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Analytica: Revista de Psicanálise
versão On-line ISSN 2316-5197
Analytica vol.9 no.17 São João del Rei jul./dez. 2020
ARTIGOS
Conversas com a névoa do esquecimento1
Conversations with the Mists of Forgetfulness
Pourparlers avec le brouillard de l'oubli
Charlas con la niebla del olvido
Leonardo Pinto de Almeida*
Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT - Brasil
RESUMO
Este texto dialoga com o livro El increible asalto en la estación del cielo, de Eduardo Huarag, para fazer uma intervenção de leitura que parte da figura paradoxal da névoa do esquecimento. Capturar o esquecimento torna o simulacro da memória, que não é mais memória, sintoma de uma sociedade. Reconstruindo uma história que perpassa Kazán, movida pela esperança e pela amizade, este texto pretende ler com Kazán, por meio da compreensão da relação entre a Literatura e o comum, os sintomas evidenciados pela escritura que nos fazem ver algo que não se dá a ver no achatamento da vida cotidiana: as vicissitudes de nossa história. Este artigo, a partir das névoas do esquecimento, lê com os fragmentos temporais, encontrados ao longo do livro, a dinâmica do capitalismo contemporâneo com o desemprego, a desolação diante daquele inimigo do comum que esmaga os(as) trabalhadores(as) com as diretrizes da produção e as próprias vicissitudes da esquerda latino-americana. As névoas do esquecimento, outro nome do acontecimento, se destacam ao pensar o impossível e assaltar o céu com as personagens para recuperar aquilo que ainda não temos.
Palavras-chave: Literatura, Leitura, Esquecimento, O comum.
ABSTRACT
This text dialogues with the book El increible asalto en la estación del cielo, by Eduardo Huarag, to make a reading intervention that starts from the paradoxical figure of the mists of forgetfulness. Capturing the forgetfulness makes the simulacrum of memory that is no longer memory, a symptom of a society. Reconstructing a story that crosses Kazan, moved by hope and friendship, this text intends to read with Kazan, through the understanding of the relation between literature and the common, the symptoms evidenced by writing that make us see something that is not seen in the flattening of everyday life: the destinies of our history. This article, based on the mists of forgetfulness, reads with the temporal fragments found throughout the book, the dynamics of contemporary capitalism with unemployment, the desolation before that enemy of the common that crushes the workers with the production guidelines and the destinies of the Latin American left. The mists of forgetfulness, the another name for the event, stand out when thinking about the impossible and assaulting the sky with the characters to recover what we do not yet have.
Keywords: Literature, Reading, Forgetfulness, The common.
RÉSUMÉ
Ce texte dialogue avec le livre El increible asalto en la estación del cielo, d'Eduardo Huarag, pour faire une intervention de lecture qui part de la figure paradoxale du brouillard de l'oubli. Capturer l'oubli fait du simulacre de la mémoire qui n'est plus la mémoire, un symptôme d'une société. Reconstruisant une histoire qui traverse Kazan, ému d'espoir et d'amitié, ce texte entend lire avec Kazan, à travers la compréhension du rapport entre la littérature et le commun, les symptômes mis en évidence par l'écriture qui nous font voir quelque chose qui ne se voit pas dans le aplatissement de la vie quotidienne: les vicissitudes de notre histoire. Cet article, basé sur les brouillards de l'oubli, lit avec les fragments temporels trouvés tout au long du livre, la dynamique du capitalisme contemporain avec le chômage, la désolation devant cet ennemi du commun qui écrase les ouvriers avec le directives de production et les vicissitudes de la gauche latino-américaine. Les brouillards de l'oubli, qui sont un autre nom de l'événement, se démarquent lorsqu'on pense à l'impossible et à l'assaut du ciel avec les personnages pour récupérer ce que nous n'avons pas encore.
Mots-clés: Littérature, Lecture, L'oubli, Le commun.
