalinsky (2009) destaca três pontos centrais extraídos da obra de Freud. O primeiro deles, já mencionado anteriormente, é que nem tudo aquilo a que estamos expostos resulta em inscrição. Além disso, nem tudo das experiências que nos marcam se inscreve; o que se inscreve, a partir delas, são traços que não guardam correspondência exata com aquilo que representam, ou seja, não apresentam uma correspondência fixa com os objetos do mundo e, por isso, não têm uma significação inerente. As inscrições psíquicas são, então, recortes de experiências que transformam a percepção recebida em um sistema de inscrições composto de traços. Finalmente, cabe destacar que nem tudo o que está inscrito em um sistema pode ser evocado, destacando-se aqui a função do esquecimento na vida psíquica.
Para Freud, nem tudo o que está inscrito em um sistema do aparelho psíquico passa a outro sistema (1900/2006, 1915/2010a, 1915/2010b). Entre um sistema e outro operam-se transcrições e nem todas as inscrições são transcrevíveis ou tornam-se legíveis. Por isso, as formações do inconsciente, como os sonhos, os atos falhos, os lapsos de memória e os sintomas, apresentam-se como profundamente enigmáticos até mesmo para aquele que as produz.
Ao apresentar o conceito de traços mnêmicos, Freud (1895/2006) assinala o fato de que as experiências vividas não são registradas integralmente, mas são, sim, recortadas quantitativamente e qualitativamente e apenas algumas percepções passam a ser inscritas como traços. As inscrições produzidas não são marcas que se assemelham à realidade, tampouco cópias idênticas da realidade decalcadas no aparelho psíquico. Além de se inscreverem como uma série recortada de traços, tais traços passam também por um complexo sistema de registro que exige transcrições e retranscrições entre os diferentes sistemas psíquicos. Os traços mnêmicos, então, não guardam correspondência com a coisa percebida no mundo, mas com um complexo sistema de inscrições no aparelho. Seu reordenamento responde pela própria formação do aparelho psíquico. Em sua Carta 52 a Fliess (1896/2006), Freud irá descrever pelo menos três transcrições e retranscrições que ocorrem de uma instância psíquica para outra: da percepção ao inconsciente, o inconsciente ao pré-consciente e do pré-consciente à consciência.
A noção de traço remete ao rastro, aos sulcos deixados que resultam no processo de facilitação descrito no Projeto (Freud, 1895/2006). Essa facilitação (Bahnung) nada mais é que um caminho deixado mais permeável para a ocupação, ou investimento, entre um neurônio e outro. Trata-se de uma via que se impõe, se repete, pois seu caminho estaria facilitado.
Ainda na Carta 52 a Fliess (1896 /2006), Freud apresenta a escrita do aparelho psíquico a partir de três tipos de inscrição: signo de percepção (Wahrnehmungszeichehn), traço (Spur), e representação-palavra (Wortvorstellung). Nesse texto, Freud introduz seu primeiro esquema do aparelho psíquico que irá prenunciar os quadros esquemáticos do aparelho psíquico de A interpretação dos sonhos (1900/2006). No esquema que se segue, Freud demonstra esses três registros:
Figura 1. Esquema do aparelho psíquico apresentado na Carta 52 (1896/2006, p. 282).
Onde se lê:
W Wahrnehmungen Percepções
Wz Wahrnehmungszeichen Indicação (ou signo) da percepção
Ub Unbewusstsein Inconsciência
Vb Vorbewusstsein Pré-consciência
Bews - Bewusstsein Consciência
Fonte: Carta 52 (1896/2006, p. 282).
