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Aletheia
versão impressa ISSN 1413-0394
Aletheia vol.52 no.2 Canoas jul./dez. 2019
ARTIGOS EMPÍRICOS - PSICOLOGIA
Sentidos de ser mulher cuidadora de um familiar com transtorno mental grave na região Amazônica
The significance of being a woman caregiving a family member with severe mental disorder in the Amazon region
Dayane Fernandes Ferreira1I; Neli Machado de Souza Ahnerth2II;Eraldo Carlos Batista 3I;
I Universidade Federal de Rondônia – UNIR
II Faculdade de Rolim de Moura-FAROL
RESUMO
Neste estudo objetivou-se compreender os sentidos produzidos sobre o papel de cuidadora de um familiar em sofrimento mental grave. Trata-se de uma pesquisa qualitativa realizada com seis mulheres de um município do interior de Rondônia. As informações foram obtidas através de entrevistas semiestruturadas e analisadas por meio da técnica de Análise do Discurso sob a perspectiva do construcionismo social. Das entrevistas emergiram os seguintes repertórios interpretativos: a) a construção social do cuidado como função feminina; b) a sobrecarga familiar da mulher cuidadora; e c) a fé como fonte de alívio do sofrimento. Os resultados mostraram que, ao assumir o papel de cuidadora do familiar em tratamento psiquiátrico, a mulher deixa de exercer suas atividades profissionais, abdica da vida social e convive diariamente com uma sobrecarga física e emocional. Mesmo após a evolução dos papéis sociais exercidos por homens e mulheres, as estratégias de cuidado continuam a fundamentar-se na figura feminina.
Palavras-chave: Cuidado; Sofrimento mental; Mulher.
ABSTRACT
This study aimed to understand the meanings produced about the role of caregiver of a family member in severe mental distress. This is a qualitative research conducted with six women from a municipality in the interior of Rondônia. The information was obtained through semistructured interviews and analyzed using the Discourse Analysis technique from the perspective of social constructionism. From the interviews emerged the following interpretative repertoires: a) the social construction of care as a female function; b) the family burden of the caregiver woman; and c) faith as a source of relief from suffering. The results showed that, when assuming the role of caregiver of the family member in psychiatric treatment, the woman ceases to perform her professional activities, abdicates social life and lives daily with a physical and emotional overload. Even after the evolution of social roles played by men and women, care strategies continue to be based on the female figure.
Keywords: Care; Mental Distress; Woman.
Introdução
Com o movimento da Reforma Psiquiátrica, a desinstitucionalização se torna protagonista no processo de criação de novos serviços de assistência à saúde mental. Os hospitais psiquiátricos deixam de constituir a base do sistema assistencial, cedendo a uma rede de serviços extra-hospitalares de crescente complexidade (Gomes, Silva & Batista, 2018). As mudanças geradas pela implantação desses serviços foram pautadas na atenção à cidadania dos usuários, no auxílio ao tratamento do sujeito em sofrimento e no processo de desmistificação da loucura na comunidade. Assim, a pessoa em sofrimento mental adquire o direito de conviver em sociedade, e a família assume o papel sobre o cuidado e a manutenção, bem como sobre o processo de tratamento (Batista, Ferreira & Batista, 2018; Santin, & Klafke, 2011; Dourado, Rolim, Ahnerth, Gonzaga & Batista, 2018). Ou seja, à medida que mudanças ocorreram na forma de a sociedade ver e se relacionar com a doença-saúde mental, transformações também aconteceram no papel desempenhado pela família em relação ao cuidado de um familiar em tratamento psiquiátrico (Batista, Ferreira & Batista, 2017).
Esse novo contexto de atenção em saúde mental, preconizado pelo retorno da pessoa em sofrimento mental ao ambiente familiar, provoca significativas mudanças na rotina da família (Rosa, 2011). Os compromissos e afazeres domésticos se intensificam, sobretudo quando se faz necessário alguém para pajear e até vigiar as ações do enfermo, sobrecarregando-se de atividades diárias ao se deparar com situações dessa ordem (Bandeira & Barroso, 2005). Na maioria dos casos, o papel de cuidado é posto sob a responsabilidade de uma pessoa do meio familiar, que passa a atuar como mediadora das atividades desenvolvidas por esse sujeito. E esse cuidado de dedicação exclusiva, quase sempre, implica a permanência do cuidador no ambiente doméstico.
No entanto, fatores como desinformação e preconceito contribuem para a falta de opção em dividir as responsabilidades com outros membros familiares. Como consequência, a sobrecarga de trabalho vivida pelo cuidador pode se tornar um elemento à predisposição ao seu adoecimento. Isso acontece em razão de que a atividade do cuidado, além de comprometer a vida financeira, ocupacional e social do cuidador, pode lhe provocar sentimentos de culpa, medo, raiva e ansiedade, deixando-o desesperançado e sem perspectiva (Kebbe, Rôse, Fiorati & Carretta, 2014; Sant'ana, Pereira, Borenstein, & Silva, 2011; Delalibera, Presa, Barbosa & Leal, 2015; Nascimento et al., 2016). Em sua maioria, os cuidadores não estão preparados para assumir a responsabilidade, uma vez que não há um suporte social, e as orientações e acompanhamento pelos profissionais são insuficientes (Fonseca, Penna, & Soares, 2008). Nesse sentido, o ato de cuidar traz mudanças abruptas e significativas na vida do sujeito, papel que quase sempre é assumido pelas mulheres.
