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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

versão impressa ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. v.28 n.1 São Paulo jun. 2008

 

TEORIAS, PESQUISAS E ESTUDOS DE CASOS

 

Análise fenômeno-estrutural e o estudo de casos

 

Phenomenological structural approach and case studies

 

 

Andrés Eduardo Aguirre AntúnezI, 1; Jacqueline SantoantonioII, 2

I Universidade de São Paulo
II Universidade Federal de São Paulo

 

 


RESUMO

O método fenômeno-estrutural tem suas origens em Eugène Minkowski e dirigese à análise dos dados imediatos da consciência, temporalidade vivida e do dinamismo do contato com a realidade. Françoise Minkowska inicia a análise da linguagem no método de Rorschach em casos com epilepsia e esquizofrenia. Zéna Helman ampliou tal análise a outras avaliações psicológicas e quadros psicopatológicos. Apresenta-se breve histórico dos fundamentos daquele método e uma análise do psicodiagnóstico de um caso com transtorno de personalidade borderline. Aplica-se o método de Rorschach, o Teste de Apercepção Temática – TAT e a Escala de Inteligência Wechsler – WAIS-III. O Rorschach revela o predomínio da estrutura sensorial de personalidade, elementos de oposição e contradição, qualidades mórbidas, desvitalização da percepção humana e dificuldade em perceber aspectos da realidade. O TAT indica preocupação e medo do outro, tom melancólico, tristeza, solidão e sentimentos do vazio. O WAIS III mostra melhor desempenho na área de execução e quociente de inteligência na média superior. A análise fenômeno-estrutural contribui para a compreensão da linguagem e da expressão tal qual se manifesta nessas provas, revelando como a paciente pode sentir e expressar os problemas que a afetam em suas características perceptivas, imaginativas e cognitivas.

Palavras-chave: Psicopatologia fenômeno-estrutural, Rorschach, TAT, WAIS-III, Transtorno de personalidade borderline, Psicodiagnóstico.


ABSTRACT

The phenomenological structural method originated by Eugène Minkowski, applies for the analysis of the immediate data of conscience and experienced temporality by human suffering. Françoise Minkowska approached the essential mechanisms of language through Rorschach method examination and Zéna Helman extended such analysis to other evaluations. A brief historical background on the principles of this method and a case of borderline personality disorder are presented. The Rorschach method, Thematic Apperception Test and Wechsler Adult Intelligence Scale are applied. The Rorschach shows the predominance of the sensorial structure of personality, elements of opposition and contradiction, morbid and decomposing qualities, unvitality of human perception and difficulties in perceiving aspects of reality. The TAT indicates concern and fear of the presence of other people, melancholic tone with lack of vitality, sadness, solitude and feeling of emptiness. The WAIS-III shows a better performance in the motor area and Intelligence Quotient at high average. The phenomenological structural analysis contributes to the study of cases by enhancing the understanding of language and expression as revealed by these tests, showing how the patients may feel and transcribe problems which affect them in their perceptive, imaginative and cognitive characteristics.

Keywords: Psychopathology phenomeno-structural, Rorschach, TAT, WAIS-III, Borderline personality disorder, Psychodiagnostic.


 

 

1. Introdução: os fundamentos

A compreensão intuitiva e profunda de estudos de casos individuais já tinha sido citada por Jaspers (1979) em sua obra sobre psicopatologia. Ele afirmava que “muitas vezes o aprofundamento penetrante num caso particular ensina fenomenologicamente o que é geral para inúmeros casos. O que se apreendeu de uma vez encontra-se na maioria das vezes logo a seguir. Na fenomenologia, importa menos se acumularem casos sem fim do que a visão interna, o mais possível completa, de casos articulares” (p.72). O autor ainda colocou que “o importante na fenomenologia é, portanto, exercer a visão pregnante do que é vivido diretamente pelo doente a fim de poder reconhecer o que há de idêntico dentro da multiplicidade. É necessário assimilar inteiramente, por meio de exemplos concretos, um rico material fenomenológico. Assim, ele confere-nos critério e orientação em novos casos” (p.73). O que importa na fenomenologia é menos o estudo de inumeráveis casos, mas a compreensão intuitiva e profunda de alguns casos particulares (Barthélémy, 2006). A atitude fenomenológica fornece um valor especial ao caso típico. Ela ultrapassa o plano de observação e tende à visão das características essenciais dos fenômenos que compõem a vida em sua essência. De acordo com Helman (1991) neste enfoque, um caso pode ser suficiente para elucidar o modo de ser do outro. Assim, a fenomenologia convida-nos a determo-nos sobre os fenômenos a fim de precisar seus caracteres fundamentais.

