Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Revista Subjetividades
versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777
Rev. Subj. vol.22 no.1 Fortaleza jan./abr. 2022
https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v22i1.e11929
ESTUDOS TEÓRICOS
Supervisão de estágio na clínica-escola: leituras sobre a escuta psicanalítica
Internship supervision at the school clinic: readings on psychoanalytic listening
Supervisión de prácticas en la clínica-escuela: lecturas sobre la escucha psicoanalítica
Encadrement de stage à la clinique scolaire : lectures sur l'écoute psychanalytique
Gustavo AngeliI; Mériti de SouzaII
IPsicólogo, doutorando em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mestre em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá. Docente do curso de Psicologia no Centro Universitário de Brusque - UNIFEBE
IIPsicóloga, professora e pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Psicologia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Doutora em Psicologia Clinica na PUCSP. Pós-doutorado na Unesp. Pós-doutorado no Centro de Estudos Sociais - Universidade de Coimbra
RESUMO
As universidades e as clínicas-escola se apresentam como espaços potenciais de transmissão da Psicanálise e da realização de estágios supervisionados orientados por essa perspectiva. No presente artigo, estabelece-se a investigação da prática do estágio realizado na clínica-escola a partir da Psicanálise. Para tanto se recorreu à análise de autores que problematizam pressupostos teóricos e metodológicos a partir de supervisões realizadas na clínica-escola. Entendemos que a prática do estágio que envolve os atendimentos e a supervisão pode promover um trabalho psíquico de elaboração em relação aos acontecimentos e a implicação subjetiva na aprendizagem, o desejo de saber dos envolvidos. Assim, a clínica-escola, ao ser tomada como espaço de problematização e de possibilidade de inovação e abertura para transformações, permite revisitar conceitos fundamentais da teoria psicanalítica, assim como repensar os lugares e a atuação dos profissionais em formação.
Palavras-chave: psicanálise; universidade; clínica-escola; supervisão.
ABSTRACT
Universities and teaching clinics present themselves as potential spaces for the transmission of Psychoanalysis and the realization of supervised internships guided by this perspective. In the present article, we established the investigation of the internship practice carried out in the clinic-school from the Psychoanalysis. So, we resorted to the analysis of authors who problematize theoretical and methodological assumptions based on supervisions carried out in the teaching clinic. We understand that the practice of the internship that involves attendance and supervision can promote a psychic work of elaboration concerning the events and the subjective implication in the learning, the desire to know of those involved. Thus, the teaching clinic, when taken as a space for problematization and the possibility of innovation and openness to transformations, allows revisiting fundamental concepts of psychoanalytic theory, as well as rethinking the places and performance of professionals in training.
Keywords: psychoanalysis; University; school clinic; supervision.
RESUMEN
Las universidades y las clínicas-escuela son presentadas como potenciales espacios de transmisión de Psicoanálisis y de realización de prácticas supervisadas orientados por esta perspectiva. En este artículo, se establece la investigación del uso de práctica realizada en la clínica-escuela a partir del Psicoanálisis. Para esto, se acudió al análisis de autores que problematizan presupuestos teóricos y metodológicos a partir de supervisiones realizadas en la clínica-escuela. Entendemos que la utilización de las prácticas que envuelve los entendimientos y la supervisión puede promover un trabajo químico de elaboración en relación a los sucesos y a la implicación subjetiva en el aprendizaje, el deseo de saber de los implicados. Así, la clínica-escuela, al ser tomada como espacio de problematización y de posibilidad de innovación y apertura para transformaciones, permite revisitar conceptos fundamentales de la teoría psicoanalítica, como también repensar los lugares y actuaciones de los profesionales en formación.
Palabras clave: psicoanálisis; universidad; clínica-escuela; supervisión.
RÉSUMÉ
Les universités et les cliniques d'enseignement se présentent comme des espaces potentiels de transmission de la psychanalyse et de réalisation de stages encadrés guidés par cette perspective. Dans cet article, on a pour objectif l'investigation de la pratique du stage effectué dans la clinique scolaire basée sur la psychanalyse. Pour cela, nous avons eu recours à l'analyse d'auteurs qui ont questionné des hypothèses théoriques et méthodologiques à partir d'encadrements effectués en clinique-école. Nous comprenons que la pratique du stage qui implique l'assiduité et l'encadrement peut favoriser un travail psychique d'élaboration par rapport aux événements et l'implication subjective dans l'apprentissage, le désir de savoir des personnes impliquées. Ainsi, la clinique-école, prise comme espace de questionnement et de possibilité d'innovation et d'ouverture aux transformations, permet de revisiter des concepts fondamentaux de la théorie psychanalytique, ainsi que de repenser les places et la performance des professionnels en formation.
Mots-clé : psychanalyse ; université ; clinique-école ; surveillance.
A clínica-escola abre espaço para a formação clínica dos acadêmicos-estagiários na universidade a partir da possibilidade de uma prática associada a diferentes abordagens psicológicas. Neste contexto, a Psicanálise encontra lugar teórico-metodológico para sua inserção. A clínica-escola e os serviços de Psicologia, alinhados às pesquisas e aos projetos de extensão de professores do curso de Psicologia, se tornam espaços de desenvolvimento da escuta psicanalítica e da transmissão da Psicanálise dentro das universidades.
A Psicologia foi regulamentada como profissão no Brasil em 1962, pela Lei nº 4.119, apresentando o currículo e a duração do curso estabelecido pelo Parecer do Conselho Federal de Educação , de 19/12/1962. Para além de uma grade curricular mínima de disciplinas, o curso deveria ofertar um período de vivências e treinamento prático a partir de estágios obrigatórios e supervisionados. Após esta regulamentação, todo projeto de curso de Psicologia deve prever um serviço de Psicologia capaz de ofertar experiências congruentes ao acadêmico acerca dos objetivos do curso e a demanda da comunidade em que está inserido. A clínica-escola é um espaço de articulação dos estágios básicos e específicos da formação em Psicologia, que cumpre uma dupla função: a criação de possibilidades de atuação e condições para o acadêmico exercer atividades supervisionadas de estágio em auxílio à comunidade, ou seja, acarreta tanto a formação de uma atuação profissional, como também a oferta de serviços psicológicos à comunidade. Neste sentido, portanto, a clínica-escola se torna essencial dentro da estrutura educacional ofertada pelos programas e cursos de Psicologia no Brasil (.