RESUMEN
Este texto dialoga con el libro El increible asalto en la estación del cielo, de Eduardo Huarag. Esta intervención lectora sobre el libro de Huarag parte de la figura paradojal de la niebla del olvido que revela más que la memoria individual de Kazán, la historia de la izquierda en el siglo XX y, principalmente, de la historia de la América Latina, traspasada por el aplanamiento de la vida provocado por las políticas neoliberales. Captar el olvido torna el simulacro de la memoria que no es más memoria, en síntoma de una sociedad. Reconstruyendo una historia que atraviesa Kazán, movida por la esperanza y la amistad, este texto tiene por objetivo leer con Kazán, a través de una comprensión de la relación entre la Literatura y lo común, los síntomas evidenciados por la escritura que nos hacen ver algo que no se da a ver en el aplanamiento de la vida cotidiana: las vicisitudes de nuestra historia. Este artigo, a partir de la niebla del olvido, lee con los fragmentos temporales, encontrados a lo largo del libro, la dinámica del capitalismo contemporáneo con el desempleo, la desolación frente a ese enemigo de lo común que machaca a el/la trabajador/a con las directrices de la producción y las propias vicisitudes de la izquierda latinoamericana. Las nieblas del olvido sobresalen al pensar lo imposible y asaltar el cielo con los/las personajes para recuperar aquello que aún no tenemos.
Palabras claves: Literatura, Lectura, Olvido, Lo común.
O acontecimento, se existe, consiste em fazer o impossível.
(Jacques Derrida)
Literatura e paradoxo
A Literatura nasce de uma linguagem paradoxal. Usualmente, a crítica, em seu modo analítico, toma a experiência literária por meio da informação e do jogo de poder unido à interpretação; desse modo, associa-se à doxa, que muitas vezes se torna uma ortodoxa.2 A informação pressupõe uma experiência cujo fim está fora dela mesma, sendo da ordem da utilidade.3
Entretanto, a linguagem é atravessada pela fantasia da plenitude de sentido. E onde há essa plenitude não há o aberto que transforma.4
Isso é fruto das relações entre discurso e poder, já expostas por autores franceses do século passado, como Barthes, Blanchot, Deleuze e Bataille.
Minha intervenção é uma proposta distinta da crítica, a partir da ajuda desses pensadores e, inclusive, pelas influências de Heidegger e Nietzsche, desejo recuperar os paradoxos para fazer com que as personagens tratem de dizer o acontecimento. Algo da ordem do impossível. No entanto, a Literatura, em sua relação com o silêncio e com o esquecimento, não seria uma tarefa do impossível? A interpretação, que é uma tarefa de memória e de esquadrinhamento do espaço literário, não seria um silenciamento do silêncio que faz a Literatura ser o que é?
As questões concernentes às relações entre silêncio, acontecimento e impossível evidenciam a ligação entre política e Literatura. Em sua relação com o acontecimento e o esquecimento, a criação literária abre um espaço que nos aproxima do comum.5
O presente artigo tem como objetivo construir um plano de composição com o livro El increible asalto en la estación del cielo, de Eduardo Huarag, para pensar as relações entre a personagem Kazán e o acontecimento.
A escritura como atividade complementar da leitura impõe um escrever que evita cair nos poços sem fundo do poder e da interpretação.6 Quando escrevo sobre el asalto, não escrevo verdadeiramente sobre esse livro, escrevo com ele, com a leitura, com a impossibilidade de dizer o próprio acontecimento da leitura. Quando a leitura é o próprio acontecimento que provoca uma nova escritura, chegamos, assim, mais próximo do acontecimento. Então, o que importa é que a leitura se afirme como uma escritura do acontecimento ou uma escritura-acontecimento; uma escritura que desenha os contornos do acontecimento da leitura.
Quando escrevemos colocamos uma questão à linguagem. Uma questão que produz um curto-circuito nas fórmulas e nas palavras de ordem, recuperando a potência dos buracos que fazem as palavras serem o que são. A escritura desliza sobre o vazio da linguagem. Quando lemos deslizamos sobre a mesma superfície lisa.
Nossa leitura não objetiva tapar buracos. A leitura deve deixar aberto o aberto como tal.
A escritura não é como a crítica, já que põe em movimento o deslizar sobre a superfície lisa das palavras, recuperando seu componente aerado perdido nos usos cotidianos da linguagem; põe em marcha a potência de criar mundos que as palavras, graças à sua relação com o silêncio e o vazio da linguagem, têm no movimento de criação.
