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Revista Subjetividades
versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777
Rev. Subj. vol.21 no.spe Fortaleza 2021
https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v21iesp1.e9442
ESPECIAL: PSICOLOGIA & FENOMENOLOGIA
"Projeto de ser" como fundamento epistemológico para práticas em saúde coletiva
"Project of Being" as an Epistemological Foundation for Public Health Practices
"Proyecto de Ser" como Fundamento Epistemológico para Prácticas en Salud Colectiva
"Projet de l'être" comme Fondement Épistémologique des Pratiques en Santé Publique
Daniela Ribeiro SchneiderI; Adria de Lima SousaII; Charlene Fernanda ThurowIII; Claudia Daiana BorgesIV; Gabriela RodriguesV; Juliana CanteleVI; Milene StrelowVII; Virgínia Lima dos Santos LevyVIII; Priscila Tomasi TorresIX
IDoutora em Psicologia e Pós Doutora em Ciência da Prevenção. Profª. Titular do Depto. de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Núcleo de Pesquisas em Clínica da Atenção Psicossocial (PSICLIN/PPGPSI)
IIDoutoranda em Psicologia (UFSC). Membro do Núcleo de Pesquisas em Clínica da Atenção Psicossocial (PSICLIN/PPGPSI)
IIIDoutoranda em Psicologia (UFSC). Membro do Núcleo de Pesquisas em Clínica da Atenção Psicossocial (PSICLIN/PPGPSI)
IVDoutoranda em Psicologia (UFSC). Membro do Núcleo de Pesquisas em Clínica da Atenção Psicossocial (PSICLIN/PPGPSI)
VDoutoranda em Psicologia (UFSC), membro do Núcleo de Pesquisas em Clínica da Atenção Psicossocial (PSICLIN/PPGPSI)
VIDoutoranda em Psicologia (UFSC). Membro do Núcleo de Pesquisas em Clínica da Atenção Psicossocial (PSICLIN/PPGPSI)
VIIDoutoranda em Psicologia (UFSC). Membro do Núcleo de Pesquisas em Clínica da Atenção Psicossocial (PSICLIN/PPGPSI)
VIIIDoutora em Ciências Humanas (UFSC)
IXMestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Especialista em Atenção Básica/Saúde da Família pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI)
RESUMO
O conceito de projeto de ser é central na obra de Jean-Paul Sartre e aspecto essencial da psicologia existencialista. Sartre toma essa temática da fenomenologia, que aborda a questão do projeto como uma dimensão importante da temporalidade do sujeito, na dinâmica que envolve o futuro. O existencialista aborda essa noção com diferentes designações ao longo de suas obras: projeto fundamental, projeto original e projeto de ser. Esses termos são sinônimos e utilizados em diferentes partes de sua elaboração teórica para elucidar aspectos que se colocam como mais relevantes para cada contexto. Neste ensaio teórico, desenvolvido por meio de uma revisão narrativa da literatura, com base nas obras do próprio Sartre ou de estudiosos e comentadores do filósofo, será utilizado o termo "projeto de ser", dado que o desafio do método clínico existencialista consiste, justamente, no desvelamento do ser do sujeito, compreendido como ser-no-mundo. Objetiva-se desenvolver a compreensão desse conceito em sua aplicabilidade instrumental no campo da saúde. Para tanto, desenvolve-se a relação desse conceito com os princípios da saúde coletiva - como a questão da integralidade, da territorialidade, da promoção de saúde, da prevenção e do cuidado psicossocial - e suas contribuições para a inteligibilidade de fenômenos, particularmente o sofrimento psíquico e as psicopatologias. Discute-se que alguns conceitos existencialistas podem servir como fundamento epistêmico para a proposta de uma clínica ampliada, constituindo uma contribuição teórica e metodológica para a área.
Palavras-chaves: projeto de ser; Jean-Paul Sartre; psicologia existencialista; saúde coletiva; atenção psicossocial.
ABSTRACT
The concept of project of being is central to the work of Jean-Paul Sartre and an essential aspect of existentialist psychology. Sartre takes this theme from phenomenology, which addresses the project's issue as a relevant dimension of the subject's temporality, in the dynamics that involve the future. The existentialist approaches this notion with different names throughout his works: foundational project, original project, and project of being. These terms are synonymous and used in different parts of their theoretical elaboration to elucidate aspects that are more relevant for each context. In this theoretic essay, developed through a narrative review of the literature, based on the works of Sartre himself or the philosopher's scholars and commentators, the term "project of being" will be used, given that the challenge of the existentialist clinical method consists, precisely, in the unveiling of the subject's being, understood as being-in-the-world. The objective is to develop an understanding of this concept in its instrumental applicability in the health field. Therefore, the relationship of this concept with the principles of collective health is developed - such as the issue of integrality, territoriality, health promotion, prevention, and psychosocial care - and their contributions to the intelligibility of phenomena, particularly suffering psychic and psychopathologies. It argued that some existentialist concepts could serve as an epistemic foundation for the proposal of an expanded clinic, constituting a theoretical and methodological contribution to the area.
Keywords: project of being; Jean-Paul Sartre; existentialist psychology; collective health; psychosocial care.
RESUMEN
El concepto de proyecto de ser es central en la obra de jean-Paul Sartre y aspecto esencial de la psicología existencialista. Sartre toma esa temática de la fenomenología, que trata la cuestión del proyecto como una dimensión importante de la temporalidad del sujeto, en la dinámica que envuelve el futuro. El existencialista enfoca esta noción con diferentes asignaciones a lo largo de sus obras: proyecto original y proyecto de ser. Estos términos son sinónimos y utilizados en diferentes partes de su elaboración teórica para elucidar aspectos que se ponen como más relevantes para cada contexto. En este ensayo teórico, desarrollado por medio de una revisión narrativa de la literatura, con base en las obras del propio Sartre o de estudiosos y comentadores del filósofo, será utilizado el término "proyecto de ser", ya que el reto del método clínico existencialista consiste, justamente, en aclarar el ser del sujeto, comprendido como ser-en-el-mundo. Se objetiva desarrollar la comprensión de este concepto en su aplicabilidad instrumental en el campo de la salud. Para esto, se desarrolla la relación de este concepto con los principios de la salud colectiva - como la cuestión de la integralidad, del fomento de la salud, de la prevención y del cuidado psicosocial - y sus contribuciones para la inteligibilidad de fenómenos, especialmente el sufrimiento psíquico y las psicopatologías. Se discute que algunos conceptos existencialistas pueden servir como fundamentación epistémica para la propuesta de una clínica ampliada, constituyendo una contribución teórica y metodológica para el área.
