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Analytica: Revista de Psicanálise

versão On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.10 no.18 São João del Rei jan./jun. 2021

 

ARTIGOS

 

A clínica e a "peste psicanalítica" na contemporaneidade

 

The Clinic and the "Psychoanalytic Past" in Contemporary Times

 

La Clinique et la "peste psychanalytique" dans la contemporanéité

 

La Clínica y la "peste psicoanalítica" en la contemporaneidad

 

 

Rita de Cássia Cardoso da Silva MendesI*; João Luiz Leitão ParavidiniI**; Anamaria Silva NevesI***

IUniversidade Federal de Uberlândia - UFU - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este ensaio busca analisar o estatuto criativo da clínica psicanalítica e, para tal, resgata como operador da discussão a dimensão crítica da "peste psicanalítica", deflagrada no século XX. O que temos acompanhado e o que se prenuncia com pertinaz constância é o risco de morte da própria Psicanálise, uma vez que sua teoria e prática colocam em cheque as novas formas de subjetividade contemporânea, assim como houvera realizado perante o sujeito da modernidade. Como pesquisadores do saber e fazer psicanalíticos, temos testemunhado como a Psicanálise tem enfrentado os desafios impostos pela contemporaneidade. Para isso, recuperou-se a origem da "peste psicanalítica", seus reflexos na contemporaneidade e as contingências enfrentadas pela clínica atual, amparadas no tripé laço social, desejo e subjetividade. Por fim, algumas questões reflexivas se impuseram perante o questionamento de Lacan: "O que faz um analista?", fazendo reverberar as considerações sobre o potencial e a "vocação heurística da Psicanálise" que favorece a reinvenção de si mesma.

Palavras-chave: Psicanálise, Clínica, Contemporaneidade.


ABSTRACT

This essay aims to analyze the creative status of the psychoanalytic clinic and, to this end, rescues the critical dimension of the "psychoanalytic past" from the 20th century as the operator of the discussion. Through this monitoring, we realized that what is foreshadowed with persistent constancy is the risk of death of psychoanalysis itself, since its theory and practice have put at stake the new forms of contemporary subjectivity. As researchers of psychoanalytic knowledge and psychoanalysis, we have witnessed how psychoanalysis has faced the challenges posed by contemporaneity. Thus, the origin of the "psychoanalytic past" was recovered, its reflexes in contemporaneity and the contingencies faced by the current clinic supported by the tripod: social bond, desire and subjectivity. Finally, some reflective questions were established towards Lacan's questioning "What does an analyst do?", reverberating the considerations about the potential and "heuristic vocation of Psychoanalysis" that favor its reinvention.

Keywords: Psychoanalysis, Clinic, Contemporaneity.


RÉSUMÉ

L'essai cherche à analyser le statut créatif de la clinique psychanalytique et, à cette fin, récupère en tant qu'opérateur de la discussion la dimension critique de la "peste psychanalytique" déclenchée (desencadeada) au XXe siècle. Ce que nous avons suivi et qui est constamment pré-annoncé, c'est le risque de mort de la psychanalyse, puisque sa théorie et sa pratique mise en question les nouvelles formes de la subjectivité contemporaine, comme elle l'avait fait devant le sujet de la modernité. En tant que chercheurs du savoir et du savoir-faire psychanalytiques, nous avons vu comment la psychanalyse a affronté les défis posés par la contemporanéité. Pour cela, l'origine de la "peste psychanalytique" a été retrouvée, ainsi que ses réflexes dans la contemporanéité et les contingences rencontrées par la clinique actuelle soutenue par le trépied: lien social, désir et subjectivité. Enfin, quelques questions réflexives s'imposent à l'interrogation de Lacan "que fait un analyste?", réverbérant en considérations sur le potentiel et la "vocation heuristique de la psychanalyse" qui favorisent la réinvention de lui-même.

Mots-clés: Psychanalyse, Clinique, Contemporanéité.


RESUMEN

Este ensayo busca analizar el estatuto creativo de la clínica psicoanalítica y, para eso, rescata como operador de la discusión, la dimensión crítica de la "peste psicoanalítica" deflagrada en el siglo XX. Lo que hemos acompañado y lo que se prenuncia con pertinaz constancia, es el riesgo de muerte del propio Psicoanálisis, una vez que su teoría y práctica ponen en jeque las nuevas formas de subjetividad contemporánea, así como había realizado ante el sujeto de la modernidad. Como investigadores del saber y hacer psicoanalíticos, hemos testimoniado cómo el Psicoanálisis ha enfrentado los desafíos impuestos por la contemporaneidad. Para esto, se recuperó el origen de la "peste psicoanalítica", sus reflejos en la contemporaneidad y las contingencias enfrentadas por la clínica actual amparadas en el trípode: lazo social, deseo y subjetividad. Por fin, algunas cuestiones reflexivas se impusieron delante del cuestionamiento de Lacan "¿Qué hace un analista?", haciendo reverberar las consideraciones sobre el potencial y la "vocación heurística del Psicoanálisis" que favorecen la reinvención de sí misma.

Palabras claves: Psicoanálisis, Clínica, Contemporaneidad.


 

 

Introdução

Discorrer sobre a clínica psicanalítica é desafiador, uma vez que ela está em constante reinvenção, mas a crença de que a sua ética não se altera, apesar de todas as contingências, nos concede essa possibilidade.

Kehl (2002) aponta que a ética advinda das contribuições da Psicanálise é a ética oriunda da clínica psicanalítica, pois é justamente na experiência clínica que surge a demonstração de como se relaciona Psicanálise e ética, uma vez que a Psicanálise enxerga o homem em seu eterno conflito entre liberdade e alienação ao inconsciente, "esse estranho que age nele e ele não pode se descomprometer" (Kehl, 2002, p. 33). Daí, como responsabilizar-se por algo que não se tem controle? De que maneira o homem lida com o desejo que, por mais analisável que seja, lhe será sempre estranho?

A Psicanálise não busca a solução para esses impasses, pois não pressupõe uma verdade definitiva para a natureza humana. Seu princípio básico é que o homem, especialmente o moderno, é vazio de ser; por isso busca, por meio da análise de alguns dispositivos como o laço social, estruturas de dominação de poder e práticas de linguagem, respostas para a crise ética atual. A Psicanálise, mediante a análise crítica dessas condições, intenta demonstrar que não existe uma verdade última que justifique as ações humanas, e sim "circunstâncias humanas, de história e estruturas, que a produziram"(Kehl, 2002, p. 34).

