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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
versão On-line ISSN 1413-6295
Cad. psicanal. vol.35 no.29 Rio de Jeneiro dez. 2013
Artigos
Os eixos do cuidado na primeira infância
The axes of care in early childhood
Tami Reis Gabeira* ; Silvia Abu-Jamra Zornig**
Resumo
O objetivo do artigo é analisar a importância de uma ética do cuidado relativa à primeira infância, principalmente no ambiente institucional. Com base em pesquisa qualitativa desenvolvida em uma creche/abrigo, com bebês entre 6 e 18 meses de idade, observamos a interação bebê-agente de cuidado, com o propósito de analisar a função da instituição no início da vida, principalmente quando o ambiente familiar é socialmente precário. A relação entre o profissional e o bebê ocupa o centro da investigação e é considerada fundamental no que concerne a um desenvolvimento saudável na primeira infância.
Palavras-chaves: Ética do cuidado, primeira infância, psicanálise.
Abstract
The aim of the paper is to analyze the importance of an ethics of care during early childhood, particularly at an institutional level. Based on qualitative research developed in a day care center/shelter in Rio de Janeiro, Brazil, with babies aged between 6 and 18 months, the interaction between the babies and the care agent was observed. There we analyzed the role of the institution in early childhood, especially when the family environment is socially deprived. The focus of the research is the relationship between the professional care taker and the baby, and is considered essential, as far as a healthy development in infancy is concerned.
Key-words: Ethics of care, infancy, psychoanalysis.
Introdução
Nas últimas décadas, as pesquisas sobre as capacidades e competências inatas dos bebês (STERN, 1992; ROCHAT, 2003) têm demonstrado que estes são ativos desde o nascimento, com habilidades inatas de perceber e organizar as sensações, diferenciando-se de seu entorno precocemente, mesmo que o acesso à intersubjetividade seja feito de forma gradual e dependa da qualidade de suas interações afetivas. Nesta perspectiva, a experiência subjetiva do bebê é uma experiência de mutualidade onde, ao mesmo tempo, ele é afetado e afeta o ambiente emocional em que se encontra.
Neste artigo, procuramos refletir sobre os eixos do cuidado na primeira infância, a partir da observação de bebês em uma instituição pública. Nossa reflexão tem como referencial a importância de uma ética de cuidado que favoreça os processos de subjetivação na primeira infância, visto que, atualmente, a inserção dos bebês em ambientes coletivos ocorre cada vez mais precocemente. Assim, os adultos que trabalham diretamente com os bebês devem estar atentos às sutilezas de sua comunicação não verbal para traduzi-la em formas de cuidado que favoreçam suas necessidades afetivas e cognitivas. A participação ativa do bebê no entorno exige que o adulto profissional esteja atento a compreender sua comunicação, atuando a partir de formas que envolvem a sensibilidade, a antecipação e principalmente, a narratividade.
Em artigo sobre as diversas faces do cuidar, Figueiredo (2009) descreve a prática de "fazer sentido", que estaria em oposição aos excessos traumáticos que uma vida comporta. Em sua perspectiva, fazer sentido equivale à construção da integração das experiências, processo onde é fundamental estabelecer ligações, dar forma e sequência aos acontecimentos e torná-los inteligíveis. Estas experiências não se constituem se não puderem ser transmitidas através do cuidado exercido no início da vida.
O autor descreve duas dimensões das funções primordiais de cuidado: a sustentação (holding), que garante a continuidade e a continência, que proporciona as experiências de transformação. A continuidade, inicialmente, é somatopsíquica, mas, ao longo da vida, é acrescida de outras dimensões decisivas, como a identificatória e a simbólica. A sustentação fornecida pelo agente de cuidados tem a tarefa de assegurar a continuidade na medida em que é construída e reconstruída a cada passo. Figueiredo afirma que, frequentemente, são as famílias, grupos ou instituições os mais aptos a oferecer holding ao longo da vida, principalmente no que diz respeito à continuidade na posição simbólica do sujeito no mundo: "É preciso crescer, expandir-se, se possível sem rupturas excessivas, mas também sem meras repetições. É o outro que dá continência, quem nos pode oferecer condições e vias para a transformação" (FIGUEIREDO, 2007: 126).
A função de continência é trabalhada por Ogden (2010) como a função que possibilita uma experiência de limite e transformação. Se a sustentação permite uma temporalidade contínua ao bebê, a capacidade materna de conter os afetos não elaborados do infante, permite a este vivenciar a possibilidade de pensar. A partir da contribuição de Bion, o autor indica como, inicialmente, é necessário ser pensado e sonhado pelo outro materno, para adquirir gradualmente a capacidade de pensar os próprios pensamentos.
