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Analytica: Revista de Psicanálise

versão On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.10 no.19 São João del Rei jul./dez. 2021

 

"Batizados na pia da vida": o segundo nascimento na experiência trans1

 

"Baptized at the Laver of Life": The Second Birth in the Trans Experience

 

«Baptisés au puits de la vie»: la deuxième naissance dans l'expérience trans

 

"Bautizados en el fregadero de la vida": el segundo nacimiento en la experiencia trans

 

 

Natasha Mello Helsinger

Psicanalista. Doutora e Mestra em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Membro do Instituto de Estudos da Complexidade (IEC) e do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos (Ebep-RJ). Participante do Coletivo Psicanalistas Unidos pela Democracia. Autora do livro O que é comprimido hoje? A Psicanálise em crise (Editora Appris, 2020)

 

 


RESUMO

Considerando que o segundo nascimento aparece, em diversos depoimentos, como uma marca da mudança da condição de gênero, o artigo tem como enfoque investigar o caráter antinormativo da experiência trans. Para tanto, discutiremos como a emergência do sujeito se dá por meio do registro alteritário, a partir das contribuições de Freud e Butler para, em seguida, pensar como o assujeitamento é uma experiência normativa, o que implicará em analisar como a atribuição de gênero é marcada pelo binarismo de gênero e a heterossexualidade compulsória. A partir da noção de autoengendramento, sustentaremos que a renomeação - a partir da qual o sujeito refunda sua origem - contraria o sistema normativo de nomeação que lhe constituiu e, consequentemente, o modelo de família como origem. É nesse ponto que indicaremos uma possível dimensão de risco, na medida em que, ao interpelar o registro alteritário que o nomeou, o sujeito pode se deparar com a iminência de perda do outro, sobretudo em nossa sociedade transfóbica, o que torna a alteridade crucial para que essa vida que "renasce" seja uma vida vivível.

Palavras-chave: Experiência trans. Norma. Gênero. Origem. Autoengendramento.


ABSTRACT

Considering that the second birth appears, in several statements, as a sign of the change in the gender condition, the article focuses on investigating the anti-normative character of the trans experience. Therefore, we will discuss how the emergence of the subject takes place through the alterity register, based on the contributions of Freud and Butler, to then think about how subjection is a normative experience, which will imply analyzing how the attribution of gender is marked by gender binary and compulsory heterosexuality. From the notion of self-engendering, we will argue that renaming - from which the subject refounds his origin - contradicts the normative system of naming that constituted him and, consequently, the model of family as origin. It is at this point that we will indicate a possible dimension of risk, as, when questioning the alterity register that named it, the subject may face the imminence of loss of the other, especially in our transphobic society, which makes alterity crucial for this life that is "reborn" to be a liveable life.

Keywords: Trans experience. Norm. Genre. Origin. Self-engendering.


RÉSUMÉ

Considérant que la seconde naissance apparaît, dans plusieurs énoncés, comme un signe du changement de la condition de genre, l'article se concentre sur l'investigation du caractère anti-normatif de l'expérience trans. Dès lors, nous discuterons comment se fait l'émergence du sujet à travers le registre de l'altérité, à partir des apports de Freud et de Butler, puis réfléchirons en quoi l'assujettissement est une expérience normative, ce qui impliquera d'analyser comment l'attribution de genre est marquée par le binarisme de genre et la hétérosexualité obligatoire. A partir de la notion d'auto-engendrement, nous avancerons que le renommer - à partir duquel le sujet refonde son origine - est en contradiction avec le système normatif de nomination qui l'a constitué et, par conséquent, le modèle de la famille comme origine. C'est à ce stade que nous indiquerons une dimension possible du risque, car, s'interrogeant sur le registre d'altérité qui l'a nommé, le sujet peut être confronté à l'imminence de la perte de l'autre, notamment dans notre société marqué par la transphobie, qui rend l'altérité cruciale pour que cette vie qui "renaît" soit une vie vivable.

Mots-clés: Expérience trans. La norme. Genre. Origine. Auto-engendrement.


RESUMEN

Considerando que el segundo nacimiento aparece, en varios enunciados, como un signo del cambio en la condición de género, el artículo se enfoca en investigar el carácter anti-normativo de la experiencia trans. Por tanto, discutiremos cómo se da la emergencia del sujeto a través del registro de alteridad, a partir de los aportes de Freud y Butler, y luego reflexionaremos sobre cómo la sujeción es una experiencia normativa, lo que implicará analizar cómo la atribución de género está marcada por le binarismo de género y la heterosexualidad obligatoria. A partir de la noción de autoengendramiento, argumentaremos que el renombrar - a partir del cual el sujeto refunda su origen - contradice el sistema normativo de nomenclatura que lo constituía y, en consecuencia, el modelo de familia como origen. Es en este punto donde señalaremos una posible dimensión del riesgo, ya que, al cuestionar el registro de alteridad que lo nombró, el sujeto puede enfrentar la inminencia de la pérdida del otro, especialmente en nuestra sociedad marcada por la transfobia, lo que hace que la alteridad sea crucial para que esta vida que "renace" sea una vida vivible.

Palabras clave: Experiencia trans. Norma. Género. Origen. Auto-engendramento.


 

 

Introdução

A frase "Letícia Lanz é o nome que me batizei na pia da vida" (Chnaiderman, 2015) evidencia um tipo de experiência que parece acompanhar o processo de transição de gênero: a vivência de um segundo nascimento. Como sabemos, o gênero é atribuído a todo sujeito antes mesmo do nascimento, o que significa que o sujeito não escolhe o próprio gênero, pelo contrário, sua constituição como sujeito (generificado, por assim dizer) se dá mediante um esforço performativo de nomeação (Butler, 1997/2017, p. 102).

Quando o sujeito é nomeado com algum gênero, não se está descrevendo uma verdade apriorística, pelo contrário, está se produzindo aquele gênero, como também uma série de expectativas (Bento, 2011). Porém, nem todos se identificam com o gênero que lhe foi designado, o que pode gerar bastante sofrimento: "Muitas pessoas sofrem dificuldades com sua atribuição [...] e a percepção que têm de si próprias difere da atribuição social que lhes foi dada." (Butler apud IHU, 2017, s/p). Quando isso ocorre, o sujeito pode rejeitar os termos da atribuição inicial de gênero (Butler, 2015a/2018), como ocorre na experiência trans.

A reivindicação do gênero de atribuição é uma experiência extremamente potente, sobretudo por colocar em xeque uma série de ficções nocivas implementadas pelas normas de gênero, como a equivalência entre sexo biológico, gênero, prática sexual e de desejo (Butler, 1990/2015). Além de desafiar o paradigma binário heteronormativo, a experiência trans questiona a ordem patriarcal, bem como o imperativo (supostamente "natural") da anatomia biológica e da aleatoriedade genética, comprovando que uma vagina não faz de alguém uma "mulher", nem um pênis torna alguém, necessariamente, um "homem".

Peitar o decreto dos genitais é um ato de ousadia, diz-nos a trans Amara Moira (2017). O movimento trans produz uma espécie de maremoto - se quisermos brincar, avançar e surfar nas ondas feministas - em verdades que balizaram a constituição daquilo que entendemos como sociedade. Verdades essas vistas como irrevogáveis e que, ao serem interpeladas, colocam em xeque a certeza ontológica que as pessoas têm sobre suas identidades de gênero,2 assim como sobre aquilo que constitui uma família, uma vez que esta é assentada no modelo do parentesco heterossexual e pressuposta pelo binarismo sexual (Butler, 2002/2003).

Mas, para além disso, um dos vetores mais revolucionários da experiência trans é o fato de esta pressupor um ato de renomeação mediante o qual se refunda as próprias origens, contrariando, assim, o sistema normativo de nomeação e, consequentemente, o modelo de família como origem (Helsinger, 2019). Parece-nos que, justamente por conta de tais rupturas, a experiência trans desperta tanto pavor em nossa normativa sociedade que ergue contra ela os preconceitos mais tenebrosos e os assassinatos mais cruéis. Crimes nos quais se mata diversas vezes, até se desconfigurar os corpos (Bento, 2014).

É nesse sentido que Butler alerta para a importância de se criar condições vivíveis para as pessoas que não se se identificam com o gênero de atribuição: "Para essas pessoas é uma necessidade urgente criar as condições para uma vida possível de viver." (Butler apud IHU, 2017, s/p). Essa urgência advém do fato de que elas são alvo de discriminação social e de violência, sobretudo, no Brasil, onde o transfeminicídio é uma política sistemática de extermínio (Bento, 2014). Nosso país continua ocupando o primeiro lugar no ranking mundial de violência contra a população LGBT, segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais, e esses números não param de crescer. Mesmo em 2020, no ano em que começou a pandemia, o assassinato de pessoas trans aumentou 41%, das quais 78% eram negras (Benevides & Nogueira, 2021).

A violência, discriminação, patologização, falta de direitos, de empregos e de suporte social faz com que as pessoas trans sejam entregues à própria sorte e, por vezes, o desalento (Birman, 2012) é tão extremo que dar fim à própria vida parece o único destino possível. Horas antes de se suicidar, em 2017, o estudante Nicholas Domingues escreveu um texto no Facebook, no qual ele dizia: "quem ainda não percebeu que existe um problema agora fique claro, é que o suicídio e pensamento suicida é uma realidade de 66% dos homens trans". O suicídio na população trans é uma realidade assustadoramente triste (Schumann & Martini, 2016), porém tão pouco percebida, pois as vidas trans não são vistas como vidas passíveis de luto (Butler, 2009/2016).

Por outro lado, quando essa realidade é finalmente vista - inclusive pelo campo psicanalítico - costuma-se delinear um olhar reducionista que atribui ao psiquismo a razão de todo sofrimento psíquico. Quando não se delega, é claro, à própria "transexualidade", per si, a fonte da dor psíquica, o que só serve para se estabelecer uma imagem suicidógena do sujeito trans (Bento, 2009).

Por exemplo, defender que a "mudança de sexo" é uma ideia louca, como afirma Chilland (2003/2008), ou impossível - seja porque o sujeito confunde o falo com o pênis (Czermak, 2012), seja porque ele quer responder ao enigma da diferença sexual que é insolucionável e, portanto, se frustrará (Jorge & Travassos, 2017) - são formas de sustentar uma leitura meramente intrapsíquica do sofrimento que pode vir a habitar as pessoas trans.3 Esse tipo de leitura é bastante problemático, principalmente, por desconsiderar os fatores normativos que sustentam as mais variáveis formas de violência que vulnerabilizam aqueles/as que mudam sua condição de gênero.