Sendo assim, este ensaio busca analisar o estatuto ético-criativo da clínica psicanalítica e, para tal, resgata como operadora a dimensão crítica da "peste psicanalítica", deflagrada no século XX, e a atualiza mediante as formas de subjetividade contemporâneas. Nossa intenção é de não só apreendermos o caráter criativo da teoria psicanalítica de sempre se reinventar, como demonstra sua história, mas também traçarmos caminhos que auxiliem a Psicanálise e a sua prática a enfrentarem os desafios gerados na contemporaneidade.

O que temos acompanhado e o que se prenuncia é o risco de morte da própria Psicanálise, uma vez que a sua teoria e prática contradizem e colocam em cheque as novas formas de subjetividade e o que busca o homem contemporâneo.

A sociedade atual caminha conforme as coordenadas estipuladas por Guy Debord em 1968, ou seja, um panorama de sociedade em forma de encenação performática no qual o que importa é a aparência. Nesse modelo social, não importa muito o que ele é, mas o que impera é uma absorção passiva desse desfile de imagens que estampa a superfluidade do social. O suficiente é parecer que é alguma coisa, pois o que está em jogo é o personagem socialmente exibido. "Esse desfile de imagens não convida ao pensamento, mas à mimetização" (Pinheiro & Harzog, 2017, p. 47).

Paralela à superfluidez social, surgem também os maus presságios à Psicanálise. Ela vem sendo bastante questionada não só em relação a seus tratamentos longos, mas, sobretudo, quanto a sua eficácia. As literaturas atuais clamam por sua extinção, como vimos na publicação, em 2005, do Livro Negro da Psicanálise, o qual traz duras críticas dos cognitivistas à sua teoria e clínica. Vozes mais aquecidas pedem sua execução pelo fogo, o que expõe a matéria de jornal que recebeu o título "É necessário queimar a Psicanálise?", publicada em abril de 2012 na revista francesa Le Nouvel Observateur. O escrito vinha em defesa dos pais de crianças com autismo revoltados por entenderem que a Psicanálise os culpabilizam pelas enfermidades de seus filhos e, por isso, deveria ser erradicada (Pinheiro & Herzog, 2017).

Nesse contexto, cabe-nos questionar: a clínica psicanalítica estaria sendo vítima de si mesma ou teríamos nas características da contemporaneidade seus vorazes algozes?

Quando falamos de "peste psicanalítica", referimo-nos à ruptura crucial sobre o que pensava criticamente Freud acerca do mal-estar na civilização (moderna), gerando uma descontinuidade em seu discurso, com necessidade de reordenação teórica e repercussão em seu registro epistemológico. Pacheco Filho (2009b) auxilia na compreensão desses fatos ao descrever:

Desde a sua inauguração, a Psicanálise surgiu questionando os fundamentos da moral sexual de sua época: sujeitos dotados de sexualidade, ciúmes e agressividade contra seus pais e irmãos (Complexo de Édipo), onde se encontravam apenas criancinhas assexuais; e um lado dark, sombrio, agressivo, violento e egoísta do ser humano (alimentado por uma pulsão de morte), onde a sociedade quer ver apenas lirismo, bondade, boa vontade e impulso de vida. Para a Psicanálise, o escamoteamento desse lado sombrio não contribui em nada para se operar transformações desejadas na sociedade. Pelo contrário, "esconder a sujeira debaixo do tapete" é exatamente o que impede a tomada em consideração daquilo com que temos de nos haver. [...] Temos algo a aprender também com a dor de existir e não apenas com a alegria e felicidade. O Mal, assim como o Bem, é parte igualmente constituinte do ser humano. (pp. 12-13)

Não é sem razão que, em "O mal-estar na civilização", Freud designa as relações humanas em sociedade como a nossa principal fonte de sofrimento. E propõe que isso não seja da ordem da contingência - "uma espécie de acréscimo gratuito" -, mas, antes, algo "fatidicamente inevitável". (1930/1980, p. 95).

Diferentemente do que se imaginava, a Psicanálise revelou que a vida em sociedade não tem nada de harmonioso e livre de conflitos, uma vez que, "Reunidos no coletivo, os seres humanos mostram tanto o melhor quanto o pior de que parecem ser capazes" (Pacheco Filho, 2009b, p. 11). E foi dessa forma que Freud, ao chegar a Nova Iorque para fazer algumas conferências, disse a Jung: "Eles não sabem que lhes estamos trazendo a peste" (Lacan, 1955/1998, p. 404, como citado por Pacheco Filho, 2009b, p. 14). A Psicanálise jamais poderia ser "a ciência pura, aética, asséptica e dessexualizada que revelaria um ser humano altruísta, puro e livre de egoísmo, vivendo em uma sociedade harmônica, piedosa e justa" (Lacan, 1955/1998, p. 404, como citado por Pacheco Filho, 2009b, p. 14).

Todavia, acredita-se que seja agora na atualidade que essa "doença" tem castigado, mais drasticamente, a Psicanálise e lhe gerado desafios de caráter externos e internos. É comum, nos dias de hoje, vermos a sua eficácia terapêutica colocada sob suspeita diante dos psicofármacos e a sua fundamentação científica posta sob questão pelas neurociências (Dunker, 2017). Comum também na atualidade acompanharmos a necessidade dos analistas lidarem com as mudanças ocorridas no âmbito do imaginário social contemporâneo e o lugar ocupado pela Psicanálise no campo dos saberes do psiquismo, evidenciados tanto em seu registro prático quanto no teórico.

[...] No registro prático, pode-se reconhecer com facilidade a diminuição vertiginosa que se realizou no nível da demanda para a cura psicanalítica. A demanda clínica diminuiu de maneira significativa, segundo reconhecem os analistas em geral. Em contrapartida, as pessoas tendem a preferir os tratamentos psicofarmacológicos e as psicoterapias de curta duração.
No registro teórico, de maneira complementar, os modelos advindos do cognitivismo fascinam cada vez mais o campo dos saberes do psíquico e as ciências humanas no sentido mais geral. Tudo isso, evidentemente, no lugar das hipóteses psicanalíticas. (Birman, 2003, p. 128).