Para Freud, percepção e memória não podem coexistir em um mesmo sistema. O sistema perceptivo (W) é responsável pela receptividade sensorial, enquanto a consciência (Bew) é responsável pela resposta comportamental, não podendo a memória pertencer a nenhum deles. No esquema, Freud (189 6 /2006) localiza em W os neurônios provenientes da percepção, aos quais a consciência se liga, mas que não conservam em si nenhum traço do que aconteceu, uma vez que para ele "a consciência e a memória são mutuamente exclusivas" (Freud, 1896/2006, p. 282). Onde há percepção, não há memória, o aparelho da percepção retorna ao seu estado inicial após a passagem da excitação para que possa receber novos estímulos. O estímulo passa pela percepção em direção ao próximo registro Wz, primeiro registro das percepções que em A interpretação dos sonhos (1900/2006) será chamado de Fixierung - registro. Ao passar ao signo da percepção, o estímulo já não é mais percepção, houve um apagamento nesse primeiro tempo (W), e um registro simultâneo na memória. O signo de percepção (Wz) é a primeira inscrição no aparelho psíquico. O termo "signo de percepção" aparece somente no texto da Carta 52 (1896 /2006), ainda que a separação entre os diferentes registros mnêmicos seja mantida. No esquema apresentado, podemos compreender os signos de percepção (Wz) como correspondentes ao que Freud chama de impressão (Eindruck), ou seja, são signos isolados, não ligados.
A impressão é exterior à linguagem e ao sentido e não se insere na cadeia significante por não estar ligada a outras impressões de modo a formar uma série significante. A impressão tem muito mais o estatuto de uma Prägung do que de um significante, ou a se considerá-la como um signo, ela é mais da ordem do sinal ou do índice do que da ordem do significante. [...] Se considerarmos a impressão como uma Prägung, como uma marca, temos que excluí-la do registro do imaginário e pensá-la como uma marca da irrupção do real, como uma forma de presentificação da libido ou, mais adequadamente, de pulsão de morte. (GARCIA-ROZA, 2004a, pp. 54-55).
Assim como as pulsões fazem uma exigência de trabalho ao aparelho psíquico, as impressões também o fazem, mais especificamente, fazem uma exig ência à memó ria. Essa exigência, como escreve Garcia-Roza (2004a), se faz sob a forma de uma exigência de trabalho ao aparelho mnêmico aos modos do trabalho do sonho, ou seja, de elaborar, sob a forma de um sistema de traços, as impressões compreendidas como simples excitações psíquicas.
O termo Wahrnehmungszeichen - Indicação (ou signo) de percepção - tem importância por constituir-se na primeira inscrição no aparelho psíquico, o que podemos entender com a sua fundação. Para Freud (189 6 /2006), esse registro é articulado por simultaneidade, o que Lacan (1964/2008, p. 51) retoma ao dizer que Freud "nos designa agora um tempo em que esses Wahrnehmungszeichen devem ser constituídos na simultaneidade. O que é isso se não a sincronia do significante?" Podemos inferir que esses signos de percepção apontam, então, para a origem do significante.
A utilização do termo simultaneidade nesse tempo de uma primeira inscrição é importante para destacar que, ao mesmo tempo em que um primeiro significante de origem é inscrito no aparelho, há a possibilidade de escrita de vários outros traços. Desse modo, o registro Wz (indicação ou signo de percepção), funda o aparelho psíquico, dando lugar a outras inscrições, a partir daí chamadas de traços mnêmicos. Essa primeira inscrição não é mais acessível à consciência e dá origem ao inconsciente. Temos aí um sujeito em constituição a partir de uma primeira inscrição que possibilita que outros traços possam vir a se inscrever.
Freud descreve o Unbewusstsein (Inconsciência) como sendo o segundo registro, disposto de acordo com outras relações (à s vezes causais). Segundo ele, "os traços Ub talvez correspondam a lembranças conceituais; igualmente sem acesso à consciência" (1896 /2006, p. 282). Aqui as inscrições já são colocadas como traços (Spuren) e, a partir do signo de percepção, restam traços no inconsciente. Cada traço carrega o indicativo da percepção e escreve, de um a um, o insconsciente. Essa operação é necessária para que algo se inscreva nos tempos do signo da percepção e do traço mnêmico.