Nesse contexto, socialmente a mulher fica responsável direta, se não exclusiva, pelo cuidado ao outro. Historicamente, a divisão de tarefas entre os gêneros colocou a mulher na posição de dedicar-se a casa, à família, e suas tarefas se voltam para o cuidado de crianças, enfermos e idosos. Esse acúmulo de função reflete-se negativamente na saúde da mulher quando comparada ao homem que exerce o mesmo papel. Estudo realizado por Friedemann e Buckwalter (2014) com 533 cuidadores de familiares concluiu que os homens de nacionalidade latina e caribenha sentiam menos carga e depressão do que as mulheres. Pesquisa com cuidadores de pessoas com esclerose múltipla no México, realizada por Perrin et al. (2015) mostrou que as mulheres apresentavam menor saúde mental e suporte social. De acordo com os pesquisadores esses resultados podem ser explicados pelo fato de que as mulheres ficavam maior tempo dispondo do cuidado do que os homens.
Para Rosa (2011), a concepção de cuidado é historicamente construída e confunde-se com a concepção de maternagem, uma vez que o papel cultural da mulher está atrelado a sua condição biológica de engravidar e amamentar, o que acaba por entrelaçar com a tarefa de maternar, cuidar e proteger como se fossem atividades correlatas, extensivas. Dessa maneira, o cuidado se torna mais uma obrigação dentre as várias já assumidas pela mulher no contexto doméstico. Tal concepção é reproduzida pelas novas gerações e reafirmada em um ritual na família, sobretudo na visão masculina, em que o cuidado é um dever feminino (Friedemann & Buckwalter, 2014).
Outra explicação para a atribuição à mulher da função social da prestação de cuidados a um familiar ganha respaldo na Antropologia. De acordo com essa perspectiva, nesse perfil de família, o homem assume o papel de provedor e, geralmente, passa grande parte do tempo fora de casa, enquanto a mulher se torna responsável pela realização das atividades domésticas e, consequentemente, da função de cuidadora (Duarte, 2016; Pegoraro & Caldana, 2008; Oliveira et al., 2012).
No campo da saúde mental, estudos com o cuidador familiar têm mostrado que a mulher continua como protagonista no papel do cuidar (Dourado et al., 2018; Cardoso, Galera & Vieira, 2012; Pegoraro & Caldana, 2008; Sant'Ana et al., 2011; Rosa, 2011; Santos, Eulálio & Barros 2015; Carmo & Batista, 2017; Silva, Dimenstein & Leite, 2013). Esses estudos também têm revelado que a maioria dos cuidadores mantém dedicação exclusiva à pessoa em sofrimento mental e atenção as suas necessidades. Nesse cenário, a mulher tem por função garantir o provimento às necessidades básicas do membro em sofrimento psíquico, como alimentação, higiene pessoal, consultas médicas e administração de medicação e, ainda, a coordenação de suas atividades diárias.
Em face à problemática da naturalização da função do cuidado atribuído à mulher, neste estudo teve-se por objetivo compreender os sentidos produzidos por mulheres sobre o cuidar de um membro da família em sofrimento psíquico grave.
Métodos
Delineamento
Este estudo consiste em uma pesquisa qualitativa, que é um meio para entender o significado que os indivíduos atribuem a um problema social ou humano (Creswell, 2010), orientada pela perspectiva da Psicologia Discursiva (Potter & Wetherell, 1987). A Psicologia Discursiva focaliza seu interesse na atenção à construção do conhecimento no discurso e na explicação de como se produz tal conhecimento, como se constrói a interpretação da realidade e como as interações entre analistas e participantes criam e adquirem sentido (Iñiguez, 2004).
Participantes e Local do estudo
A pesquisa foi realizada com seis mulheres cuidadoras de um familiar com transtorno mental grave indicadas pela equipe de atendimento de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) do interior do Estado de Rondônia na Amazônia Ocidental no período de maio a setembro de 2014.
Os critérios de inclusão foram: ter idade igual ou superior a 18 anos e ser cuidadora principal de um membro da família em tratamento psiquiátrico no CAPS. Foram excluídas aquelas que não se encontravam em boa condição física e emocional de participar das entrevistas.
Instrumentos
Tomando como base o enfoque teórico a Psicologia Discursiva, que tem como premissa o desenvolvimento de investigação sobre os aspectos construtivos da linguagem na interação social como forma de produção de sentidos (Potter & Wetherell, 1987), foi elaborado um roteiro de entrevistas semiestruturadas com questões que buscavam explorar os sentidos produzidos sobre o cuidado de um familiar em sofrimento psíquico grave por. As questões foram divididas em três blocos temáticos: percepção social do cuidado; mudanças ocorridas após assumir a nova atividade; e recursos utilizados como auxílio de enfrentamento na função de cuidadora.