Se aliarmos a esses fatores uma práxis padronizada, ou seja, o cumprimento rígido da técnica psicanalítica, tanto Hermann quanto Birman prenunciam o possível fim da prática psicanalítica: " O risco maior que os psicanalistas correm atualmente não é o alardeado fim da Psicanálise, mas o de uma práxis padronizada (Herrmann, 2003, como citado por Alves, Borges, Gomes, Mendes, Romera & Rocha, 2016, p. 191, grifos nossos); e "A psicanálise sofre de 'certa insuficiência' em seus instrumentos interpretativos, no que concerne às novas modalidades de inscrição das subjetividades" (Birman, 1999, p. 15, grifos nossos).

A solução para tal impasse estaria na prática de uma clínica do singular, como aponta Poli (2008, p. 155):

A renovação/invenção de seu saber e de sua prática, fundada na particularidade de que, para cada analista, como para cada caso clínico, é necessário reinventar toda a Psicanálise novamente. Isso porque o saber psicanalítico tem a peculiaridade de ser especialmente suscetível ao recalque, e é graças a isso que se pode operar para buscar, não um conhecimento, mas a posição de enunciação que situa a produção de um saber singular.

Esses elementos nos incitam e convidam a traçar um caminho que favoreça nossa discussão acerca da clínica psicanalítica contemporânea. No primeiro trajeto do percurso, levantaremos os pontos que caracterizam a peste psicanalítica e seus reflexos na contemporaneidade.

 

A origem da peste e seus reflexos na contemporaneidade

Quais as condições e como se processou a "peste psicanalítica"?

Partiremos do lugar que a Psicanálise ocupou no imaginário da modernidade e os desencontros metapsicólogicos da teoria psicanalítica ocorridos durante a construção do seu saber, especialmente as diferenças dos postulados sobre o conflito pulsão e civilização, apresentados no texto de 1908 e de 1929.

Nesse tema, Freud se deslocou em dois polos distintos. No início de seus estudos, o pai da Psicanálise acreditava na harmonia possível entre os registros do sujeito e do social, mas logo essa harmonia foi posta em dúvida, ganhando primazia o desamparo do sujeito no campo social, problemática destacada no texto "O mal-estar na civilização", escrito em 1929. Percebemos assim que,

Por esse viés, [...] que, no segundo discurso freudiano sobre o social, o discurso inicial foi colocado em questão de maneira radical. Em seu discurso final sobre a modernidade, o pensamento psicanalítico colocou a Psicanálise à prova do social, o que a obrigou a se reconstituir sobre novas bases e outros fundamentos. (Birman, 2003. p. 124).

O texto de 1908, "A moral sexual 'civilizada' e a doença nervosa dos tempos modernos", apontava uma solução possível para o conflito pulsão e civilização sob a mediação da Psicanálise. Já o texto de 1929, "O mal-estar na civilização", revelou que a construção da civilização deixou para o homem o legado do conflito, já que para viver em sociedade ele teve que renunciar seus instintos. Essa renúncia é a causa do padecimento neurótico, pois demonstra uma situação inconciliável, uma vez que para cumprir com as exigências morais o homem abre mão parcialmente de suas pulsões sexuais e agressivas. O conflito entre as pulsões e a moral constitui uma revelação complexa da teoria psicanalítica.

A Psicanálise depois de 1929 desvelou que o alcance da felicidade humana, pela mediação do logus científico, como pensava Freud, era impossível. Ao contrário disso, sinalizou que o que se instaura é a total desarmonia entre os registros da pulsão e civilização. O texto de 1908 apontava uma solução harmoniosa para os dois polos - pulsão/civilização - mediada pela Psicanálise, ou seja, a Psicanálise poderia oferecer ensinamentos consistentes sobre a natureza da pulsão sexual que seriam tranquilamente trabalhadas pelo aparelho psíquico, de modo que o sujeito não sofresse conflito entre as exigências da pulsão e a civilização. Todavia, no texto de 1929, Freud concluiu que a relação conflitual entre pulsão e civilização era estrutural e, assim, o conflito jamais poderia ser desfeito (Birman, 2003). O que se identifica é uma total descontinuidade entre o texto de 1908 e o de 1929 e uma reviravolta nos pressupostos metapsicológicos freudianos. A Psicanálise, diferentemente do que propunha no início de percurso de Freud, desvela o desamparo originário do homem, evidenciado pela impossibilidade de harmonizar o conflito entre pulsão e civilização, eis a peste psicanalítica de XX.

A modernidade ainda buscou manter o fascínio para com a Psicanálise com a ilusão da individualidade e do apaziguamento do desamparo e do domínio do mal-estar social (Birman, 2003); mas o que prevaleceu foi a trágica perspectiva do último Freud, ou seja, a Psicanálise não trazia mais a esperança de solução para as perturbações do espírito humano, mas sim uma "ideia de gestão para que o sujeito possa manter a vida enquanto possibilidade e um bem aberto para si" (Birman, 2003, p. 135).

A articulação freudiana de 1929 atingiu a própria comunidade psicanalítica, pois a decepção pela expectativa não cumprida, de uma harmonia entre a pulsão e a civilização, levou alguns analistas a buscarem neutralizar o trágico, a peste, revelada pela Psicanálise em diferentes níveis. São muitos os que ainda anseiam pela cura do desamparo e mal-estar contemporâneo, transformando "a face do discurso psicanalítico ao silenciar a sua especificidade, desvitalizando-a" (Birman, 2003, pp. 142-143). Para Birman, isso agrava a crise da Psicanálise levando-o a desacreditar que "a Psicanálise possa efetivamente sobreviver, marcada pela sua especificidade nos registros teórico e ético, se ela não pode reconhecer o desamparo do sujeito e o mal-estar social decorrentes da dita pós-modernidade" (Birman, 2003, p. 143).