As Diretrizes Curriculares Nacionais publicadas em 2004 e republicadas em 2011 demarcam um processo de revisão das orientações para a formação do psicólogo. Desta forma, observa-se a instauração de uma maior autonomia das instituições de ensino superior em seus currículos, cursos e na transformação do currículo mínimo obrigatório em ênfases que possibilitam o desenvolvimento de habilidades e competências. Dessa forma, passa a operar uma formação generalista composta por no mínimo dois domínios da Psicologia que atrelam e representam os eixos estruturantes: os estágios e os grupos de pesquisa ou de estudo da instituição (CFP, 2013)
Consideramos a importância dos estágios na formação dos profissionais em Psicologia, bem como consideramos a relevância dos estágios realizados a partir da perspectiva da Psicanálise. Afinal de contas, para além do ensino dogmático da Psicanálise nas universidades como sugeriu Freud (1919/2010b), entendemos ser possível instaurar uma supervisão psicanalítica e a transmissão da Psicanálise a partir de uma clínica-escola inserida nos cursos de Psicologia.
O momento de escolha de uma ênfase, campo de estágio e supervisor é vivenciado pelo acadêmico como um desafio. Se antes os caminhos para formação estavam determinados pelas disciplinas, seus respectivos professores e planos de ensino, o estágio específico anuncia a possibilidade de escolha e a responsabilização em relação à própria formação. O aluno é convidado a refletir sobre as inúmeras possibilidades de atuação e implicado à uma decisão em relação aos rumos que deseja para se formar um psicólogo. A formação é agora permeada pelo posicionamento do acadêmico em relação à produção de uma atuação em campo. Uma escolha singular dentro do universo acadêmico.
Assim, há um novo laço transferencial entre o aluno e o professor, a possibilidade de execução e criação de projetos e atividades, discussões clínicas e o próprio atendimento à população são permeados pelas escolhas dos acadêmicos, e não mais apenas regido por diretrizes e normas curriculares. A clínica-escola, portanto, é entendida como um espaço de invenção e implicação do acadêmico em sua formação profissional.
A possibilidade de construir um trabalho a partir da transferência, da escolha do acadêmico em relação ao seu orientador e abordagem teórico-metodológica, assim como a criação de um projeto em torno de questões e expectativas de uma formação, se faz presente na proposta e organização dos estágios e supervisões presentes na maioria das instituições de ensino superior. Acompanhar os desdobramentos e inquietações dos acadêmicos-estagiários, em relação às histórias e à escuta de seus pacientes, mobilizou questionamentos e pressupostos em torno da experiência clínica que a supervisão psicanalítica pode promover em uma universidade.
Entendemos que, apesar da supervisão de estágio prever uma nota e avaliações regulares, o espaço se destina à criação, inovação e abertura de possibilidades de atuação de um projeto desenvolvido ao longo do semestre, por escolha e delimitação do próprio acadêmico. Diferente de uma disciplina, em uma supervisão não há como antecipar uma leitura ou prever uma atividade, é necessário escutar e se permitir descobrir o inusitado e inesperado de um atendimento realizado pelo acadêmico-estagiário. A supervisão na clínica-escola pode se tornar um espaço de reinvenção, pois em cada projeto de cada orientando se faz presente a diferença, ou seja, um modo particular de lidar com a teoria e com a elaboração de um estilo de clinicar. O engessamento ou as burocracias acadêmicas não impendem que o inconsciente, o singular e o enigmático promovam movimento e interrogações, muito pelo contrário, na experiência como professor supervisor de estágio são justamente estes elementos que mobilizam o atendimento e a supervisão.
Considerando as perspectivas apontadas acima, neste artigo estabelecemos a investigação da prática do estágio realizado na clínica-escola que utiliza a referência da Psicanálise. Para tanto se recorreu inicialmente à análise da transmissão da Psicanálise na universidade e, de forma específica, a transmissão na clínica-escola considerando a supervisão de estágio como elemento central dessa referência teórico-metodológica. Neste sentido, recorremos à análise dos escritos de Sigmund Freud (1919/2010b) sobre a transmissão da Psicanálise, bem como entrelaçamos recortes clínicos de supervisão realizados na clínica-escola com acadêmicos-estagiários à análise das obras de autores que problematizam os pressupostos teóricos e metodológicos dessa abordagem. Desta forma, apresentamos como categorias analíticas os conceitos de transferência, desejo de saber, enigma e sexualidade entrelaçados ao pressuposto da supervisão como mediadora de uma experiência clínica nos serviços de Psicologia e clínicas-escola das instituições de ensino superior.
Clínica-Escola e a Transmissão da Psicanálise
Freud nos legou a responsabilidade de reinventar a Psicanálise toda vez que, como psicanalistas, autorizamos o início de um processo analítico (Quinet, 2009). Destacamos, dessa forma, a possibilidade e o desafio de ultrapassar as barreiras da burocracia e as normativas que engessam qualquer trabalho para pensarmos num sujeito do inconsciente, na atenção flutuante e nas associações livres de nossos pacientes ou acadêmicos-estagiários.