Palabras claves: proyecto de ser; Jean-Paul Sartre; psicología existencialista; salud colectiva; atención psicosocial.
RÉSUMÉ
Le concept du "Projet d'être" est au cœur des travaux de Jean-Paul Sartre et s'agit-il un aspect essentiel de la psychologie existentialiste. Sartre prend ce thème de la phénoménologie, qui aborde la question du projet comme une dimension importante de la temporalité du sujet, dans les dynamiques qui impliquent le futur. L'existentialiste aborde cette notion avec des différents termes tout au long de ses œuvres : projet fondamental, projet originel et projet d'être. Ces termes sont synonymes et sont utilisés chez différentes moments de son élaboration théorique pour élucider les aspects les plus pertinents pour chaque contexte. Dans cet essai théorique, développé à travers une revue narrative de la littérature, à partir des travaux de Sartre ou des savants et commentateurs du philosophe, le terme « projet d'être » est utilisé, une fois que l'enjeu de la méthode clinique existentialiste est donné, précisément, dans le dévoilement de l'être du sujet, ce ci entendu comme être-au-monde. L'objectif est de développer une compréhension de ce concept dans son applicabilité instrumentale dans le domaine de la santé. Par conséquent, on développe la relation de ce concept avec les principes de santé collective - tels que: la question de l'intégralité, la question de la territorialité, la question de la promotion de la santé, la question de la prévention et la question des soins psychosociaux - et leurs contributions à l'intelligibilité des phénomènes, notamment des souffrances psychiques et des psychopathologies. Il est débattu que certains concepts existentialistes peuvent servir de fondement épistémique à la proposition d'une clinique élargie, constituant une contribution théorique et méthodologique au domaine.
Mots-clés: projet d'être; Jean-Paul Sartre; psychologie existentialiste; santé collective; prise en charge psychosociale.
O conceito de projeto de ser é central na obra de Jean-Paul Sartre e aspecto essencial da psicologia existencialista. Sartre toma essa temática da fenomenologia, que aborda a questão do projeto como uma dimensão importante da temporalidade do sujeito, na dinâmica que envolve o porvir ou o futuro.
O existencialista aborda essa noção com diferentes designações ao longo de suas obras: projeto fundamental, projeto original e projeto de ser. Esses termos são sinônimos e utilizados em diferentes partes de sua elaboração teórica para elucidar aspectos relevantes em cada contexto: como designação daquilo que é o fundamento primeiro da constituição do sujeito; como dimensão irredutível, a totalização última de miríades de projetos empíricos e escolhas singulares que define a originalidade de ser deste sujeito; e no papel daquele que desvela o fim projetado como sendo o próprio ser do sujeito, na medida em que este é fundamentalmente desejo de ser que se dirige ao campo dos possíveis e se coloca como estrutura de escolha de ser (Sartre, 1997).
Este é um ensaio teórico, desenvolvido por meio de uma revisão narrativa de literatura, modelo que visa "publicações amplas, apropriadas para descrever e discutir o desenvolvimento ou o 'estado da arte' de um determinado assunto, sob ponto de vista teórico ou contextual" (Rother, 2007, p. v). A autora ainda informa que a narrativa é um tipo de revisão de análise da literatura publicada em livros ou artigos de revista científica, sustentando-se na análise crítica pessoal do autor (Rother, 2007). A presente revisão teve como base as obras do próprio Sartre, de estudiosos e comentadores do filósofo, assim como textos sobre clínica da atenção psicossocial, saúde coletiva e psicologia ambiental com sustentação no existencialismo. Foi utilizado o termo "projeto de ser", dado que o desafio do método clínico existencialista consiste, justamente, no desvelamento do ser dos sujeitos, compreendidos como ser-no-mundo. Enquanto conceito que embasa um método, ele permite desenvolver uma perspectiva instrumental, ou seja, auxilia a elaborar fundamentos para uma intervenção. Pretende-se aqui, em especial, discutir interlocuções e fundamentos para a saúde coletiva e a atenção psicossocial.
Sartre, em seu ensaio de ontologia, nos dá pistas do porquê de sua escolha em não trabalhar com o conceito de "projeto de vida", comum ao espectro fenomenológico e largamente utilizado no campo da saúde e da educação. Faz essa discussão em um diálogo com a obra de Heidegger, conforme a passagem a seguir:
Não poderíamos nos deter nas classificações de "projeto autêntico" e "projeto inautêntico", como Heidegger pretende estabelecer. Além de que semelhante classificação está maculada por uma preocupação ética, a despeito de seu autor e em virtude de sua própria terminologia, ela se baseia, em suma, na atitude do sujeito para com sua própria morte. Mas, se a morte é angustiante, e se, em decorrência, podemos escapar da angústia ou arrojar-nos a ela resolutamente, é um truísmo dizer que isso ocorre porque temos apego à vida. Consequentemente, a angústia diante da morte, a decisão resoluta ou a fuga na inautenticidade não poderiam ser consideradas projetos fundamentais de nosso ser. Ao contrário, só poderão ser compreendidas sobre o fundamento de um projeto primordial de viver, ou seja, sobre uma escolha originária do nosso ser. Convém, portanto, transcender em cada caso os resultados da hermenêutica heideggeriana rumo a um projeto ainda mais fundamental. Com efeito, esse projeto fundamental não deve remeter a nenhum outro e deve ser concebido por si mesmo. Não poderia concernir, portanto, nem à morte nem à vida, nem a qualquer caráter em particular da condição humana: o projeto original de um Para-si só pode visar o seu próprio ser; o projeto de ser, o desejo de ser ou a tendência a ser não provém, com efeito, de uma diferenciação fisiológica ou uma contingência empírica; de fato, não se distingue o ser do Para-si. (Sartre, 1997, p. 691)
Sendo assim, o sentido e o valor dados à vida são definidos pela forma como um sujeito se lança no mundo e escolhe o seu ser, dentro de uma estrutura de escolha que não é dada, pois vai sendo estruturada no decorrer do processo de viver. O sentido da vida não é um a priori, é aquilo que resulta do ser-no-mundo. Desse modo, o coeficiente de facilidade ou de adversidade dos objetos, o valor da materialidade, a função da relação com os outros, não têm uma definição dada, mas vai se constituindo na medida em que o sujeito lança-se em escolhas que possibilitam seu ser (Sartre, 1997). Veremos mais adiante que muitas dessas escolhas se fazem na alienação e passividade, dado o contexto de escolha que dispõe, principalmente na infância ou na proto-história, como Sartre define em O idiota da família (Sartre, 2013). Entretanto o sujeito escolhe livremente seu ser e define a perspectiva que quer dar à sua vida, mesmo na alienação. Por isso, de forma aprofundada, a questão fundamental é, de fato, o projeto de ser.