Se na modernidade o mal-estar social produzido pelo desamparo esvaziou a sedução psicanalítica, hoje podemos fazer coro com Maurano (2010, p. 9): "Para que serve a Psicanálise?"; "Há quem diga que 'esse papo de Freud está ultrapassado. Com tantas mudanças em um século, Freud já era!'; ou ainda: 'A Psicanálise já era!'". A autora diz que tal posicionamento se deve ao fato de alguns estudiosos da subjetividade contemporânea descreverem nossa época como a era da simulação, argumentando que,

Se a aceleração das mudanças nos lança na incerteza quanto ao futuro, resta-nos antecipá-los e vivermos em cenários virtuais, para tais estudiosos seria ultrapassado as pessoas fazerem análise, falarem sobre seus problemas, explorar ideias e reflexões frente às novas inquietações e aos recursos disponíveis em nossos tempos. (Maurano, 2010, p. 10 ).

Mais do que na modernidade, a contemporaneidade revela que a ânsia pela harmonia pulsional prevalece, de modo que constatamos uma crescente busca do sujeito pelo ter e a ideia de que pela a posse dos bens haja sutura para a falta que o constitui como ser humano. Acompanhamos e vislumbramos na clínica novas maneiras de se lidar com o mal-estar do homem na contemporaneidade (Scotti, 2012).

Questiona-se: que saída existiria para a clínica psicanalítica?

 

A clínica psicanalítica hoje e suas contingências

Freud (1923) concebia a Psicanálise como um método de conhecimento, uma técnica de tratamento e uma ciência da psique. Atualmente, para alguns pesquisadores, ela ainda é compreendida em seu aspecto teórico, mas especialmente pelo "campo da clínica, feito de pacientes e situações que se encontram no limite da possibilidade de análise (pacientes borderline, narcisistas, de estrutura psicótica ou perversa, psicossomáticos...)" (Candi, 2009, p. 222, grifos dos autores).

A clínica psicanalítica para Freud se destinava ao tratamento dos neuróticos, Lacan a ampliou para os psicóticos e ainda hoje nos defrontamos com pacientes "no limite da possibilidade de análise", ou seja, aqueles exemplificados na citação anterior, com peculiaridades distintas da estrutura neurótica. Mas, como diz Pacheco Filho (2009), os sujeitos neuróticos são maioria nos consultórios. Ainda somos procurados por pacientes que desejam se libertar de seus males e seguirem com suas vidas.

A ilusão do homem de gerir seu desamparo ainda persiste. Delinearemos a seguir algumas formas de como o homem tem buscado gerir o "impossível", ou seja, a desarmonia entre a pulsão e civilização e seus reflexos na clínica psicanalítica atual.

A primeira delas é a ilusória ideia de felicidade e sua busca constante e transparente pelo homem. Franco Filho (2009, p. 184), no texto "A civilização do mal-estar pela não felicidade", aponta que essa é a mais comum demanda de análise: "Não obstante, nós psicanalistas continuamos a ser procurados por pessoas que pretendem o alívio de suas dores, ou o afastamento do desprazer que sentem, na expectativa de desfrutarem da felicidade. Felicidade que cada um tenta formular à sua maneira, conforme suas fantasias".

Nada mais legítimo que o homem busque sua felicidade, mas, como descrito anteriormente, a plenitude, fruto de uma harmonia entre pulsão e civilização, é impossível, de modo que sempre haverá uma falta. Entretanto, o que se percebe é que, mais do que antes, o homem tem buscado a qualquer custo extinguir sua dor e o sofrimento, de modo que o chamado comportamento hedonista tem se tornado cada vez mais evidente. O mesmo se expressa na contemporaneidade, na intensa busca individual de prazer extraído pela liberdade de consumo disponível ao homem nos meios de produção. O lema é: "quanto mais consumo maior felicidade!".

A crença de se obter a plenitude de alegria se explicita na radicalidade de que o homem não só pode ser feliz, mas deve ser feliz, cabendo somente a ele tornar isso uma realidade. Quanta ironia! Tal avidez o leva, justamente, a mais sofrimento, uma vez que essa postura implicará em uma mudança radical em suas estruturas psíquicas, pois o prazer requerido ao Id passa a ser de pertinência ao Superego e, se a felicidade não se concretizar, o homem estará condenado à culpa (Franco Filho, 2009).

Destarte, vale tudo para ser feliz, até mesmo a Psicanálise tem se apresentado como um bem de consumo geradora da felicidade! Birman (2003) alertou sobre esse risco ao descrever o propósito de alguns analistas em criar um monstro epistemológico para a Psicanálise por meio de uma montagem entre os discursos psicanalítico, neurocientífico e cognitivista. Mas o autor nos alerta: "Não será pela bricolagem com as neurociências e o cognitivismo triunfantes, que prometem a harmonia entre natureza e liberdade, que a Psicanálise sairá da sua crise." (Birman, 2003, p. 145).

Outra contingência imposta à clínica psicanalítica atual diz respeito ao que o homem tem feito com os destinos do desejo. A Psicanálise acredita na ideia de que o homem é responsável pelo seu desejo, ainda que este seja inconsciente, cabendo ao homem responsabilizar-se por suas ações, tal como perguntava Lacan (1991, p, 176): "Agiste conforme o desejo que te habitas?".

Todavia, a modernidade tem revelado que o homem se omite a assumir as consequências do que deseja. Como resposta a essa atitude, tem crescido assustadoramente a depressão, o "mal do século".

Junto de tantos outros sintomas tratados pela Psiquiatria com toda pletora de psicofármacos, que o serviço dos bens coloca a disposição do sujeito contemporâneo, como as síndromes do pânico, os transtornos bipolares e os déficits de atenção, a depressão é um caso da pergunta: "Agiste conforme o desejo que te habita". (Scotti, 2012 , pp. 57-58).

A questão lacaniana esclarece que, por mais que o sujeito tente fugir, ele jamais escapará da paixão do saber, ou seria da paixão do não querer saber? É assim mesmo, algo bem paradoxal, pois hoje, mais do que antes, o homem tem buscado conhecer tudo por meio da internet, da mídia e da Medicina, no afã de se obter a pílula da felicidade, ou seja, a forma de obter a beleza, a riqueza e a eterna juventude (Scotti, 2012).