Técnicas para construção do corpus
O primeiro contato com as colaboradoras do estudo ocorreu na recepção do CAPS enquanto o familiar aguardava pelo atendimento psiquiátrico e/ou psicológico. Nessa oportunidade foi apresentado o objetivo da pesquisa e feito o convite de participação no estudo. Para aquelas que concordaram, foram discutidos datas e horários para a realização das entrevistas, que ocorreram em suas residências com duração média de 45 minutos. Antes de serem iniciadas as entrevistas, que foram gravadas por meio de um aparelho digital, as participantes leram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Para as colaboradoras não alfabetizadas foi elaborado o Termo de Assentimento (TA), o qual foi lido e assinado por um familiar com autorização da mesma.
Análise
Neste estudo o caminho teórico-metodológico escolhido para analisar o corpus se baseia na proposta de Análise do Discurso sob a orientação da Psicologia Discursiva (Potter & Wetherell, 1987). A Análise do Discurso nessa perspectiva enfatiza o processo dialógico e performático da linguagem, considerando o conteúdo do discurso como disponível socialmente e utilizado conforme os objetivos específicos da conversação (Rasera & Rocha, 2010). A partir dessa proposta, a análise propriamente dita se iniciou com a transcrição das entrevistas, observando e anotando os aspectos relevantes para a atividade interpretativa, como entonações e inflexões de voz (Guanaes, 2006). Os passos seguintes foram a leitura flutuante e atenta das transcrições das entrevistas, a seleção do tópico grupal e a identificação dos repertórios interpretativos.
Considerações éticas
Foram seguidas todas as recomendações da Portaria n. 366/2012 do Ministério da Saúde, que orienta as pesquisas com seres humanos. Desse modo, este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Rolim de Moura (FAROL) (CAAE n. 33579414.8.0000.5605). Visando à melhor organização, exposição dos relatos e confidencialidade sobre a identidade das participantes, os nomes foram substituídos pela palavra entrevistadas seguido de um número distinto.
Resultados e Discussão
Repertórios interpretativos
Para compreender os sentidos produzidos pelas mulheres cuidadoras sobre a função do cuidado, buscou-se identificar e analisar os repertórios interpretativos que melhor representavam a descrição de ser cuidadora de um membro da família em sofrimento mental grave a partir da fala de cada colaboradora. De acordo com as afirmações de Potter e Wetherell (1987), os repertórios interpretativos referem-se aos dispositivos linguísticos que os sujeitos utilizam para construir versões das ações, eventos e outros fenômenos que estão à sua volta. Esses repertórios são marcados por termos, metáforas, sinais, figuras de linguagem e imagens utilizados na conversação, compartilhados e disponíveis como um recurso social para justificar alguma versão particular de um evento, para validar ou questionar os próprios comportamentos e para manter sua credibilidade na interação.
Em acréscimo, Rasera e Rocha (2010) afirmam que a identificação dos repertórios interpretativos nas falas dos participantes possibilita a categorização e proporciona maior visibilidade ao processo de produção de sentido. Ao analisar os fragmentos das conversas que abordavam os sentidos produzidos sobre a aditividade do cuidado de um familiar em sofrimento mental desenvolvida pela mulher, agruparam-se repertórios interpretativos em torno de três temas, a saber: a) a reprodução da construção social do cuidado como função feminina; b) o acúmulo de atividades e a sobrecarga familiar da mulher cuidadora; e c) a fé como fonte de alívio do sofrimento.
A construção social do cuidado como função feminina
Nesse repertório buscou-se identificar nas falas das colaboradoras relatos sobre como elas produzem sentidos acerca do cuidado no cotidiano. A ação de cuidar implica um processo contínuo que engloba aspectos sociais, emocionais e materiais. Além disso, envolve ao mesmo tempo o lugar que cuidador e familiar em sofrimento mental ocupam socialmente. No entanto, quando se refere ao cuidado domiciliar, esses elementos acabam colocando a mulher na condição natural de cuidadora, pois desde pequenas as meninas tendem a ser estimuladas a brincadeiras que envolvem pajear. Depois, são postas para exercer funções domésticas, ou do lar, como se costuma dizer. Mais do que os homens, são convocadas a abdicar de carreira profissional ou precisam conciliar interesses se há a necessidade de alguém exercer tarefas relacionadas à casa, como faxina e preparação de refeições, e aos cuidados com crianças, enfermos e idosos. De modo geral, a sociedade reproduz a ideia de que o cuidado está relacionado à construção social ligada ao papel de mãe. Ou seja, há uma concepção de que as mulheres seriam naturalmente, provedoras de cuidado devido à maternidade." (Gutierrez & Minayo 2010; Rosa, 2011; Gonçalves & Sena, 2001).
Eu sempre cuidei dele sozinha porque o pai dele, meu marido, é caminhoneiro, só vive viajando. Quando chega só quer descansar. Às vezes fica um pouco com ele quando está em casa, mas a responsabilidade de cuidar é minha. Eu sou a mãe, né? (Entrevistada 2).
"Também, homem não sabe cuidar direito; qualquer coisinha já fica irritado, não é como a gente, não sabe lidar. Então prefiro eu mesma cuidar." (Entrevistada 3).
Nessas falas fica evidente o valor social agregado ao cuidado informal no ambiente doméstico ligado à figura feminina, sobretudo à figura materna. Das seis mulheres cuidadoras pesquisadas, quatro são mães. Uma pesquisa realizada por Dourado et al. (2018) com 40 cuidadores de ambos os sexos de pessoas com transtornos mentais em Rondônia mostrou que 29 eram do sexo feminino, e, destas, 19 se declararam mães evidenciando a predominância da genitora como responsável pelo cuidado.