Como pensa Bataille (1986), em Sobre Nietzsche, escrever com produz uma comunidade a partir da relação. Uma comunidade que não tem telos nem essência, e se desfaz ao mesmo tempo em que se faz. Essa escritura é o caminho acolhedor do acontecimento. Os leitores e as leitoras não são telas de impressão fotocinética, são frutos de uma relação profusa no espaço aberto pela Literatura.
Caminhando
O livro nos convida a caminhar com Kazán. Não sabemos de onde vem nem para onde vai.7 Por isso acolhemos sua história para seguir o caminho, junto com ele e seus amigos. Kazán, perdido, encontra-se com um ancião; assim começa a história. Está sem rumo e sem saber de onde vinha antes de se encontrar no rio do esquecimento.
A questão, no primeiro momento, é os destinos da memória e, por conseguinte, do tempo. Como recuperar a memória individual de Kazán ou a memória coletiva de resistência no caminho do Templo das Meditações?
A tensão entre a memória e o esquecimento se evidencia em sua conversa inicial com o ancião, que tem o poder de adivinhação, um ancião que caminha entre a vida e a morte, falando com os viandantes, guiado por vozes e tragado pela vida por causa de seu encontro com a morte dos seus.
Com sua ajuda, Kazán vai percebendo que havia desejado construir "um movimento popular para mudar o país" (Huarag, 2017, p. 6) e que está agora indo em direção ao Templo das Meditações. Esse é um acontecimento porque começa a desfazer as névoas do esquecimento8 ou a recriar a história.
À direção ao Templo das Meditações, se abre o caminho. O acontecimento promove ao pensamento a recuperação de seu fluxo para que o umbral da história ganhe o movimento.
Esse livro poderia se chamar o livro da amizade e do esquecimento. Primeiro, porque não há resistência sem amizade (Blanchot, 1971, 1983; Nancy, 1999); segundo, porque a resistência é uma luta contra as forças do esquecimento (Kundera, 2017).
Os acontecimentos se precipitam9 sobre Kazán e o contagiam com a força da resistência. Kazán resiste contra os esquecimentos que o afetam e grande parte de sua força sai dos encontros com seus amigos e com o ancião andarilho.
A amizade é a força do encontro que torna o acesso ao comum uma possibilidade. A amizade, como o amor, é fruto do acontecimento.10 Não sabemos aonde vamos com ela, mas vamos apesar dela e através dela, rumo a uma comunidade que não existe.
No caminho ao Templo das Meditações, Kazán se dá conta que perdeu a memória. A busca pelo sentido de sua vida e, por fim, de sua morte o leva a retecer o fio histórico de um país consumido pela inclemência do capital. Por intermédio do encontro com o ancião, vai redescobrindo sua memória individual. Mas somos muito mais que um mero indivíduo. Esse é o efeito das conversas com a névoa do esquecimento.11
O encontro de Kazán com a questão social é um acontecimento que o muda e o faz pensar que é necessário exigir o impossível. Suas ações não são efeitos de um indivíduo, porque pensa que o acontecimento afeta o coletivo ou o seu país. Por isso suas reações têm as cores do desejo por mudanças sociais.
Nesse livro, há pelo menos dois acontecimentos que perpassam Kazán: o encontro com o tempo sem tempo (outro nome do acontecimento) que abre o caminho em direção aos cruzamentos entre a história individual e coletiva e o efeito das políticas neoliberais, ou seja, sua demissão que o faz desejar o impossível.
Conversando
A névoa do esquecimento no caminho revela, por meio de Kazán, muito mais do que sua memória individual: faz-nos descobrir os possíveis destinos da esquerda nos últimos dois séculos e, principalmente, da História da América Latina, trespassada pelo achatamento da vida, provocado pelas políticas neoliberais.12
Onde há esquecimento, há descontinuidade. Conectar-se com o esquecimento torna o simulacro da memória, que não é mais memória, sintoma de uma sociedade. Conectar-se com esse esquecimento que não se esquece, com os contornos do silêncio e do acontecimento, produz a história que merece ser escutada. Isso ocorre porque devolve a questão à linguagem que foi o motor da escritura. Só podemos escutar os contornos do silêncio e do acontecimento para fazer com que a questão produza afetações por meio da leitura.