Figueiredo (2007) enfatiza o papel fundamental do outro materno em ajudar a criança a nomear, entender, aceitar e tolerar elementos de sua vida corporal e mental primitiva, sendo a base para a sua transformação e o seu crescimento emocional. Essa transformação corresponde à capacidade de sonhar, o que possibilita um enriquecimento a partir do contato com esses elementos, chamados por Figueiredo de objetos de continência.
Mas também, grupos, instituições e indivíduos isolados podem nos ajudar nessas transformações, ajudando a sonhar, ajudando a dar forma, colorido, palavra e voz aos extratos mais profundos do psiquismo. Estas são formas extraordinariamente importantes do cuidar. Quando nos faltam, sofremos com sobrecarga de experiências emocionais obscuras e perturbadoras (FIGUEIREDO, 2007: 126).
Nesta perspectiva, refletir sobre uma ética do cuidado em instituições que trabalham com bebês significa analisar as funções de sustentação e de contenção exercidas pelos agentes de cuidado e como estas funções podem (ou não) favorecer uma experiência de integração egoica e de continuidade de ser no tempo e no espaço. Neste ambiente, é fundamental que se procure manter a singularidade nos cuidados com cada bebê, sem padronizá-los ou torná-los automáticos, pois a qualidade da relação entre o profissional e o bebê influencia e favorece a construção da narratividade nos primórdios da vida psíquica.
Relação materna, relação profissional: continuidade no cuidado ao bebê?
Se a teoria freudiana indica a importância do objeto na constituição do sujeito e se Winnicott demonstrou magistralmente como os cuidados maternos atualizam o potencial inato de desenvolvimento do infante, não podemos, no entanto, equiparar a função materna à função exercida por um profissional no cuidado com o bebê, mesmo que ambas contribuam para seu desenvolvimento global.
Algumas questões servem de ponto de partida para esta reflexão. Qual é o lugar do bebê na organização psíquica dos profissionais do cuidado? Como é possível descrevê-lo em relação ao cuidado? Existe continuidade no cuidado materno e profissional oferecido ao bebê?
A pediatra Maria Vincze (2003) apresenta um interessante diálogo entre Myriam David e Judith Falk sobre a qualidade da relação entre o agente cuidador e o bebê. A autora aponta uma diferença principal em relação ao cuidado materno, posicionando cada um em um extremo da "cadeia interativa". A mãe cuida de seu filho porque o ama, enquanto o agente de cuidados profissional ama o bebê porque dele cuida. Na relação profissional, o cuidado é o eixo principal e o sentimento é decorrente deste cuidado, enquanto na relação materna, o sentimento é o eixo principal que motiva o cuidado com o bebê.
Myriam David indica que na falta da mãe ou dano eventual, o bebê precisa de um cuidado particular que, para ser utilizado pelo mesmo, deve engendrar uma relação de confiança e de segurança. A base deste cuidado difere da de uma relação materna. "Apesar de muitas pessoas não quererem admitir, a relação entre o bebê e a cuidadora está destinada a sofrer grandes dificuldades, se esta se baseia na maternidade latente da cuidadora, criando nela a ilusão de uma relação materna" (VINCZE, 2003, p. 179).
Inevitavelmente, haverá uma futura separação entre a dupla bebê e a agente de cuidados. Em situações de cuidado abrilar, o bebê possivelmente será encaminhado para adoção e em creches o bebê se desenvolve e deixa o berçário, finalizando um ciclo de sua vida. As sucessivas separações podem provocar, na profissional, sentimentos de raiva, abandono, desvalorização do trabalho, falta de vontade de cuidar, entre outros aspectos relacionados ao exercício da profissão. Podemos considerar também que a maternidade latente da agente de cuidados estaria carregada de exigências de retorno emocional do bebê, como dependência, demonstrações de afetos intensas e preferência em relação a outras pessoas. A função da agente cuidadora é exatamente cuidar do bebê enquanto este não se encontra na presença materna, o que é naturalmente diferente do cuidado exercido pela mãe do bebê. Este relacionamento baseado em expectativas maternas da agente de cuidados está fatalmente relacionado com sofrimento, tanto da parte da profissional, quanto da parte do bebê, que também deverá deixá-la no futuro.