Entretanto, a depressão revela que o sujeito abre mão de tudo isso e perde o sentido da vida. O depressivo engana a si mesmo, pois o vazio que ele sente não é o do reflexo da falta de sentido dos bens que não possui, mas da falta do desejo que não reconhece em si (Scotti, 2012). Há uma culpa, mas não é daquilo que ele acredita se culpar, e sim por ceder do desejo e da angústia que o acompanha, já que todo desejo humano é conflituoso. Como afirma Lacan, o desejo está fadado à insatisfação, na medida em que é desejo de outra coisa, ou seja, "é sempre o desejo por algo substitutivo ao objeto proibido" (Scotti, 2012, p. 58).

A Psicanálise inaugurou uma nova ética, a que convida o homem a responsabilizar-se até mesmo pela criança que nele habita e que, em certos momentos, o leva a agir de maneira impensada e com ideais fundamentalmente narcísicos. A ética da Psicanálise nos responsabiliza pelo lixo, pelos restos que cada um produz e pelo destino que damos a eles (Scotti, 2012). É ela que busca ajudar o homem a questionar o seu desejo, mas as patologias da atualidade têm demonstrado que o homem tem se esquivado disso. Na esteira dos destinos do desejo, faz-se necessário evidenciar algumas considerações sobre as novas formas de subjetivação.

O contexto social atual nos aponta para o crescimento incontestável do autocentramento do sujeito e o profundo esvaziamento da alteridade na constituição da subjetividade. Isso, associado à falta de uma história, uma narrativa, influenciou Lasch a identificar os princípios da chamada cultura do narcisismo (Birman, 2003).

Na cultura do narcisismo, o que ganha primazia para o sujeito autocentrado é sua individualidade e as glórias que seu eu recebe. Atividade na qual ele se esmera meticulosamente, na maioria das vezes, de forma até exagerada e melodramática. O que importa é seu êxito em fazer com o que outro e ele mesmo admirem sua imagem e ela atinja o brilho social, mesmo que para tal tenha de fazer polimentos intermináveis.

Para alcançar êxito no propósito de fazer-se admirado, o sujeito recorre a um aliado fundamental, ou seja, à mídia e aos diversos meios de comunicação em massa. Na cultura da imagem, estabelece-se um ciclo vicioso que se retroalimenta e passa a constituir a principal causa de existência do sujeito, que agora vale o que parece ser, melhor dizendo, como ele se faz apresentar por meio das imagens produzidas e veiculadas na cena social.

Outra evidência do autocentramento se dá no registro sexual, quando o indivíduo realiza a predação do corpo do outro. Isso decorre do ato de o indivíduo manipular o outro, tornando-o exclusivamente causa de sua exaltação. Assim, o outro se transforma em seu mero objeto de predação e gozo, para alcançar a glória de si mesmo. Nesse caso, os afetos não têm mais significância.

O que se percebe nos dias de hoje, conforme pontua Birman (2003, p. 23 ), é que a subjetividade contemporânea se baseia na "exterioridade, no autocentramento e assume uma configuração estetizante, tomando ao pé da letra o olhar do outro".

Outra forma de descrevermos o sujeito dos nossos tempos é a partir da lógica capitalista, quando ele é reconhecido como o sujeito pós-moderno - balizado pelo Outro da política do capitalismo ultraliberal - caracterizado: (i) por uma radical busca de sua "liberdade", ou seja, esse sujeito não se submete a qualquer tipo de categoria ou determinação; (ii) por negar a todo custo o recalque, apostando em uma plena garantia de satisfação. Diferentemente do sujeito moderno freudiano, que tinha interesse em decifrar seu mal-estar, interrogar-se para saber mais sobre seus sintomas e o véu que os encobria, o sujeito pós-moderno, pelo contrário, não acredita que exista algo simbólico antes de si que lhe determine. Ele procura viver sem referências, sem passado, usando o presente para consumir e o futuro para pagar as contas do cartão de crédito (Almeida, 2017).

Esse quadro delineia um mal-estar sem passado, sem recalque e sem desejo, prato cheio para a indústria farmacêutica, e que se ajusta perfeitamente aos inúmeros tipos das psicopatologias da atualidade, criadas para caber no discurso da ciência e na ideologia capitalista. A clínica atual tem diante de si o desafio da sustentação de uma ética do desejo (Almeida, 2017).

 

Laço social, desejo e subjetividade: os operadores da clínica atual

Vimos no tópico anterior que a possibilidade da clínica psicanalítica manter sua eficácia e marca epistemológica na atualidade é sustentando a ética do desejo. Em contra partida, descrevemos que aquele que chega até a clínica hoje é um sujeito alijado de seu desejo; então, como restaurar a condição desejante do sujeito contemporâneo?

A contemporaneidade e os seus marcadores, como os avanços tecnológicos, sobretudo na comunicação, demonstram que o homem continua buscando fazer laços na tentativa de ligar-se ao outro. É isso que nos possibilita interpretar o apego quase desenfreado do homem aos dispositivos tecnológicos que o mantêm sempre conectado, por meio dos diferentes aparelhos de comunicação e da internet.

Essa busca por soluções que aplaquem seu desamparo não é recente, posto que a história da humanidade revela que o homem sempre buscou maneiras diferentes para lidar com as dificuldades da vida. O homem já apelou para a constituição da lei, a fé em Deus, as luzes da razão, agora, na contemporaneidade, parece ser no laço com o outro que ele tem buscado a solução para as suas dificuldades e, sobretudo, do seu desamparo.

Esse apelo a se ligar aos outros participa obviamente da história da humanidade, mas o que chamou a atenção aqui é o fato de que, na contemporaneidade, termos inflacionado essa estratégia. Assim, as pessoas recorrem mais facilmente a alguém ao alcance da mão, ou ao alcance da linha telefônica, do que o a um templo religioso para se amparar. (Maurano, 2010, p. 12).

É no interesse do homem em se ligar ao outro que temos a primeira condição para a Psicanálise operar. O elemento motivador que leva o homem a querer ligar-se ao outro é nomeado pela Psicanálise de libido, energia de Eros, que cobra constantes investimentos. Sendo assim, os diferentes sintomas do mal de amor que dão a tônica do mal-estar na atualidade circunscrevem um campo propício para o exercício da Psicanálise e, como diz Maurano (2010), quando se trata de questões envolvendo o amor, não houve mudanças fundamentais, e sim acessórias.