Por exemplo, explicar o suicídio da população trans como uma insatisfação histérica, como sustentam Jorge e Travassos (2017), é uma percepção complicada que parece se assentar em um desconhecimento (ou, ainda, em um negacionismo) sobre os males fatais da transfobia. Além disso, aponta para uma leitura psicologizante e naturalista do sujeito, como se este fosse uma mônada desarticulada do campo social, o que é um problema metodológico que permeia a Psicanálise pós-freudiana (Birman, 2000b). Tal vertente interpretativa contradiz a própria premissa freudiana de que a psicologia individual é, desde sempre, uma psicologia social (Freud, 1921/1976), afinal os processos de subjetivação se dão, permanentemente, entre o polo narcísico e o polo alteritário.

Não obstante, a urgência de se debater a transfobia e como a Psicanálise se situa em relação a essa problemática, não será possível explorar tais questões no presente artigo.4 No entanto, vamos nos deter em um ponto que está implicado nessa conjuntura: a iminência de perda de vínculos que pode se apresentar quando o sujeito muda sua condição de gênero. É a partir disso que sustentaremos que o segundo nascimento pode supor uma dimensão de risco, caso o sujeito não tenha uma rede de alianças com a qual possa contar (Helsinger, 2019).

Da mesma maneira que não podemos atrelar o sofrimento à esfera intrapsíquica, nem o considerar uma decorrência apriorística da experiência trans, não podemos entender o medo de perda do registro alteritário a partir desse viés. Pelo contrário, o medo de não ser reconhecido/a, de ser expulso/a de casa, de não poder circular na cidade e de não poder sobreviver está inteiramente relacionado ao fato de que vivemos em uma sociedade que tem a heterocisnormatividade como um mandamento último e irrevogável. Uma sociedade que tem a transfobia como uma arma apontada: a ponta intolerante que queima supostas bruxas na Avenida Paulista contra a ideologia de gênero (Butler, 2017), erguendo canivetes sociais que só deixam os filhos cis e heterossexuais fugirem à luta na pátria amada e idolatrada da família, da ordem e do retrocesso.

O caminho teórico-metodológico que delimitamos para trabalhar essa questão consiste em evidenciar como o processo de nomeação (por meio do qual o sistema de atribuição inicial de gênero opera) é permeado pelas normas de gênero para, a partir disso, sustentar como a mudança de condição de gênero coloca em xeque esse sistema normativo de nomeação, no qual o sujeito é nomeado pelo outro. É por essa via que nos alinharemos à ideia formulada por Bento (2011, p. 554): "Cruzar os limites dos gêneros é colocar-se em uma posição de risco."

O que caracteriza esse risco? Partimos da premissa de que toda vivência LGBTQI+ é, em maior ou menor medida, uma experiência antinormativa, e que a experiência trans é ainda mais decisiva nesse sentido, pois abarca em seu cerne a dimensão da origem. Afinal, ao contrariar os planos biológico, familiar e jurídico-simbólico, o sujeito rejeita os termos da atribuição inicial de gênero, colocando em questão o sistema de nomeação a partir do qual se constituiu (Helsinger, 2019). Em nossa hipótese de trabalho, é por esse viés antinormativo que o risco se inscreve na experiência trans, na medida em que o sujeito pode se deparar com a iminência da perda do outro. Tendo isso em vista, sustentamos que a processualidade do risco é cadenciada pela rede de alianças com a qual o sujeito pode contar, uma vez que esta lhe permite se recompor em um novo quadro identificatório (Helsinger, 2019).

Por questões metodológicas, o artigo terá como enfoque a primeira parte da hipótese, qual seja, a dimensão antinormativa que caracteriza a experiência trans, considerando que esta reside no fato de que, ao se colocar como autor de sua própria origem - a partir do "segundo nascimento" - o sujeito se contrapõe à experiência normativa de assujeitamento, desafiando o registro do outro que o nomeou como tal (Helsinger, 2019). Isto é, considerando que o assujeitamento primordial implica em uma prática de nomeação que, por sua vez, tem um caráter produtivo - na medida em que produz o sujeito no ato de nomeá-lo (Butler, 1997/2017) -, sustentaremos que a partir do autoengendramento (que supõe a renomeação, ou ainda, a autonomeação), a experiência trans coloca em xeque o sistema normativo de nomeação, pressuposta pelo registro alteritário, e, consequentemente, o modelo de família como origem (Helsinger, 2019).

Antes de indicar nosso percurso metodológico, é preciso fazer algumas considerações. Primeiro: estamos considerando o segundo nascimento como o momento em que o sujeito passa a se nomear e a se apresentar, socialmente, de outra maneira, mas claro que isso tem múltiplas variações, como discutiremos na primeira seção do artigo.

Segundo ponto: por outro lado, não consideramos o segundo nascimento como um momento inaugural e epifânico. Entendemos que o distanciamento em relação ao gênero de atribuição vai se dando aos poucos, inclusive, antes mesmo de o sujeito formular para si a questão sobre se ele é trans. É nesse sentido que Butler (2015a/2018) afirma que a recusa da atribuição de gênero passa pela própria recusa de se adequar às normas de gênero. Terceiro ponto: não estamos considerando o segundo nascimento como uma condição universal, muito pelo contrário, contrapomo-nos a qualquer tentativa de captura da experiência trans, tão múltipla e singular, em qualquer univocidade, pois isso é uma forma de contribuir para sua patologização.

Todo nosso esforço é caminhar na direção contrária disso, sendo assim, nos pautamos em relatos e depoimentos, o que é uma maneira de abarcar as singularidades e escutar as vozes daquelas/es que são silenciados/as. Ou seja, trata-se de colocá-los/las como detentores/as do saber sobre si, furando a lógica patologizante, na qual um/a suposto/a especialista (médico/a, psiquiatra, pesquisador/a e psicanalista) se coloca como detentor/a do saber sobre o outro, como se este fosse um "objeto" e não um "sujeito". Inclusive, a própria experiência do segundo nascimento, tema desta pesquisa, foi depreendida a partir de narrativas autobiográficas, sem que isso configure nenhuma universalidade.

Em quarto lugar, a dimensão antinormativa não representa a transvaloração absoluta das normas, pelo contrário, o antinormativo se dá no perímetro das normas. A ruptura radical com o campo das normas é impensável - não há o lugar da grande Recusa (Foucault, 1976/1977) -, de modo que as expressões singulares de gênero se dão no interior do dispositivo da sexualidade.

Para desenvolver nossa hipótese, discutiremos, inicialmente, como os processos de subjetivação supõem o registro alteritário. Para isso, apresentaremos a descrição freudiana do desamparo, tal como delineada no Projeto para uma psicologia científica (Freud, 1895/1977), no qual o autor evidencia como o vivente humano, desde seu nascimento, é marcado por uma precariedade biológica que o coloca em uma relação de dependência do outro. A partir disso, evidenciaremos como o processo de subjetivação supõe, permanentemente, o registro alteritário, indicando que é a partir deste que a própria constituição da condição corporal se torna possível. Desse modo, sustentaremos que a Psicanálise trabalha com o sujeito corporificado, sendo o corpo um destino, e não uma origem apriorística (Birman, 2000a).

Indicaremos como esse registro alteritário foi pensado, também, a partir das figuras parentais. Isso nos permitirá sublinhar como estas exercem a função de nomeação e de projeção de expectativas sobre seus/as filhos/as para, enfim, salientar como a experiência de origem se colocou no pensamento freudiano, por exemplo, a partir do fantasma da cena primária (1918/1996). Esse é um ponto importante, pois é a dimensão da origem que se vê questionada na experiência trans.

Para aprofundar essa questão, discutiremos a hipótese de Butler (1997/2017) sobre o assujeitamento, o que nos ajudará a compreender como a emergência do sujeito se dá por intermédio de uma experiência de sujeição. Isso implicará em situar o deslocamento metodológico que a autora realizou da teoria da performatividade de gênero para a teoria da precariedade, bem como suas contribuições a respeito da vulnerabilidade do sujeito em relação à linguagem e como essa é perpassada pelas normas. Dirigiremos nosso foco para os efeitos produtivos da nomeação, o que implicará em analisar as relações entre norma, sexo e gênero.

A partir disso, será possível observar que justamente porque o sujeito se constitui a partir da nomeação do outro que a performatividade de gênero é, antes de tudo, uma atribuição inicial de gênero (Butler, 2015a/2018). Vamos nos embasar no trabalho de Preciado (2004/2014) e de Bento (2009) sobre a inauguração do gênero na criança, para entendermos como a nomeação - que se dá no entrecruzamento entre discurso médico, jurídico e familiar - imbui ao feto uma série projeções e expectativas de gênero, o que é marcado, também, pela tecnologia heterossexual.

Apresentadas tais coordenadas teóricas, depreenderemos o caráter antinormativo da experiência trans, assim como a dimensão de risco que pode se colocar na recusa da atribuição inicial de gênero (Butler, 2015a/2018). Por fim, enfatizaremos a importância da alteridade no processo de transição, o que se coloca como urgente em uma sociedade terrivelmente transfóbica.

 

Nasce-te a ti mesmo

O livro-reportagem O nascimento de Joicy (Moraes, 2015) conta a história da transição do ex-agricultor João, que "renasceu" como Joicy por meio da metáfora do nascimento: "São 7h37 da manhã e, em poucos instantes, Joicy, banguela e meio barbada, vai finalmente nascer." (Moraes, 2015, p. 54, grifos nossos). No capítulo O difícil retorno da recém-nascida, o momento em que Joicy está voltando de ambulância, após a cirurgia de transgenitalização, é descrito assim: "Dele, em instantes, descerão os dois mais novos recém-nascidos na cidade." (Moraes, 2015, p. 65, grifos nossos).

O livro Vidas trans - A coragem de existir (2017) é composto por relatos de quatro pessoas trans, Amara Moira, João Nery, Márcia Rocha e T. Brant. No prefácio, a cartunista Laerte, que se declarou transgênero com 60 anos, afirma: "Me senti totalmente renascida. Costumo colocar na depilação o primeiro momento. Nascimento. Se ver totalmente nu no espelho. Tirar a roupa de pelo." (s/p, grifos nossos). Em seguida, a trans Jaqueline Gomes de Jesus escreve um escrito intitulado Nascimentos em livro, em que afirma: "A transição entre como nosso corpo era, para a forma como a qual nós nos identificamos, é um nascimento: tornamo-nos nós mesmos." (Moira et al., 2017, s/p, grifo nosso). Enfim, a partir de diversas narrativas e relatos autobiográficos - como também da clínica psicanalítica -, percebemos, comumente, uma referência ao segundo nascimento.