Todo traço (Spur) é traço de uma impressão. Ele é "a forma pela qual a impressão mantém seus efeitos" (Garcia-Roza, 2004a, p.58). Entretanto, diferentemente da impressão, o traço supõe uma inscrição, cujo conjunto forma um sistema de signos. É pela elevação de barreiras de contato resistentes ao livre escoamento das excitações - já descritas por Freud no Projeto (1895/2006) - que o traço se constitui. O conceito de traço nos remete, então, tanto ao registro psíquico, uma vez que é traço de uma impressão e não de uma sensação ou estímulo, quanto ao registro neurológico, já que depende da resistência oferecida pelas barreiras de contato entre os neurônios. A formação de um traço depende fundamentalmente de dois fatores, segundo Garcia-Roza (2004a): intensidade e repetição. O primeiro é responsável pela formação das barreiras de contato que operam aos modos de uma barreira alfandegá ria controlando o fluxo de excitação e que, de modo algum, é intransponível. Freud concebe a memória como sendo formada pela diferença entre as facilitações (Bahnungen) no sistema de neurônios, são essas facilitações que decidem a direção do fluxo de excitação. Assim, a memória é, para Freud, uma memória diferencial na qual os traços estão sujeitos a retranscrições de tempos em tempos. O segundo fator, a repetição, reedita a mesma impressão, porém com poder de exploração, ou seja, investimento e contrainvestimento; impressão e investimento colateral entram em jogo para instaurar a repetição.
De volta ao esquema, no último tempo, Vb (Vorbewusstsein - Pré-consciência), Freud (1896 /2006, p. 282) não utiliza mais o termo inscrição e explica que Vb "é a terceira transcrição, ligada à s representações verbais e correspondendo ao nosso ego reconhecido como tal". Temos ali uma reprodução de algo já escrito e situam-se aí as representações-palavra, que são da ordem de uma transcrição. Essas representações-palavra aparecem, a posteriori, amarradas aos restos de coisas vistas e ouvidas, vindas da percepção, levando-se em conta que foram necessários os registros inconsciente e mnêmico, a escrita dos signos de percepção e de traços mnêmicos para que pudesse haver o retorno, nesse ponto do aparelho, à percepção.
A partir da Carta 52, o abandono do vocabulário neurológico já é claro e o traço começa a tornar-se escritura. Aparelho psíquico e texto passam a ser indissociáveis, não porque temos um aparelho capaz de produzir textos, "mas, ao contrá rio, o aparelho se diferencia em seus vários sistemas atendendo a necessidades cada vez mais complexas de articulação entre as pulsões e as representações" (Garcia-Roza, 2004a, pp. 62-63). Esse texto psíquico não é feito de palavras, mas de imagens, como podemos depreender a partir da análise dos sonhos.
O sonho é, para Freud, um rébus, uma encenação de um enigma estruturado que conta com elementos pictográficos originais que não obedecem a nenhum código, sintaxe ou gramática, a não ser aqueles do próprio sujeito. Mesmo em sua originalidade, os sonhos muitas vezes seguem antigas facilitações (Bahnungen), já dizia Freud em seu Projeto (1895/2006). Entretanto, os caminhos que o sonho repete são repetidos diferencialmente. Não se trata, assim, de uma repetição de algo idêntico, mas de "algo que se produz a cada vez, a partir de uma matéria-prima que não, ela própria, um texto original" (Garcia-Roza, 2004, p. 64).
Envolvido com a análise de seus próprios sonhos, além dos de seus pacientes, no capítulo VII de A interpretação dos sonhos (1900/2006), Freud propõe um aparelho psíquico conhecido como o esquema do pente. Freud procurou articular a relação entre o insconsciente e a consciência, entre conteúdo latente e manifesto, nos ensinando que, ao procurar, por meio da interpretação dos sonhos, a passagem de uma instância para outra, encontramos o fato de que o conteúdo onírico assemelha-se a uma escrita hieroglífica que precisa ser desvendada.