Neste estudo os discursos das entrevistadas revelam o sentimento sobre o cuidado dos filhos, percebido em falas como as citadas a seguir:
Dourado et al. (2018). Ansiedade e depressão em cuidador familiar de pessoa com transtorno mental.
ECOS-Estudos Contemporâneos da Subjetividade, 8(1), 153-167.
"Eu vivo pra ele. A minha vida é dedicada totalmente pra ele. Porque desde quando ele nasceu, ele nunca se apartou de mim." (Entrevistada 2).
Porque ele é filho, e a gente tem amor aos filhos da gente. A mãe nunca abandona os filhos. Faço tudo por amor a eles. Se for preciso, eu fico vários dias sem dormir e até mesmo sem comer, mas não abandono meus filhos. (Entrevistada 6).
A análise das falas ratifica que cada mulher exerce o cuidado em nome do amor e dentro de uma perspectiva voluntária, ou seja, é realizado de forma gratuita e como parte das funções domésticas. A mãe toma para si a responsabilidade do cuidado, sob a conjuntura social que a exige dela a suprema responsabilidade sobre os filhos e o que vier a acontecer com eles. Mesmo havendo, nesses quatro casos, a presença da figura de pai, este não se responsabiliza pelo cuidado, ao contrário, tende a responsabilizar a mãe. Nessa conjuntura, Rosa (2011) afirma que nas situações em que o filho é acometido por um transtorno mental agrava as tensões do ambiente doméstico, e costuma-se cobrar mais da mãe, mesmo que haja a presença do pai.
Observa-se que no ambiente doméstico há uma dicotomização dos papéis sociais do homem e da mulher em relação às responsabilidades. Quando ocorre a enfermidade em família, a mulher assume o cuidado sem uma discussão prévia; ela simplesmente toma para si as novas necessidades do familiar e as assume como suas, como mostram os discursos a seguir:
"Eu que conseguia e consigo, até hoje, controlar ela. O pai dela não consegue. Porque, se ele vê ela doente, ele passa mal também. Ficou por conta dele sustentar a casa e eu de cuidar." (Entrevistada 3).
Porque eu estava sempre em casa, né. Meu marido trabalhava na roça e eu cuidava do almoço, da casa e ia pra roça também. Eu, meu filho e meu marido. Quando ele adoeceu [filho], eu que corri pra todos os lugares; trago no médico, dou os remédios... É tudo eu! (Entrevistada 6).
Esses relatos possibilitam uma reflexão acerca da questão que envolve a participação de homens e mulheres na sociedade a partir de posições sociais preestabelecidas ao longo do tempo, tendo como premissas básicas a diferenciação social quanto aos papéis estabelecidos entre os gêneros. Para a mulher, foram destinadas funções relacionadas aos afazeres domésticos, como cuidado da casa, marido, filhos e enfermos de modo geral. Quando isso ocorre, algo também reforçado pelo fato de amamentar e, assim, a cria depender, essencialmente, da figura materna em tenra idade. Para Duarte (2016), o engessamento dessa lógica de que ao homem cabe a responsabilidade exclusiva pela esfera econômica/política e a mulher o compromisso com o doméstico/familiar contribui para o agravamento das assimetrias entre os gêneros masculino e feminino. Além disso, a maternagem, associada ao despojamento, à renúncia e ao autossacrifício da individualidade feminina exercida pela mulher, a posiciona como protagonista do cuidado (Rosa, 2011).
Outro fator a ser destacado é a dificuldade que essas entrevistadas encontram em exercer outros papéis sociais remunerados, como trabalhar e estudar. Tal condição se dá, em virtude da necessidade de sua permanência no ambiente do lar para o cuidado ao familiar que necessita de vigilância, zelo e afetividade em tempo interrupto.
"Eu não posso trabalhar pra fora. Então, eu pego uma coisinha aqui pra vender ou outra ali..." (Entrevistada 2).
"O primeiro limite é eu não poder mais trabalhar. Isso me entristece!" (Entrevistada 3).
O que eu queria era estudar. Quando eu estava boa das vistas, não pude! Aí, eu fiquei sem estudo. Tinha aula, né? Que tinha o ônibus que tinha pra levar de noite. Não pude ir quando as vistas estava melhor. Por conta dela, né? Eu cuidava dela. (Entrevistada 5).
Esses discursos estão carregados de sentimento de tristeza associado ao senso do dever de cuidar, fazendo com que os próprios interesses da mulher sejam substituídos pela atenção às necessidades do outro. A mulher compromete sua individualidade e passa a viver para o familiar adoecido. A maioria das cuidadoras se vê sem saber como agir e o que fazer.
Aí, catei ela e levei para o hospital. Ela não queria ir e ela grudou em mim e me bateu, puxou meu cabelo, me mordeu [...] estava fora de si! Aí eu penso: o que fazer? Não sei, realmente, não sei. (Entrevistada 1).
"Menina, tinha vez que ela passava a mão no facão e nós tinha que correr [risos]. Se ficasse ela nos machucaria." (Entrevistada 5).