Essas narrativas, não raro, são acompanhadas por outra, qual seja, a de um "nascimento equivocado", na qual o sujeito sente que nasceu em um corpo "errado". Isso é relatado, por exemplo, pela trans Márcia Rocha, que afirmou que foi na adolescência que seu corpo começou a se "distanciar da imagem interior de si" (Moira et al., 2017, p. 104). Tudo se passa como se o sujeito vivesse uma vida inautêntica que lhe obrigava a representar um personagem, o que fica nítido na fala de T. Brant: "[Cristhina] era parte de mim, mas, definitivamente, não era a principal: eu mesmo." (Moira et al., 2017, p. 146).

Amara Moira também relata que vivia uma encenação permanente para se apresentar como "homem" em nossa sociedade cis-heteronormativa: "Tudo aquilo se tratava de teatro, jogo de espelhos, personagem". (Moira et al., 2017, p. 18). A máscara é, em suas palavras, fruto de um "adestramento sistemático para você sequer perceber a máscara que puseram em seu rosto quando nasceu" (p. 18), o que gera um enlouquecimento: "No caso das pessoas trans, isso se torna um processo eficientíssimo de enlouquecimento, [...] uma vida inteira ouvindo que a compreensão que você faz de si é equivocada [...] já que você tem o genital que tem." (p. 18).

Nesse sentido, o segundo nascimento permite nascer uma subjetividade que vivia uma vida clandestina. É nesse sentido que Márcia Rocha afirma que a transição "Era a libertação total ou a aceitação de que sofreria pelo resto dos seus dias por estar vivendo uma vida que não era sua" (Moira et al., 2017, p. 112). T. Brant afirma que a transição foi o que lhe permitiu expressar o que realmente era e cortar o cabelo foi o primeiro passo para "ficar mais próximo do que eu sabia que existia dentro de mim, do que eu realmente era" (Brant apud Moira et al., 2017, p. 152).

A mudança da condição de gênero é vivida, por vezes, como uma puberdade, na qual um novo corpo se inaugura. Nesses casos, a emergência de cada traço corporal é minuciosamente celebrada, como menciona João Nery em relação ao uso de testosterona: "Os efeitos foram lentos, mas recebidos por mim com grande euforia. Contava até os pelos que nasciam. A primeira grande mudança foi na voz. Depois vieram as espinhas. Vivia uma adolescência tardia, quase aos 30 anos." (Moira et al., 2017, p. 77). Laerte conta: "já comecei a ter peitinho"; tal como Márcia Rocha, que falou dos "peitinhos do menino se projetando" (p. 104).

Como foi posto na introdução, o segundo nascimento não deve ser visto como uma universalidade. Além disso, deve-se reconhecer que tem qualquer coisa de "mítico" nessa categoria aqui utilizada, pois, como podemos observar, a transição pode se dar de maneira gradual, como uma mudança de estilo corporal (Butler, 1990/2015) - como com o tipo de roupa ou o corte de cabelo -, mas sem que o sujeito se apresente socialmente com outra condição de gênero.

Em outras situações, a mudança da condição de gênero pode se dar de forma mais imediata. Nesses casos, as redes sociais parecem ocupar um lugar central, pois a mudança do nome na rede (como também da foto do perfil) anuncia a nova condição de gênero de forma mais "pública". Por vezes, o sujeito muda o "nome" em uma rede social, mas não em outra, seja por causa das pessoas que estão nessas redes - e não se sente confortável, ainda, para compartilhar essa mudança -, seja porque ele mesmo precisa manter essas identidades, como parte da transição.

Outro ponto importante é que a percepção de não pertencer ao gênero de atribuição não é algo pontual e epifânico, isto é, o sujeito pode não se identificar com o gênero de atribuição, porém, ainda, se sentir confuso sobre sua identidade de gênero, indagando-se, por exemplo, se a sensação de "inadequação" remete para a orientação sexual. É nesse sentido que Butler (2015a/2018) sublinha que um primeiro nível das interpelações de gênero se apresenta a partir de uma rejeição das normas, o que, muitas vezes, acontece de forma imperceptível: "podemos muito bem incorporar ou representar essa rejeição antes de colocar nosso ponto de vista em palavras. Na verdade, podemos conhecer essa rejeição, primeiramente, como uma recusa visceral em se conformar as normas transmitidas pela atribuição de gênero" (Butler, 2015a/2018, p. 37).

A partir de tais inquietações, o sujeito pode concluir que, de fato, não se reconhece no gênero de atribuição, mas não, necessariamente, vai mudar sua condição de gênero, o que envolve diversos elementos, como o medo de perder vínculos sociais e afetivos. Dito isso, interessa-nos demarcar que a mudança da condição de gênero coloca em xeque a designação sexual atribuída no "primeiro nascimento", que, por sua vez, é pressuposta pelo registro alteritário. É nesse sentido que Butler (1993/2000) defende que o "eu" não precede o processo de generificação, pelo contrário, ele surge justamente através da matriz generificada de relações.

O questionamento acerca das condições de emergência do sujeito é uma problemática central no projeto teórico da autora, o que significa que, em sua perspectiva, é impossível conceber o sujeito de forma apriorística, ontológica e solipsista. Pelo contrário, sua reflexão supõe, de maneira inegociável, que a constituição do sujeito supõe certas "condições", o que envolve, fundamentalmente, a dimensão alteritária. É por essa via que a autora pensa a experiência de assujeitamento (Butler, 1997/2017).

Na teoria freudiana, a emergência do sujeito também se dá pelo contexto alteritário, de modo que podemos afirmar que o discurso psicanalítico também considera que a constituição do sujeito se dá por intermédio de um trabalho de assujeitamento, ainda que isso seja descrito com outros termos. Com isso, não estamos, de modo algum, equivalendo as formulações de Butler às de Freud. Além da produção desses autores ter sido realizada em contextos sócio-históricos diversos - Freud no final do século XIX e início do século XX, e Butler a partir dos anos 1980-1990 do século XX -, trata-se de dois projetos teóricos distintos, que partem de diferentes premissas teórico-metodológicas e que visam a diferentes alcances. Por exemplo, para ambos o sujeito não é apriorístico nem autofundado, mas a filósofa vai defender, seguindo Foucault, que essa produção se dá pela norma, não podendo ser pensada na exterioridade do poder.

Tais estratégias de poder são ocultadas para fazer parecer que há uma naturalidade no campo do sujeito, o que está na base da abjeção. Desse modo, todo seu projeto teórico visa produzir transformações sociais efetivas que ampliem as possibilidades democráticas e que façam frente à distribuição desigual do direito à vida e da circulação pelo espaço público (Butler, 2015a/2018) para que todas as vidas sejam vivíveis e passíveis de luto (Butler, 2009/2016). Certamente, podemos depreender que a problemática do poder, da norma e da biopolítica estão implicadas no discurso freudiano (Birman, 2010), mas este se voltou para os processos psíquicos, inaugurando, de forma revolucionária, uma leitura dos processos de subjetivação a partir do inconsciente.

Ou seja, é claro que Freud se dedicou a pensar uma série de problemáticas socioculturais, como a moral sexual civilizada (que previa o imperativo do casamento e da maternidade); a patologização da homossexualidade; o poder da ciência e da religião; as guerras; a psicologia das massas; a violência e o mal-estar da modernidade. Mas, em sua missão de construir a Psicanálise, seu projeto teórico se concentrou em recolher os efeitos psíquicos dessas problemáticas, evidenciando como os processos de subjetivação se dão nos interstícios da economia pulsional e das coordenadas sociais alteritárias (Birman, 2000b).

Não poderemos realizar uma análise minuciosa dos encontros e desencontros entre Freud e Butler, pois isso implicaria em outro recorte teórico-metodológico, mas é importante ressaltar que, independentemente das diferenças, localizamos algumas problemáticas comuns: ambos pensam o sujeito a partir da dimensão do corpo, da finitude e da experiência da alteridade. Além disso, Butler, em diversos momentos de sua obra, estabelece um diálogo com o pensamento freudiano, seja para delinear uma análise crítica a respeito de certas questões (como a heterossexualização dos desejos no Complexo de Édipo), seja para relançar conceitos psicanalíticos para formular hipóteses, como fica evidente em sua discussão sobre a melancolia de gênero, que pressupôs os conceitos freudianos de identificação, luto e melancolia (Butler, 1990/2015; 1997/2017).

Para este estudo, interessa-nos analisar o assujeitamento (Butler, 1997/2017) que caracteriza a vida do sujeito desde seus primórdios, para, então, extrairmos as implicações do refundar a origem na experiência trans. Esse ponto será aprofundado quando discutirmos como o assujeitamento se relaciona às normas de gênero (Butler, 2015a/2018), o que nos permitirá compreender o caráter produtivo da nomeação e, mais precisamente, como ele forja modelos de gênero, sexo, masculinidades e feminilidades. Por hora, iniciamos nossa discussão a partir das formulações freudianas a respeito do desamparo.

 

O enredo do desamparo: a que será que se destina o outro em nós?

O vetor teórico para pensar o assujeitamento na Psicanálise é, em nossa perspectiva, a partir do desamparo. Embora este só tenha recebido estatuto de conceito a partir da segunda teoria pulsional (Birman, 2000a), Freud já havia delineado as coordenadas teóricas dessa experiência em seu célebre texto O projeto para uma Psicologia Científica (Freud, 1895/1977),5 no qual descreve uma espécie de mito das origens (Birman, 2000a), retratando a experiência inaugural do bebê: ao se deparar com excitabilidades com as quais não consegue lidar sozinho, o bebê tenta se desembaraçar delas mediante a descarga. Afinal, essas excitabilidades são vividas como dor, justamente porque não são passíveis de autorregulação, o que gera um acúmulo excessivo e a consequente necessidade de se desvencilhar delas.

A forma princeps dessa descarga é por meio do choro, que, nesse momento inaugural, não tem uma conotação comunicativa: sua função é apaziguar a dor. Como afirma Birman (2000a), o choro só conquista um estatuto de "demanda" a partir da interpretação do outro. Ou seja, é o outro que acolhe o choro como demanda, na medida em que sua interpretação produz a seguinte operação: o choro-descarga é transformado em signo (como frio, sono, fome). Diante de uma vasta multiplicidade de objetos possíveis, a operação interpretativa do outro faz uma espécie de suposição sobre aquilo que falta ao bebê.