A constatação que se faz é que o vazio do homem é impossível de ser extirpado, mas cabe aos que utilizam o método psicanalítico encontrar meios menos nefastos de abordá-lo, como afirma o ditado: "Não se pode mudar a direção do vento, mas pode-se alterar a posição das velas" (Maurano, 2010, p. 15).

Pensemos agora no desejo e na subjetividade, conceitos interdependentes, conforme a metapsicologia freudiana. Sobre metapsicologia freudiana acerca da constituição da subjetividade, tudo começa com o desejo, conceito psicanalítico que traz remetimento a uma tristeza profunda pela falta da presença da "Coisa" que nos salvou do desamparo. O desejo é a resposta encontrada pelo psiquismo diante da dura realidade de que sozinhos não resolvemos ou encontramos respostas para nossas necessidades, e como não temos em nós a resposta, ou seja, não nos bastamos a nós mesmos, a solução é pela via do desejo (Maurano, 2010).

Por sua vez, o manejo do desejo produz o que pode parecer funesto ao homem, pois apresenta o assujeitamento ao Outro e ao seu desejo. Aqui encontramos o pulo do gato, pois para a Psicanálise é a alienação ao Outro que possibilita nos tornarmos sujeitos. Sem esse Outro, nada feito, não haveria sobrevivência possível.

Tudo se dá mais ou menos assim: no primeiro momento, ocorre uma alienação ao Outro, o que gera a sensação da solução de parte do desamparo. O homem, então, se ancora, de certo modo, a alguma significação. Esta, porém, não é completa em si mesma, resta sempre um ponto de vacilação do sentido, uma brecha, via pela qual erigimos o desejo que nos funda como sujeitos (Maurano, 2010). Já o desejo seria a tentativa de suturar a falta constitutiva do sujeito, ao aferrar o sujeito à Coisa que supostamente o tornaria completo, sem falta. Mas isso configura uma fantasia, pois a Coisa em si nunca existiu. Essa fantasia o retiraria da condição de carente ou de devedor do Outro salvador. Essa fantasia também possibilita o norteamento das ações humanas, garantindo-lhe um modo singular de responder ao desejo do outro, em que surge um lugar para o eu. "Aí está, portanto, também, a fantasia em sua função de promover a satisfação, articulada ao desejo inconsciente" (Maurano, 2010, p. 51).

Há assim um vai e vem ao Outro enredado pela linguagem, que atua nesse campo como trama. Nesse sentido, o que funda o desejo humano é o Outro, a exterioridade, o que faz do inconsciente e do próprio desejo um construto social.

A concepção psicanalítica acerca da subjetividade e desejo vem na contramão do que postula a cultura do narcisismo descrita anteriormente, ainda que de forma sucinta, de modo que a questão de como tornar a Psicanálise operante no contexto histórico da atualidade persiste. Todavia, Pacheco Filho (2009), ao trabalhar laço social, desejo e subjetividade em um dos seus textos,1 demonstra como podemos manter o caráter ético da Psicanálise, bem como a ética do desejo. Por intermédio do método psicanalítico, o autor busca ampliar os sentidos para compreensão da tendência totalitária de alienação ao laço social do capitalismo. A partir do conceito de função paterna, formalizado por Lacan, o autor tensiona os fatos históricos e as mudanças geradas pelo capitalismo trazendo uma nova interpretação para as razões da alienação, compreendendo-a como uma forma estrutural das relações sociais. A leitura de seu texto possibilita uma reflexão crítica acerca da lógica e do sujeito capitalista, com contribuições para a compreensão da importância do laço social e de como se tem operado o desejo na contemporaneidade.

Nesse sentido, faz-se importante compreender o que faz um analista.

 

O que faz e o que deseja o analista?

Retomaremos primeiramente a questão trabalhada por Lacan na metade do século XX, no auge da peste psicanalítica: "o que faz um analista?"

"[...] Quando Lacan formula sua pergunta, busca um sentido radical: ele tenta resgatar, naquilo que definiu como questões-chaves da Psicanálise, a natureza de uma prática que havia sido não só negligenciada como também empobrecida" (Andrade Júnior, 2007, p. 184). Entendemos que essa pergunta continua sendo pertinente e seja potencializadora para esse momento em seu duplo sentido, ou seja, o que autoriza a pessoa como psicanalista e como opera um psicanalista.

Freud (1926), em seu texto "A questão da análise leiga: conversa com uma pessoa imparcial", trabalha alguns dos aspectos que autorizam uma pessoa ser um analista. Ele considerava, diferentemente do que outros pensavam, que um leigo, ou seja, um não médico, poderia exercitar a Psicanálise desde que: tivesse passado pela experiência de análise, compreendesse os ensinamentos sobre a Psicologia do Inconsciente, transitasse bem nas questões sobre sexualidade e dominasse a técnica da Psicanálise como a arte da interpretação, o combate das resistências e o manuseio da transferência. Em suas palavras qualquer um que apresentasse as habilidades mencionadas "[...] está apto a empreender o tratamento de distúrbios neuróticos, e com o passar do tempo ele poderá produzir nesse contexto tudo aquilo que se pode requerer dessa terapia" (Freud, 2017, p. 260).

E o que se requer dessa terapia? Distintivamente do médico, o analista não tem um saber objetivo e generalizável. É comum ao procurarmos um médico que ele nos examine, solicite exames e com estes em mãos nos transmita o diagnóstico e a forma de tratamento; atitude que pode se repetir com outro paciente que apresente as mesmas características. O analista, ainda que faça diagnósticos, não trabalha assim, pois os sintomas dos quais se ocupa estão relacionados à linguagem, e não ao organismo. Eis a particularidade da Psicanálise e o objetivo pelo qual foi inventada, ou seja, cuidar do corpo afetado da histérica mediante a escuta.