Judith Falk (VINCZE, 2003) apresenta uma importante contribuição em relação ao cuidado. Ao enfatizar a função da profissional, considera que a relação agente cuidador/bebê difere da relação materna em suas características mais essenciais. Suas origens, a motivação e os elementos que a compõe são outros. Para a autora, uma relação agente cuidador/bebê baseada em uma atitude que se diga instintiva implica em perigos, tanto para a profissional, quanto para o bebê. Ela desperta inquietudes em ambas as partes. Judith Falk afirma que, ao partir de suas próprias exigências emocionais, impossíveis de serem satisfeitas no seio da coletividade, a agente de cuidados provoca decepções e frustrações dolorosas nos bebês. Além disso, fazer distinções nas formas de cuidado entre os bebês, ou seja, não poder sentir e cuidar dos bebês, da mesma forma, provoca inquietude e mal-estar. Para Falk, tais sentimentos de culpa e ansiedade se expressam em impaciência e agressividade por parte da agente de cuidados. Como forma de defender-se da ansiedade e das dores de separações repetidas, sua atitude profissional corre o risco de tornar-se cada vez mais impessoal, rígida e mecânica.
Como reflexão sobre esta questão, a autora indica que as agentes de cuidados devem permanecer na linha de sua profissão, controlando seus próprios sentimentos para que os bebês não se tornem objetos de suas emoções desconsideradas e descontroladas. Faulk considera que, se as profissionais observam com interesse o comportamento, a atividade e o desenvolvimento pleno dos bebês – enxergando-os como resultados de seu próprio trabalho – existe a possibilidade do entusiasmo das emoções ser substituído pelo interesse no cuidado aos bebês e em sua satisfação.
A substituição da emoção pelo interesse no cuidado e no desenvolvimento do bebê serviria como um recurso para lidar com as experiências compartilhadas com os bebês. A implicação da agente cuidadora no desenvolvimento dos bebês é fundamental para a compreensão de que sua função faz diferença e produz resultados que podem ser observados no dia a dia com eles. A profissional, ao reconhecer a importância de seu trabalho, pode perceber que este produz resultados positivos para a vida dos bebês de quem ela cuida e sentir-se cada vez mais implicada em sua função.
Myriam David descreve a forma de se construir uma relação de afeto e amizade entre o agente de cuidados e o bebê. O bebê retribui os cuidados recebidos com suas manifestações de satisfação e gratidão, expressas através de seus gestos, olhares e sua mímica e a agente cuidadora gratificada experimenta o "prazer de ser testemunha do processo cotidiano do bebê que cuida, de seu interesse pelo entorno que ela lhe organiza com cuidado e do afeto que ele oferece durante o tempo que ela pode lhe dedicar" (VINCZE, 2003, p. 180).
Podemos considerar o lugar de reconhecimento subjetivo do bebê dado pelo agente de cuidados diante das conquistas dos bebês em direção à autonomia e à integração uma verdadeira fonte de investimento para o trabalho e a dedicação aos bebês. Assim, ao manter o foco na perspectiva ética de seu trabalho com o bebê, sem deixar de lado a dimensão sensorial e analógica da relação, o agente de cuidados pode garantir a qualidade do cuidado oferecido a ele.
As interações que sustentam a relação entre o agente cuidador e o bebê têm como base o cuidado. Ao contrário da relação mãe/bebê, o cuidado está no princípio do que a autora chama de "cadeia interativa" e é a base da relação. A relação agente cuidador/bebê, segundo Myriam David, resulta da qualidade do cuidado e seguramente será movida de maneira circular reciprocamente (VINCZE, 2003).
Se considerarmos a discussão de M. David e J. Falk sobre as interações entre o agente cuidador e o bebê, o cuidado torna-se o elemento primordial para uma relação de qualidade. Este cuidado do profissional com o bebê não é construído a partir de um investimento narcísico parental, mas sim sobre uma base do "cuidar" e, por isso, deve haver um olhar voltado especialmente para garantir a qualidade do cuidado. Se a base da relação é o cuidado, então o cuidado deve ser interpretado pelos profissionais como o eixo principal da relação e posto acima de questões pessoais que possam prejudicar tal relação.
Um relato de experiência
Uma pesquisa qualitativa realizada por um grupo de pesquisadores, em uma instituição de cuidados à primeira infância, ilustra as reflexões sobre os eixos do cuidado no trabalho com bebês. O objetivo da pesquisa foi analisar a qualidade do cuidado profissional oferecido aos bebês entre 6 a 24 meses em ambiente de abrigo e creche, tendo como inspiração metodológica o método Esther Bick. A observação do processo de construção narrativa dos bebês e a participação efetiva dos pesquisadores nos primórdios da vida psíquica estão no centro deste trabalho de pesquisa. A intervenção efetiva foi o resultado de um período de observação, no qual foi possível mapear e identificar alguns pontos da relação de cuidado.