Com essa prática interpretativa, introduz-se o registro da linguagem, posto que se instaura um sistema semiológico. Não por acaso, Freud (1895/1977) postulou, em O projeto para uma Psicologia Científica, a célebre formulação de que o choro do bebê seria a razão de todos os motivos morais, indicando que é a partir da interpretação do outro que se cria um sistema comunicativo, o que significa, em última instância, que o sujeito é forjado pelo seu receptor. Nesse sentido, poderíamos dizer que aquele/a que interpreta o choro do bebê empresta seu aparelho psíquico para ele, o que significa que o aparelho psíquico é pensado na relação com o outro6 (Birman, 2000a).

O apaziguamento das intensidades, a partir da oferta do objeto, produz uma experiência de satisfação que é inscrita na vida psíquica a partir de um traço mnêmico, isto é, de unidade mínima de um aparelho de memória. Desse modo, ao se ver acometido pelas excitabilidades novamente, o bebê poderá repetir a experiência anterior de satisfação, ou seja, pode fazer uma realização alucinatória do desejo (Freud, 1905/1989), não dependendo dos objetos concretos para se regular suas excitabilidades, o que seria um esboço daquilo que foi denominado, posteriormente, de circuitos pulsionais (Freud, 1915/1974).7

A questão que estava colocada era o problema da excitabilidade, o que fica evidente em Pulsões e seus destinos, em que Freud (1915/1974) evidencia, de maneira sistemática, como as excitabilidades fazem uma constante exigência de trabalho ao psíquico, o que começa a caracterizar o desamparo de forma ainda mais decisiva. Afinal, se em 1895 o desamparo aparecia como adjetivo para caracterizar a prematuridade biológica, a partir de 1915, o impacto constante da força pulsional parece marcar, de forma fundamental, a concepção freudiana de desamparo (Birman, 2000a).

Isso se torna ainda mais patente a partir de 1920, após a formulação do conceito da pulsão de morte (Freud, 1920/1976). Com o resgate do registro econômico e a formulação do desamparo como conceito, o discurso freudiano enfatizou, de maneira ainda mais eloquente, que a subjetividade depende necessariamente da alteridade - sobretudo para intermediar a conflitualidade pulsional -, sendo, portanto, a autonomia impensável (Birman, 2000a). Por questões metodológicas, não adentraremos na segunda teoria pulsional, pois a primeira já nos oferece coordenadas para pensar como o sujeito se constitui a partir de uma experiência alteritária.

É mediante o sistema interpretativo do outro - e dos traços mnêmicos produzidos desse encontro - que a corporalidade pode se delinear. Em outras palavras, é por intermédio da impressão de marcas propulsionadas pelo outro que o organismo se transforma em corpo: "A força pulsional e o Outro estariam, pois, na origem, indicando então o registro do originário em Psicanálise. Em função disso, é preciso concluir que o corpo é antes de tudo destino, ao contrário do que se poderia ingenuamente pensar." (Birman, 2000a, p. 62) - ou seja, o corpo é uma territorialização do organismo, o que é uma forma de entender o eu como projeção de uma superfície (Freud, 1923/1976). "Pode-se falar então do corpo como um território ocupado do organismo, isto é, como um conjunto de marcas impressas sobre e no organismo pela inflexão promovida pelo Outro. É neste sentido, nos parece, que o eu foi concebido como sendo corporal e como projeção de uma superfície." (Birman, 2000a, p. 62, grifos do autor).

A partir dessa discussão, devemos extrair três pontos. Primeiro, o desamparo é a condição pela qual o sujeito se funda, o que supõe sua inscrição em um contexto alteritário. Segundo, o registro alteritário cumpre a função de transformar o impacto da força pulsional em circuitos pulsionais, na medida em que ele oferta um campo de objetalidade, o que, por sua vez, é a condição princeps da constituição do corpo. Isso significa, em última instância, que não há corpo sem outro. Terceiro ponto: o corpo não é uma entidade apriorística nem estática e precisa, constantemente, ser produzido, o que implica o registro alteritário (Birman, 2000b). Esta nos parece uma via central para pensar a importância da alteridade no processo de transição de gênero (Helsinger, 2019).

Para decantar a relação entre alteridade e subjetivação, analisaremos, brevemente, a hipótese do narcisismo, até porque ela é outra chave de leitura que Freud (1914/1974) oferece para pensarmos o lugar da alteridade na constituição do sujeito. Ele nos diz: é preciso uma nova ação psíquica para transformar a dispersão pulsional em uma organização narcísica. Nesse eixo teórico, a idealização do bebê pelas figuras parentais é o que constituirá o eu ideal. Freud (1914/1974) nos mostra que, por meio dos/as filhos/as, os pais tentam resgatar sua vivência do narcisismo primário. O bebê é colocado no lugar daquilo que os pais gostariam de ter sido ou realizado, o que envolve uma série de expectativas e projeções.

Atribui-se ao infante um lugar majestático e, em um segundo momento, mediante a experiência de castração, se dá a passagem do eu ideal para o ideal do eu. O que está em jogo é que, na metapsicologia freudiana, o processo de subjetivação é pensado como tendo, em sua origem, uma multiplicidade pulsional e, em seguida, começa a se delinear a unidade fictícia egoica. No entanto, esses processos não são cronológicos nem definitivos, pelo contrário, a dispersão pulsional continua operante a todo tempo, demandando uma exigência de trabalho permanente.

A partir disso, destacamos três pontos. Primeiro, o discurso freudiano não supõe um sujeito que tem sua existência ontologicamente garantida: há um processo de subjetivação e corporeidade permanente. Segundo, a autossuficiência é uma ficção que caracteriza o narcisismo primário e ela deve ser superada, evidenciando que o sujeito não é autocentrado, mas perpassado permanentemente pelo registro alteritário. Um terceiro ponto é que uma série de expectativas são direcionadas à criança, como evidencia o conceito de Sua Majestade, o bebê (Freud, 1914/1974).

A teoria do narcisismo parece uma peça central tanto por evidenciar, no interior do discurso psicanalítico, a inseparabilidade entre o registro do sujeito e o registro do outro como também por colocar em cena a dimensão de origem e da filiação, uma vez que ela lança luz sobre as fantasias que as figuras parentais tecem e transmitem aos seus/as filho/as. A dimensão da origem atrelada à experiência familiar aparece, também, a partir de um dos fantasmas originários descritos por Freud (1918/1996), a saber: o fantasma da cena primária. O autor nos mostra como o fantasma da origem é um dos grandes enigmas que perpassa a vida psíquica do sujeito, o que tem como referência o coito parental (heterossexual, bem entendido). Esse é um ponto importante, pois, em nossa hipótese, é a dimensão da origem que se vê interpelada na experiência trans, como discutiremos.

O que nos interessa sublinhar é que o registro alteritário foi colocado no seio da constituição psíquica no pensamento freudiano, o que aparece em diversos momentos de sua obra, de maneira multifacetada e com diferentes enfoques teóricos-clínicos. A questão que fica é: será que nós, psicanalistas, nos detivemos com a seriedade necessária a esse campo de projeções e expectativas, enunciadas por Freud? Questionamo-nos como certas nomeações são perpassadas por forças de poder, ou mais especificamente, o quanto elas são marcadas por normas, sobretudo as normas de gênero?

Por exemplo, muitos/as psicanalistas, ao transmitirem o ensino da Psicanálise, usam certas ilustrações para abordar essa temática, como a mãe que queria fazer balé e não pôde vai almejar que a filha faça balé; ou ainda, o pai que queria jogar futebol vai projetar isso no filho. Mas será que se perguntam como a normatividade de gênero está implicada nisso? Em nossa perspectiva, ainda que Freud não tenha explicitado como as normas de gênero incidem na transmissão transgeracional, catalisando fantasias parentais, a comunidade psicanalítica não pode se furtar de pensar como tais nomeações são reprodutoras das normas de gênero.

Isso implica em um franco diálogo com as teorias de gênero, por exemplo, com Butler (2015a/2018), que se utiliza da noção de fantasia para defender que a aquisição do gênero é uma fantasia compartilhada. Para avançar, apresentaremos antes algumas de suas contribuições sobre o lugar da alteridade no processo de emergência do sujeito, o que nos ajudará a compreender como a nomeação (sobretudo de gênero) supõe o registro do outro.

Como veremos, esse assujeitamento remete para a vulnerabilidade que caracteriza o sujeito, o que faz com que ele seja constituído e permeado pela linguagem: "Um entendimento da atribuição de gênero tem que ocupar esse campo de uma receptividade, uma suscetibilidade e uma vulnerabilidade indesejadas, uma maneira de ser exposto à linguagem antes de qualquer possibilidade de formar ou representar um ato de fala." (Butler, 2015a/2018, p. 71). Esse é um ponto fundamental, pois essa nomeação fundadora é normativa, o que nos dá ferramentas para compreender a dimensão antinormativa que marca a experiência trans.

 

A produção do sujeito: assujeitamento e nomeação no trabalho de Judith Butler

Em A vida psíquica do poder - teorias da sujeição, Butler (1997/2017) trabalha a dimensão paradoxal que caracteriza o processo de subjetivação, sustentando que a emergência do sujeito se dá por intermédio de uma experiência de um assujeitamento primordial: "O termo 'subjetivação' traz em si o paradoxo: o assujettisement denota tanto o devir do sujeito quanto o processo de sujeição." (Butler, 1997/2017, p. 89). Para desenvolver seu argumento, a autora se pauta no livro Vigiar e punir (Foucault, 1975/1987), no qual "Foucault presume a eficácia da exigência simbólica, sua capacidade performática de constituir o sujeito a quem nomeia" (Butler, 1997/2017, p. 105). Como afirma Carla Rodrigues (2017), a filósofa estava bastante instigada pela obra de Foucault, sobretudo no que concerne ao caráter inventivo do poder na produção dos sujeitos.

Em A vida psíquica do poder, Butler está animada pela leitura da filosofia de Michel Foucault, no qual o tema do poder é central na formação dos sujeitos, na subjetividade, no assujeitamento - termo estabelecido como tradução brasileira para assujettissement. Butler parte deste aparente paradoxo do termo sujeito, que ao mesmo tempo quer dizer se constituir como "eu" e estar submetido a uma estrutura de poder. (Rodrigues, 2017, s/p).