Aqui precisamos nos atentar para o modo como isso se dá. Como fazer o sintoma ceder? Poderíamos dizer de forma simples que é encontrando sua causa e comunicando para o paciente, já que ele não sabe o que o faz sofrer. A forma como isso ocorre caracteriza o fazer do analista: primeiro se dão os encontros preliminares, quando ele toma conhecimento da causa que trouxe o paciente até ele; em seguida, geralmente, ele aplica a técnica e pede para o paciente deitar no divã e associar livremente, falar de maneira livre, o que lhe vem à mente. O que se objetiva com isso é descobrir de que sofre o paciente. Todavia, não há garantias de que o psicanalista saiba, uma vez que nem mesmo o paciente sabe, a causa de seu mal-estar. O psicanalista sabe que tudo o que o paciente disser o ajudará a identificar a razão de seu mal-estar, ainda que até mesmo o paciente ignore o que lhe traz sofrimento. Vemos assim que, diversamente do saber objetivo da Medicina, o saber do analista é apenas suposto, é um saber que lhe é atribuído pelo analisante sobre o mal que o afeta, ainda que o analista nada saiba sobre esse paciente. Quando esse saber surge, ele é construído na relação analítica, sendo, portanto, um saber singular, exclusivo daquela relação (Aflalo, 2012).

Candi (2009, p. 223) descreve que

Um psicanalista, no exercício efetivo da sua clínica, se debate com as obras de pares e mestres para que, num corpo a corpo afetivo e intelectual com seus pacientes, crie e recrie a Psicanálise em sua singularidade.
Os conceitos clínicos são redefinidos a partir de uma ampla experiência com os pacientes-limite e não neuróticos, possibilitando apresentar critérios que permitem pensar nas indicações e contraindicações terapêuticas.

Podemos ver que o fazer do analista trata-se de uma experiência que modifica o sujeito. Ainda no texto "A questão da análise leiga: conversa com uma pessoa imparcial", Freud (1926) nos esclarece como ocorre essa mudança e como se dá a escuta do analista, ao diferenciá-la da escuta de um penitente, pois na confissão o pecador diz o que sabe, e na análise o neurótico haverá de dizer ainda mais, ou seja, aquilo que não sabe que sabe. Prossegue demonstrando que o analista se difere do penitente e do hipnotizador, visto que em sua técnica não usa de distração ou dissuasão. Dá continuidade ao seu diálogo com uma "pessoa imparcial" apresentando a constituição do aparelho anímico, o conflito entre o Eu e o Isso, o inconsciente, a pulsão e o recalque, definindo assim a análise como "uma experiência pela qual o recalque é suspenso, reconciliando o sujeito com os valores que lhe são mais caros" (Aflalo, 2012, p. 35).

Essa descrição do trabalho psicanalítico revela a singularidade do seu saber mediante sua universalidade teórica. Nesse sentido, podemos apreender que no exercício de seu ofício o analista, mesmo estando balizado por conceitos, tem a ciência de que o seu saber não lhe traz garantias, ou seja, ele ainda não tem certeza do que seu paciente precisa. O paciente pergunta: o que eu faço? E, às vezes, ele não terá a resposta. Nesse caso, a regra primorosa da Psicanálise quando não sabe o que fazer é "não faça nada". A regra de ouro é o silêncio. Quando sabe, também não diga nada, porque se você tem a resposta ela não é para o paciente, mas para você (Paravidini, 2017, comunicação oral).

Isso nos convoca a desdobrar outra pergunta: o que deseja o analista?

Para respondê-la, teremos que retornar à dimensão ética da Psicanálise, pois tanto para Freud como para Lacan, ética e desejo são temas complementares. Foi a partir da elaboração sobre ética psicanalítica que Lacan contribuiu para a construção da noção do desejo do analista (Coutinho Jorge, 2017).

Coutinho Jorge (2017) comenta que, em sua conferência "Transferência", Freud (1917) dá uma aula sobre a ética da Psicanálise definindo-a como a "não ceder quanto ao próprio desejo", mesmo sentido dado por Lacan. Ressalta-se que a ética aqui tratada nada tem a ver com a moral e dela se distingue em aspectos fundamentais. "Moustapha Safouan sublinha com justeza que essa formulação lacaniana tendeu a se transformar num imperativo - 'Tu não cederás sobre teu desejo' -, constituindo uma espécie de 11º mandamento e revelando que também ela fora sequestrada pelo supereu" (Coutinho Jorge, 2017, p. 109).

Diante disso, podemos concluir que um dos alvos da análise "é proporcionar as melhores condições para que o sujeito tome suas decisões" (Coutinho Jorge, 2017, p. 109); nesse sentido, cabe ao analista a função de mentorear o paciente no alcance desse objetivo e só em casos particulares e necessários assumir a função de pedagogo. Freud orienta que não cabe ao analista a palavra final, mas sim ao analisando. Todavia, esse trabalho deve ser feito cuidadosamente, no sentido de o paciente por si só liberar e satisfazer sua própria natureza e não se tornar igual ao analista. Cabe ao analista identificar os momentos de ficar em silêncio e o de falar, com o fim de não se transformar em fonte de angústia ao paciente, dificultando sua fala. A essa condição de fazer calar o paciente Lacan chamou de poder do analista, é a ética da análise que possibilita ao analista controlá-lo, de modo que o analista dirija a análise e não o analisando.

Cabe à análise possibilitar ao paciente a escolha do que melhor lhe convém e que o conflito neurótico impossibilita escolher. Tal conflito precisa vir à tona e ser elaborado. Assim, a análise proporciona que o conflito patogênico se transforme em um conflito para o qual o sujeito possa encontrar uma solução. Sabemos, porém, que essa harmonia é impossível, o conflito sempre existirá, "apenas a análise visa transformar 'o sofrimento histérico em infelicidade comum'" (Coutinho Jorge, 2017, p. 111).

A essa passagem da condição obstacularizante à posição viabilizadora Lacan denominou de ato psicanalítico.

O ato analítico consiste em autorizar o fazer do sujeito. É, como tal, um corte no discurso, é amputá-lo de qualquer censura, pelo menos virtualmente. O ato analítico é liberar a associação, isto é, a palavra, liberá-la do que a limita, para que se desenvolva numa rota livre. (Miller, 2011, p. 34, como citado por Paravidini, 2016, p. 67).

Faz-se importante compreendermos que o ato analítico se constitui com base no desejo do analista e em função dele, "o qual, na condição de suspensão de qualquer demanda de sua parte, qualquer demanda de ser, abre caminho para a produção singular do analisante remetido ao objeto pequeno a" (Paravidini, 2016, p. 67).