"Ele quebra tudo! Ele bate [...] ele mete o murro nas minhas costas. Aí a gente fica sem saber o que fazer. Bater nele eu não vou..." (Entrevistada 4).
"Menina [...] ficou ruim [emocionalmente alterado] e só passando a mão nas paredes e falando as coisas mais horríveis [...] não tinha paz mais pra nada!" (Entrevistada 6).
Essas situações de agressividade e ameaças vivenciadas por essas cuidadoras parecem estar relacionadas ao despreparo dessas mulheres em lidar com as manifestações dos sintomas apresentados pelos seus familiares em crises. Além disso, a violência sofrida contribui para o desenvolvimento de sentimento de impotência em relação ao cuidado. Contudo, esses fatores não são suficientes para a rejeição ou abandono do familiar em tratamento.
Estudo de Gonçalves e Sena (2001), com 11 mulheres cuidadoras, mostrou que apesar da visão delas sobre o comportamento agressivo e violento de seus familiares com transtornos mentais não expressaram rejeição a eles. Esses resultados corroboram os achados do presente estudo, como mostrado nos relatos a seguir, nos quais as cuidadoras demonstram forte ligação de apego e carinho pelo familiar.
Gonçalves e Sena. (2001). A reforma psiquiátrica no Brasil: contextualização e reflexos sobre o cuidado com o doente mental na família.
Revista Latino-americana de Enfermagem, 9(2), 48-55.
"Às vezes, eu chegava pensar em desistir, mas não tem como desistir [...] é um pedaço da gente, né?" (Entrevistada 3).
"Só que eu sou uma pessoa, assim, que não tenho mágoa dela [...] sei que ela tá doente. Ela tá precisando de ajuda." (Entrevistada 1).
"Já pensei em internar. Mas tenho dó. A gente sente falta. É toda uma história construída e vivida junta." (Entrevistada 4).
Assim como os profissionais da saúde, as mulheres cuidadoras aprendem e desenvolvem estratégias próprias para o cuidado no dia a dia. Nos relatos a seguir, é possível verificar que atributos como paciência, compreensão, compaixão e determinação diante do cuidar se apresentaram como estratégias fundamentais para os momentos de instabilidade emocional e comportamento agressivo do familiar doente.
"Eu nunca briguei com ela. Sempre tratei na calma e na paciência. Porque se brigar com ela, ela vira um negócio. Então trato na calma e na paciência e dá pra ir levando." (Entrevistada 5).
Saio com ele; eu levo ele para passear. Ele é muito nervoso. Sei que se eu for na casa de alguém que tem criança, eu sei que vai dar confusão. Aí eu levo ele para a sorveteria, para a praça, para a feira, parque. (Entrevistada 2).
Os discursos anteriores revelam que as estratégias exigem, em alguns momentos, uma dedicação exclusiva e diária e, como exposto na temática anterior, comprometendo o desejo pessoal da própria mulher, que vive mais para o outro do que para si mesma. Esse procedimento está respaldado por valores e crenças impostos à figura feminina.
Outro ponto destacado nas entrevistas foi o isolamento social dessas cuidadoras em detrimento do tempo dispensado ao membro em sofrimento psíquico grave. A agressividade sofrida em lugares públicos pelo familiar em momentos de crises, foi apontada como um dos agravantes para a abdicação da vida social por essas mulheres, conforme mostram os relatos a seguir:
"Eu vou só na igreja e para mais lugar nenhum. Quando a gente sai, ele vai me batendo no caminho. Aí, dá até desgosto de sair." (Entrevistada 4).
"É complicado; tem vez que ela passa muitos dias bem tranquila. Mas tem outros momentos que ela muda completamente o comportamento." (Entrevistada 5).
"Ele é assim: tem dias que é um amor, me abraça, me beija [risos]. No entanto, tem dias que fica em total mau humor, fica quieto e não quer conversar." (Entrevistada 2).
Nesses depoimentos, nota-se que os comportamentos agressivos dos familiares enfermos atingem física, psicológica e socialmente as cuidadoras. Por uma questão de segurança, essas cuidadoras demonstram preocupação em sair de casa acompanhadas dos seus familiares que se encontram em tratamento. Para Rosa (2011), a relação da família com o enfermo em sofrimento psíquico grave tende a ser mais dramática, pois os sintomas são mais intensos e ameaçadores à segurança do grupo familiar.
Para as cuidadoras que não enfrentam o problema de comportamento agressivo o isolamento social está atrela a outros fatores, como por exemplo a insegurança. Para essas mulheres é difícil encontrar alguém que as substitua, ou seja, alguém que conheça o "jeito" de cuidar do ente querido.
[...] eu não saio para fazer um passeio se eu não levar ele. Se eu deixar ele em casa de um dia pra outro eu já fico preocupada. Eu tenho que tá vendo ele ali [...] se eu sair e não levar ele, pra mim não tá nada bom. (Entrevistada 6).
"Quando eu saio levo todo mundo! Não tem jeito, tem que ir todo mundo. Se eu pagar alguém pra cuidar eu vou ficar preocupada. Será que essa pessoa está cuidando bem?" (Entrevistada 1).
"Muito difícil sair de casa. Eu não saio mesmo. Eu acho difícil sair sozinha. Um esposo quase não sai. Aí tem que deixar ela sozinha. Acabo nem saindo, fico em casa mesmo." (Entrevistada 5).