Nesse sentido, ela retoma a discussão de Foucault (1975/1987), na qual ele defende que a materialidade corporal do prisioneiro (assim como da prisão) não são entidades ontológicas preexistentes, pelo contrário, dependem das investiduras do poder para emergirem como tais. A partir da relação materialização/investidura, Butler (1997/2017) afirma que a experiência de sujeição está na base de emergência do sujeito: a "sujeição é um tipo de poder que não só unilateralmente age sobre determinado indivíduo como uma forma de dominação, mas também ativa ou forma o sujeito" (Butler, 1997/2017, p. 90, grifos da autora).

Outra maneira de abordar a produção condicionada do sujeito, no trabalho de Butler (2015a/2018), é mediante a ideia de que somos vulneráveis à linguagem, que, por sua vez, é perpassada por normas. A linguagem atua sobre nós antes mesmo de nascermos, e é a partir das nomeações que nos formamos como sujeito. Isso está ligado ao fato de que a vida humana é caracterizada por uma precariedade fundamental que coloca o sujeito em uma dependência absoluta em relação ao outro, sobretudo para que sua sobrevivência seja assegurada (Butler, 2009/2016).

Se antes desenvolvemos essa questão a partir da teoria freudiana, nesse momento, evidenciaremos como a experiência da nomeação está ligada ao fato de que somos vulneráveis à linguagem, o que aparece de forma mais proeminente no trabalho de Butler a partir de 2015, quando ela dirige seu enfoque para a problemática da precariedade.8 A partir disso, a autora sustenta que, antes mesmo de qualquer possibilidade de volição, somos situados, nomeados e marcados pelas normas, o que institui e atesta certas formas de vulnerabilidade corporal e psíquica: "O fato de que as normas agem sobre nós implica que somos suscetíveis à sua ação, vulneráveis a uma certa nomeação desde o início." (Butler, 2015a/2018, p. 70-71, grifo nosso).

A incidência da linguagem não se dá de forma pontual, ela opera de forma contínua e despercebida. O que nos interessa nessa discussão é pensar como a operatividade da linguagem se articula à formação de gênero, até mesmo porque a nomeação que advém do outro - incluindo as esferas sociais, familiares, institucionais, médicas e jurídicas - incide em nossa corporificação: "O ato de fala nos afeta e nos anima de uma maneira corporificada [...]. De fato, a corporificação implicada pelo gênero e pela performance é dependente das estruturas institucionais e dos mundos sociais mais amplos." (Butler, 2015a/2018, pp. 71-72).

Por outro lado, justamente porque o sujeito é suscetível às forças externas é que pode haver uma ruptura com os padrões normativos, inaugurando, assim, formas inéditas de experimentar o gênero. Antes de aprofundar essa questão, é preciso sinalizar como a linguagem e a nomeação são marcadas pelas normas, bem como relacionam-se à experiência de reconhecimento. Na perspectiva de Butler (2009/2016), a emergência do sujeito é inseparável das condições do reconhecimento, por isso a relação entre reconhecimento e norma é central em sua reflexão.

O reconhecimento é precedido pela condição de ser reconhecido, pois, antes de tudo, o sujeito é preparado para o reconhecimento, e é isso que permitirá que o ato do reconhecimento propriamente dito se dê. E o que torna alguém digno de reconhecimento não é de natureza universal: trata-se, segundo a autora, de uma ontologia historicamente contingente que aparece sob a forma de categorias, convenções e normas, incluindo as normas de gênero.

A designação de gênero é uma das primeiras normas por intermédio da qual o sujeito é nomeado e reconhecido: "As normas de gênero mediante as quais compreendo a mim mesma e a minha capacidade de sobrevivência não são estipuladas unicamente por mim. Já estou nas mãos do outro quando tento avaliar quem sou." (Butler, 2009/2016, p. 8). Esse é um ponto essencial, não apenas porque remete para o caráter normativo das construções de gênero, mas por enfatizar que a designação do gênero supõe o registro alteritário, o que tem duas implicações centrais: a primeira é que o sujeito tem seu gênero nomeado pelo outro e essa nomeação é marcada por normas, por isso, em nossa hipótese, a recusa da atribuição inicial de gênero tem um caráter antinormativo e, também, de risco, pois ela pode suscitar a ameaça de ruptura com esse registro alteritário; a segunda implicação é que, justamente por isso, o sujeito que faz a transição de gênero precisa contar com alianças.

Para sustentar tais argumentos, é preciso analisar, de forma pormenorizada, o que torna a experiência de assujeitamento uma prática normativa, sobretudo, no que tange à designação de gênero. Isso implicará em analisar de que maneira as normas perpassam o sexo e o gênero, e também como o modelo heteronormativo é um operador das tecnologias de construção de gênero.

 

O assujeitamento como experiência normativa: a nomeação e o gênero

O gênero é recebido (Butler, 2015a/2018). Isso está ligado a um sistema normativo de nomeação que atribui um sexo e um gênero ao sujeito antes mesmo de ele nascer, o que implica em uma fantasia compartilhada: "Se o gênero vem a nós em um primeiro momento como uma norma de outra pessoa, ele reside em nós como uma fantasia ao mesmo tempo formada pelos outros e parte da nossa formação." (p. 37, grifo nosso).

Será que nós, psicanalistas, problematizamos essa fantasia ou ficamos abraçados na fantasia idealizada do Édipo, a Majestade, o bebê da Psicanálise, tomando o gênero como algo apriorístico e irrefutável? Devemos nos abster de nossas normas teóricas e nos debruçar nas interpelações que o outro nos coloca, caso contrário, ficamos no gozo narcísico da autossuficiência do saber. Se o discurso freudiano mostrou que não há subjetivação sem outro, e que esta incidência não é atemporal, não podemos acreditar que a Psicanálise do século XX basta por si mesma para pensar as atuais experiências sexuais e de gênero.

Então, é uma oportunidade (ou melhor, uma urgência) acolhermos as críticas que nos são dirigidas (como pelos estudos de gênero), bem como atentar para as transformações sociais que ocorreram nas últimas décadas, sobretudo, a partir de 1960, quando o movimento feminista e o movimento gay - e, mais recentemente, o movimento trans - produziram uma série de transformações, não só no território do gênero e da sexualidade, mas no âmbito da família, do parentesco e da parentalidade (Birman, 2006; Helsinger, 2019).

Sabemos que diversas formulações psicanalíticas afirmam que o sujeito é vulnerável à linguagem, mas essa linguagem, recorrentemente, é pensada de forma abstrata, com uma instância simbólica descolada das contingências histórico-temporais e, também, das normas (Butler, 1990/2015). Precisamos, urgentemente, analisar como essa linguagem é marcada por prescrições normativas, o que inclui, de forma paradigmática, a normatividade de gênero. Para avançar, analisaremos como o caráter produtivo de nomeação envolve o sistema normativo sexo/gênero.

O primeiro nível de atribuição sexual é composto pelo aparato médico, jurídico e familiar que preconizam a inauguração do gênero da criança (Preciado, 2004/2014). Como sublinha Bento (2011), assim que a mãe engravida, já surge uma certa ansiedade a respeito do "sexo" do bebê, o que se intensifica quando o aparelho da ecografia revela esse suposto mistério, formalizado pelo dizer do médico: "A ansiedade da mãe aumenta quando o aparelho começa a fixar-se ali, na genitália, e só termina quando há o anúncio das palavras mágicas: o sexo da criança" (Bento, 2011, p. 550).

Assim que o suposto "sexo" da criança é revelado, uma série de expectativas começam a se delinear: "O feto já não é feto, é um menino ou uma menina. Essa revelação evoca um conjunto de expectativas e suposições em torno de um corpo que ainda é uma promessa" (Bento, 2011, p. 550). Isso significa que o dizer do médico tem uma eficácia produtiva (Foucault, 1976/1977), ou seja, essa nomeação não é uma mera constatação, mas, sim, uma produção, por meio da qual se produz corpos, masculinidades e feminilidades (Bento, 2011). Para melhor compreender como a atribuição inicial de gênero é normativa, é preciso analisar como a norma perpassa o sistema sexo/gênero, o que implicará em evidenciar como o modelo heterossexual está pressuposto nessa normatividade. Em Problemas de gênero, Butler (1990/2015, p. 254) faz uma "genealogia crítica da naturalização do sexo e dos corpos em geral", questionando a construção do sexo como um binário hierárquico, como também a ideia de que ele é uma "matéria muda, anterior à cultura, à espera de significação". A filósofa recusa o debate entre natureza e cultura para se centrar nos efeitos das práticas de poder, o que supõe analisar "as instituições, práticas e discursos cuja origem é múltipla e difusa, mas que produzem 'gênero', 'sexo' e 'sexualidade' como efeito" (Porchat, 2014, p. 26).

A proposta da autora consiste em evidenciar que a relação mimética entre sexo e gênero - na qual o segundo reflete e é subordinado ao primeiro - é efeito da norma e não algo a priori: "A hipótese de um sistema binário dos gêneros encerra implicitamente a crença numa relação mimética entre gênero e sexo, na qual o gênero reflete o sexo ou é por ele restrito" (Butler, 1990/2015, p. 26). A aproximação entre gênero/cultura e sexo/natureza é uma construção normativa que visa criar a ilusão de um "sexo natural", como se ele precedesse o campo da cultura, o que é uma forma de se manter a ilusão do binarismo sexual.

Confrontando essa ficção, Butler (1993/2000) defende que a materialidade do sexo é construída por práticas discursivas, de modo que a própria diferença sexual é um efeito de poder. Por isso, ela insiste na importância de indagar por quais razões certos corpos são forjados como inteligíveis e outros não, considerando que essa legitimação é o que produz o sexo como uma norma que, por sua vez, torna alguém viável, afinal a "materialidade do corpo só adquire vida inteligível quando se anuncia o sexo do feto" (Bento, 2011, p. 550).

O que nos interessa destacar é que a "performatividade" tem um efeito produtivo, produzindo corporalidades,9 masculinidades e feminilidades: "John Austin chamou essa característica da linguagem de 'capacidade performática'. Quando se diz 'menino/menina', não se está descrevendo uma situação, mas produzindo masculinidades e feminilidades condicionadas ao órgão genital." (Bento, 2011, p. 551). Um desdobramento disso é que as normas de gênero norteiam as expectativas delineadas em torno das formações de gênero das crianças, o que fica bastante notável nas roupas e brinquedos oferecidos a elas: "Toda a eficácia simbólica das palavras proferidas pelo/a médico/a está em seu poder mágico de gerar expectativas que serão materializadas posteriormente em brinquedos, cores, modelos de roupas e projetos para o/a futuro/a filho/a antes mesmo de o corpo vir ao mundo." (Bento, 2011, p. 550).