A universidade e as clínicas-escola se apresentam como novos espaços para se pensar o exercício de uma prática clínica. Atividades como supervisão de estágio ou disciplinas clínicas, ambas com um enfoque psicanalítico, produzem desafios e questionamentos éticos e metodológicos, por exemplo, a análise pessoal como um elemento da formação de um analista não se sustenta dentro de uma instituição de ensino superior. Ou seja: o acadêmico-estagiário não tem como pré-requisito de sua formação o ingresso em uma análise; o pagamento das sessões de análise em dinheiro não ocorre dentro de uma clínica-escola; a clínica-escola direciona e escolhe o acadêmico-estagiário para o atendimento/acolhimento da população que demanda o serviço de psicologia; o tempo do atendimento é permeado pela organização e dinâmica da instituição universitária; e a presença do discurso universitário pode inviabilizar o saber do sujeito. Desta forma, destacamos desafios e contextos que explicitam a diferença da clínica-escola de uma clínica particular.
Entretanto, ignorar ou se esquivar da responsabilidade de questionar os possíveis caminhos da Psicanálise dentro das clínicas-escolas ou das universidades seria, para tomar emprestadas as palavras de Freud (1915/2010a, p. 217): "o mesmo que habilmente conjurar um espírito a sair do mundo subterrâneo e depois mandá-lo de volta sem lhe fazer perguntas. Teríamos apenas chamado o reprimido à consciência, para depois novamente reprimi-lo, amedrontados".
Freud (1919/2010b) propõe dois eixos para discutir o ensino da Psicanálise nas universidades: o do psicanalista e o da instituição de ensino. Em relação ao psicanalista, a inclusão da Psicanálise como uma disciplina curricular pode ser interessante, embora o profissional possa prescindir do ensino na universidade. Há outras possibilidades de formação: as sociedades psicanalíticas, toda a produção teórica especializada na área e o estabelecimento de diálogos e supervisões com profissionais mais experientes. Assim como a experiência prática é construída a partir da própria análise pessoal, o atendimento e tratamento são construídos a partir do método psicanalítico e das supervisões.
Freud (1919/2010b) sugeriu um curso introdutório, não uma formação em Psicanálise propriamente dita, mas o início de um percurso. De acordo com Freud, a importância da Psicanálise em ocupar o espaço universitário se encontra na oferta de uma nova visão de sujeito, para além da anatomia e da fisiologia, um sujeito do inconsciente.
Ao investigar os processos psíquicos e as funções intelectuais, a Psicanálise segue um método próprio, cuja aplicação não se limita ao âmbito dos distúrbios psíquicos, mas se estende igualmente à Arte, Filosofia e Religião (Freud, 1919/2010b). Neste sentido, a Psicanálise se apresenta como uma possibilidade de ampliar e problematizar as instituições de ensino superior.
Cabe ressaltar que, para Freud (1919/2010b), o ensino da Psicanálise na universidade seria através de aulas expositivas e teóricas, uma divulgação da teoria psicanalítica, tendo em vista a inviabilidade de ofertar oportunidades e apresentações práticas. Entretanto, de acordo com Laplanche (2015, p. 211), "não é necessário colocar um divã ou realizar consulta na universidade para que a observação e a experiência estejam ali presentes com plena legitimidade". O autor chama atenção para a universidade como um espaço capaz de ofertar debates e o reconhecimento de um campo epistemológico independente com rigor e ousadia e, ao mesmo tempo, garantir uma "extraterritorialidade", uma prática que não esteja submissa a qualquer instituição. Desta forma, no contexto e na organização atual de ensino, questiona-se a clínica-escola como possibilidade do exercício de uma prática psicanalítica.
Neste sentido, apostamos na supervisão de estágio como uma possibilidade de transmissão da Psicanálise na universidade, assim como um elemento central da construção de uma prática e escuta psicanalítica. A supervisão de estágio na clínica-escola possibilita um espaço de elaboração e de implicação, onde supervisor, acadêmico-estagiário e paciente são imbricados em um movimento de criação, sustentação do enigma e da escuta do singular.
A responsabilidade do supervisor se encontra no desenvolvimento e auxílio do supervisionando em relação à escuta de suas próprias dificuldades, nas habilidades que deve construir ao longo dos atendimentos clínicos e nos conceitos que deve revisitar ou aprofundar. Destaca-se a angústia de um estagiário que inicia sua jornada na clínica, a angústia do não saber o que fazer ou o que falar diante do paciente (Priszkulnik, 2018).
Uma estagiária em supervisão, ao final de algumas discussões teóricas em torno da clínica psicanalítica e dos textos freudianos, questiona: o que devo escutar? A resposta à indagação poderia parecer óbvia: o inconsciente é isso que lemos nos livros, um psicanalista escuta o inconsciente. Não se tratava de questionar a função descrita na literatura psicanalítica. A acadêmica-estagiária apontava para sua formação, para o início de suas vivências na clínica-escola e a descoberta de que não há, a priori, uma resposta. Esse é o momento de transformação, de um reposicionamento de lugares. Não é mais possível controlar o texto ou as respostas, são os enigmas que movimentam a clínica e, sendo assim, a função do supervisor parece justamente sustentar o lugar enigmático que é a clínica psicanalítica.
Entretanto, a concepção de conhecimento e de transmissão do conhecimento que sustenta o trabalho de profissionais no ensino superior é ainda, em geral, a concepção ancorada no sujeito cartesiano na qual a subjetividade é restrita a consciência. Porém, a concepção de saber e de transmissão do saber que sustenta o trabalho de um psicanalista inserido na universidade, em especial destacamos o supervisor de estágio em Psicanálise, se refere ao estabelecimento de um sujeito do inconsciente atravessado pelo enigma da sexualidade e pela singularidade. Nesse caso, então, a transferência é a "mola" que dispara o saber.