Esse conceito está presente no conjunto da obra do existencialista, desde "O Ser e O Nada" (Sartre, 1997), em que discute o projeto como fundamento ontológico da dimensão da subjetividade, ou seja, do para-si. Diz Sartre (1997, p. 691):
O para-si, com efeito, é um ser o qual está em questão em seu ser em forma de projeto de ser. Ser para-si é anunciar a si mesmo aquilo que se é por meio de um possível, sob o signo de um valor.
Sendo assim, o para-si, como o ser "que é o que não é", se define como "falta de ser", e aquilo que lhe falta é justamente o que ainda não é, ou seja, os seus possíveis, que se vislumbram no horizonte futuro e dão sentido ao seu ser (Sartre, 1997).
Tal conceito se consolida como fundamento da psicologia existencialista e torna-se o sentido central de seu método na psicanálise existencial. "O princípio desta psicanálise consiste na assertiva de que o sujeito é uma totalidade e não uma coleção; em consequência, ele se exprime inteiro na mais insignificante e mais superficial das condutas - em outras palavras: não há um só gosto, um só tique, um único gesto humano que não seja revelador" (Sartre, 1997, p. 696). Essa totalidade reveladora-revelada é o projeto de ser, que possibilita a qualquer sujeito se reconhecer em sua livre unificação no mundo. Nessa perspectiva, metodologicamente, não se trata de descrever ad infinitum as inúmeras escolhas empíricas de um sujeito, nem de ficar catalogando condutas, tendências e inclinações. Trata-se, na verdade, de saber decifrá-las, interrogá-las, ao buscar o nexo entre estas, para chegar ao irredutível, ou seja, ao projeto de ser, que se revela em cada uma dessas escolhas e atos em seu sentido constituinte (Sartre, 1997).
Projeto de ser será, também, a noção aplicada na fase biográfica de Sartre, em que aprofunda sua psicanálise existencial em uma perspectiva dialética, agregando-lhe o método progressivo-regressivo, ao estabelecer um diálogo direto com o marxismo. Em interlocução com a psicanálise, enfatiza as experiências adquiridas na história singular e nas vivências da tenra infância ao realizar a análise regressiva, mas, por outro lado, objetiva também elucidar as condições universais de ser sujeito em determinado tempo histórico ao realizar a análise progressiva (Sartre, 2002a). Sartre aplica este método em suas biografias de Genet e Flaubert, obras que representam a maturidade de sua construção teórico-metodológica.
Este ensaio teórico visa a compreensão do conceito de projeto de ser e sua aplicabilidade instrumental no campo da saúde coletiva e atenção psicossocial. Para tanto, desenvolve a relação deste conceito com os princípios da saúde coletiva - como a questão da integralidade, da territorialidade, da promoção de saúde, da prevenção e do cuidado psicossocial - e suas contribuições para a inteligibilidade de fenômenos, particularmente o sofrimento psíquico e as psicopatologias. Tal interlocução é realizada a partir de fundamentos epistêmicos consonantes com a proposta de uma clínica ampliada, constituindo uma contribuição metodológica para o campo da saúde e atenção psicossocial, como veremos a seguir.
Projeto de ser como Conceito-chave na Filosofia e na Psicologia Existencialista
Em sua ontologia fenomenológica, Sartre compreende a realidade constituída por duas dimensões que se inter-relacionam: a objetividade e a subjetividade. Define o ser em-si como o absoluto de objetividade, que "é o que é" e não necessita da relação para ser, ou seja, que não tem alteridade e, portanto, existe independentemente de uma consciência que o demarque. O em-si é o domínio das coisas, dos objetos, da materialidade. Por outro lado, o para-si, o absoluto de subjetividade, representa o domínio da consciência, que é pura "relação com", pois toda "consciência é consciência de alguma coisa" e, portanto, seu ser "é o que não-é" e só se sustenta em relação à coisa. Essas duas regiões ontológicas (o em-si e o para-si) são independentes, porém relativas uma à outra. O para-si necessita das relações com o em-si para ser. Já o em-si existe independente, mas, como não estabelece relação, necessita da consciência para ser reconhecido, nominado, sistematizado. Sendo assim, a realidade é constituída por essa dialética objetividade-subjetividade (Sartre, 1997).
O para-si se constitui como projeto, na medida em que se lança em direção ao que não-é, na busca de definir seu ser. O sujeito como "ser-em-si-para-si", por ser corpo-consciência e passado-futuro, é projeto de livre unificação dessas dimensões em direção a um fim, constituindo-se projeto. Este se produz como o movimento do para-si rumo ao em-si, constituindo-se em processo de humanização, no qual o sujeito se faz e é feito por ele (Maheirie & Pretto, 2007; Sartre, 1997).
A temporalidade implica o reconhecimento de si como um ser temporal, algo tipicamente humano. O projeto de ser demarca o sujeito em sua inscrição temporal, pois se configura na trajetória histórica na qual o sujeito se move no mundo, na busca de transcender o que está dado em direção ao futuro. Sendo assim, ocorre como movimento concreto do sujeito no mundo, que nunca se totaliza, por isso constitui-se em um "vir-a-ser" (Schneider, 2011).
O projeto de ser é um processo constante de totalização, destotalização e retotalização, numa espiral do tempo, que aparece através de diferentes estratégias em vários momentos da vida, sendo retomado, reconfigurado e pano de fundo de qualquer ato humano (Sartre, 2002a). Ao decifrar o projeto de ser podemos compreender quem é este esse sujeito, bem como o movimento vivo deste ser singular no mundo (Schneider, 2006).