Por exemplo, os meninos costumam ser presenteados com brinquedos ligados a esportes e disputas competitivas: "se essa criança ganha revólveres, carros, bolas e outros brinquedos que estimulam a competição e exigem esforços mentais e corporais, está em curso o trabalho de fabricação do corpo para o mundo público" (Bento, 2011, p. 551). Para as meninas, se oferece bonecas e utensílios domésticos, o que remete para a articulação entre a figura da mulher e a maternidade, tal como forjada na modernidade (Foucault, 1977-1978/2008): "Uma criança que recebe de presente bonequinhas para cuidar, dar de mamar, fogõezinhos e panelinhas onde predomina a cor rosa está sendo preparada para o gênero feminino (passiva, cuidadosa, bondosa) e terá na maternidade o melhor e único lugar para exercer esses atributos." (Bento, 2011, p. 551).

Dito de outro modo, as expectativas e produções de gênero estão atreladas à distribuição diferencial dos espaços sociais, designados às mulheres e aos homens, desde o século XIX. Nesse contexto, forjou-se o paradigma da "diferença sexual", por meio do qual supostas características biológicas foram atreladas às funções sociais específicas (Laqueur, 1992). Para os homens, foi atribuído o espaço público, enquanto as mulheres deveriam exercer a governabilidade privada, cuidando da saúde e educação da criança, que, por sua vez, se tornou um signo de riqueza da nação (Foucault, 1977-1978/2008).

Essa organização social generificada é correlata do modelo patriarcal, que supõe o domínio falocêntrico. Ainda que esse modelo esteja sendo sacudido nas últimas décadas, ele ainda opera de várias maneiras na ordem social. Ou ainda, justamente porque o modelo falocêntrico patriarcal vem se confrontando com abalos sísmicos é que há uma crítica conservadora - e, muitas vezes, ostensiva - em relação às expressões sexuais e de gênero que os colocam em questão (Helsinger, 2019). Além de uma reação machista, homofóbica e transfóbica, outra evidência paradigmática disso é o combate à "ideologia de gênero", sobretudo no Brasil (Butler, 2017).

A reafirmação eloquente das normas de gênero almeja relançar a ficção de fixidez e imutabilidade que se imputa ao gênero para se encobrir suas descontinuidades (Butler, 1990/2015). Para melhor compreender como se configura a ilusão dessa suposta coerência de gênero, é preciso explorar a relação entre binarismo sexual e heterossexualidade compulsória. Afinal, o modelo binário heteronormativo busca estabelecer uma espécie de pressuposição recíproca entre gênero e desejo, criando a ilusão de que, entre eles, há uma relação causal.

Nessa linha, determinado desejo refletiria certo gênero e vice-versa, sendo o desejo pensado, é claro, por intermédio da heteronormatividade: trata-se do desejo heterossexual. Em outras palavras, a heterossexualidade, para se manter como imperativo normativo, precisa da ficção de que existe uma complementaridade entre os gêneros (Bento, 2011). Forja-se, assim, uma retroalimentação entre tais injunções, o que se soma às práticas sexuais que também são investidas como suas correlatas. Isto é, cria-se uma equivalência causal entre sexo, gênero, desejo e prática sexual, o que compõe os supostos gêneros inteligíveis (Butler, 1990/2015).

Qualquer descontinuidade entre tais elementos coloca a suposta coerência em xeque. Desse modo, aqueles/as que não seguem tal correspondência são lançados ao campo da abjeção, como se não participassem da categoria de sujeito, como a LGBTQfobia, tristemente, nos mostra. É nessa linha que Bento (2011) cunhou a noção de heteroterrorismo, que consiste na reiteração das normas de gênero mediante repressões: "Se um menino gosta de brincar de boneca, os heteroterroristas afirmarão: 'Pare com isso! Isso não é coisa de menino!'" (Bento, 2011, p. 551).

Devemos extrair dois pontos fundamentais: o primeiro é que a incidência das normas não se dá de forma pontual, uma vez que se trata de um processo reiterativo que produz efeitos na vida psíquica e corporal do sujeito; o segundo consiste no fato de que as normas não apenas nos afetam, mas nos produzem. Isso não significa que elas têm um poder decisivo sobre nós, mas elas balizam nossas possibilidades de existência (Butler, 2015a/2018). Por outro lado, essa eficácia não é tão eficaz assim, pois ela apresenta falhas, o que abre caminhos para outras formas de se viver o gênero: "quando esse campo de normas se rompe [...] vemos que os objetivos estimuladores de um discurso regulatório [...] têm consequências nem sempre previstas, abrindo caminhos para formação de viver o gênero que desafiam as normas de reconhecimento predominantes" (Butler, 2015a/2018, p. 39).

A partir disso, evidenciamos o caráter normativo da nomeação do sexo e do gênero. Esse é um ponto central, na medida em que revela como o sistema de atribuição de gênero passa necessariamente pelo registro alteritário, e é a partir deste que o sujeito se constitui. É por essa via que localizamos o caráter antinormativo da experiência trans, considerando que ele não se dá na exterioridade das normas, pelo contrário, trata-se de retrabalhar as normas, ou ainda "de recorporificar a norma [...] de redirecionar sua normatividade"10 (Butler, 1997/2017, p. 107).

 

"Eu sou esse nome?": refundar a origem como uma experiência antinormativa

Somos vulneráveis às normas desde os primórdios de nossas vidas e a atribuição de gênero é permeada por uma série de expectativas, projeções e fantasias: "Essas expectativas são estruturadas numa complexa rede de pressuposições sobre comportamentos, gostos e subjetividades que acabam por antecipar o efeito que se supunha causa." (Bento, 2011, p. 550). Não raramente, essas expectativas despertam sofrimento, pois o sujeito pode não se identificar com o gênero que lhe foi atribuído, de modo que a transição é uma luta para se fazer "existir". Como afirma Márcia Rocha, "Não se trata apenas de ter, de ver ou de externar, mas, acima de tudo, se trata de sentir, de ser" (Moira et al., 2017, p. 118).

Trata-se de se desvencilhar das expectativas de gênero que nos foram impregnadas pela heterocisnormatividade. É claro que isso marca o caráter antinormativo da experiência trans, mas sustentaremos que ele transcende esse ponto: a ruptura fundamental é, precisamente, o fato de o sujeito refundar sua origem. Ao se renomear e mudar sua condição de gênero, o sujeito contraria o sistema de nomeação por meio do qual se constituiu, interpelando o modelo da família como origem.

Esses dois eixos não são desarticulados, pelo contrário, o modelo tradicional de família é assentado no binarismo sexual e na heterossexualidade compulsória (Butler, 2002/2003). Além disso, o sistema de nomeação de gênero é caracterizado por essas injunções normativas, de modo que refundar a origem implica em contrariar os termos da atribuição inicial de gênero, isto é, a heterocisnormatividade. Dito isso, retomemos nosso fio condutor: analisaremos como o movimento trans coloca em xeque a normatividade de gênero, para, em seguida, adentrar em nossa hipótese.

Diversos/as autores/as sustentam que a experiência trans desafia o sistema binário heteronormativo: Bento (2014) sinaliza que as pessoas trans não só rompem com os destinos naturais de seu corpo, mas fazem isso de maneira pública. Por derrubarem a ideia de que o modelo anatômico é a única forma possível de se constituir as identificações de gênero, Ayouch (2015) defende que as transidentidades provocaram uma ruptura epistemológica. Nessa linha, Preciado (2004/2014) afirma que o movimento trans reivindica uma nova ordem anatômico-política.

Por isso, encontramos em muitos relatos referências a rompimentos com o imperativo da genitalização. Por exemplo, em Vidas trans (Moira et al., 2017), Laerte fala de um ato de violar a ordem natural e Moira afirma: "Foi mais ou menos ali que comecei a perceber a ousadia dessas pessoas que peitaram o decreto que os genitais lançam sobre nosso corpo, decreto que determina, antes mesmo de a pessoa nascer, as fronteiras até onde ela poderá ir." (pp. 21-22). Nesse sentido, a experiência trans é absolutamente potente na tarefa de retrabalhar as normas, na medida em que ela questiona, justamente, a primeira atribuição de sexo.

Mas, para além disso, seu caráter mais revolucionário é o fato de ela implicar a renomeação, rompendo com a lógica da filiação pressuposta pelo modelo de família como origem. Como vimos, a problemática da origem foi alocada no discurso freudiano na esfera do fantasma originário, na qual o fantasma da cena primária remeteria à origem do bebê como estando absolutamente ligado às figuras parentais (Freud, 1918/1996), o que evidencia um modelo em que a família está na origem. Não poderemos aprofundar a discussão sobre a família,11 mas pensar o refundar a origem na experiência trans, a partir da autonomeação, já é uma maneira de indicar como esse modelo da família como origem é colocado em xeque, posto que este pressupõe a heteronomeação.

Moira afirma que, com 19 anos, percebeu que estava na hora de fazer uma ruptura com os planos que lhe foram impostos: "Era o momento certo para eu [] romper com os planos que traçaram para mim antes mesmo que eu tivesse nascido" (Moira et al., 2017, p. 26). Como vimos, isso ocorre porque a linguagem produz o sujeito, o que pressupõe um sistema de nomeação: "somos [...] chamados por um nome e generificados antes de entendermos qualquer coisa sobre como as normas de gênero agem sobre nós" (Butler, 2015a/2018, p. 70).

Se consideramos, então, a experiência de assujeitamento, por intermédio da qual o sujeito adentra no contexto alteritário (ou melhor, funda-se a partir dele), como uma experiência normativa, podemos depreender que o refundar a origem pressupõe uma dimensão antinormativa. Como afirma Moira, a transição foi a "possibilidade de me reinventar do zero, dessa vez livrinha da silva, sem amarras" (Moira et al., 2017, p. 47). Em nossa hipótese, esse "reinventar-se do zero" pode ser entendido a partir da ideia de autoengendramento, no qual o sujeito coloca-se na origem de sua constituição, tornando-se agente de sua fecundação, gestação, parto e nomeação.