Quando não se escuta mais os contornos do esquecimento, só restam os fragmentos formulados pelas palavras de ordem no seio da linguagem ou o movimento que tampona os buracos, silenciando o silêncio.
A Literatura nasce de uma linguagem paradoxal (Deleuze, 2005). Escrever Literatura é como aproximar-se, conectar-se aos sintomas da sociedade. Os escritores e as escritoras não escrevem sobre lembranças, tampouco relatam o que aparece em continuidade nas histórias de coisas e humanos em seu entorno. Escrevem em uma relação intensa com as coisas que deslocam os modos de vida dos humanos e da sociedade em que vivem.
A Literatura não usa as palavras como instrumentos ou fórmulas para dar ordens. Em seu tratamento da língua, faz com que a palavra recupere sua potência de criar mundos. Com isso, produz o acesso ao comum. A linguagem e sua materialização, a língua, em sua maneira de fazer circular palavras de ordem ou comandos, não comunica nada.13
Sua maneira de conectar-se, pelo acontecimento, às questões da sociedade em que vivemos faz da Literatura um processo de criação de mundos a partir de uma sintomatologia muito peculiar.
Os escritores e as escritoras não escrevem com a memória, escrevem apesar dela, ou melhor, escrevem com o esquecimento que não se esquece: o silêncio.
São clínicos(as) da civilização (Deleuze, 1997) e exploradores(as) da existência (Kundera, 2006). É a partir dos jogos entre personagens que nos aproximamos ao conjunto de sintomas escolhidos na escritura e percebemos os males que sofremos. A doença do homem e da mulher se confunde com eles(as) mesmos(as) (Deleuze, 1997). É por isso que necessitamos da Literatura para inventar novos mundos para se chegar, então, à saúde.
Reconstruindo uma história que ultrapassa a Kazán, movida pela esperança e pela amizade, este texto tem por objetivo ler com Kazán, por meio de uma compreensão da relação entre Literatura e o comum, os sintomas evidenciados pela escritura que nos fazem ver algo que não se deixa ver no achatamento da vida cotidiana: as vicissitudes de nossa história.
Uma personagem original e o acontecimento
Depois do encontro com o ancião, Kazán vai ao Templo das Meditações. A partir desse momento, a personagem se encontra com o tempo. Somos levados a mergulhar na história contada. Ela não é a memória individual de Kazán, é o turbilhão existencial em que quatro amigos têm suas histórias transpassando e se afetando mutuamente.
O acontecimento cai verticalmente sobre Kazán abrindo o tempo de uma memória que vai mais além da memória. O mistério do tempo se abre às disposições da morte e do esquecimento.
Somos assim convidados a desvelar a história de Kazán com ele em sua re-criação da memória que percorre sua vida e de seus amigos, colocando em evidência a construção de um povo porvir.
O encontro com o ancião torna possível que Kazán comece a escutar as relações que o dito ancião mantém com a morte e com o rio do esquecimento. Este ajuda Kazán a aproximar-se da meditação, já que é a única saída para combater o esquecimento produzido pelas forças sociais e políticas de seu tempo.
As vidas dos dois se mesclam até que se abre um espaço da memória forjada por Kazán, reconstruindo, assim, a história de um país perpassado por amores, desejos e revoltas.
Só é possível recuperar o comum pela trama do jogo narrativo de tempos distintos e das histórias de seus amigos, que vão se envolvendo com as respostas às questões que se impõem a Kazán, no segundo acontecimento: a perda de seu emprego.
A memória tece uma temporalidade narrativa, feita com a força da amizade e do amor, que servem como motores de resistência cotidiana à violência que nos aflige. As vidas de Kazán, Israel, Guillermo e Raúl atravessam a história de um país como o Peru, assolado pela ditadura, pela corrupção e pela opressão policial.
O encontro com a névoa do esquecimento é um acontecimento em relação à escritura.14 Produz o simulacro de uma recuperação da memória que não é a memória individual da personagem. A escritura se dá em três tempos da vida de cada um dos quatro amigos: Kazán, Israel, Guillermo e Raúl. O tecido narrativo envolve todos os quatro em tempos passados, presentes e futuros.