A ideia de lugares psíquicos já vinha sendo gestada desde o texto sobre as afasias (1891/2016) e, com o esquema do pente, transforma-se na primeira tópica. Esse aparelho tem um polo perceptivo, e entre a percepção e a consciência, o estímulo passa pelo crivo dos traços mnêmicos inconscientes, representados pelos dentes do pente. Os sistemas inconsciente e pré-consciente-consciente se dispõem em uma sequência, de modo que sejam percorridos pela excitação segundo uma determinada série. O fundamental nessa sequência, explica Garcia-Roza (2004a), não é tanto seu caráter espacial, mas sim sua disposição temporal, de modo que a espacialidade está a serviço da temporalidade, garantindo a direção do funcionamento do aparelho. Trata-se, assim, de uma tópica temporal. A sequência dos sistemas que compõem o aparelho confere uma direção ao processo psíquico, que se inicia na extremidade perceptiva e segue em direção à extremidade motora, assemelhando-se ao esquema do Arco Reflexo proposto no Projeto (Freud, 1895/2006).
Fica evidente, nesse esquema, como a percepção não tem valor intrínseco, dependendo de sua passagem pelos traços mnêmicos para adquirir sua significação. Freud chama atenção para o fato de que os lugares psíquicos diferem de lugares anatômicos, levando-nos a localizar suas representações em lugares ideais, em vez de em lugares físicos do aparelho. Há também que se diferenciar os sistemas psíquicos, ou seja, os elementos que compõem o aparelho; dos lugares psíquicos, que correspondem ao vazio entre os sistemas. Como nos adverte Freud (1900/2006), o aparelho psíquico é um instrumento formado por um conjunto de elementos denominados sistemas; além disso, as representações, os pensamentos e os produtos psíquicos em geral não podem ser localizados dentro dos elementos orgânicos do sistema nervoso, mas sim entre eles.
Uma nova explicação para o aparelho psíquico viria a ser apresentado por Freud em Notas sobre o "Bloco Mágico" (1925/2011). Nesse trabalho, Freud mostra-se preocupado com questões relativas, principalmente, à memória, inclusive comparando-a a outros sistemas de armazenamento de informação disponíveis à época, chegando à seguinte conclusão: "Portanto, irrestrita capacidade receptora e conservação de traços duradouros parecem excluir-se mutuamente nos dispositivos que substituem nossa memória [...]." (Freud, 1925/2011, p. 269). A partir de questões relativas à memória, Freud propõe, então, uma nova analogia para a compreensão do aparelho psíquico.
O bloco mágico é, nas palavras de Freud (1925/2011, p. 270), "um pequeno dispositivo que promete fazer mais do que a lousa de papel" e que pretende ser "nada mais que uma tabuinha de escrever em que as anotações podem ser apagadas com um simples movimento da mão". Entretanto, explica Freud, ao investigar o brinquedo com atenção, é possível ver como sua construção coincide de maneira notável com sua estrutura hipotética do aparelho perceptivo, uma vez que a estrutura do bloco mágico fornece uma superfície receptora sempre disponível e traços duradouros das anotações feitas. Freud (1925/2011, p. 271) explica o Bloco Mágico como
uma tabuinha feita de cera ou resina marrom-escura, com margens de papelão, sobre a qual há uma folha fina e translúcida, presa à tabuinha de cera na parte superior e livre na parte inferior. Essa folha é a parte mais interessante do pequeno aparelho. Consiste ela mesma de duas camadas, que podem ser separadas uma da outra nas bordas laterais. A camada de cima é uma película de celuloide transparente, a de baixo um papel encerado, ou seja, translúcido. Quando o aparelho não é utilizado, a superfície de baixo do papel encerado cola-se levemente à superfície de cima da tabuinha de cera.