Ansermet (2018, p. 14) também observa que a experiência trans "coloca a questão da relação do sujeito com sua origem". Apesar de não nos alinharmos com suas formulações, nem concordarmos com o lugar que ele confere à diferença sexual para pensar a experiência da origem,12 parece-nos interessante o fato de ele atentar para essa dimensão:

A intervenção de um novo posicionamento frente à diferença sexual é também, finalmente, uma intervenção em relação à origem: não ficar submetido a uma origem que se precipita sobre o sujeito, que caiu em cima dele ao mesmo tempo em que ele caiu no mundo e avançar, pelo contrário, em direção a uma origem recriada, reinventada. Não sofrer a origem, e sim elegê-la. (Ansermet, 2018, p. 14).

O que está em jogo é que o sujeito pode se reposicionar diante daquilo que lhe constituiu e interpelar essa nomeação: "Podemos perguntar [...]: 'Eu sou esse nome?' E algumas vezes continuamos perguntando até tomarmos uma decisão sobre se somos ou não esse nome, ou tentamos encontrar um nome melhor para a vida que desejamos viver" (Butler, 2015a/2018, p. 68). Esse movimento é bastante potente e libertador, mas pode suscitar o medo de se perder laços afetivos. Analisar como a renomeação contraria os termos do assujeitamento primordial nos permitirá evidenciar como o segundo nascimento apreende uma dimensão de risco.

 

Fazer-se origem: um destino de risco?

Desafiar a normatividade de gênero é crucial para transformar o campo das normas e propiciar a experiência democrática de direito à existência, mas isso não deixa de ser um movimento de risco. Ou melhor, justamente por interpelar as normas, é uma experiência de risco. Tristemente, encontramos diversos escritos em redes sociais evidenciando como a transfobia impede, literalmente, a possibilidade de existência (Helsinger, 2019).

O estudante Nicholas Domingues, em 2017, antes de se suicidar, escreveu um texto no qual dizia que os pensamentos suicidas fazem parte do cotidiano das pessoas trans: "temos que aguentar a opressão e enfrentar diariamente os olhares esquisitos no banheiro, temos que aguentar nossos nomes desrespeitados e a falta de oportunidades no mercado de trabalho e uma junção disso tudo, meu querido, mata. E mata muito". Esse tipo de escrito é um ato político: uma tentativa de fazer com que aquela vida não caia na invisibilidade nem seja reduzida a um mero número estatístico, o que é, em última instância, uma forma de lutar para que essa trágica realidade pare de se repetir.

A trans Catarina M. também faz um alerta nesse sentido: "Acho que 95% das trans já pensaram em suicídio. Eu pelo menos já pensei, pois é muito complicada a nossa vida, tem que ter cabeça e punho forte" (Lucon, 2016, s/p). Não por acaso, muitas pessoas que não se reconhecem no gênero de atribuição têm receio de fazer a transição de gênero, pois não sabem se serão acolhidas... se continuarão vivas. Essa discussão envolve uma complexidade de elementos políticos e sociais, de modo que seria impossível abordá-los em um único artigo.

Para dar continuidade ao fio condutor que nos orienta, discutiremos a dimensão do risco dando enfoque à ameaça de ruptura com o registro alteritário. Analisaremos como o caráter antinormativo do refundar a origem pode suscitar a ameaça de perda de vínculos, a partir da construção teórica que desenvolvemos no artigo: contrariar as nomeações do assujeitamento primordial, pressupostos pelo outro, pode suscitar o medo de perder essa alteridade.

Como afirma Moira et al. (2017, p. 40), "Era desesperador o medo, o não conseguir nem imaginar a reação que as pessoas teriam ao descobrir quem de fato eu era". Não se trata, de modo algum, de um medo redutível ao campo intrapsíquico, pois isso seria uma violenta psicologização que reduziria um quadro sociopolítico muito complexo (e cruel) a um mero conflito pessoal, o que iria na direção absolutamente contrária de nossa premissa, qual seja: é impensável conceber o sujeito desatrelado das condições sociais e normativas.

O medo relaciona-se ao fato de que rejeitar a atribuição inicial de gênero coloca em xeque o sistema sexo/gênero que está na base daquilo que, tradicionalmente, entendemos como sociedade, de modo que há, sim, um risco real de ser lançado na abjeção, de ser visto como "não humano", uma vida que não importa: "Mães correm o risco de perder seus filhos se eles saírem do armário; muitas pessoas ainda perdem seus empregos e a relação com seus familiares quando saem do armário. O sofrimento social e psicológico decorrente do ostracismo e condenação social é enorme." (Butler apud IHU, 2017, s/p).

O desamparo (Freud, 1985/1977) e a precariedade (Butler, 2009/2016) nos torna vulneráveis ao outro que pode, também, nos agredir, nos matar. Dessa forma, Butler (2009/2016) afirma que a sociabilidade pode favorecer a sobrevivência, mas também pôr em risco nossa capacidade de viver. Infelizmente, não poderemos adentrar na gravíssima problemática da LGBTfobia, por outro lado, esse ponto está pressuposto em toda nossa discussão, por isso sustentamos que o reconhecimento não é algo apriorístico, mas algo que depende das condições para ser reconhecido (Butler, 2009/2016).

A atribuição do sexo, como vimos, é o que marca a entrada no sujeito no mundo dos humanos: "A suposta descrição do sexo do feto funciona como um batismo que permite ao corpo adentrar na categoria 'humanidade'" (Bento, 2011, p. 551). Desse modo, aqueles/as que não se "encaixam" na conformidade de gênero são colocados como "irreconhecíveis". Por um lado, Butler (2002/2003, p. 227) positiva esse não lugar, pois seriam sexualidades e gêneros irrepresentáveis e, portanto, não abduzidas pela norma: "Existe sempre a possibilidade de saborear a posição de imponderabilidade - se essa é uma posição - como a mais crítica, a mais radical, a mais valiosa."

Por outro lado, uma urgência se impõe, pois essas pessoas estão morrendo, de modo que é preciso lutar para que essas experiências sejam, sim, admitidas pelo social. Por isso, insistimos na importância da alteridade no processo de transição de gênero. Para este estudo, o fio condutor para sustentar esse ponto é a partir da hipótese de que a recusa do gênero de atribuição implica, em última instância, a colocação em xeque da experiência primordial de assujeitamento (Butler, 2015a/2018).

A partir das contribuições freudianas, observamos que a experiência de desamparo é o que leva o sujeito a se inscrever no contexto alteritário. Observamos que é a partir disso que a corporalidade pode se delinear, uma vez que a oferta de objetos atenua o impacto pulsional, fomentando, assim, uma experiência de satisfação a partir da qual traços mnêmicos são produzidos. Tendo isso em vista, destacamos dois pontos: (i) sem o registro alteritário, a constituição do corpo é inviável; e (ii) o corpo não é uma propriedade que, depois de constituída, está garantida ad aeternum. Pelo contrário, precisamos continuamente do outro para que nosso corpo possa existir, afinal o corpo é uma territorialização do organismo (Birman, 2000a).

Esses pontos são cruciais para nossa discussão. Primeiro, por evidenciar que nosso corpo é marcado pelo outro, o que transcende o sistema familiar, pois uma série de nomeações são atribuídas por diversas instâncias, como a médica, a jurídica e o social (Preciado, 2004/2014). Desse modo, colocar a própria condição corporal em questão significa, de alguma maneira, questionar a dimensão alteritária que o constituiu, o que pode suscitar o medo de perder esse outro. Em segundo lugar, por evidenciar que o outro é crucial para que nossa vida corporal continue viva, de modo que o sujeito que reinventa sua corporalidade precisa que esta seja reconhecida.

Além disso, a discussão sobre o narcisismo (Freud, 1914/1977) evidenciou que os pais projetam uma série de expectativas em seus filhos, e mesmo que não seja explicitado o quanto essas projeções se articulam às normas de gênero, pudemos depreender que isso está implicado a partir das contribuições de Preciado, Bento e Butler: "No caso do gênero, as inscrições e interpelações primárias vêm com as expectativas e fantasias dos outros que nos afetam, em um primeiro momento, de maneiras incontroláveis: trata-se da imposição psicossocial e da inculcação lenta das normas" (Butler, 2015a/2018, p. 37).

Isto é, a origem de nossa vida é marcada por uma categorização do gênero (Butler, 2015a/2018), mas isso não se restringe ao nascimento, continua sendo imputado: "Quando se diz 'é um menino!', não se está descrevendo um menino, mas criando um conjunto de expectativas para aquele corpo que será construído como 'menino'." (Bento, 2011, p. 551). Desse modo, recusar o gênero que lhe foi designado e não corresponder a tais expectativas coloca em xeque o registro alteritário, o que pode suscitar a ameaça de perda desse outro.13 Quando essas rejeições se materializam, o sujeito é lançado para a abjeção (Butler, 1990/2015) e o desalento (Birman, 2012), nos quais o registro da alteridade não se apresenta.

Enfim, tomando a formulação de Butler (2009/2016) de que a capacidade de sobrevivência do sujeito não é definida apenas por ele mesmo, devemos afirmar que as alianças são indispensáveis para a sobrevivência do sujeito que não se reconhece na condição de gênero de atribuição, como também para aqueles que passam pela experiência do segundo nascimento.14

 

Considerações finais

Atravessar os limites do gênero é uma experiência de risco (Bento, 2011). Em nossa perspectiva, pensar essa questão implica em atentar para a dimensão normativa que perpassa o processo de atribuição inicial de gênero. É a partir disso que defendemos que o risco que está em causa na transição de gênero é derivado do caráter antinormativo que caracteriza essa experiência.

Para desenvolvê-la, partimos de relatos e autobiografias de pessoas trans, nas quais a mudança da condição de gênero é descrita como um segundo nascimento. A partir disso, entendemos que há um refundar da origem na experiência trans, o que foi pensado pela experiência de autoengendramento, na qual o sujeito se contrapõe à experiência normativa de assujeitamento. Afinal, o sujeito rompe com os planos genético-biológico, familiar, jurídico e simbólico, contrariando o sistema de nomeação que lhe constituiu.

Antes de adentrar na dimensão da nomeação propriamente dita, discutimos como a constituição do sujeito supõe a dimensão alteritária. A partir das contribuições de Freud (1895/1977) acerca do desamparo, observamos que o registro do originário em Psicanálise perpassa, como aponta Birman (2000a), pela força pulsional e o outro, o que significa que o corpo é destino, isto é, um território que se delineia sob o organismo a partir das marcas promovidas pelo registro alteritário, o que fica evidente na hipótese de Freud (1923/1976) de que o eu corporal consiste na projeção de uma superfície.