A insatisfação com o cuidado mostrou-se um ponto em comum entre os pesquisadores e a instituição. Cada pesquisador frequentava o berçário uma vez por semana, sendo que os dias da semana eram preenchidos, de preferência, por duplas de pesquisadores, tornando possível observar a continuidade no desenvolvimento dos bebês através dos relatórios de visita. A presença dos pesquisadores era significativa e implicada nos cuidados aos bebês. Através de reuniões semanais de discussão em grupo, os pesquisadores refletiam sobre suas observações e o desenvolvimento de cada bebê. Buscavam compreender alguns padrões de comportamento e discutir alternativas para favorecer a construção subjetiva dos bebês a partir do cuidado oferecido pela instituição.
As observações serviram para analisar a qualidade do cuidado e seus efeitos nos próprios bebês, possibilitando identificar os momentos e os indicadores de maior necessidade de atuação. O olhar dos pesquisadores, portanto, se deu em dois tempos: em um primeiro, a observação participante do cuidado aos bebês permitiu identificar as sutilezas envolvidas na relação entre bebê e agente de cuidados possibilitando, assim, em um segundo momento, a ação do pesquisador com o objetivo de prevenir os sinais de sofrimento e, caso necessário, intervir a tempo para evitar a cristalização do sofrimento dos bebês.
Observação participante
A metodologia de trabalho dos pesquisadores foi a observação participante, inspirada no método Esther Bick (1964), com uma diferença significativa, que compreende o trabalho com bebês em um ambiente institucional. Este método é um instrumento de investigação da relação mãe/bebê que contribui no trabalho clínico com crianças pequenas e ajuda o observador a lidar com a contratransferência. Durante a observação é fundamental que o observador sinta-se suficientemente incluído no seio da família para experimentar impacto emocional, sem ser obrigado a aconselhar ou desaprovar qualquer coisa. No entanto, deve mostrar-se útil em determinadas ocasiões. Por isso, Bick chama o observador de participante. No método descrito pela autora, o observador deve influenciar o mínimo possível o meio, evitando distorcê-lo, e apresentar uma postura neutra, mesmo no caso do impacto emocional ser imenso. É preciso deixar passar certas coisas e resistir a outras.
Durante a pesquisa, houve a necessidade de observar para perceber ao máximo os aspectos característicos da relação interpessoal estabelecida entre os bebês e as profissionais no ambiente de cuidados. Além de observar, era preciso participar no cuidado e nas brincadeiras com os bebês. Diferentemente do método proposto por Bick, onde o observador não deve se envolver ativamente na observação, no objetivo deste trabalho de pesquisa havia a possibilidade de uma transformação na relação entre o profissional da creche e o bebê, a partir das observações e intervenções dos pesquisadores.
Inicialmente, nossa postura era sensível e empática, sem questionar ou modificar a postura das educadoras diante dos bebês. Houve, rapidamente, um envolvimento das pesquisadoras com os bebês do berçário: nós nos sentíamos incluídas nas relações de cuidados e agíamos a partir de experiências lúdicas e acolhedoras. Inserimos no cotidiano do berçário algumas brincadeiras e músicas infantis, resgatando o prazer de se relacionar.
A relação dos pesquisadores com os bebês foi o ponto de partida para uma possível transformação nos padrões de relacionamento do berçário. As agentes de cuidados da instituição puderam observar, de perto e com continuidade, novas formas de interagir e cuidar dos bebês. Os eventos eram narrados e antecipados aos bebês para criar uma relação entre ação e palavra, valorizando a narrativa e o tom de voz do adulto. Dar um contorno e um sentido às experiências dos bebês foi inicialmente a forma de trabalho mais utilizada pelos pesquisadores.
As observações mostraram aos pesquisadores momentos em que a falta de comunicação era evidente e implicava na intervenção do observador, sempre em direção ao bebê, garantindo a continência, a partir de elementos sensoriais presentes na voz e no toque do adulto. O seguinte fragmento ilustra uma forma de relacionamento entre o agente de cuidado e o bebê em que é possível analisar os dois tempos do olhar do pesquisador.