Para se escrever nesse bloco, é preciso um instrumento pontiagudo que, ao ser pressionado sobre a superfície, faz as folhas se unirem, deixando ver o que foi escrito. Ao descolar as folhas, o escrito desaparece, deixando a superfície receptiva a novas inscrições, enquanto na camada de cera os registros são permanentes. O que fica registrado na prancha, embora possa ser visto sob luz especial, é ilegível. Só se torna legível durante o tempo de contato das três camadas. Além disso, se separarmos a película celuloide do papel encerado, conseguimos enxergar em sua superfície as palavras escritas no aparelho, levantando questionamentos quanto à necessidade do celuloide na folha de cobertura. Sua necessidade fica clara quando se vêque o fino papel ficaria enrugado ou se rasgaria caso estivesse em contato direto com o instrumento pontiagudo utilizado para a escrita. Essa película de celuloide funciona, então, como um revestimento protetor para o papel encerado, destinado a deter os influxos nocivos vindos de fora. Para Freud (1925/2011, p. 272), "o celuloide é um 'protetor contra estímulos'", já que a camada propriamente receptora de estímulos é o papel. O bloco mágico, então, nos remete ao aparelho psíquico descrito por Freud em Além do princípio do prazer (1920/2010) e sua afirmação de que esse aparelho consiste em duas camadas: uma proteção externa contra estímulos, destinada a diminuir a magnitude das excitações que atingem o aparelho; e uma superfície receptora de estímulos por trás dela, o sistema Pré-consciente-Consciente.
Com sua analogia do bloco mágico, Freud retoma a velha questão de procurar compreender como nosso aparelho psíquico tem uma capacidade receptiva ilimitada para novas percepções e, não obstante, registra delas traços mnêmicos permanentes. Freud (1925/2011, p. 274) encontra no bloco mágico "uma representação concreta do modo como procurei imaginar a função do nosso aparelho psíquico perceptivo".
Em todos os modelos e tentativas de explicação do aparelho psíquico, fica claro que esse aparelho constitui-se, de fato, como um aparelho de memória e de linguagem. Garcia-Roza (2004a) chama atenção para o fato de que o aparelho psíquico não é, de fato, psíquico. Os modelos de aparelho psíquico propostos por Freud (1891/2016), desde seu trabalho sobre as afasias, deixam claro que sua concepção é a de um aparelho de memória e linguagem. Isso não quer dizer que se trata de um aparelho cujas funções principais sejam a memória e a linguagem, mas de um aparelho que se constitui como aparelho de memória e linguagem. Assim,
[...] não há anterioridade do aparelho em relação à memória e à linguagem; é à medida que se constitui uma memória que se opera uma diferenciação na trama dos neurônios, distinguindo um sistema psi de um sistema phi. E aquilo sobre o qual ou com o qual essa memória opera são os sistemas de traços (no caso do Projeto e da Carta 52) ou o que em A interpretação do sonho é concebido como texto psíquico, portanto, memória de escritura. (Freud, 1892/2016, p. 155).
Desse modo, o aparelho psíquico é, na realidade, um aparelho simbólico. É o simbólico que funda esse aparelho, não o que resulta de seu funcionamento. Assim, é sua natureza simbólica que faz desse aparelho um aparelho, não o estatuto psicológico de suas representações. Uma representação (Vorstellung), "muito mais que uma entidade psicológica, é uma entidade psicológica, é uma entidade simbólica, ou, se preferirmos, o psicológico em Freud é simbólico" (Garcia-Roza, 2004a, p. 156).
4 O inconsciente é estruturado como uma linguagem
Em A interpretação dos sonhos (1900/2006), Freud, além de apresentar o esquema para a compreensão do aparelho psíquico discutido anteriormente, estabelece também as quatro leis de formação dos sonhos, dando destaque aos processos de deslocamento e condensação. Na linguagem arcaica dos sonhos, os opostos podem ser representados por um mesmo elemento, o tempo não é cronológico, como na vigília, mas lógico, e seu conteúdo é ambivalente. Mecanismos similares aparecem também em outras formações do inconsciente, como os chistes, os atos falhos e os sintomas. Por afirmar que o conteúdo manifesto dos sonhos é uma das vias de acesso do inconsciente, as leis que regem os primeiros podem ser também aplicadas ao funcionamento do segundo.