Em ambos os casos, os sintomas apresentados pelo familiar, de acordo com sua patologia, vão de alguma forma restringir a mulher a circular nos meios sociais, limitando sua vida ao meio familiar, mais precisamente a sua própria casa. Elas se queixam do fato de não terem controle sobre o comportamento do familiar adoecido, bem como da imprevisibilidade e intempestividade de suas ações. Além disso, ainda enfrentam o preconceito da sociedade, pois o comportamento do familiar enfermo, muitas vezes, provoca sentimentos de vergonha, como mostram os relatos a seguir:
"Eu já deixei muito de sair por causa do comportamento dele e pela forma como as pessoas olham, também. Já cortei algumas amizades, pelas pessoas não aceitarem ele. (Entrevistada 2).
É difícil, quando ela ataca [entra em crise] sai para a rua, tira a roupa e fica sem roupa, daí eu tenho que buscar ela. Fico morrendo de vergonha, porque fica todo mundo olhando pra ela. Ficam falando: "Olha a doida, olha a doida". Não é fácil! (Entrevistada 1).
Esses discursos apontam para um comprometimento nas relações sociais da cuidadora motivado pela vergonha. A ligação consanguínea com o familiar adoecido e o que acontece com ele comprometem também a qualidade de vida da cuidadora. Perante as situações de preconceito social, a cuidadora se fecha dentro do próprio lar como uma forma de se proteger, quando deveria seguir o caminho contrário. Tal condição contribui para o aumento do preconceito e pode prejudicar tanto a pessoa que cuida quanto a pessoa em sofrimento psíquico. Nesse sentido, Mota e Pegoraro (2018) destacam que a presença marcante de mulheres no cuidado informal em saúde mental implica a construção de formas de apoio às próprias cuidadoras para promoção de sua saúde mental.
A sobrecarga familiar da mulher cuidadora
Esse repertório evidencia a sobrecarga de trabalho resultante do acúmulo de funções quando a mulher assume o papel de cuidadora principal. Tal situação é potencializada caso a cuidadora esteja inserida no mercado de trabalho, pois a ela recai uma terceira jornada de trabalho, imposta pela agenda específica gerada pelo cuidado ao familiar com transtorno mental (Duarte, 2016). Outro fator desencadeante da sobrecarga, de acordo com os autores supracitados, são as dificuldades encontradas no desempenho desse papel no cotidiano e as particularidades dessas dificuldades, sejam de ordem financeira e física, sejam de ordem emocional, como mostram as falas a seguir:
Às vezes falta dinheiro para comprarmos até alimento. Se eu pudesse ter um emprego, mesmo que fosse só um período, já ajudava um pouco; mas não posso sair para trabalhar [silêncio]. Assim as coisas ficam mais difíceis ainda. (Entrevistada 6).
"A gente fica triste também porque a gente quer ajudar, mas não sabe como. Isso vai deixando a gente emocionalmente abalada." (Entrevistada 3).
A partir dos relatos dessas acima, observa-se que a sobrecarga familiar sofrida por essas mulheres parece estar associada a todas as consequências negativas relacionadas ao cuidado. Como afirma Bandeira (2014), o impacto provocado pela presença da pessoa em sofrimento psíquico no meio familiar atinge os aspectos econômicos, práticos e emocionais de suas cuidadoras.
A literatura aponta que a sobrecarga familiar pode ser objetiva e subjetiva. A sobrecarga objetiva se refere aos problemas ou dificuldades passíveis de serem observados e verificados (de cunho financeiro, material, etc.) e são causados pelos comportamentos do familiar em sofrimento psíquico. A sobrecarga subjetiva se refere aos pensamentos e sentimentos negativos, preocupações e/ou tensão psicológica provindos da percepção do cuidador sobre a presença, comportamentos e/ou dependência do familiar adoecido desencadeados pela sobrecarga objetiva. Engloba reações emocionais, como estresse, sentir-se doente, sentir-se incômodo ao lidar com alguns comportamentos dos pacientes e sentir-se na obrigação de cuidar do familiar (Duarte, 2016; Borba, Schwartz & Kantorski, 2008; Bandeira, 2014; Soares & Munari, 2007).
A sobrecarga também parece estar associada ao excesso de cuidado com o familiar. A construção de um sistema de cuidado informal, zeloso, preocupado, presente e vigilante, implica o comprometimento das próprias necessidades das entrevistadas conforme mostram os relatos a seguir:
"[...] às vezes, eu não durmo à noite. Às vezes, embala três e quatro noites com insônia, sem dormir." (Entrevistada 2).
"E, menina, mas foi uma luta. Fiquei 10 dias sem dormir e sem comer cuidando dela. Por causa do surto dela." (Entrevistada 1).
"Eu me sinto muito cansada. Não durmo direito, porque acordo sempre à noite preocupada se está tudo bem com ele. Principalmente nos dias que ele está mais agitado." (Entrevistada 3).