A transferência é uma manifestação inconsciente. O infantil em uma nova edição e repetição, dito de outro modo, a transferência é a tentativa de recriar o padrão infantil com novas pessoas e em outras situações. De acordo com Laplanche e Pontalis (2001, p. 514), ela seria "o processo pelo qual os desejos inconscientes se atualizam sobre determinados objetos no quadro de certo tipo de relação estabelecida com eles. Trata-se aqui de uma repetição de protótipos infantis vivida com um sentimento de atualidade acentuada". Neste sentido, a transferência não se encontra apenas na clínica, mas em qualquer relação humana. Assim, um professor pode ser objeto de uma transferência, a figura em que o aluno transfere experiências e marcas da relação edípica.
A transferência é a primeira condição ética a quem se destina a transmitir a Psicanálise nas universidades. A prática docente não se destina a interpretar o inconsciente dos acadêmicos em sala de aula. Entretanto, é preciso levar em conta como cada um estabelece uma relação com a Psicanálise. Neste sentido, escutamos uma implicação entre professor e acadêmico, a singularidade de um laço transferencial, e não a distribuição e simples apresentação de conceitos de forma imparcial e anônima (Dunker, 2018). Um sujeito, apesar das curiosidades e de um processo de investigação, não aprende sozinho. É necessário um educador. Até mesmo em um processo solitário há a construção de um diálogo com alguma figura de saber. "Aprender é aprender com alguém." (Kupfer, 1989, p. 84).
De acordo com Kupfer (1989), o aluno transfere ao professor sentimentos e afetos carinhosos e agressivos, provenientes de sua relação edípica com os pais. O professor utilizará da relação transferencial estabelecida com o aluno para transmitir ensinamentos e inquietações. O que a Psicanálise denomina como transferência não se restringe ao consultório do analista, mas também permite a compreensão do que faz um aluno aprender, ou seja, o laço transferencial entre professor e aluno. Na escola e na vida, aprendemos por amor a alguém. Desta forma, ressalta-se que a educação está intimamente entrelaçada ao sexual: "A transferência se produz quando o desejo de saber do aluno se aferra a um elemento particular, que é a pessoa do professor." (Kupfer, 1989, p. 91).
Neste sentido, transferir é produzir sentido naquela figura escolhida pelo desejo. De forma específica, sobre o desejo de saber, podemos entendê-lo como uma atividade intelectual intimamente relacionada ao sexual: "A mola propulsora do desenvolvimento intelectual é sexual. Melhor dizendo, a matéria de que se alimenta a inteligência em seu trabalho investigativo é sexual." (Kupfer, 1989, p. 84). As investigações sexuais infantis provenientes da tentativa da criança em descobrir o seu lugar no desejo dos pais e suas origens reverberam em uma curiosidade intelectual, o desejo de saber. É na mesma idade em que a vida sexual da criança alcança seu primeiro florescimento e que também se inicia uma atividade relacionada à pulsão de saber, uma forma sublimada de apropriação e o prazer do olhar. Os problemas sexuais despertariam e atrairiam de forma intensa, e inopinadamente cedo, a pulsão de saber das crianças (Freud, 1905/2016).
O professor se torna um depositário do desejo do aluno. A clínica psicanalítica se encontra na escuta e no manejo do lugar que aluno/paciente coloca o professor/analista. O lugar do professor não seria do abuso de poder outorgado pelo aluno, com normas e diretrizes para condução da vida profissional ou de tornar-se um ideal. Kupfer (1989) ressalta a dificuldade no manejo com a transferência ao destacar o desejo do professor e, ao mesmo tempo, a necessidade de renunciar ao próprio desejo para permitir que o desejo do aluno surja.
A cada aluno cabe desarticular, retalhar, ingerir e digerir aqueles elementos transmitidos pelo professor, que se engancham em seu desejo, que fazem sentido para ele, que, pela via da transmissão única aberta entre ele e o professor - a via da transferência - encontram eco nas profundezas de sua existência de sujeito do inconsciente. (Kupfer, 1989, p. 99)
É na transferência que se sustenta a teoria psicanalítica. É ao sexual reeditado na supervisão, na figura do professor-orientador, que este artigo se endereça. A transferência que tanto mobiliza um atendimento clínico psicanalítico, quanto que entrelaça supervisor e estagiário, a reedição de uma investigação sexual infantil. Cabe destacar que o trabalho de um profissional permeado pela Psicanálise no ensino se relaciona ao próprio objeto da Psicanálise, o inconsciente. Neste sentido, entendemos que tanto o professor quanto o supervisor de estágio em Psicanálise têm o trabalho de sustentação de um enigma que mobiliza o desejo de saber perpassado pela transferência. Entretanto, destacamos no presente artigo os desdobramentos do ofício de supervisor e sua relação com a clínica-escola e com a transmissão da Psicanálise na universidade.
De acordo com Dunker (2018), o supervisor deverá introduzir os princípios da escuta, acolhimento e as regras que norteiam um atendimento clínico, como também autorizar o desejo pela clínica, além de construir um estilo. O desafio é entre a associação livre, as burocracias de uma universidade, relatórios de estágio, prazos e as notas. É possível falar livremente em uma supervisão? Como problematizar um equívoco se está em jogo um semestre ou uma nota? Como falar daquilo que mobiliza e inquieta o acadêmico-estagiário? Essas são algumas das questões que mobilizam e instigam o presente trabalho.
"O que se supervisiona em uma supervisão não é o paciente em si, mas o sujeito que por ele se engaja quando se coloca a escutá-lo na situação clínica, ética e técnica de uma sessão." (Dunker, 2018, p. 26). Na formação de um analista, que perpassa o estudo teórico e a análise pessoal, a supervisão se situa entre a construção de um manejo clínico singular e os pressupostos teóricos da clínica psicanalítica. O encontro teórico e conceitual é resgatado a partir das vivências do exercício clínico do supervisionando. O supervisor busca contribuir para que o supervisionando possa construir um estilo de intervenção e escuta, como também um caso clínico. Caso clínico esse que se refere justamente àquilo que é inesperado, que surpreende com sua chegada. Ou seja, um espaço de compartilhamento permeado pela imaginação criadora, afetos e saberes. Kupermann (2018), inspirado em Winnicott (1975), declara a supervisão como um espaço contrapedagógico, ou seja, um espaço para o brincar, espaço do jogo e da criação, viabilizando a construção dos casos clínicos.