A participação do observador parte de uma situação na qual a comunicação de um bebê de 14 meses não atingiu a agente de cuidados e provocou uma manifestação excessiva de angústia, que poderia ter sido evitada. O bebê inicia um choro depois de uma leve frustração. O choro aumenta gradativamente e o bebê começa a se debater com o corpo no chão. Perto dele encontra-se uma profissional, interagindo com outro bebê e parece não se afetar com relação ao que acontece, com aquele que chora muito. Depois de esperar e observar a cena, o pesquisador se aproxima do bebê, que se debate e chora com mais intensidade e começa a falar com ele perto de seu ouvido. O bebê não se acalma e é necessário pegá-lo no colo, continuar falando e cantando para acolher seu choro e dar um contorno físico à angústia que sente. Aos poucos, o bebê se acalma.
A profissional presenciou a relação do pesquisador com o bebê e a forma de cuidado utilizada para lidar com seu choro, que é a comunicação primordial dos bebês. Assim iniciamos nossa intervenção de maneira silenciosa, sem explicar ou descrever às profissionais o que estava sendo feito com os bebês. Elas apenas observavam nossas atuações e, aos poucos, se envolviam com as novas formas de cuidado introduzidas no berçário.
O encontro do adulto com o bebê descreve um espaço interativo absolutamente específico, o que Golse (2003) nos apresenta como um "espaço de narração", pois segundo o autor, a narratividade pressupõe um processo gradual de construção da subjetividade, no qual o bebê constrói suas próprias experiências junto com o adulto. Observamos o pesquisador na cena descrita anteriormente aproximar-se do bebê e construir junto com ele uma experiência integradora. A aproximação entre o bebê e o pesquisador nos remete às experiências compartilhadas características da narratividade, enriquecidas de elementos sensoriais que envolvem a relação de cuidado. A qualidade da presença do pesquisador exerceu uma função de continência e verbalização, favorecendo a transformação (GOLSE, 2003) do choro em uma experiência de mutualidade.
A intervenção se dá espontaneamente, sem um planejamento prévio, o que representa a importância de se atuar no presente para favorecer a formação de um sentido que permita a construção narrativa. Os elementos de trabalho surgem conforme as observações diárias dos bebês e conduzem a participação significativa do pesquisador no ambiente de cuidados.
O trabalho no presente
O momento presente é um conceito desenvolvido por Stern (2004) para abordar a experiência no momento em que ela está sendo vivida e descrever os aspectos das experiências subjetivas, especialmente aquelas que provocam mudanças na psicoterapia e nos relacionamentos pessoais da vida cotidiana.
Segundo Stern (2004), os sujeitos humanos se constituem a partir de unidades básicas de momentos presentes, como uma espécie de história vivida, que acontece, é não verbal e não precisa ser posta em palavras. Ela é de curtíssima duração e feita principalmente de sentimentos que se desdobram, em uma espécie de narrativa emocional não contada. O formato narrativo do momento presente é uma estrutura para organizar mentalmente, sem linguagem, as experiências com comportamento humano motivado. Uma história contada, ou seja, uma narrativa. É a narração a alguém sobre a história vivida. Existe um percurso para se chegar à narrativa verbal, onde a criança é capaz de utilizar a linguagem para contar suas histórias vividas, transformando-as em histórias contadas.
Durante a pesquisa, privilegiamos o momento presente nas interações com os bebês, já que não tínhamos acesso às suas famílias, que poderiam nos relatar sua história inicial. No entanto, tendo como eixo de reflexão a noção de que o bebê narra corporalmente a sua vivência e seus encontros com o ambiente afetivo que o circunda (ZORNIG, 2008), pudemos identificar a comunicação não verbal do bebê e dar um sentido à sua comunicação ou ao seu mal-estar. A sintonia afetiva entre agentes de cuidado e os bebês, assim como as experiências compartilhadas entre bebês e adultos, tornaram-se cada vez mais frequentes no cotidiano dos cuidados no berçário.
O momento presente como uma história vivida também pode ser compartilhado. Quando isso acontece, a intersubjetividade começa a ganhar corpo. No momento em que alguém pode participar da história vivida de outra pessoa, ou pode criar uma história mutuamente vivida com eles, um tipo diferente de contato humano é criado. Houve mais do que uma troca de informações. Este é o segredo do aqui e agora (STERN, 2004: 80).