Não se sabe ao certo se a linguagem é condição do inconsciente ou se o inconsciente é a condição da linguagem. "A linguagem existe porque existe o inconsciente e vice versa" (Longo, 2011, p. 17). De todo modo, em alguns dos primeiros trabalhos freudianos, podem-se encontrar as bases do que viria a ser um dos mais conhecidos aforismos de Lacan (1953/1998): "O inconsciente é estruturado como linguagem", que assinala o começo de seu ensino, propriamente dito, e que é marcado por um retorno à letra de Freud, com seu início em 1953. Miller (1998) esclarece que Lacan data o começo de seu ensino com o texto Função e campo da palavra e da linguagem em Psicanálise (1953/1998), situando seus trabalhos anteriores como seus antecedentes. Ao propor um retorno à letra de Freud, Lacan formula uma questão fundamentalmente crítica: quais as condições de possibilidade da Psicanálise? Sua resposta, escreve Miller (1998, p. 12), é a de que "a Psicanálise só é possível se, e somente se, o inconsciente está estruturado como uma linguagem".
O fato de que a linguagem é condição para a Psicanálise se faz evidenciar na própria escritura de Lacan, que, como explica Miller (1998, p. 15), "mobiliza, ao escrever, todos os recursos retóricos, homofônicos da língua" e "ilustra assim, na própria forma de seu discurso, a primazia do significante". Assim, com Lacan, nem sempre o que se ouve é exatamente o que se quer dizer. Os anos entre 1964 e 1974 são marcados pelo abandono do comentá rio sistemático dos textos freudianos e pela introdução da álgebra lacaniana, com termos como objeto pequeno a (a), sujeito barrado ($) e Outro (A) dando o ritmo de seu ensino e ocupando o centro de sua elaboração.
Lacan, ao promover um retorno à letra de Freud, insiste na importância da linguagem e recorre também a Saussure para estabelecer sua teoria do significante, subvertendo as ideias dos linguistas e colocando-o em primazia ao teorizar sobre o simbólico. A própria técnica de associação livre de ideias que sustenta a prática psicanalítica encontra respaldo na Linguística de Saussure, como afirma Longo (2011).
A linguagem não é "uma entidade geradora de significados definitivos", mas, por meio dela, "a incansável insistência de fazer sentido, ancora-se, por um tempo, ainda que precariamente" (Longo, 2011, p. 8). Ela nos permite dotar significações, ainda que temporárias, ao mundo que nos rodeia e à natureza que nos assombra, ambos de existência absurda pelo simples fato de não serem criações humanas. Para a Psicanálise, o próprio sujeito que a produz não passa de um efeito de linguagem, um precipitado que se desvela na ordem do discurso do qual não é mestre. Na linguagem, o homem encontra meios para elaborar explicações, em sua maioria precárias, mas que têm o efeito de protegê-lo contra o excesso de realidade proveniente da natureza e do mundo. Por meio da mediação simbólica, o homem pode modelar o sentido da realidade tornando-a menos absurda a seus olhos.
De acordo com Jorge (2008, p. 65),
[...] deve-se a Lacan o fato de ter ressaltado um segmento nuclear da obra de Freud, indicado já no título do escrito que, segundo ele próprio afirma, inaugura seu ensino "Função e campo da fala e da linguagem em Psicanálise" (1953). De fato, tal segmento encontra sua formulação prínceps no aforismo lacaniano, segundo o qual "o inconsciente é estruturado como uma linguagem", por meio do qual Lacan trouxe a Psicanálise de volta ao seu campo específico - o da linguagem -, do qual precisamente os analistas pós-freudianos haviam se afastado. Lacan afirma aí que "a descoberta de Freud é a do campo das incidências, na natureza do homem, de suas relações com a ordem simbólica, e do remontar de seu sentido às instancias mais radicais da simbolização no ser. Desconhecer isso é condenar a descoberta ao esquecimento, a experiência à ruína". Este segmento da obra de Freud, passível de ser isolado em seus extensos desenvolvimentos sobre a linguagem, foi chamado por Lacan de simbólico.