Pode-se dizer que um supervisor é, mais do que um psicanalista que aprendeu com a prática, aquele que desenvolveu uma sensibilidade para perceber o que, das associações livres dos analisandos transmitidas ao supervisionando, revela uma abertura fecunda para a produção de novos sentidos. (Kupermann, 2018, p. 37)
A fala das dificuldades no manejo clínico deve possibilitar a construção de outras saídas diante do desamparo e da impotência. Dito de outro modo, a supervisão permitiria a construção de um estilo próprio do clinicar e não a identificação com o supervisor, a tentativa de fazer como ele faria, um caminho que inviabilizaria o encontro com o próprio analisando (Kupermann, 2018).
Uma acadêmica-estagiária, no início do estágio, ao relatar os atendimentos, questionava: "Me diz o que fazer?" é o lugar do saber, ou seja, o aluno como sujeito passivo na construção do conhecimento e à espera de uma resposta. A clínica psicanalítica movimenta e abre um espaço na universidade para a construção de saberes a partir das singularidades, assim a acadêmica-estagiária pode construir um caminho e um manejo do caso clínico a partir da supervisão. As transferências em jogo permeiam a escuta da acadêmica, e a função da supervisão é criar um caso clínico, mobilizar a acadêmica-estagiária. A acadêmica-estagiária, portanto, é implicada em seu ofício: a escuta do inconsciente, a construção de um estilo de intervenção, a autorização de intervir a partir da Psicanálise. Depois de um tempo, é possível escutar uma diferença: "preciso falar contigo", diz a acadêmica-estagiária no corredor da universidade. Ou seja, a supervisão não é mais um lugar de respostas, é um espaço de construção de uma experiência clínica.
O Enigma e a Clínica: Aprendizagem e o Desejo de Saber
Nos artigos sobre a técnica, Freud (1912/1996a; 1913/1996b) possibilita a seus sucessores que construam formas e manejos possíveis para a Psicanálise em outros espaços. As recomendações freudianas não são tomadas como regras, podem ser alteradas e repensadas, como também a técnica psicanalítica não está restrita ao consultório particular. De acordo com o próprio Freud (1919/1996c), chegaria um momento em que a Psicanálise seria convocada ao trabalho em outros contextos institucionais e deveria se adaptar às novas condições.
A Psicanálise aposta no saber de cada sujeito, reconhece sua história e permite que o sujeito construa respostas para suas angústias, não recobrindo o paciente e seu sofrimento com estatísticas ou com manuais diagnósticos que os engessem ou massifiquem. A teoria psicanalítica, ao produzir questões sobre o sujeito, sua conduta e escolhas, desnaturaliza o humano. Desta forma, não permite uma redução ao biológico, ao diagnóstico, evidenciando o humano enquanto ser histórico e social, produzido na relação com outro em determinada cultura e época. A clínica psicanalítica introduz o saber e o desejo do paciente em seu tratamento, sendo que sua ênfase está na demanda que o paciente realiza, no laço do usuário com a instituição, na trama que envolve o sujeito e as hipóteses que se pode formular sobre o seu sofrimento.
O trabalho da Psicanálise nas clínicas-escola demarca o início da formação e não o seu fim, ou seja, os primeiros passos da construção de um estilo de intervenção clínica ou do manejo com a transferência, um modo de atuação permeado por essa referência teórico metodológica. Neste sentido, teríamos um duplo desafio, o de proporcionar ao estagiário uma experiência que permita a elaboração das especificidades da clínica psicanalítica e o de viabilizar aos pacientes um tratamento capaz de produzir efeitos analíticos, uma responsabilização em relação aos sintomas que se expressa e se satisfaz nas queixas e no sofrimento cotidiano.
Uma primeira pergunta que mobiliza a prática do supervisor de estágios diz respeito à transmissão da Psicanálise e do saber na supervisão. A sala de aula implica a explanação e desenvolvimento de um cronograma e de temáticas articuladas e previstas em uma ementa e proposta de ensino, todas instituídas pela universidade. Já a supervisão permite, no espaço acadêmico, a construção de caminhos e experiências singulares, a possibilidade de lidar com as transferências e ser mobilizado pelas questões de um caso clínico.
"Está certo ou errado?", questionam os acadêmicos-estagiários nas primeiras supervisões. A supervisão psicanalítica não se sustenta em uma concepção de verdade ou na correção das intervenções e escuta do acadêmico-estagiário. Podemos ter balizas e referências para construir um caso clínico, porém a noção de errado ou certo se dissipa na medida que supervisor e acadêmico-estagiário se debruçam sobre o caso clínico mobilizados pela transferência.
A partir dessa primeira questão que nos instiga, outro aspecto mobiliza no trabalho com a supervisão em uma clínica-escola com acadêmicos-estagiários que atendem a partir da perspectiva da Psicanálise. Assim, defendemos que o relato em supervisão dos estágios que acompanham a referência psicanalítica pode promover, dentro da academia, a transmissão dos saberes e das elaborações singulares da atuação em campo. Estamos falando da passagem de um aluno para um estagiário. Entendemos que as narrativas dos atendimentos no estágio podem promover um trabalho psíquico de elaboração em relação aos acontecimentos e ao tempo de estágio. Ou seja, entendemos que as marcas e os fenômenos observados ou produzidos no decorrer de um estágio podem permitir ao acadêmico-estagiário a apropriação e abertura de novos questionamentos e discussões, uma reelaboração psíquica, pois se encontram ancorados no desejo de saber, para além da mera aquisição de conteúdos que privilegiaria exclusivamente a subjetividade restrita à consciência e a razão como parâmetro único à aquisição de conhecimento.