A importância da continuidade no processo de intervenção tornou-se clara conforme a postura das agentes de cuidados começou a se transformar e a ganhar mais qualidade. Com o passar do tempo e a constância do trabalho dos pesquisadores, observamos que as cuidadoras interessavam-se cada vez mais por este trabalho e esta forma de relação, mostrando um movimento de aproximação em direção aos pesquisadores. Elementos relacionados à vida pessoal de cada uma começaram a surgir nas conversas e um interesse maior em falar sobre o desenvolvimento de cada bebê iniciou gradualmente a construção de uma nova visão de bebê, onde a subjetividade ganhou cada vez mais espaço.
Alguns elementos do instrumental clínico
Diante das questões relacionadas à precária comunicação entre agentes de cuidados e bebê, surgiu a ideia da realização de um grupo, com frequência quinzenal, que possibilitasse uma troca intersubjetiva entre pesquisadores e agentes de cuidados. A proposta de ser um espaço com o objetivo de acolher as questões das profissionais em relação ao trabalho e apresentar algumas informações sobre o psiquismo do bebê e a influência do ambiente foi recebida pelas profissionais, inicialmente, com muita timidez. Com o tempo, o interesse foi crescendo ao perceberem que o trabalho em grupo tinha por objetivo ressaltar a importância de sua função profissional de cuidado, assim como oferecer um suporte às suas angústias, um espaço de troca e circulação de palavras. O enfoque sobre seu trabalho individual e de equipe, assim como as referências à construção da subjetividade dos bebês deixou claro que o objetivo não seria julgar ou criticar seu trabalho na instituição.
Questionamentos, conflitos e comportamentos foram colocados em discussão e provocaram uma reorganização na forma de pensar os bebês. Observamos a construção gradual de uma nova forma de relação, baseada na importância da qualidade do momento presente para o desenvolvimento saudável dos bebês, onde aspectos relacionados à vida pessoal de cada uma das agentes de cuidados foram trazidos para o grupo, valorizando a história de vida de cada uma e as articulando ao trabalho com os bebês. Aos poucos, as agentes de cuidado começaram a participar mais e o espaço de narração transformou- -se em um espaço de elaboração e historização com grande relevância clínica.
Algumas mudanças fundamentais para a relação de qualidade entre agente de cuidados e bebê tornaram-se mais frequentes conforme o processo se desenrolava. Observamos no grupo algo similar ao processo terapêutico, conforme proposto por Stern (2004), que é caracterizado pelo termo "seguir adiante", ou seja, em grande parte, um processo espontâneo e localmente imprevisível. O seguir adiante está intimamente relacionado ao tempo e suas unidades têm duração de alguns segundos, que se reúnem e se organizam em unidades mais abrangentes. Esta noção indica uma aproximação entre o seguir adiante e a continuidade no desenvolvimento, que também acontece à medida que o processo se desdobra. Stern considera que o que impulsiona o seguir adiante é a necessidade de estabelecer um contato intersubjetivo e descreve este contato como um processo com diferentes "motivos intersubjetivos" (p. 177).
O primeiro motivo intersubjetivo do processo clínico se refere a sondar o outro, verificar e orientar o campo intersubjetivo. Este motivo, considerado por Stern (2004) uma precondição do trabalho em conjunto, envolve o exame momento a momento de onde está e para onde se dirige o relacionamento entre paciente e terapeuta. O segundo motivo intersubjetivo descrito por Stern (2004) é compartilhar a experiência. Este motivo implica o desejo de aumentar constantemente o campo intersubjetivo. Toda vez que este campo é aumentado, o relacionamento é implicitamente alterado. Isso significa que o paciente está experimentando um novo modo de "estar com o terapeuta" e com os outros, representando uma mudança implícita.
Não é preciso que ela se torne explícita e que se fale dela. Ela se torna parte do saber relacional implícito do paciente. Outra consequência é que sempre que o campo intersubjetivo é ampliado, abrem-se novos caminhos para a exploração explícita (STERN, 2004: 178).
O terceiro motivo intersubjetivo é definir e redefinir o próprio self, usando o self refletido nos olhos do outro. Segundo Stern, a identidade é remodelada ou consolidada nesse processo.
Na pesquisa relatada, a aproximação e o posicionamento intersubjetivo aconteceram desde o início da experiência no berçário. O movimento, caracterizado pela observação e participação na relação com os bebês, permitiu às cuidadoras uma aproximação lenta, o que nos remete ao primeiro movimento intersubjetivo que impulsiona o processo clínico. Iniciamos nosso trabalho de observação participante da relação de cuidado e, conforme construíamos uma relação afetiva com os bebês do setor, percebemos que não só os bebês, mas também as profissionais da equipe estavam sentindo os efeitos da presença dos pesquisadores no berçário. A identificação com as agentes de cuidado possibilitou uma perspectiva diferente para os pesquisadores e se mostrou fundamental para a análise dos eixos do cuidado.