Kazán é uma personagem original15 porque está intimamente relacionado com o acontecimento (Almeida & Gorlier, 2017). Depois de muitos anos de trabalho, ele perde seu emprego por causa das políticas neoliberais, mas Kazán não vive o desemprego como um problema meramente individual. Por isso, levados por suas próprias atitudes, seus amigos vão cada vez mais se aproximando dele.
Ele se vê capturado pela necessidade de resposta ao desemprego e às consequências funestas das políticas neoliberais. Poderia ter caído em depressão, ou em uma reclamação infinita movida pelo ressentimento, todavia, esse não é o caso.
Kazán não sabe o que fazer, mas não fica parado; é levado a pensar uma saída que não é individual, senão coletiva; no entanto, a coletividade envolvida não existe ainda.
Depois de um acontecimento, as identidades, como coletividades e individualidades, não se podem sustentar e permanecer como estavam. Devem ter as forças da criação, ou seja, se apresentar como singularidades e não identidades. A força de Kazán e seu magnetismo provêm dos efeitos singulares de uma vida.
Depois de alguns encontros com seus amigos que participaram com ele do partido comunista peruano na juventude, descobre uma saída para a situação: assaltar um trem que vai até a estação do céu. Seus amigos, Israel, que trabalha em uma empresa de segurança, Guillermo, o agente penitenciário da prisão em que o comissário Aguirre - um político corrupto muito importante - se encontra encerrado, e Raúl, o esposo da secretária desse mesmo político, têm suas vidas mudadas pelas ideias de Kazán.
Ele deseja assaltar o trem e com o dinheiro começar um movimento popular de esquerda para mudar o país. Seus amigos aceitam. Mais ainda, estão seduzidos pela força magnética que Kazán incorpora ao dizer o acontecimento.
Kazán afirma a verdade do acontecimento, mas seus amigos e amantes não o compreendem totalmente. Só quando o acontecimento se faz corpo em Kazán seus companheiros de assalto o aceitam.
Seus amigos aceitam suas ideias por meio do filtro opaco de sua liderança. No entanto, a cada momento de sua trajetória rumo ao impossível (assaltar o céu para mudar o mundo em que vivem), Kazán vai tornando-se ou incorporando-se ao acontecimento. Só quando o afirma com seu corpo é que seus amigos passam a também afirmá-lo e não meramente aceitá-lo como destino.
O comum e a vida
Essa leitura, a partir da névoa do esquecimento, lê com os fragmentos temporais, encontrados ao longo do livro, a dinâmica entre o capitalismo contemporâneo e o desemprego, a desolação frente a esse inimigo do comum que massacra o(a) trabalhador(a) sobre as diretrizes da produção e das próprias vicissitudes da esquerda latino-americana.
O livro não tem um compromisso político. Normalmente, a crítica tenta encontrar os desejos e os pensamentos políticos do(a) autor(a) em seu livro, fazendo uma crítica temporal.16 No entanto, a Literatura não nasce de convicções. Nasce dos contornos do impossível, produzindo seus efeitos às personagens que fazem reverberar o acontecimento em suas vidas e convertendo a política em uma questão literária que pulsa por meio delas.
Kazán está desempregado. A intensidade com que vive o acontecimento o aproxima de seus amigos que vamos conhecendo ao longo do livro. Vive seu desemprego como um efeito da ordem sócio-histórica de seu tempo presente.
Depois de ultrapassar a névoa em seu encontro intenso com a morte, a história vai se construindo a partir dos quatro amigos.
Entretanto, no início, a prisão do comissário Aguirre indica o contraponto das políticas neoliberais e um dos efeitos do estado moderno: a corrupção.
Esse efeito é o primeiro que aproxima algumas personagens e as vai apresentando: Adriana, secretária de Aguirre e companheira de Raúl; Raúl, um dos amigos de Kazán, que faz alguns trabalhos para o governo; e Guillermo, outro amigo de Kazán, que será o agente carcerário encarregado de vigiar a cela do comissário Aguirre.
Depois se apresenta o último amigo, Israel, que, por causa de sua habilidade com as armas, trabalha em uma empresa de segurança.
A trama vai se construindo de maneira fragmentária. Os tempos presentes, futuros e passados são apresentados com uma narrativa que faz um enlace em torno dos efeitos do acontecimento que recai sobre Kazán. Esses tempos dançam e entram em um ritmo próprio à intensidade e à força do acontecimento.