Diferenciamos a concepção do conhecimento definido como aprendizagem, que domina a maioria das teorias modernas que orientam a prática docente em sala de aula e da concepção de saber que orienta a teoria psicanalítica. Orientados por essa concepção do desejo de saber, entendemos que a supervisão com base psicanalítica se ancora nesse desejo. Destacamos que ao vislumbrarmos a supervisão como possibilidade de transmissão da Psicanálise na universidade não desconsideramos que a prática docente de um professor de Psicanálise pode promover, em transferência, sustentação do desejo de saber.
Porém, além da adoção dessas premissas teóricas, também passa a chamar atenção a questão da prática dos estagiários e do que podemos chamar de salto qualitativo, ou seja, quando observamos que o estagiário se apropria da prática e produz reelaborações psíquicas a partir das quais consegue trabalhar de forma criativa e ética com o atendimento clínico. Assim, pensamos que algo da prática e da teoria atravessa esses estagiários, algo que podemos entender como sendo da ordem da construção da experiência que se produz a partir da sustentação do enigma em supervisão.
A transmissão da Psicanálise ocorre a partir de uma experiência que não deve ser restringida ao conhecimento. A transmissão da Psicanálise não é semelhante à aprendizagem de qualquer outra disciplina. Há uma diferença entre ensinar e transmitir. O ensino se relaciona diretamente aos processos educativos, a aquisição de conhecimento e de conteúdos a partir de um modelo sistematizado. Entretanto, a transmissão se realiza pela via da experiência, é produzida na relação transferencial e mobiliza o desejo de saber. A transmissão, diferente do ensino, inquieta, marca o sujeito com um enigma, impele a descobertas e a produção de um saber.
O enigma é tomado como um processo inconsciente, mensagens veiculadas e transmitidas em uma análise. O caráter enigmático se refere ao desconhecimento do próprio sujeito em relação ao transbordamento, significado inconsciente e veiculação de mensagens em uma análise e supervisão (Laplanche, 1992). Desta forma, os autores envolvidos no processo são impelidos a um movimento constante de tradução. A supervisão se torna um espaço de escuta, de construção da experiência clínica, assim como de inscrição do enigmático.
Acreditamos que a supervisão visa promover e sustentar os enigmas provenientes da escuta e da construção de uma narrativa, de um caso clínico, e de saberes singulares permeados pela mobilização que a transferência é capaz de realizar na tríade paciente, acadêmico-estagiário e supervisor. O conhecimento teórico não deve recobrir o saber singular, pois é a escuta do inconsciente - em análise e na supervisão, e a implicação dos sujeitos na construção e tradução de sua história, despertada e repetida na transferência - que é possível pensar em uma prática psicanalítica nas universidades que possibilite a invenção de novas posições subjetivas diante das questões (infantis) da sexualidade.
Supervisão, Experiência e a Prática Clínica
A concepção de saber, conforme posta na Psicanálise, aponta que a prática educacional é uma construção permeada pela sustentação de um espaço de reconhecimento dos outros participantes e do movimento que possibilita produção de narrativas e histórias a partir da dúvida e inquietações. Essa concepção demanda a crítica ao modelo tradicional de conhecimento conforme posto nas teorias modernas, pois, o modelo tradicional entroniza o sujeito da razão, o sujeito cognoscente, e prioriza a possibilidade de conhecer e de transmitir conhecimento associada à consciência e à narrativa, que surgem vinculadas à suposta transparência da linguagem e da verdade do sujeito. Assim, entendemos como importante problematizar a narrativa produzida por estagiários e supervisores na prática de supervisão apoiada na referência psicanalítica.
À produção do conhecimento se associa a arte de narrar, a tradição oral, a implicação do narrador em suas narrativas e o compartilhamento no coletivo. Mas, por sua vez, a informação reduzida à transmissão de conteúdos isola e segrega. "Nessa perspectiva, a figura do espectador se informa, mas não se forma." (Souza, 2004, p. 128). De acordo com Souza (2004), no cenário contemporâneo a maioria das teorias e métodos associados à transmissão do conhecimento e a formação educacional do ser humano funcionam como mera comunicação de informações e excluem os afetos e as paixões que o processo da experiência e da produção de saberes implicam. O processo educacional envolve uma relação, pois não se aprende sozinho, sendo necessária a construção de uma relação com o outro, uma figura de saber, o entrelaçamento do sujeito com coletivo. Desta forma, o processo educacional implica em uma transformação, uma alteração dos lugares subjetivos, espera-se que o saber de cada um se altere nos encontros, que seja possível se afetar pelo outro, produzir conhecimento em conjunto. Neste processo é preciso lidar com os limites e o desconhecimento do outro e de si, desenvolver a capacidade de suportar e reconhecer os limites para abrir novos espaços para dúvidas e questionamentos.
Neste sentido, na crítica às teorias modernas que propõem a concepção do ser humano como soberano de si, consciente e perfeitamente capaz de chegar à verdade, Souza (2004) chama atenção para a necessidade de a prática educacional revelar e reconhecer as teorias e concepções que foram excluídas, negadas, recalcadas no percurso do conhecimento moderno. As teorias modernas da aprendizagem reduzem a subjetividade à consciência e à razão, sustentando práticas tradicionais em sala de aula apoiadas na reprodução da informação. Uma resistência ao modelo hegemônico sobre a constituição subjetiva, que exclui concepções e modalidades de saber que não se restringem ao sujeito cognoscente e à razão, aposta em estratégias de produção de conhecimento, alternativas de transformação e rupturas a partir da concepção de um sujeito do inconsciente e de uma realidade psíquica.