O simbólico, lugar da linguagem, forma com os outros dois registros psíquicos propostos por Lacan - o real e o imaginário - uma estrutura. O simbólico, para Roudinesco (1998, p. 714), "designa um sistema de representação baseado na linguagem, isto é, em signos e significações que determinam o sujeito à sua revelia, permitindo-lhe referir-se a ele, consciente e inconscientemente, ao exercer sua faculdade de simbolização". Já o imaginário correlato do estádio do espelho, é definido pela mesma autora como "lugar do eu por excelência, com seus fenômenos de ilusão, captação e engodo" (Roudinesco, 1998, p. 371). Completando a estrutura, o real designa "uma realidade fenomênica que é imanente à representação e imposs ível de simbolizar" (Roudinesco, 1998, p. 645), nele encontram-se os significantes foracluídos do simbólico e que não cessam de tentar se inscrever.
Partindo de Saussure (1999), Lacan questiona-se sobre o sujeito que produz o signo linguistico e que, segundo alguns críticos, havia sido expurgado das teorizações saussurianas. Esse sujeito que fala está submetido à linguagem, da qual é efeito e que, por isso, é cindido, comportando em si a ambiguidade e incompletude que a palavra encerra. Partindo do algoritmo de Saussure, Lacan estabelece a diferença entre o significante saussuriano e o seu, propondo uma teoria do significante, segundo a qual ele é equívoco e porta em si a pluralidade do sentido. É esse caráter que possibilita que o inconsciente possa passar ao discurso e que se possa analisá-lo. Longo (2011) explica que, partindo do algoritmo saussuriano, segundo o qual o signo linguístico corresponde ao significado (conceito) mais o significante (imagem acústica), Lacan
elimina a elipse e quebra a unidade do signo; torna resistente à significação a barra que separa o significante do significado e inverte os termos: o significante deve ficar sempre na parte superior, acima da barra, representado pro S maiúsculo; e o significado ficará abaixo, representado por s minúsculo. (Longo, 2011, p. 45).
E completa explicando que
o algoritmo saussuriano indica que a significação é atingida necessariamente, independente da posição quer do significante (imagem acústica), quer do significado (conceito), desde que estejam circunscritos dentro de uma elipse, isto é, desde que se relacionem reciprocamente. As setas mostram exatamente a relação entre significado e significante dentro de um contexto específico. (Longo, 2011, p. 45).
Ainda segundo a autora,
o algoritmo lacaniano indica algumas diferenças em relação ao de Saussure. Lacan fixa o significante acima da barra. É grafado com maiúscula porque sua presença na fala é prevalente: o falante desliza de significante em significante sem conseguir entender o que fala, alienado que está do sentido daquilo que diz. Por isso mesmo, Lacan torna a barra que separa significante de significado mais grossa, mais resistente ao significado. O falante só consegue atravessar a barra' ou seja, atingir o sentido do que fala em raros momentos. (Longo, 2011, pp. 45-46).
Por isso, o significado, no algoritmo lacaniano, é grafado com "s" minúsculo e, mais adiante, sequer aparecerá em suas formalizações. Diferente do algoritmo de Saussure, o de Lacan não está circunscrito em uma elipse, uma vez que não existe relação alguma entre significado e significante. O primeiro só é alcançado por meio das ações imprevisíveis das formações do inconsciente, como o chiste, o sonho, o ato falho e o sintoma, que portam algo da verdade do sujeito.
Compreender o significante lacaniano é fundamental para que se possa compreender o movimento de escansão dos significantes que se opera em análise. É também, por meio dos significantes, que se pode vislumbrar o sujeito que deles é efeito. Se o significante é o que representa o sujeito para outro significante, é porque ele está apagado na cadeia - o que é chamado afânise do sujeito. Por isso o sujeito, para a Psicanálise, é efeito de linguagem: "está sob os significantes e se dirige ao Outro - o inconsciente" (Longo, 2011, p. 48).