Aquilo que o projeto vislumbra no futuro se sustenta em um campo de possibilidades demarcado socioculturalmente a partir do contexto em que a pessoa está inserida, perfazendo a sua estrutura de escolha. O sujeito constitui seu projeto de ser no transcorrer de sua história de vida, mediado pelos grupos sociais com os quais se relaciona, em especial, na infância - pela família ou pelas pessoas que fazem o papel da socialização primária. Esses grupos de mediação fundamental filtram, em suas relações cotidianas, os valores e conhecimentos advindos dos macrodeterminantes temporais, tais como a estrutura de produção de uma determinada época, as contradições de classe, os elementos culturais e tecnológicos de um determinado contexto, que vão estabelecendo a estrutura de escolha e o campo de possíveis para o sujeito em seu processo de desenvolvimento. O projeto de ser é, portanto, a forma de viver o universal como singular, resultante da dialética objetividade-subjetividade (Pretto, Langaro, & Santos, 2009; Sartre, 2002a, 2013; Schneider, 2011). A personalização, processo pelo qual o sujeito constitui sua singularidade, consiste nesse constante processo de interiorização/exteriorização, sendo que a dimensão psicológica se coloca como uma "subjetividade objetivada" (Sartre, 2002a, 2013).
O sujeito objetiva-se em determinado "clima antropológico", enquanto jogo de forças sociais e culturais, inserido em determinada situação e em uma dinâmica sociológica, entendida como o histórico das relações familiares estabelecidas por relações de mediação (viabilizadoras ou inviabilizadoras) que o envolvem. Com isso, afeta-se em seu ser: experimenta atração ou repulsão por diferentes situações e pessoas; por eventos que o mobilizam; por situações que têm pesos emocionais específicos e singulares. Assim, vai se tecendo e retecendo, construindo seu desejo e formando seu campo de possibilidades de ser, no qual tem que se escolher em determinada direção, ainda que sem a clareza das escolhas, alienadamente, assumindo a força do seu "destino" (Bertolino, 2008; Sartre, 2013).
Por isso mesmo, o projeto de ser é vivido de maneira plena pelo sujeito, como corpo-consciência mergulhado nas situações, porém esse vivido se dá enquanto consciência não-posicional de si, ou seja, enquanto uma compreensão pré-reflexiva, espontânea (Prates, 2017; Sartre, 2013). A dimensão do vivido é "precisamente o conjunto do processo dialético da vida psíquica, um processo que permanece necessariamente opaco a si mesmo, pois ele é uma constante totalização" (Prates, 2017, p. 228). É, assim, uma totalização experimentada por dentro de sua acontecência e, por isso mesmo, o sujeito não consegue tomar distância sobre ela enquanto ocorre, por se dar como consciência irrefletida. Desse modo, o vivido é suscetível de compreensão, mas não de conhecimento (Sartre, 2013).
No plano do vivido não basta conceber, desejar, planejar. Para realizar, é preciso agir no mundo, viver a intensidade das afetações que a situação concreta impõe, indo em direção à realização de seu projeto de ser. A ação do sujeito compromete-o em uma determinada direção, tecendo-se nesse fazer e fazendo-se enquanto ser-no-mundo, um universal-singular (Sartre, 2002a, 2002b).
Sendo assim, o conceito de projeto de ser é uma importante contribuição para a saúde coletiva e para a atenção psicossocial, pois ele instrumentaliza o olhar dos profissionais para as vivências de cunho singular nas diversas experiências em saúde, ao mesmo tempo em que possibilita entender que tais singularidades têm determinações sociais claras. Tal dialética exige um olhar ampliado para a compreensão dos fenômenos e das práticas nesse campo.
Contribuições do Conceito de Projeto de ser para Concepções e Práticas em Saúde Coletiva
Em termos epistemológicos, podemos compreender a saúde coletiva como um campo interdisciplinar relativamente novo, ainda que herdeiro de uma longa tradição advinda do chamado movimento da medicina social (Da Ros, 2006; Pettres & Da Ros, 2018). Embora não haja uma delimitação consensual acerca da definição de saúde coletiva e, em muitos momentos, apareça uma multiplicidade de construções conceituais que apontam para uma área ampla e aberta para construções e atualizações (Osmo & Schraiber, 2015), ainda é confundida pelo senso comum como sinônimo da saúde pública, ainda que tenha diferenças epistêmicas com esta.
A compreensão do fenômeno da saúde, ao ir além de sua simples oposição à doença, exige uma análise ampliada sobre o sujeito e suas múltiplas relações em diferentes contextos, que podem ser produtores de saúde ou fatores de adoecimento. Sendo assim, um importante princípio trabalhado pela saúde coletiva é o da integralidade, incorporado pelo seu caráter multidisciplinar, em particular pela contribuição das ciências sociais e humanas e da filosofia (Silva, 2017). Integralidade é um conceito polissêmico que abarca desde um olhar antropológico, que discute a visão de homem por detrás das ações em saúde, até a organização dos serviços na área (Da Ros, 2006; Kalichman & Ayres, 2016).
Ao compreender o sujeito em uma perspectiva de integralidade, pretende-se romper com o olhar fragmentado imposto pela lógica biopsicossocial, pois passa a conceber a pessoa como uma totalização sempre em curso, na qual "o todo é sempre mais do que a soma das partes", como afirma o conhecido princípio da gestalt.
As contribuições da fenomenologia, e, em destaque especial, da teoria sartriana, são fundamentais nesse olhar da integralidade. Em sua obra A Crítica da razão dialética, Sartre (2002a) fundamenta uma antropologia estrutural e histórica que fornece subsídios para a superação do reducionismo epistemológico sobre a concepção de sujeito e sua apreensão em sua complexidade, como uma constante produção dialética, que passa por processos e trajetórias de totalização, destotalização e retotalização, tendo como eixo unificador o projeto de ser (Sartre, 2002a). Essa exigência do olhar para a singularidade sem perder o coletivo relaciona-se com a concepção sartriana do sujeito como um universal-singular, que busca dar conta das determinações sociais que envolvem o desenvolvimento de uma pessoa, ainda que ela o viva na mais absoluta idiossincrasia, numa dialética que fundamenta essa concepção do sujeito integral (Castro, 2011; Prates, 2017; Sartre, 2013).
Por outro lado, a integralidade, em termos organizacionais, é uma importante perspectiva, posto que garante serviços ajustados às necessidades de saúde singulares, ao mesmo tempo em que compreende que tais necessidades se dão em contextos coletivos, ao implicar a articulação entre diferentes dispositivos e setores, que devem estabelecer fluxos de trabalho entre si (Starfield, 2002).