Assim como no processo terapêutico, a aproximação se deu gradualmente ao longo dos sucessivos encontros do grupo. Não existia a proposta de um atendimento individual, o trabalho era feito com a equipe de cuidados. Nossa reflexão sobre o cuidado teve como perspectiva uma base clínica, proposta de forma ampliada por se tratar de um grupo de reflexão em um contexto institucional. Nesta perspectiva, o enfoque foi o trabalho das agentes de cuidados e os elementos do instrumental clínico serviram para afinar a sensibilidade dos pesquisadores e contribuir para as observações e intervenções. Aos poucos, pudemos construir o espaço de reflexão sobre o trabalho e de construção narrativa nos primórdios da vida psíquica através de uma percepção mais global das relações de cuidado.
Um exemplo da aproximação das profissionais da equipe de pesquisa foi percebido nas reuniões, enquanto discutíamos a importância da fala do adulto para dar sentido à experiência do bebê. Uma cuidadora mostrou insatisfação em isolar um bebê no berço depois de alguma mordida, enquanto com outro ela se esforçava e tentava transformar o conflito. Segundo ela, um bebê mais velho seria capaz de entender o motivo do isolamento, mesmo sem explicar- -lhe o porquê deste comportamento. Seu questionamento era em relação à sua postura de não utilizar as palavras para dar sentido à sua atitude. Ela queria saber se era errado ou certo adotar este padrão de relacionamento e insistia em enquadrar sua atitude. Diante desta perspectiva, questionamo-nos se havia conduta certa ou errada, pois se ela fazia desta forma era porque seu trabalho assim lhe exigia. No entanto, o bebê não compreende o que está sendo feito sem haver a fala e o investimento do adulto que lhe dá um sentido e o coloca em um contexto. Se o trabalho exige que o bebê permaneça em seu berço, é importante que o profissional lhe explique o motivo de sua ação. Um exemplo de investimento seria conversar com ele, colocar palavras em seu gesto.
Outros questionamentos surgiam a partir de algumas observações da pesquisadora em relação à postura das profissionais, por exemplo, no caso de um bebê com dificuldade de adaptação e insegurança na relação com as agentes de cuidados. A pesquisadora observou, logo antes do encontro, uma cena que lhe chamou a atenção. O bebê estava sentado ao lado da cuidadora e parecia confortável, explorando os brinquedos. Então ela se levantou rapidamente para pegar algo. Mas, sem perceber a importância de sua presença, e sabendo que iria voltar à posição inicial ao seu lado, o fez sem falar nada ao bebê. Imediatamente, ele começou a chorar. Foi colocado em discussão o quanto a presença dela estava sendo asseguradora para o bebê e o quanto ela não percebeu isto. Talvez com algumas palavras ou um olhar este choro pudesse ter sido evitado. Discutimos alguns aspectos que poderiam dar mais qualidade à sua interação com os bebês e como o exemplo deixava clara a importância atribuída, pelo bebê, à presença da profissional.
Este exemplo aponta para a importância de investir pulsionalmente a função profissional do cuidado na primeira infância, pois, muitas vezes, as agentes de cuidado se sentem identificadas com o lugar do bebê: desamparadas em seu trabalho, sem conseguir ligar os sentimentos de ambivalência que o bebê lhes provoca e, muitas vezes, sem entender a sutileza e o impacto de seu ato profissional no processo de subjetivação na primeira infância.
Cuidar de quem cuida
A tarefa de cuidar de bebês demanda um preparo emocional diário e o cuidado de si é fundamental para um trabalho de qualidade. No entanto, como indica Winnicott, este cuidado não se refere a um aprendizado apenas e sim à capacidade do adulto de investir-se narcisicamente para poder ter disponibilidade afetiva para o bebê.
Deve-se notar que mães que tem em si prover cuidado suficientemente bom podem ser habilitadas a fazer melhor cuidando de si mesmas, de um modo que reconhece a natureza essencial de sua tarefa. As mães que não tem essa tendência de prover cuidado suficientemente bom não podem ser tornadas suficientemente boas pela simples instrução (WINNICOTT, 1960: 48).