De fato, tanto do ponto de vista da Linguística Saussuriana quanto da Psicanálise de Freud e Lacan, é correto afirmar que somos seres de linguagem e que é nossa aptidão para a fala que nos distingue e nos caracteriza dentre os outros animais, especificando a humanidade como uma comunidade de seres falantes. A linguagem é "um sistema no qual o indivíduo humano deve entrar se quiser assumir seu lugar entre seus pares", explica Lebrun (2008, p. 50), que completa afirmando que "para a psicanálise, o sujeito é o que resulta do descontínuo imposto pelo sistema da linguagem". Mais que uma simples ferramenta, a linguagem é o que "subverte a natureza biológica do humano e faz nosso desejo depender da língua" (Lebrun, 2008, p. 55). Daí a afirmação do autor de que, para falar, é preciso consentir no vazio, uma vez que as palavras são, ao mesmo tempo, habitadas pelo vazio e pelo semblante de completude. A incorporação do ser à linguagem, explica Braunstein (2007, p. 39), "é a causa de um desterro definitivo e irreversível com relação à Coisa".
A linguagem é não somente um sistema no qual o indivíduo humano deve entrar caso queira assumir seu lugar entre seus pares, em sua comunidade, mas, também, aquilo que estrutura o psiquismo, que funda o inconsciente e que nos permite existir como sujeitos. Isso só se dá ao ser banhado pelas palavras dos outros que o cercam e que aparecerão como ocupantes do lugar de Outro. O sujeito, então, só emergirá após ter passado pelas palavras do Outro, por seus significantes.
5 Considerações finais
No desenvolvimento de sua Metapsicologia, Freud elaborou modelos de aparelhos psíquicos para tentar dar conta das características do funcionamento mental que eram percebidas na clínica. Em suas elaborações, Freud diferenciou aquilo do vivido que se inscreve e o que não se inscreve; também diferenciou aquilo do inscrito que não pode ser evocado, apesar de surtir os efeitos de sua inscrição, constituindo o núcleo do recalque primário, daquilo que, mesmo que alguma vez tenha sido passível de ser evocado, passa ao esquecimento por meio do recalque secundário. Estabeleceu também a diferença destes daquilo que, mesmo sem poder ser recordado, comparece, de modo insistente, na repetição somática, exigindo um trabalho clínico para ser elaborado. Finalmente, esclareceu o poder de recepção ilimitado para a inscrição de novas experiências e, por outro lado, a indefinida conservação das inscrições já efetuadas.
Desde seu trabalho sobre as afasias, Freud já considerava a relação com o outro como condição para o desenvolvimento de seu aparelho de linguagem, ainda que ali esse outro possa ser entendido como um outro aparelho de linguagem. A Psicanálise deixa claro, desde seus primórdios, que somos seres de linguagem. Admite-se, como escreve Lebrun, que essa aptidão para a linguagem, em toda sua complexidade, seja única, ou seja, "é o que caracteriza e especifica a humanidade, essa comunidade de seres falantes" (Lebrun, 2008, p. 50).
Assim, ao retomarmos o postulado lacaniano de que "o inconsciente é estruturado como uma linguagem", entendemos então não apenas que o inconsciente segue as leis da linguagem e que não há discurso possível sem a condensação (metáfora) e o deslocamento (metonímia). Mais que isso, é a linguagem que funda e estrutura o psiquismo. Somos seres falantes e, por isso, somos servos da linguagem, submetidos ao significante, e nos valemos dela para tentar dizer o que somos nos labirintos do equívoco e do logro: nos sonhos, nos atos falhos, nos chistes e nos sintomas.
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Endereço para correspondência
Sybele Macedo
E-mail: sy.macedo@gmail.com
*Psicóloga/Psicanalista. Doutora em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Mestra em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Membro do Grupo de Estudos em Linguagem e Subjetividade (Gels/CNPq).