Sendo assim, a integralidade desdobra-se na exigência da interdisciplinaridade, assim como da interprofissionalidade, para dar conta da elucidação da complexidade dos fenômenos de saúde. Por isso mesmo, uma importante perspectiva utilizada pela saúde coletiva é o trabalho em rede, no qual se trabalha a partir de diversos saberes, em um processo dialético de complementação entre serviços, profissionais e setores (Cecílio & Merhy, 2007). Pode-se descrever redes a partir de um complexo de conceitos que passa pelo espaço de trocas e cuidado em um campo de atuação sem hierarquia, baseado em objetivos comuns, cooperação e confiança entre profissionais e serviços, que atuam com a finalidade de gerar autonomia dos sujeitos ou dos setores (Mendes, 2011).
O objetivo fundamental do trabalho em redes é o cuidado. Na relação clínica em que se coloca o sujeito como centro da relação, o cuidado é o elemento subjetivo para valorização e interpretação do processo saúde-doença (Carnut, 2017). A escuta deve estar aguçada no processo de cuidado, de modo que a interpretação de sinais e sintomas deve ser uma compreensão coconstruída entre profissional e usuário.
Nessa direção, o existencialismo contribui com as reflexões sobre o cuidado e a integralidade da organização em saúde, a partir da perspectiva do engajamento e compromisso como condição fundante do ser-para-o-outro (Sartre, 1997). No "nóssujeito" ninguém é objeto, diz Sartre (1997), pois o "nós" encerra uma pluralidade de subjetividades que se reconhecem mutuamente. Sendo assim, ao falar sobre as relações de trabalho, Sartre afirma que o fato de alguém estar comprometido com os outros em um ritmo comum, ao qual contribuiu a criar, é um motivo para que ele se capte como comprometido em um "nós-sujeito", na medida em que realiza seu projeto como tecido entre projetos idênticos. Assim, o ritmo que um trabalhador impõe ao seu fazer nasce de sua dinâmica própria, mas está em ligação com o ritmo coletivo. É seu ritmo na medida em que é o ritmo dos outros e vice-versa. Assim ocorre a experiência do nós-sujeito: constata-se, finalmente, como sendo o "nosso ritmo". Aqui temos subsídios para fundamentar o conceito de corresponsabilidade, tão caro à saúde coletiva e à atenção psicossocial, que é um dos fundamentos do processo de cuidado, tanto na dimensão profissional-usuário quanto na relação interprofissional, que deveriam sustentar o cotidiano das equipes de saúde.
Sendo assim, incluem-se importantes aportes da relação do sujeito com o outro e com os coletivos, sempre situado em contextos nos quais são produtores e produzidos pelas condições de vida e trabalho ali existentes. Contextos que passam a ser elaborados dentro da racionalidade da saúde coletiva como "território", cuja definição traz contribuições significativas para pensar os ambientes para além da sua dimensão física, introduzindo as sociabilidades e a cultura como dimensões que fundamentam as vivências e a compreensão dos processos de saúde-doença de forma ampla (Souza & Andrade, 2014). Assim, o território representa um espaço relacional de produção de subjetividade e de sentidos, pois é nele que a vida acontece, sendo espaço de produção de histórias naturais, culturais, afetivas e sociais, tendo impacto nos processos de saúde-doença (Lima & Yasui, 2014). O território constitui-se como a matriz da existência a partir das espacialidades e sociabilidades presentes (Fischer, 1994).
São reconhecidas as contribuições da geografia brasileira, principalmente advinda de Milton Santos, para aperfeiçoar as práticas de saúde coletiva, ao favorecer, a partir do conceito de territorialidade, a superação de paradigmas individualistas da epidemiologia, incluindo metodologias que forneçam indicadores de determinação sociais e ambientais para identificar problemas de saúde (Barcellos, 2008). Em termos conceituais e práticos, o território passou a ser utilizado de forma estratégica na prevenção e promoção de saúde, pois é aspecto importante tanto para o esclarecimento dos fatores de risco e proteção, que fundamentam ações preventivas aos problemas psicossociais, quanto para a definição da determinação social, que possibilita planejar ações de promoção da saúde direcionadas à superação de iniquidades e desigualdades sociais.
Porém pouco se destaca na literatura a influência que o existencialismo sartriano teve na obra de Milton Santos e, consequentemente, na concepção de território, hoje referência em saúde coletiva. Segundo o geógrafo, "o território é o lugar em que desembocam todas as ações, todas as paixões, todos os poderes, todas as forças, todas as fraquezas, isto é, onde a história do homem plenamente se realiza a partir das manifestações da sua existência" (Santos, 2011, p. 13). Em sua definição, ele se utiliza das reflexões sartrianas sobre a espacialidade, que, sob a influência da fenomenologia, considera ser-no-mundo como ser em determinado lugar, sendo que a relação com esse lugar e seus arredores, por circundar a vida humana, torna-se condição de possibilidade para a existência pautada no projeto de ser. Dessa forma, não há como "existir sem estar num lugar concreto do mundo e não temos como estar em um lugar concreto sem que um futuro para o qual nos projetamos se faça presente" (Castro & Ehrlich, 2016, p. 123).
Para Sartre, o território só pode ser entendido ao compreender o conceito de "ser em situação". Isto porque, como explicitado anteriormente, a liberdade para realizar escolhas só ocorre em determinadas situações, que já estão postas pelo território no qual se vive, pelas condições materiais e físicas, mas também pelas condições sociais, culturais e históricas, que independem de uma escolha deliberada e, ainda assim, possibilitam alguma ação engajada sobre o mundo (Vieira, Ardans-Bonifacino, & Roso, 2016).
É possível pressupormos a atenção dada às espacialidades na obra existencialista, sem, contudo, confundir o lugar como um a priori que determina a ação humana. O geógrafo Milton Santos utiliza-se dessa perspectiva para nortear o entendimento sobre o território e sua relação com o espaço. Santos (2006), ancorado na influência de Sartre, afirma que o espaço apresenta-se como condição de realização de toda realidade humana mediante a ação de sujeitos concretos. Admite-se que o território só pode ser entendido de acordo com o uso que se faz dele a partir da ação humana, servindo de fundamento para o fazer na saúde coletiva, tornando-se política pública na atenção básica em saúde ao incluir o conceito de território em suas principais diretrizes (Ministério da Saúde [MS], 2006).