A importância de cuidar de quem cuida para garantir a qualidade do cuidado foi o eixo principal de nosso trabalho de pesquisa e dos objetivos da experiência com as agentes de cuidado. A ênfase no cuidar de si serviu de base para a construção deste espaço de narratividade entre pesquisadores e profissionais do cuidado e garantiu uma escuta voltada para a subjetividade do adulto na relação com os bebês. Assim, conduzimos o trabalho de intervenção através de uma aproximação ainda maior entre os membros da equipe do berçário, o que permitiu a elaboração das funções do agente cuidador diante dos bebês. Mais ainda, este espaço de fala possibilitou que esta elaboração fosse feita a partir de fatos de sua experiência prática.
A construção narrativa entre pesquisadores, agentes de cuidados e bebês sofreu transformações com o início do grupo de reflexão com as profissionais, pois a abertura de um espaço de fala permitiu uma maior integração do trabalho, além da elaboração de diversas questões que atrapalhavam o encontro das cuidadoras com os bebês e vice-versa. Através de reflexões e esclarecimentos acerca dos processos de desenvolvimento dos bebês e de suas próprias posturas, foi possível construir em conjunto um sentido para seu trabalho diário. Essa co-construção – elemento essencial na narratividade – favoreceu o trabalho das profissionais e enriqueceu suas experiências com os bebês. No entanto, apesar das mudanças significativas no cuidado com os bebês, reconhecemos que a presença dos pesquisadores possibilitou um investimento da função profissional que precisaria ser mantido na vida institucional para propiciar uma continuidade de cuidados entre a instituição e seus agentes de cuidado e entre os agentes de cuidado e os bebês e suas famílias.
A "experiência da medida", apresentada por Figueiredo (2009), descreve bem o trabalho com as cuidadoras e também com os bebês, pois indica a necessidade de se prestar atenção e responder na medida, quando e se for pertinente. Esta medida comporta um potencial ético que foi construído em conjunto entre as pesquisadoras e as agentes de cuidados, com o objetivo de encontrar um equilíbrio dinâmico na relação com os bebês. O reconhecimento preciso do outro, no que ele tem de próprio, se refere ao potencial ético do trabalho e está em jogo em todos os aspectos da intervenção.
As modalidades de cuidado são construídas em conjunto e afetam a todos os envolvidos na intervenção. Como indicamos neste trabalho, a sustentação e a continência são fundamentais, pois os eixos do cuidado envolvem diferentes aspectos, dentre os quais o equilíbrio dinâmico entre presença implicada e presença reservada tem um papel fundamental. O manejo durante as reuniões com as cuidadoras deixa claro o quanto é importante manter-se também em reserva, caso contrário o espaço de narração se desfaz e se transforma em simples instrução, o que não leva aos mesmos resultados.
O desafio em um trabalho de pesquisa qualitativa é de analisar se este trabalho produz efeitos e quais são os limites de sua intervenção, na medida em que nos deparamos com as potencialidades da pesquisa-ação, mas também com os limites de sua intervenção. Figueiredo demonstra bem esta ideia, a partir da consideração de que são inegáveis os malefícios da implicação pura, como seria no caso de uma simples instrução sobre a melhor forma de cuidado.
Para que se dê o equilíbrio dinâmico entre os três eixos dos cuidados, e, mais ainda, para que este equilíbrio ocorra de modo espontâneo, é necessário que o agente cuidador possa moderar seus afazeres. Esta moderação depende da capacidade de o agente de cuidados conseguir manter-se em reserva e desapegar- se. Nesta condição, ele 'deixa ser' seu 'objeto' e o não cuidar converte-se em uma maneira muito sutil e eficaz de cuidado (FIGUEIREDO, 2009: 141).
Esta indicação nos parece fundamental, pois aponta para a necessidade de o profissional, assim como o pesquisador, renunciar a sua própria onipotência e aceitar que a reserva possibilita a abertura de um espaço potencial de reflexão sobre os impasses e dificuldades da função de cuidar, e também de sua possibilidade criativa
Referências
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Endereço para correspondência:
Tami Reis Gabeira
e-mail: gabeira.tami@gmail.com
Silvia Abu-Jamra Zornig
e-mail: silvia.zornig@terra.com.br
Tramitação: Recebido em 24/03/2013
Aprovado em 21/08/2013
* Psicóloga, mestre Psicologia Clínica/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, profa. pré-escola Tabladinho Educação Infantil
** Psicóloga, psicanalista/Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, membro fundador da Associação Brasileira de Estudos sobre o Bebê, membro Associação Universitária Brasileira de Psicopatologia Fundamental, ção em Psicologia Clínica com Crianças/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.