Nesses depoimentos, fica evidente que a má qualidade do sono das cuidadoras parece se associar às mudanças de humor e cansaço diurno. Uma pesquisa realizada por Borba, Schwart e Kantorski (2008) evidenciou que a convivência com a realidade do transtorno mental em família prejudica emocionalmente o cuidador, seja pela privação do sono, seja pelo fato de os familiares não suportarem mais as implicações que essa convivência gera. Os relatos a seguir evidenciam o sentimento de desânimo que a vigilância e o cuidado geram nessas cuidadoras:
"Tem dia que se achasse alguém pra cuidar [do familiar] eu iria querer. Sinto canseira, sem coragem. Tinha vez que a gente ficava até um mês sem dormir." (Entrevistada 4).
"Direto, assim, meu marido vê que eu estou triste. E me leva pra passear. Só nós dois. Eu tento cuidar de mim pra conseguir cuidar dela." (Entrevistada 1).
Tanto que as pessoas que me viram antes do mais pesado acontecer olha pra mim e fala: "Nossa! Como você envelheceu nessa época." Foi mesmo. Em menos de quatro anos eu acho que eu envelheci uns quinze anos. Teve casos de eu ter que fingir que eu desmaiei pra ela parar de me enlouquecer; eu sinto que eu já estou doente também. (Entrevistada 3).
Esses depoimentos mostram que, no contexto do sofrimento psíquico, cuidar tornase tarefa difícil, quer pela falta de apoio e comprometimento dos demais membros da família, quer pelas necessidades do familiar doente. Do ponto de vista de Rosa (2011), é complexo para o cuidador se desligar ou até ter um distanciamento emocional do problema, podendo levá-lo ao adoecimento.
A união de um sono precário e de sentimentos de preocupação, culpa, responsabilidade e vigilância constante podem comprometer o equilíbrio emocional das cuidadoras. Delas é constantemente exigido disposição, paciência e atenção, o que pode ocasionar grande sobrecarga emocional, a qual, em longo prazo, prejudica as condições emocionais e físicas de saúde.
A fé como fonte de alívio ao sofrimento gerado pela função do cuidado
Os depoimentos agrupados nesse repertório mostraram que, na maioria das vezes, a cuidadora busca suporte emocional na religião para minimizar os efeitos da sua sobrecarga. A fé emergiu como elemento de suporte para enfrentar as dificuldades e como fonte de esperança de que o problema seja sanado e seu familiar fique curado, livre da doença e do sofrimento. O que parece é que há uma grande expectativa por parte dos familiares de que a doença mental possa ser curada por meio de práticas religiosas.
Chama-se a atenção que o amparo religioso contribui para as mulheres entrevistadas de forma positiva, pois atua no fortalecimento emocional a fim de que elas enfrentem as agruras do dia a dia. Ou seja, a fé permite que haja esperança de reestruturação psicológica do familiar, bem como é fonte de pensamentos positivos e restauradores em relação ao próprio cuidado, conforme depoimentos a seguir:
"Eu tenho passado coisa feia na vida, hein? É só por Deus mesmo pra gente vencer, porque é difícil." (Entrevistada 1).
"Que Deus me dá força, e eu vou ter que levar. A gente sabe que sem fé se torna mais difícil." (Entrevistada 3).
"Está complicado, mas eu sei que Deus vai nos ajudar a vencer essa batalha; eu creio nisso." (Entrevistada 6).
Percebe-se nas falas das cuidadoras que a religiosidade se apresenta também como elemento de cura do paciente, quando, na maioria das vezes, o familiar apresenta sintomas que não podem ser controlados pelo cuidador. Ou seja, a religião por meio da fé e da espiritualidade, configura-se também como aliada no auxílio aos familiares cuidadores no enfrentamento da doença mental (Andrade, Cedaro & Batista, 2018). Nas falas seguintes, o desejo das participantes é a "cura" do sofrimento mental, com respaldo na esperança cultivada no dia a dia por meio da fé.
"Eu pedi a Deus pra curar ela. Pedi que enviasse um médico e passasse o remédio certo e pedi a Deus para curar ela. É isso que eu pedia [...] Deus!" (Entrevistada 5).
"Tem dia que eu passo a noite ajoelhada orando. Pedindo a Deus..." [Choro]. (Entrevistada 4).
"Eu penso assim: esse problema deles quem vai curar é Deus. Já tomaram tanto remédio e não melhorou. Um remédio atrás do outro, mas, na verdade, quem cura mesmo é Deus, ele sabe todas as coisas." (Entrevistada 2).
Observa-se nos depoimentos anteriormente expostos que há a busca por algum alívio do sofrimento e por algum significado ao desespero que se instaura na vida de quem cuida. Para Dalgalarrondo (2007), ocorre uma forte presença do religioso no modo de construir e vivenciar o cuidar do sofrimento mental.
Nota-se que o apego ao divino constitui um importante mecanismo de subjetividade do conformismo perante a situação vivenciada pelas cuidadoras participantes deste estudo, por vezes considerada uma condição imposta e sentenciada a ela, como mostra o depoimento a seguir: "Que Deus me dá força, e eu vou ter que levar. Eu consigo levar... Meio na marra, às vezes, mas Deus dá força, né?" (Entrevistada 3). Ou o cuidado ganha status de função predestinada: "Se Deus quis que eu cuidasse [...] eu me conformo. A gente tem que entender nosso destino. Cada um nasce com uma missão na Terra" (Entrevistada 1).