Todos esses princípios, conceitos e práticas acima discutidos nos remetem a uma das principais diretrizes da saúde coletiva, concretizada pela Política Nacional de Humanização (PNH) do Sistema Único de Saúde (SUS): a perspectiva da clínica ampliada e compartilhada (MS, 2009). A clínica ampliada torna-se norteadora na abordagem da ação em saúde na saúde coletiva, pois desfoca da dimensão puramente curativa, centrada na doença ou no problema psicossocial e foca no sujeito integral, numa abordagem sistêmica de ações em saúde. Por isso, a clínica ampliada concretiza, em termos de ações em saúde, a estruturação do trabalho interdisciplinar, indispensável ao cuidado sistêmico e humanizado com os usuários. Trata-se de uma relação dialógica entre os diversos conhecimentos voltados para o processo saúde-doença a fim de compreendê-lo em sua complexidade e potencializar os profissionais e usuários como corresponsáveis nas atitudes e ações para sua saúde (MS, 2009).
Outro aspecto que se destaca nas relações da clínica ampliada é a importância do estabelecimento do vínculo entre a equipe e o usuário, construindo uma relação de mediação social, que faz o papel de uma rede de relações que vai se tecendo e retecendo ao fornecer apoio e suporte social (Hafner et al., 2010). Essa relação, que se caracteriza como uma relação de troca, além de propiciar informações e esclarecimentos de dúvidas, configura-se como acolhimento de incertezas e medos, processo que permite que novos encontros sejam possíveis (Tesser, 2006) e, principalmente, propicia o fortalecimento de vínculos entre usuários, serviços de saúde e comunidade. Assim, o usuário do serviço de saúde deve ser reconhecido como sujeito portador de um saber que pode fornecer aportes pertinentes para uma prática de apropriação e de ressignificação do processo saúde-doença-cuidado (Alves, 2004).
Diante desses apontamentos, torna-se imprescindível que a prática da clínica ampliada utilize a elaboração de um Projeto Terapêutico Singular (PTS), como base para o planejamento e gestão do cuidado (Boccardo, Zane, Rodrigues, & Mângia, 2011). Ele deve ser adequado às necessidades de cada usuário e promover a articulação de recursos de intervenção sobre o processo saúde-doença, de modo que considere o conjunto dos aspectos biológico, psicológico, social, cultural e político envolvidos em seu contexto de vida (MS, 2006). O PTS deve ser coconstruído entre equipe e usuário, fundamentado nos múltiplos princípios e aspectos da saúde coletiva acima discutidos. Sua proposta passa pela reorientação do campo de saberes, das responsabilidades compartilhadas e das práticas estabelecidas em rede (Hafner et al., 2010), ocorrendo na interface da equipe interdisciplinar e, por vezes, intersetorial do território, envolvendo também a participação dos familiares e do próprio usuário, com o objetivo de aprofundar o esclarecimento do problema, das ações e do envolvimento das diversas partes nos processos de sofrimento e cuidado (Grigolo & Pappiani, 2014).
Nesse sentido, o usuário deve ser percebido a partir de sua idiossincrasia, sem ser reduzido a um simples caso clínico, abstrato, exemplar de uma doença. Essa concepção ampliada também incluiu o sujeito como ser-em-relação, necessitando, assim, de inserções em redes sociais; em especial, as redes pessoais significativas, tais como a família e grupos comunitários. Sendo assim, o PTS deve responder às necessidades singulares das pessoas, devendo ser gerador de mudança de vida. Deve propiciar, além da melhoria de sintomas, a rearticulação ou ampliação da rede psicossocial e o aumento de espaços de contratualidade para viabilizar novas perspectivas de saúde e alterar o curso do sofrimento (Boccardo et al., 2011).
Portanto, é indispensável reconhecermos que, nessa clínica, tanto cuidadores quanto usuários são sujeitos de direito, com projetos e desejos, estando totalmente interligados nesse processo. Nesse sentido, os conceitos sartrianos acima vistos, tais como o ser-com-os-outros, que fundamenta o nós-sujeito, assim como o ser-em-situação, ao considerar as condições concretas dadas pela objetividade social e material do sujeito, são importantes para auxiliar na fundamentação dessa clínica.
Da mesma forma, a questão da temporalidade implicada no projeto de ser deveria ser condição para a elaboração do PTS. A elaboração de um projeto de cuidado que, de fato, perspective mudanças de vida e alteração do curso do sofrimento deve ser articulado, necessariamente, com as perspectivas de futuro do usuário, ou seja, com o seu projeto de ser. Deve-se levantar sua trajetória de construção, seus impasses e contradições e, a partir da compreensão, dos questionamentos e das redefinições estabelecidas conjuntamente no processo clínico, consolidar um novo campo de possíveis com o sujeito mediado pela rearticulação das redes pessoais significativas. Para ser de fato um "projeto" terapêutico, é preciso temporalizar-se num devir, mediando com o sujeito a retomada das "rédeas de sua vida". O PTS não pode ser simplesmente o estabelecimento de um cronograma de atividades no serviço sem que se discuta qual a função de cada atividade no plano terapêutico e como ele impacta na reconstrução do campo de possibilidades concretas para o sujeito.
Nessa direção, as temáticas acerca da saúde coletiva trabalhadas acima, fundamentadas por conceitos existencialistas, tais como projeto de ser, ser-com-o-outro, espacialidade e territorialidade, servem como fundamentos epistêmicos para uma clínica ampliada.
Contribuições do Conceito de Projeto de ser para a Atenção Psicossocial
A atenção psicossocial representa, no campo da saúde mental, as mudanças epistemológicas e práticas ocorridas na saúde coletiva. Os seus desafios passam por aplicar nesse campo os princípios e avanços acima descritos, de forma a consolidar uma atenção que busque dar conta da complexidade que envolve a dimensão psicossocial. Historicamente, significa a superação do chamado modelo psiquiátrico manicomial, centrado na lógica biomédica, no mito da "doença mental" e no tratamento de caráter hospitalocêntrico e medicamentoso, para voltar-se à compreensão do sofrimento psíquico, que envolve o sujeito em sua integralidade, sua vida de relações, suas idiossincrasias, e não somente a sua doença (Schneider, 2015).
O modo psicossocial compreende os aspectos socioculturais como inerentes aos processos de subjetivação e sofrimento psíquico. Passam a ser centrais conceitos de território, rede, acolhimento e cidadania (Costa-Rosa, Luzio, & Yasui, 2003). Nessa direção, a antropologia existencialista, ao compreender o sujeito como universal-singular e fruto da dialética objetividade-subjetividade, como já vimos acima, auxilia a fundamentar o necessário olhar da integralidade. O cuidado deve ser planejado em uma articulação em rede, por ter como base de desenvolvimento das ações os territórios, decisivos para o restabelecimento de vínculos e afetividades que acolhem a pessoa com sofrimento psíquico e abrem novas perspectivas existenciais. Por isso, o princípio primeiro é o acolhimento, que "implica aceitar o sujeito como ele é, na situação concreta em que se encontra, com a diversidade de experiências que traz, ainda que rompa com a lógica da 'normalidade' ou da 'expectativa social' em torno do seu comportamento. Daí respeitá-lo como cidadão de direitos, corresponsável pelo seu tratamento" (Schneider, 2015, p. 44).