Como afirma Butler (2009/2016, p. 43), a precariedade que caracteriza o vivente humano está assentada no fato de que não somos indivíduos monádicos, mas, sim, "seres sociais desde o começo, dependentes do que está fora de nós, dos outros, de instituições e de ambientes sustentados e sustentáveis, razão pela qual somos, nesse sentido, precários". O que há em comum nessas leituras é que a constituição do sujeito supõe uma dependência absoluta em relação ao outro. Na teoria da sujeição de Butler, isso é defendido mediante a ideia de que "só se habita a figura da autonomia sujeitando-se a um poder, uma sujeição que implica uma dependência radical" (Butler, 1997/2017, p. 89).

A partir de um diálogo entre Psicanálise e teorias de gênero, exploramos o caráter produtivo e normativo da nomeação, evidenciando como a produção do sujeito está atrelada ao campo da linguagem. A partir disso, discutimos como a inscrição do sujeito na dimensão alteritária implica uma série de nomeações, impregnadas, inclusive, de expectativas e projeções de gênero (Butler, 2015a/2018), considerando que estas têm uma eficácia produtiva (Foucault, 1976/1977), não sendo marcadas, de modo algum, por uma naturalidade pré-discursiva.

Não podemos entender a eficácia das normas como algo que apenas incide sobre nós, pois as normas nos produzem e forjam corporalidades, feminilidades e masculinidades. Para explorar a emergência generificada do sujeito (Butler, 2015a/2018), investigamos as coordenadas normativas pressupostas pela atribuição inicial de gênero (Preciado, 2004/2014), o que nos permitiu depreender a relação que se dá entre norma, sexo e gênero, bem como de que maneira o imperativo heteronormativo se coaduna à formação de gênero.

Com essas incursões teóricas, foi possível observar como esses imperativos normativos são enfaticamente questionados pelos sujeitos que recusam a atribuição inicial de gênero (Butler, 2015a/2018). Afinal, ao mudar a condição de gênero, o sujeito contraria a ordem anatômico-política vigente (Preciado, 2004/2014), evidenciando os limites do binarismo sexual e da heterossexualidade compulsória (Butler, 1990/2015). Mas, a partir do desenvolvimento teórico sustentado no artigo, defendemos que o que marca, fundamentalmente, o caráter antinormativo da experiência trans é o fato de ela perpassar por uma experiência de autoengendramento, na qual o sujeito se renomeia e refunda sua origem.

É a partir disso que entendemos que esta pode ser uma experiência de risco, na medida em que, ao interpelar o registro alteritário que lhe nomeou, o sujeito pode se deparar com a iminência da perda do outro. Sustentamos que esse medo não pode ser reduzido a uma dimensão intrapsíquica, pelo contrário, ele é inseparável do fato de que vivemos em sociedade majoritariamente heteronormativa, homofóbica e transfóbica.

Como vimos, o Brasil é o país com maiores números de assassinatos transfóbicos (Benevides & Nogueira, 2021). As pessoas trans sofrem discriminações nas ruas, espaços públicos, mercado de trabalho, serviços de saúde, além de serem hostilizados em seus próprios meios sociais e familiares. Além disso, temos acompanhado uma intensificação de discursos conservadores e violentos em relação às minorias sexuais e de gênero - em nome da família e da suposta ordem - e o debate sobre a dita "ideologia de gênero", que foi erguida como inimiga da nação, é um monumento disso.

Desse modo, não podemos entender o medo de perder laços afetivos como algo que diz respeito ao sujeito ou à experiência trans em si. Pelo contrário, devemos considerar que a ameaça de perda do registro alteritário é pressuposto pela normatividade de gênero que pode reagir de forma muito reacionária e violenta às dissidências sexuais e de gênero. Por isso mesmo, foi crucial analisar a relação entre reconhecimento e norma, o que evidenciou que o reconhecimento não é uma garantia apriorística, mas algo que supõe condições normativas. Quando estas não se colocam, o sujeito é jogado no campo da abjeção.

A partir disso, nos deparamos com o seguinte paradoxo: ao mesmo tempo em que os corpos abjetos são vistos como corpos que não importam, eles questionam a hegemonia simbólica e normativa (Butler, 1993/2000); mas defendemos que o potencial revolucionário das experiências antinormativas só pode se sustentar se essas vidas puderem sobreviver. Como procuramos defender, isso implica em contar com alianças (Butler, 2015a/2018), pois o outro assume um papel fundamental na sustentação da corporalidade e da vida. Esse é um ponto central da presente pesquisa, pois, em nossa hipótese, o registro alteritário é decisivo para a sobrevivência do sujeito que faz a transição de gênero.

O que nos conduz a essa afirmação é o fato de entendermos que o segundo nascimento pode implicar um risco, precisamente pela ameaça de perda do outro. Por isso, centramo-nos no assujeitamento primordial para pensar que o fato de o sujeito contrariar as nomeações advindas do registro alteritário é o que torna a experiência trans uma vivência antinormativa. É sobre essa primeira parte da nossa hipótese de trabalho que o artigo se deteve, de modo que a importância da alteridade será mais bem explorada em outra oportunidade. De todo modo, já deixamos indicado alguns vetores cruciais para pensar a importância do outro no processo de refundar a origem. Por exemplo, a partir das contribuições freudianas e as releituras de Birman (2000a), percebemos que a corporalidade precisa ser, permanentemente, constituída, pois nada a garante a priori.

Em síntese, toda nossa problematização revela que é mediante o outro que a vida que "renasce" poderá ser uma vida vivível (Butler, 2009/2016). Aproveitamos para sinalizar, por fim, que essa é uma questão que concerne diretamente à Psicanálise, de modo que devemos nos perguntar: até que ponto nós, psicanalistas, nos colocamos como uma alteridade para as pessoas trans, bem como para outras minorias sexuais e de gênero?15

 

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1 Este artigo é fruto da minha tese de doutorado Os riscos do "segundo nascimento": o que nasce e o que morre? Autoengendramento, desamparo e alteridade na transexualidade, orientada pelo Prof. Joel Birman. A pesquisa foi desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica (PPGTP/UFRJ) e contou com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
2 Esse argumento, inclusive, vem sendo utilizado para se justificar, juridicamente, atos de violência contra pessoas trans, o que é um desdobramento do gay panic, em que um indivíduo heterossexual alega que seu ato violento (contra gays ou lésbicas) é uma legítima defesa diante de uma situação em que sentiu que a integridade de sua identidade sexual foi colocada sob ameaça (Salamon, 2018).
3 Uma discussão aprofundada sobre essa questão foi desenvolvida em Helsinger (2020).
4 Em Helsinger (2019; 2020) nos detemos profundamente nessa discussão, evidenciando como a redução do sofrimento à esfera intrapsíquica é fruto da incorporação das normas e da transfobia que permeia o próprio campo psicanalítico.
5 É importante sublinhar que, nesse momento, o conceito de pulsão ainda não havia sido formulado, só aparecendo no fim do terceiro ensaio do texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Freud, 1905/1989), sendo apresentado de forma mais sistemática 10 anos depois do Projeto para uma Psicologia Científica, no trabalho Pulsões e seus destinos (1915/1974). Não obstante, já em 1895, encontramos as coordenadas daquilo que será definido como pulsão em 1905, pois o discurso freudiano já evidenciara, naquele momento, uma economia da excitação (Birman, 2000a).
6 É preciso salientar que esse choro os afeta, pois alude, inconscientemente, suas histórias primordiais. Essa questão foi sistematizada, no texto freudiano, a partir da noção de narcisismo primário (Freud, 1914/1974), como discutiremos mais adiante.
7 Assim sendo, Birman (2000a) defende que Freud (1895/1977), no Projeto, já apresenta uma descrição básica daquilo que será concebido como aparelho psíquico, o que foi sistematizado em A interpretação dos sonhos (Freud, 1990/1972). Na realidade, um primeiro esboço já havia sido feito em seu trabalho sobre as afasias (Freud, 1891/1977), mas a novidade do Projeto para uma Psicologia Científica reside no fato de que a dimensão intensiva foi incluída de forma evidente.
8 Um dos marcos desse deslocamento teórico foi sua conferência no I Seminário Queer: cultura e subversões das identidades, realizado no Brasil, no qual Butler (2015b, informação oral) afirmou que estava se distanciando do enfoque da performatividade de gênero para se voltar para a problemática da vulnerabilidade.
9 Por exemplo, na discussão de Butler (1990/2015) sobre a melancolia de gênero, a autora defende que há uma distribuição diferencial em relação às zonas genitais que podem ser vividas como zonas de prazer, o que segue as normas de gênero.
10 Uma discussão aprofundada sobre a relação entre singularidade, norma e resistência pode ser encontrada no segundo capítulo de Helsinger (2019).
11 Isso implicaria em apresentar, genealogicamente, a família moderna e como essa foi se transformando até os dias atuais (Birman, 2006), discutir como ela foi associada ao parentesco heterossexual (Butler, 2002/2003) e, consequentemente, ao campo simbólico, da entrada na cultura, por meio do qual se constituiu toda uma leitura a respeito do Édipo na Psicanálise (Butler, 1990/2015). Para uma leitura aprofundada, ver Helsinger (2019).
12 Ansermet (2018, p. 14) afirma que "a operac
̧ão sobre a diferença sexual é, portanto, uma operação sobre a origem". Sinalizamos a questão da diferença sexual como problemática, pois nos parece que o autor apresenta uma leitura normativa a respeito do "real" da diferença sexual, o que é bem problemático para pensar a experiência trans.
13 Embora o artigo tenha se focado mais em situações em que a transição de gênero já estava em curso, entendemos que essa dimensão de risco pode se colocar, também, como uma ameaça fantasmática para aqueles/as que não se identificam com a condição de gênero atribuída no nascimento, mas que ainda estão ponderando se vão ou não fazer a transição. Isto é, o sujeito pode se defrontar com o medo de perder seus vínculos afetivos - ou ainda, de ser alvo de discriminação e de violência - antes mesmo de mudar seu gênero, o que inclusive pode levá-lo a não seguir adiante com esse processo, o que pode ser muito atormentador, como foi trabalhado em Helsinger (2019).
14 Por questões metodológicas, não adentramos nesse segundo aspecto no presente trabalho. Para uma discussão mais aprofundada sobre a importância da alteridade no processo de transição de gênero, ver Helsinger (2019), capítulo 4.
15 Uma discussão aprofundada sobre esta questão foi desenvolvida em Helsinger (2019), capítulos 6 e 7.

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