Santos et al. (2015) explicam que mesmo que a religiosidade não seja a solução para os problemas ocasionados pela convivência, os cuidadores, por meio dela, têm o consolo, o amparo e o auxílio para enfrentar os momentos difíceis. Embora alguns acreditem que a função de cuidar seja destinada a eles e precisa ser cumprida, por meio da fé conseguem manejar os sentimentos de desesperança e depressão.
Em linhas gerais esses fragmentos dos discursos mostram que a fé é vista como um recurso significativo no enfrentamento dos desafios cotidianos de cada cuidadora, proporcionando o conforto que cada uma necessita diante das dificuldades do ato de cuidar. As falas apresentadas sugerem que, para essas mulheres, a fé em um ser supremo traz alívio e reduz o medo, a ansiedade e a angústia, gerando coragem e persistência, mesmo em momentos em que se encontram vulneráveis. Além disso a religiosidade traz esperança, seja de melhora, seja de cura do familiar em sofrimento mental. De outra maneira, a fé pode ser compreendida como fonte de apoio indispensável a essas cuidadoras, pois ela mitiga o sofrimento psíquico e traz ânimo para cada uma delas exercer a sua função.
Considerações Finais
Na busca por conhecer os desafios enfrentados pelas mulheres que possuem em seu núcleo familiar um ente em sofrimento mental grave e o impacto dessa convivência nas suas condições física, psíquica, financeira e social, neste estudo objetivou-se compreender os sentidos produzidos por essas mulheres a respeito da atividade de cuidadora principal de um membro com transtorno mental grave.
Nos discursos apresentados, pôde-se observar que a construção social do feminino ligado ao ambiente doméstico permanece reafirmada nas falas das entrevistadas, ao compreenderem o cuidado como uma obrigação da mulher. A falta de apoio de outros membros da família, especialmente a ausência da figura paterna nos momentos de crise do familiar, explicita a naturalização dos papéis que se referem aos cuidados, sobretudo com os filhos e familiares, a essas mulheres por suas famílias.
A partir dos relatos das entrevistadas, foi possível dimensionar o impacto gerado pela ação diuturna e ininterrupta do cuidado dispensado a um familiar em tratamento psiquiátrico na vida dessas mulheres. A abdicação parcial ou total da vida social e profissional e de muitos interesses ou necessidades pessoais para poder se dedicar ao familiar em sofrimento mental foi apontada como principal desafio pelas entrevistadas. Além disso, a responsabilidade exclusiva da função de cuidadora do familiar acrescida dos múltiplos papéis sociais exercidos por essas mulheres, como mantenedora, chefe de família, autônoma, entre outros, ocasionaram uma sobrecarga de tarefas, o que coloca essas mulheres em uma condição de vulnerabilidade e risco ao adoecimento.
O estudo também mostrou que, em razão do sentimento de incapacidade diante do sofrimento mental do familiar e das dificuldades enfrentadas no cotidiano, as cuidadoras buscam encontrar no sobrenatural a explicação e a solução para as dificuldades enfrentadas. Assim, a religiosidade, por meio da fé, proporciona para essas cuidadoras esperança, coragem e persistência para continuarem cuidando do familiar, mesmo que essa atividade possa ser para a vida toda.
Destarte, este estudo apresenta limitações que devem ser superadas por meio de novas pesquisas. Destaca-se o número reduzido de entrevistados, pois, apesar de se tratar de um estudo de delineamento qualitativo, o número de participantes poderia ter sido ampliado, considerando a magnitude da temática em questão. Seria interessante, também, analisar outras variáveis como a terapia medicamentosa e informações da equipe de saúde mental sobre a atenção dispensada a essas cuidadoras, se é que existem, considerando o local da pesquisa – a região amazônica –, que ainda sofre com a disparidade da oferta e qualidade dos serviços de atendimento à saúde mental.
Contudo, espera-se que este estudo contribua para novas reflexões sobre o cuidador familiar da pessoa em sofrimento mental, sobretudo a mulher cuidadora, no intuito de dar visibilidade social a essa problemática. Da mesma forma, sinaliza-se para a importância desse debate na construção de políticas públicas em saúde mental que visam desenvolver novas estratégias a partir de uma rede de apoio social, a qual leve em consideração as relações de gênero que permeiam a função de cuidador, objetivando uma assistência efetiva e qualificada a essa população.
Referências
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Endereço para correspondência
E-mail: psicologadayane2015@hotmail.com
Recebido em: outubro de 2018
Aceito em: agosto de 2019
1 Dayane Fernandes Ferreira: Mestre em Educação pela Fundação Universidade Federal de Rondônia – UNIR. Instituição/Afiliação: Fundação Universidade Federal de Rondônia – UNIR. Rondônia, Brasil.
2 Neli Machado de Souza Ahnerth: Bacharel em Psicologia pela Faculdade de Rolim de Moura-FAROL. Instituição/Afiliação: Faculdade de Rolim de Moura-FAROL. Rondônia, Brasil.3 Eraldo Carlos Batista: Doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica - PUCRS, Mestre em psicologia pela Universidade Federal de Rondônia - UNIR, Professor Substituto da Fundação Universidade Federal de Rondônia – UNIR. Fundação Universidade Federal de Rondônia – UNIR. Rondônia, Brasil.