Considerar a trama histórica, corporificada nas redes econômicas, sociais e políticas, como associada à produção subjetiva significa entender que o psiquismo é localizado e significado pelo outro - o outro que nos habita e o outro da cultura -, que se torna parte integrante da constituição humana. Nessa medida, a subjetividade é compreendida como atravessada pelo pathos e pelo logos e articulada ao singular e ao coletivo. (Souza, 2004, p. 129)
A autora ressalta a complexidade e dificuldade em trabalhar com a prática educacional e a construção de experiências neste contexto, pois envolve a abertura para se deixar afetar, produzir saberes na relação com outro, suportar o desconhecido e se surpreender com o familiar/estrangeiro que nos habita. Desta forma, é questionada a possibilidade de que a prática pedagógica possa sustentar o lugar da dúvida e da narração de histórias na aposta de produzir saberes, elaborações e novos sentidos, ou seja, uma experiência. É a partir do reconhecimento dos limites, das potencialidades e da sustentação do não-saber frente à dúvida que se abre um espaço para produção de saberes. Souza (2004, p. 128) retoma as formulações de Fédida (1988, 1996) em torno da experiência e construção do conhecimento para propor a experiência como "um evento, ou um conjunto de eventos, que pressupõe uma certa permanência temporal e que porta um saber, pois é carregada de sentidos que marcam o sujeito, permitindo-lhe produzir conhecimento sobre alguns aspectos da realidade e sobre o seu psiquismo".
Neste sentido, resgatamos autores e discussões para localizarmos formulações em torno da experiência em Freud, apesar de não ser explicitamente definida e encontrarmos divergências em relação à concepção desse conceito na obra freudiana.
Rotstein e Bastos (2011) apresentam um entrelaçamento às atividades de investigação e do tratamento psicanalítico, tendo em vista que a pesquisa e a clínica, em Psicanálise, não se dissociam. Desta forma, experiência, de acordo com Rotstein e Bastos (2011, p. 372), designaria "hoje de modo predominante o ato de vivenciar, travar contato com algo pelos próprios sentidos, ou o saber obtido dessa maneira". O conceito denota uma travessia, um lançar-se sobre algo que nos falta, uma tentativa de alcançá-lo e obter satisfação, "a experiência em análise, assim como toda a experiência humana, é movida pela busca do que não se tem" (Rotstein & Bastos, 2011, p. 374). Entretanto, a concepção freudiana também caracterizaria o saber construído no percurso realizado.
A experiência clínica perpassa uma transferência. A possibilidade de transformação de uma vivência, do momento vivido sem apropriação ou que rapidamente poderia se perder na superfície dos acontecimentos em um saber passível de integração da nossa constituição.
A experiência clínica se assemelha à tão conhecida analogia freudiana (Freud, / do jogo de xadrez e da análise. Apenas o início e o término da partida são exaustivamente descritos pelos livros e manuais do jogo. Já os desdobramentos entre a abertura e o final da partida se desenvolvem em infinitas possibilidades, sem poder se capturar por uma previsão. A trajetória de uma análise, assim como uma partida de xadrez, se desenvolve nas inúmeras possibilidades de construção e reconstrução de elaborações e ressignificações das histórias narradas em análise e em supervisão. Também cabe assinalar que um jogo de xadrez não se faz de forma solitária, sendo necessário dois participantes, o analista e o analisando. "Este padece de uma falta, demanda ao outro seu preenchimento e desse modo acredita poder alcançá-lo. Portanto, antes de tudo, o analisando também busca realizar uma experiência." (, p. 378).
Nessa perspectiva, entendemos que o percurso de uma prática clínica nos estágios e na supervisão é ampliado na abordagem psicanalítica, já que esta trabalha necessariamente com a relação supervisor e estagiário. A experiência clínica seria possível a partir da supervisão quando o estagiário pode elaborar narrativas sobre si e sobre o outro; quando ele elabora narrativas sobre seu atendimento; quando essa elaboração se ancora no desejo de saber, para além do mero acúmulo de informações. É justamente este elemento - entre o analista o analisando e a supervisão - que se inscreve a possibilidade do jogo com a experiência. Uma trajetória que se constitui além da aprendizagem tradicional, ou seja, na produção de vivências e de práticas, possibilitando que o estagiário possa manejar as peças do tabuleiro, permitindo desdobramentos e a abertura de caminhos e jogadas.
Algumas Conclusões
O entrelaçamento clínica-escola e transmissão do conhecimento possibilitam e inspiram uma revisão de conceitos da Psicanálise, não sendo possível conceber um caminho marcado por normativas e regras técnicas, tendo em vista a necessidade de uma escuta do inconsciente a partir da associação livre de um sujeito que questiona a suposta natureza humana ao apresentar novos caminhos de constituição e que está inserido em um contexto universitário.
Nessa perspectiva, o que inquieta, a partir do trabalho da supervisão com referência psicanalítica realizada em clínicas-escolas, é justamente o que viabiliza a experiência clínica singular do acadêmico-estagiário que realiza seus estágios nessas instituições. A questão é que a supervisão com base na Psicanálise realizada na clínica-escola envolve a tríade supervisor - estagiário - paciente, que, por sua vez, diz respeito à construção de uma experiência clínica sustentada pelo enigma e pelo desejo de saber. A supervisão na clínica-escola implica uma compreensão sobre o saber e a transmissão do saber, ancorados na singularidade, no inconsciente e na sexualidade dos membros dessa tríade.
Entendemos que a supervisão demanda uma reedição das investigações sexuais infantis a partir do trabalho da tríade - supervisor, estagiário e paciente -; demanda o trabalho com a singularidade, com o inconsciente e com o desejo de saber que opera nessa tríade.
O trabalho com a Psicanálise permite acolher a imprevisibilidade, instabilidades e o acaso, promove abertura de diálogos em torno do não saber e o manejo frente à angústia e tentativa de controle e previsão.