Com isso, as práticas de cuidado se modificam em função do olhar para a complexidade, que trazem a necessidade da atenção tornar-se multiprofissional, interdisciplinar e intersetorial. As ações em saúde ampliam-se para além do tratamento, exigindo diferentes níveis de atenção, desde a promoção de saúde e prevenção de riscos e danos, passando pela reabilitação psicossocial e o recovery.
A partir do início dos anos de 1990, as políticas de saúde mental no Brasil constituíram uma rede de alternativas às internações psiquiátricas, tendo em sua proposição inicial os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) como ordenadores do cuidado, com papel estratégico na concretização da mudança do modelo manicomial. Mas, aos poucos, foi se impondo a necessidade de articular a rede específica de saúde mental com a rede de saúde em geral, incluindo suas ações no SUS, ao propor ações de matriciamento de equipes específicas da área psi (psiquiatras, psicólogos) com as equipes da atenção básica, em função da necessidade do cuidado integral do sujeito (Schneider, 2015). Em 2011, essa articulação foi se consolidando como política unitária, que se instituiu definitivamente na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), com vários níveis de dispositivos articulados com serviços do SUS, desde a atenção básica, urgências e emergências, a atenção especializada, até dispositivos de atenção à crise.
Todas essas mudanças de modelo de atenção, hodiernamente ameaçadas pelas novas políticas iniciadas no governo Temer e consolidadas no governo Bolsonaro, exigiram uma transformação do olhar sobre o fenômeno que sustenta as práticas de saúde mental, o sofrimento psíquico e as psicopatologias. A proposta era de que os problemas de saúde não deveriam ser analisados de maneira isolada, pois devem abordar a totalidade existencial do sujeito, ao analisar como o problema de saúde é vivenciado em seu estar-no-mundo (Sales, 2008). Dessa forma, o cuidado psicossocial refere-se a uma atenção à saúde no sentido existencial da experiência do adoecimento, incluindo um conjunto de ações que vão desde a promoção, prevenção, proteção, até a recuperação da saúde (Ayres, 2009).
Diversas correntes, mesmo as que não propõem um reducionismo biológico para a explicação e a terapêutica do sofrimento psíquico, tendem a compreendê-lo sob o paradigma dos "transtornos mentais", dentro da lógica imposta pelos difundidos manuais e catálogos de doença: DSM V e CID-11. Nessa abordagem, o sofrimento é entendido como uma "entidade mórbida" ou um fenômeno de "desordem neuroquímica", que as pessoas têm ou que padecem, sem considerar os processos de subjetivação das pessoas em sofrimento. A psicopatologia fenomenológica, já consolidada na área, se opõe a essa visão ao trazer o sujeito para o centro de suas investigações e intervenções, destacando a dimensão do "pathos" dessa experiência, e ao dar espaço para explorar as vivências psicopatológicas (Serpa, Leal, Louzada, & Silva, 2007), colocando-se como fundamento para outra clínica, na direção da clínica ampliada discutida anteriormente.
Para a psicologia existencialista, cada vivência, cada escolha, cada ação do sujeito é expressão de seu projeto de ser. Dessa forma, mesmo os pensamentos e atos considerados perturbadores são, na verdade, formas de vivenciar o projeto de ser. Em alguns momentos, as crises existenciais, os conflitos entre situações dissonantes, tais como descrito por Sartre (1987) no caso de um rapaz dividido entre escolher partir para tomar parte em uma guerra ou permanecer cuidando de sua mãe, expressam a relação com o projeto e seus paradoxos.
Em um estudo de caso sobre usuários de crack, o projeto de ser desvelou-se como sentido atribuído ao mundo e a si mesmo em situações de extrema vulnerabilidade psicossocial e possibilidades existenciais restritas, sendo que as pessoas ficaram alijadas do engajamento no mundo socializado, cabendo a elas reconhecer-se e construir-se como outsiders, como "pessoas que fizeram escolhas erradas" ou como resistentes frente a uma sociedade injusta (Levy, 2017). Resultados muito semelhantes à elaboração de Sartre sobre o processo de personalização de Jean Genet, que, por ser abandonado ao nascimento, depois adotado por uma família campesina, acaba escolhendo caminhos que o levaram ao roubo, à mendicância, à pederastia (Sartre, 2002b).
Qualquer que seja o caso, é fundamental ter em vista que, independente do grau de sofrimento, toda perturbação psicossocial se relaciona diretamente com a trajetória de constituição do sujeito, que se processa dialeticamente em sua vida de relações, com suas dimensões microssociais, por um lado, e com a cultura, sociedade, classe social, e as exigências de uma época, por outro (Sartre, 2013). O sujeito escolhe-se, assim, em uma dada estrutura de escolha; a escolha não é, portanto, gratuita, determinada unicamente por seu desejo, mas é uma escolha a partir das possibilidades que se lhe apresentam e frente às quais ele não pode deixar de escolher (Sartre, 2002b; Schneider, 2011).
Portanto, para que possamos oferecer uma clínica verdadeiramente ampliada, faz-se necessário construir uma visão integral dos processos psicossociais que exigem dar conta das particularidades dos usuários, visando as suas condições concretas no mundo, conforme descrito em Levy (2017), ao abordar o tratamento para usuários de crack. De acordo com os pressupostos da psicologia existencialista, do sujeito como universal-singular, cada caso clínico é uma disposição renovada para permitir que o sujeito emerja em sua idiossincrasia, sob o peso de sua história, quando então revela as condições de uma família, de uma comunidade, de uma sociedade. A localização dessas mútuas relações auxilia na construção de sentidos sobre a vida e na reflexão sobre seu devir. Só assim o sujeito pode se abrir para novas possibilidades de ser e, quiçá, para escolhas menos alienadas. O cuidado em saúde deve contemplar a consolidação de projetos de ser, possibilitando formas de vida em que o sujeito possa fazer valer sua presença no mundo. Destarte, ao cuidar, faz-se necessário saber qual é o projeto de felicidade do sujeito, ou seja, qual a noção de vida bem-sucedida que guia os projetos existenciais de quem está sendo cuidado (Ayres, 2009).