A história dos quatro amigos se enlaça com a história do Peru em três tempos, em que a resistência e a amizade são os motores para ideias de mudanças sociais.
Kazán é como uma pedra imantada. É uma personagem intrinsecamente associada ao acontecimento. As coisas que ocorrem com ele são vividas com tal intensidade que Kazán se transforma a cada momento.
Convence seus amigos a assaltar o trem a caminho da estação do céu. Seus motivos são claramente políticos: ele gostaria de mudar o Peru com um movimento social armado.
Seu magnetismo faz com que os amigos concordem com o assalto, embora os motivos não sejam tão claros para todos...
A névoa como acontecimento
A névoa do esquecimento aparece ao pensar o impossível e assaltar nas alturas andinas, no lugar metafórico denominado a estação do céu, para recuperar aquilo que ainda não tivemos.
A névoa do esquecimento é a própria questão relativa à morte. Entretanto, com a leitura do livro, podemos pensar que as névoas são efeitos da morte, mas também dos efeitos das políticas neoliberais que, em nome do consumo e da exacerbação do indivíduo, produzem o debilitamento da subjetivação política.17
Os acontecimentos são curtos-circuitos que rompem com as névoas que impedem pensar e agir de outra maneira contra as forças desse debilitamento.
O acontecimento que reverbera no corpo de Kazán aponta para a necessidade de perfurar a névoa do esquecimento a fim de recuperar e criar novos mundos. Essa perfuração se manifesta quando se produz uma comunidade de amigos em torno do comum e do desejo do impossível. A personalidade ou a individualidade devem morrer para que a criação de um novo mundo tome seu lugar por meio da produção de singularidades.
O livro anuncia, assim, alguns sintomas da sociedade atual e nos lembra, com a força de suas personagens, a necessidade de ser, talvez hoje mais do que nunca, realistas e exigir o impossível.
Referências
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Endereço para correspondência
Leonardo Pinto de Almeida
E-mail: leonardo.p.almeida@gmail.com
*Professor da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Doutor em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
1Versão modificada e traduzida para o português pelo próprio autor do artigo "Charlas com la niebla del olvido", originalmente publicado em espanhol na revista Hueso Húmero, 71, 82-92, 2019.
2Como se sabe, a Literatura é diferente da opinião ou da doxa, porque é uma linguagem paradoxal, ou seja, ela vai mais além da doxa. A linguagem paradoxal da Literatura evidencia que não há sentido único nem identidades fixas. Para uma definição mais apurada do paradoxo, ler Lógica del sentido, de Deleuze (2005), e La parte del, fuego de Blanchot (2003).
3A Literatura é uma reduplicação do ser da linguagem que tem seu fim nela mesma, por meio das experiências totais do escrever ou do ler. A informação tem seu fim fora dela, porque sempre está associada a algo que já ocorreu ou que está em um plano transcendente à experiência. A informação é tomada pelo movimento de poder e está do lado da utilidade (Blanchot, 1992).
4A questão do aberto perpassa a obra de Martin Heidegger (2016). Em El orígen de la obra de arte, o autor pensa que a obra põe a verdade em obra, mas a verdade é alethéia, o desvelo. É uma verdade que pressupõe o aberto como possibilidade de sua produção. É muito diferente da veritas, que é a verdade que aponta para uma essencialização das coisas e das situações humanas, estando esta mais do lado da crítica literária.
5Ao longo do século XX, autores como Blanchot, Nancy e Bataille pensaram as relações entre a Literatura, a comunidade, o comum e a comunicação. Barthes (1977) e Bataille (2016) apontam que a Literatura comunica, ou seja, não utiliza palavras de ordem ou comandos. A comunicação da Literatura é muito singular, já que se põe na direção do acesso ao comum. Esse acesso é feito por um movimento de êxtase ou de criação que produz uma comunidade que ainda não existe. Este é outro paradoxo da linguagem literária: há comunicação quando não sabemos o que temos a dizer. A palavra deve ser um acontecimento para ser uma comunicação. Todo resto é comando.