Os aspectos do imprevisível e do aleatório acompanham a vida e não se associam de forma imediata à intencionalidade do humano, bem como escapam às tentativas de controle postas pela razão e pelo método nas suas configurações modernas que reduzem o nexo causal ao linear e ao contínuo. (Naves & Souza, 2012, p. 379)
O supervisor e o acadêmico-estagiário não podem prever o que o paciente dirá na próxima sessão, assim como, os efeitos de uma interpretação só serão acompanhados a posteriori, ao longo dos atendimentos. Desta forma, não é possível garantir ou assegurar os resultados e a conclusão das metas em moldes rígidos e inflexíveis, entretanto é possível, a partir da Psicanálise, escutar os desdobramentos de uma supervisão a partir da imprevisibilidade. "O acontecimento pode eclodir em diversos contextos e situações, e pode emergir quando o(s) sentido(s) associado(s) a determinados conceitos elaborados pelas pessoas se deslocam, abrindo possibilidades para novas leituras sobre a realidade, o outro e o eu." (Naves & Souza, 2012, p. 380). Nessa perspectiva, enquanto profissionais sustentados pela Psicanálise, acolhemos e nos propomos à realização de alterações, remanejamentos e reformulações dos atendimentos e das supervisões diante dos imprevistos que podem nos trazer os atendimentos e as supervisões.
Considerando o exposto acima, entendemos que acompanhar o indecidível, o acontecimento, diz respeito ao trabalho com a Psicanálise. Assim, estabelecer protocolos e porventura instalar novos protocolos de atendimento e de supervisão, por exemplo, são desafios que o desenrolar da atividade profissional e da supervisão de estágios encontra ao longo de sua construção. Impossível prever os caminhos de um atendimento e de uma supervisão, porém, se é possível lidar com a imprevisibilidade na clínica, propomos uma supervisão que suporte manejar e acolher os acasos e imprevisibilidades da construção da experiência clínica dos acadêmicos-estagiários.
Referências
Conselho Federal de Psicologia [CFP]. (2013). Carta de serviços sobre estágios e serviços-escola. Brasília: CFP. [ Links ]
Dunker, C. I. L. (2018). Lógica e ética da supervisão: a construção do caso clínico. In M. L. T Moretto & D. Kupermann (Orgs.), Supervisão: A formação clínica na psicologia e na psicanálise (pp. 15-30). São Paulo: Zagodoni: FAFESP. [ Links ]
Freud, S. (1996a). Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. In J. Strachey (Ed.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 12, pp. 123-136). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1912) [ Links ]
Freud, S. (1996b). Sobre o início do tratamento. In J. Strachey (Ed.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 12, pp. 137-160). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1913) [ Links ]
Freud, S. (1996c). Linhas de progresso na terapia psicanalítica. In J. Strachey (Ed.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 17, pp. 171-184). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1919) [ Links ]
Freud, S. (2010a). Observações sobre o amor de transferência. In Obras Completas (Vol. 10, pp. 210-228). São Paulo: Companhia das Letras. (Original publicado em 1915) [ Links ]
Freud, S. (2010b). Deve-se ensinar a psicanálise nas universidades? In Obras Completas (Vol. 14, pp. 377-381). São Paulo: Companhia das Letras. (Original publicado em 1919) [ Links ]
Freud, S. (2016). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In Obras Completas (Vol. 6, pp. 13-172). São Paulo: Companhia das Letras. (Original publicado em 1905) [ Links ]
Kupermann, D. (2018). O Chiaroscuro da supervisão psicanalítica. In M. L. T Moretto & D. Kupermann (Orgs.), Supervisão: A formação clínica na psicologia e na psicanálise (pp. 31-44). São Paulo: Zagodoni: FAFESP. [ Links ]
Kupfer, M. C. (1989). Freud e a educação: O mestre do impossível. São Paulo: Ed. Scipione. [ Links ]
Laplanche, J. (1992). Novos Fundamentos para a Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes. [ Links ]
Laplanche, J. (2015). Sexual: A sexualidade ampliada no sentido freudiano 2000-2006. Porto Alegre: Dublinense. [ Links ]
Laplanche, J., & Pontalis, J. B. (2001). Vocabulário da psicanálise (4a ed., D. Lagache, Direção; P. Tamen, Trad.). São Paulo: Martins Fontes. [ Links ]
Lei nº 4.119, de 27 de agosto de 1962. (1962, 17 de dezembro). Dispõe sobre os cursos de formação em Psicologia e regulamenta a profissão de psicólogo. Diário Oficial da União. Link [ Links ]
Naves, J. O. V., & Souza, M. (2012). Causalidade, descontínuo, dor: Caminhos da bala perdida e da mega-sena. Fractal: Revista de Psicologia, 24(2), 367 384. DOI: 10.1590/S1984-02922012000200011 [ Links ]
Parecer nº 403/62 do Conselho Federal de Educação [CFE]. (1962, 19 de dezembro). Brasília: Ministério da Educação. Link [ Links ]
Priszkulnik, L. (2018). Supervisão: Um percurso de experiências singulares e inesperadas. In M. L. T Moretto, & D. Kupermann (Orgs.), Supervisão: A formação clínica na psicologia e na psicanálise (pp. 79-86). São Paulo: Zagodoni: FAFESP. [ Links ]
Quinet, A. (2009). As 4 + 1 condições da análise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. [ Links ]
Rotstein, E., & Bastos, A. (2011). A concepção freudiana de experiência. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 27(3), 371-380. DOI: 10.1590/S0102-37722011000300013 [ Links ]
Souza, M. (2004). Fios e furos: A trama da subjetividade e a educação. Revista Brasileira de Educação, (26), 119-132. DOI: 10.1590/S1413-24782004000200010 [ Links ]
Endereço para correspondência:
Gustavo Angeli
E-mail: gustavooangeli@gmail.com
Mériti de Souza
E-mail: meritisouza@yahoo.com.br
Recebido em: 03/12/2019
Revisado em: 25/04/2021
Aceito em: 15/05/2021
Publicado online: 29/04/2022