O objeto pequeno a é a realização deste tipo de des-ser que atinge o sujeito suposto saber. Não há dúvida de que é o analista, e como tal, que chega nesse lugar, e isso se marca em todas as interferências onde ele se sentiu implicado, ao ponto de não poder senão infletir o pensamento de sua prática no sentido da dialética da frustração, [...], ligada ao redor do fato de que ele mesmo se apresenta como substância da qual ele é jogo e manipulação no fazer analítico. (Lacan, 1967, aula de 17/01/1968, como citado por Paravidini, 2016, pp. 67-68).

Dessa afirmação de Lacan, podemos concluir que no ato psicanalítico o desejo do analista, em sua posição transferencial, se destina à queda da posição de sujeito suposto saber, ou seja, o desejo do analista é o de obter o que há de mais singular no ser de seu analisante, descobrir o resto que emerge do encontro contingencial com o Outro, e sobre o qual ele [analisante] nada quer saber (Paravidini, 2016).

Compreendemos, a partir dos pressupostos do ato analítico e do desejo do analista, que cabe ao analista o lugar de escuta e, principalmente, de causa para o sujeito. Sendo assim, faz-se importante que o analista sustente o desejo de saber, "desejo movido pela falta de saber, pela falta de saber fantasístico, pelo não saber que sustenta a operação analítica" (Coutinho Jorge, 2017, p. 186).

Resgatar o que faz e o que deseja o analista é imprescindível quando refletimos sobre os desafios da clínica psicanalítica atual, uma vez que essas questões expõem que a clínica é um saber posto em questão na própria condição de sua práxis, todavia, é essa mesma preposição que caracteriza e distingue o fazer psicanalítico das outras terapias:

A Psicanálise mostra, assim, que a verdade se sustenta no singular. O singular revela, ao mesmo tempo, o universal da verdade e a incompletude do saber. O saber se mostra antinômico em relação à verdade, por mais que alcancemos sua universalização. Ele é sempre incompleto, seja para se justapor à verdade do desejo, seja para tentar dizê-la integralmente. (Pinto, 2005, p. 81).

 

Para o momento...

Apesar de a "peste psicanalítica" desvelar a condição irreparável de desamparo do homem, não podemos esquecer que foi só depois de postular sobre o "mal-estar" na cultura que Freud, com o método psicanalítico, abriu caminho para se pensar criticamente sobre as sociedades.

Pensando no contexto da clínica em âmbito local, a Psicanálise tem encontrado no Brasil, nos 10 últimos anos, um reposicionamento social surpreendente e, diferentemente do que muitos esperavam, o sepultamento de Freud, e com ele suas viúvas e carpideiras, foi adiado.

Trazido inconsciente pelas mãos de paramédicos, como Lacan e Winnicott, submetido a doses de desfibrilação foucaultiana, feminista e pós-colonialista, reanimado por gente como o Dr. Victor Žižek Frankestein, a Psicanálise retornou como um zumbi canibal disposto a comer o cérebro dos neurocientistas. (Dunker, 2017).

Pesquisas têm revelado2 que, como tratamento, a Psicanálise apresenta resultados superiores quando comparada como outras formas de terapia - inclusive para autismo e psicoses. Ademais, estudos recentes3 que comparam o efeito placebo, tanto com medicamentos quanto com psicoterapias, chegaram a resultados surpreendentemente próximos. Por mais surpreendente que seja, o que tem favorecido a terapia psicanalítica tem sido sua duração, uma vez que o fator mais consistentemente encontrado tem sido a "qualidade da relação entre paciente e terapeuta" (para o qual o fator tempo fornece uma medida indireta).

Essas boas novas indicam que a clínica sobrevive e que a Psicanálise tem respostas para o contexto atual, todavia, nós, psicanalistas, não podemos nos acomodar, pelo contrário, a realidade nos convoca a uma constante avaliação e reflexão crítica acerca do nosso fazer, para que quando pressionados pelos processos de legalização da Psicanálise e regulamentação do exercício das psicoterapias, como intentou a ofensiva cientificista na França por meio da "Emenda Accoyer", de 2003, não nos rendamos e sucumbamos, fazendo com que a ética da Psicanálise se torne anulável. Daí a necessidade de sempre revisitarmos a pergunta de Lacan: "O que faz o analista?" e agirmos conforme preconiza o ato psicanalítico acerca do que deseja o analista.

 

 

Referências

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Endereço para correspondência
Rita Cassia Cardoso da Silva Mendes
E-mail: rita_silva_mendes@yahoo.com.br
João Luiz Leitão Paravidini
E-mail: jlparavidini@gmail.com
Anamaria Silva Neves
E-mail: anamaria.neves@ufu.br

 

 

*Psicóloga e Psicanalista. Mestre pelo Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Programa de Pós-Graduação Em Psicologia, Uberlândia/MG, Brasil. Membro da Comissão Organizadora da Trilogia Psicanálise em Perspectiva.
**Psicólogo e Psicanalista. Professor Associado do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Uberlândia/MG, Brasil.
***Pós-doutora pela CWASU - Child and Woman Abuse Studies Unit, instituição vinculada à London Metropolitan University, em Londres. Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP). Mestra em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Professora Associada 3 no curso de Psicologia - graduação e pós-graduação strictu sensu - da Universidade Federal de Uberlândia. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Programas de Atendimento Comunitário, atuando principalmente nos seguintes temas: família, infância, adolescência, violência e instituição.
1"A praga do capitalismo e a peste da Psicanálise".
2Leichsenring, F., & Rabung, S. (2008). Effectiveness of Long-Term Psychodynamic Psychotherapy: a Meta-Analysis. JAMA, 300(13), 1551-1565. Cantin, L. (1999). An Effective Treatment of Psychosis with Psychoanalysis in Quebec City, since, 1982. Annual Review of Critical Psychology. Huber, D., Zimmermann, J., Henrich, G., & Klug, G. (2012). Comparison of Cognitive-Behaviour Therapy with Psychoanalytic and Psychodynamic Therapy for Depressed Patients - A Three-Year Follow-Up Study. Z Psychosom Med Psychother , 58(3), 299-316.
3Howick, J., Friedemann, C., Tsakok, M. et al . (2013). Are Treatments more Effective than Placebos?: a Systematic Review and Meta-Analysis. PLos One, 11(1). Kirsch I. (2014). Antidepressants and the Placebo Effect. Zeitschrift Fur Psychologie, 222(3), 128-134. doi:10.1027/2151-2604/a000176.

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