6Derrida (2006) postula que a interpretação e seus filtros do real produzem uma mostração. Seus filtros não dizem o acontecimento, já que o capturam. O acontecimento não é mostração. Só pode ser dito quando ocorre sua incorporação e sua afirmação.
7A leitura como experiência é indicada por Blanchot (1992) em El espacio literario. A leitura literária começa pela ignorância, o acolhimento e o entendimento. Quando nos encontramos com uma história, vamos, por meio de nossas participações como leitor(a), construindo junto com o texto um plano de entendimento que acolhe a dinâmica existencial das personagens.
8As névoas do esquecimento é uma imagem do paradoxo, já que contém o esquecimento que não se esquece, o silêncio, que é motor da criação, e o esquecimento esquecido, produto das relações de poder nas paragens da linguagem.
9Em Acontecimiento, Zizek (2014) aponta a relação entre esse conceito e a descontinuidade. Pensa que o tempo do acontecimento é uma ruptura que recai sobre nossas cabeças, produzindo mudanças nos âmbitos sociais e subjetivos.
10Em Condiciones, Badiou (2012) indica que a Filosofia se vale de quatro condições heterogêneas que têm uma relação intrínseca com o acontecimento para se contrapor à doxa ou à opinião. Essas quatro condições são o amor, a ciência, a política e a arte. São elas que possibilitam à Filosofia combater a opinião por meio de sua linguagem paradoxal.
11A questão da individualidade e sua relação com a política e a ética são tratadas por muitos(as) autores(as) dos séculos XX e XXI. Badiou (2015), em Quel Communisme?, mostra que a subjetivação política que transpassa a animalidade do individuo está associada à produção de um sujeito a partir do acontecimento. A força do acontecimento leva à produção de uma singularidade, contrapondo-se ao indivíduo. Esse último é produto das reproduções sociais que fundamentam as políticas neoliberais atuais e liberais do século passado.
12As políticas neoliberais impõem uma racionalidade que constitui o horizonte de governo dos outros e de nós mesmos. A competição e seu derivativo imaginário, o mérito, se impõem como modos de vida hegemônicos, deixando de lado a colaboração e a amizade (Dardot & Laval, 2010). A tensão entre a força da amizade e sua relação com o acontecimento e os derivativos comportamentais das políticas neoliberais perpassa o livro para pensarmos sobre os destinos da resistência latino-americana.
13É por isso que Barthes (1977) e Bataille (2016) estão de acordo quando afirmam que a Literatura é uma comunicação. Uma questão complicada já que a comunicação não se trata de uma questão de recepção. Não temos figuras fechadas e estáticas para que as palavras sejam direcionadas. Os dois autores põem a Literatura em outra espiral, já que a experiência abre a possibilidade de acessarmos o comum por meio de uma comunidade dos sem comunidade. Para eles, só há comunicação do êxtase, do aberto. Quando repetimos fórmulas decodificadas pela língua, não comunicamos nada, mas reproduzimos estereótipos, comandos ou palavras de ordem.
14A névoa do esquecimento também é um acontecimento em relação à leitura, já que está e não está no texto. É a imagem paradoxal criada pela leitura em seu encontro com os acontecimentos e a personagem original: Kazán.
15Em Diálogos sobre o personagem original e o acontecimento (2017), indicamos as três manifestações que se apresentam como personagens no universo da linguagem: a personagem histórica, representada pela figura autoral que organiza os discursos a partir dos movimentos de captura da criação; a personagem conceitual, que dá consistência à trama teórica de uma Filosofia; e a personagem original, noção inventada por Melville, que desenha a relação intensa entre a personagem literária e o acontecimento.
16A crítica literária francesa, fundada na obra de Sainte-Beuve, pensa a Literatura a partir da noção de gênesis. É necessário estudar a vida de um(a) escritor(a) para explicar a obra. Essa crítica é temporal. No século passado, Proust (1954), Barthes (2009) e Blanchot (1992) constroem uma crítica forte a essa concepção, pensando-a a partir das ideias de espaço e relação.
17A política, segundo Jacques Rancière (1995), provém de um dano nas divisões das partes da sociedade por meio da recuperação da palavra por aqueles(as) que são oprimidos(as). A subjetivação política é a irrupção do político, ou melhor, são as forças que se manifestam no político como tal.