Pensar na felicidade das pessoas é focar na qualidade de vida e nas condições de promover saúde. Desenvolver ações de promoção de saúde no campo psicossocial consiste numa importante estratégia para intervir em fenômenos que estão intimamente ligados à determinação social em saúde, visto que as questões do âmbito social estão na base dos processos de subjetivação e de sofrimento psíquico (Schneider, 2015). A elaboração de tais ações devem se guiar pela compreensão de saúde que considera seus determinantes sociais, expressos nos níveis macrossociais (condições socioeconômicas, culturais e ambientais gerais), intermediários (condições de vida e de trabalho) e microssociais (estilo de vida dos indivíduos, suas características individuais, as redes sociais e comunitárias) (Dahlgren & Whitehead, 1991; Mendes, 2011).
Estes vários níveis de determinação dialogam com a compreensão expressa por Sartre na "Crítica da razão dialética", na qual define a teoria dos conjuntos práticos, ao discutir a relação de mediação entre as condições de objetividade, dadas pelas condições antropológicas (infraestrutura social, condições epocais, história, classes sociais e luta de classes) e sociológicas (grupos de pertença, mundo do trabalho, espaços compartilhados etc.) e as condições de subjetividade, com o movimento do sujeito no mundo guiado por seu projeto de ser, suas vivências psicofísicas, sua afetabilidade (Sartre, 2002b).
Entendendo como determinação as condições de possibilidades que delimitam a ocorrência dos fenômenos de saúde física ou psicológica, sejam de ordem macrossocial ou microssocial, a promoção de saúde pressupõe ações para fortalecer a capacidade individual e coletiva em lidar com tais determinações, além de fortalecer a capacidade de escolha e a utilização de conhecimentos para compreender a complexidade dos acontecimentos (Czeresnia, 2003). Ações preventivas que se orientam pelos pressupostos da promoção de saúde, cujo foco incide sobre os determinantes do processo saúde-doença, objetivam reduzir os fatores de risco e aumentar os fatores de proteção, com o intuito de diminuir as vulnerabilidades psicossociais. Dessa forma, os sujeitos e as comunidades se fortalecem para que consigam agir sobre seus próprios processos e sobre a realidade, visando melhorar a qualidade de vida.
As ações de promoção de saúde focam o fortalecimento e a autonomia dos sujeitos e das comunidades (Silva-Arioli, Schneider, Barbosa, & Da Ros, 2013), intervindo para mediar a consolidação das redes sociais comunitárias, seus valores e projetos, a partir das condições reais de vida, ao repensar formas de agir para o bem de si e dos demais. Nesse processo de intervenção, o sujeito dispõe de ações que medeiam seu projeto de ser singular ao considerar o projeto coletivo. Objetiva-se, assim, o tecimento social, o engajamento e a retomada da responsabilidade dos sujeitos em suas relações com a objetividade, cujas mediações são imprescindíveis no projeto de ser de cada um para o desenvolvimento da reciprocidade com os outros (Sartre, 2002a), fortalecendo vínculos e consolidando espaços promotores de vida e solidariedade.
Considerações Finais
A complexidade do fenômeno saúde e dos processos de adoecimento exige um olhar dialético entre a dimensão subjetiva e as condições objetivas para que as ações em saúde sejam eficazes. Por isso, faz-se necessário suportes teórico-epistemológicos que fundamentem essa abordagem complexa. Nessa direção, a filosofia e psicologia existencialista de Sartre têm muito a contribuir, a fim de consolidar a clínica ampliada, aumentar o alcance da promoção da saúde e de tantas outras práticas da saúde coletiva e da atenção psicossocial que sustentem e qualifiquem o SUS e a RAPS.
O ser humano se faz e se lança no mundo, se escolhe dentro de um campo de possíveis. Porém, esta liberdade de escolha será sempre "liberdade em situação", pois o sujeito está cercado de determinações em vários âmbitos com as quais ele tem que lidar para se constituir, dadas pelas próprias características da realidade em seu processo de construção histórica. Ainda assim, mesmo diante da realidade mais adversa, o ser humano não é passivo, condicionado, pois sempre pode fazer algo do que fizeram dele.
Há uma relação constante entre o singular e o coletivo, numa dinâmica em que o sujeito é produto e produtor da história, sendo, no encontro com os outros, o solo fértil da história no qual se semeiam os projetos, já que todos são tecidos por laços de reciprocidade. Por isso, a noção de mediação é fundamental, sendo preciso pensá-la no espaço da saúde coletiva e na atenção psicossocial como forma de superar a serialidade e a solidão que são determinantes dos processos de sofrimento psíquico. Desse modo, com base nas contribuições do existencialismo, compreendemos que o papel do profissional que se dedica ao cuidado em saúde é, antes, o de mediador que o de condutor ou diretor. Cabe ao profissional, em lugar de tentar dizer verdades sobre o sujeito, a partir de uma comparação com seu sistema de valores pessoais e profissionais, dar espaço para que o sujeito produza verdades, isto é, produza sentidos sobre si, sobre suas relações consigo mesmo e com o mundo. E, assim, dirimir impasses e escapar do solipsismo e da solidão, tornando-se mais consciente e autônomo no processo de constituir-se e de engajar-se no mundo.
As condições de saúde são produzidas em uma temporalidade dinâmica, em que o futuro é determinante, a depender, lógico, das condições vividas, pois as questões fundamentais da existência são: para onde estamos indo, qual o sentido de nosso caminhar? O sofrimento, advindo da doença física ou dos processos psicopatológicos, se processa pela ameaça de interrupção do futuro, com as alterações das condições do viver cotidiano e com a finitude como horizonte. Sendo assim, é o projeto de ser de uma pessoa, de um grupo, de uma comunidade que ficam sob ameaça com a falta de saúde. Promover saúde é garantir a dialética da temporalização. A saúde coletiva e a atenção psicossocial são propostas teórico-práticas que desafiam reducionismos e almejam mediar a ampliação do campo de possíveis para sujeitos concretos e seus grupos de pertença em seus territórios existenciais.
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Virgínia Lima dos Santos Levy
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Priscila Tomasi Torres
E-mail: priscilattorres@outlook.com
Recebido em: 14/05/2019
Revisado em: 10/03/2020
Aceito em: 17/07/2020
Publicado online: 19/06/2021