 

2. Tempo vivido e psicopatologia: Eugène Minkowski

Minkowski (1970) valorizava o contato direto com o doente como foco de suas investigações. Para o autor, o contato pessoal é indispensável em sua perspectiva humanista, porque é ele que revela a presença da essência do outro. Como exemplo, cita o caso de um paciente alienado do convívio social como sendo excluído da comunidade na qual vivia.

O relato de Minkowski (1970) é considerado o precursor da análise fenomenológica no campo psicopatológico. Relatou, na 63ª Assembléia da Sociedade Psiquiátrica Suíça, o atendimento a um paciente diagnosticado com esquizofrenia e melancolia. Ele conviveu dois meses, dia e noite, com um senhor de 66 anos. Momentos difíceis de suportar, nos quais reconhecia a impossibilidade de ser médico durante vinte e quatro horas por dia. Esta relação terapêutica abriu caminho à análise fenômeno-estrutural, descrita no Tratado de Psicopatologia por ele elaborado e que condensa a maior parte de sua obra (Minkowski, 1999).

Neste ensaio, Minkowski (1970) detecta o desacordo de duas melodias humanas – a do terapeuta e do paciente - que se confrontam a maior parte do tempo e apresentam a estrutura do tempo vivido em cada um deles. No paciente, o tempo fragmenta-se e ele perde a ressonância no contato com o outro, sua vida perde colorido. O devir do paciente está barrado por suas idéias delirantes. O passado imobiliza-o pelas idéias de culpa, o tempo presente aparece sob a forma de idéias indignas de ruína. Em nós terapeutas – afirmava Minkowski – o devir está em aberto. Para ele o paciente ou o outro é compreendido como um ser diferente e semelhante e não um doente (Minkowski, 1995).

Minkowski (1965) elaborou uma compreensão psicopatológica própria eoriginal. Seus principais interlocutores foram o fenomenólogo Husserl, o filósofo Henri Bergson e o psicopatologista Karl Jaspers. Para o especialista, o sofrimento coloca-nos em presença do destino humano, atravessa-nos e aproxima-nos do vivido. O sofrimento humano, a solidariedade inter-humana, o movimento de simpatia no olhar ou num simples aperto de mão, o compartilhar com alguém são movimentos espontâneos, que estão nas raízes da vida afetiva.

Em período anterior, Minkowski (1953) revelou a perda do contato vital com a realidade em pacientes esquizofrênicos, o racionalismo mórbido, o pensamento matemático ou espacial, a lógica coisificada e trouxe uma nova compreensão da esquizofrenia, diferente daquela que privilegia as alterações do pensamento de seu mestre Bleuler. A partir do ímpeto vital de Bergson, ele afirmou que o fundo do processo esquizofrênico é a perda do contato vital com a realidade, a perda do contato dinâmico com a vida e com tudo aquilo que proporciona uma condição viva à relação do sujeito com os demais.

A necessidade de compreensão humana é grande dizia Minkowski (1999) e por meio da fenomenologia buscava penetrar em mundos fechados ou ao menos saber os motivos de sua inacessibilidade. Com esforço de compenetração e compreensão, a afetividade ou sua deficiência pode ser apreciada, não em sua origem ou causa, mas como parte da existência humana. Há indivíduos que vibram em uníssono com o ambiente e mostram afetividade e sintonia, outros são racionais, distantes e mais frios, nos quais os fatores intelectuais e racionais reinam. Um tipo racional não é superior a um tipo sensorial, mas cada tipo tem seus recursos e suas fraquezas próprios (Minkowski, 1965).

Há um princípio de duplo aspecto no método fenomenológico, que é indireto, já que ocorre em dois tempos, o antes e o depois correm paralelamente. Os fenômenos constitutivos da vida determinam a forma, tal como a do sofrimento moral, das idéias delirantes de culpa, de ruína, de indignidade e de morte brutal. Todo sentido da vida está ligado ao tempo e ao espaço vividos (Minkowski, 1999).

Um conceito fundamental na fenomenologia é a noção de compensação fenomenológica (Minkowski, 1965 e 1999), fator positivo e de equilíbrio. Quando há uma falha, ocorre uma descompensação na personalidade. Todo ser compensa uma dificuldade que se impõe. Por exemplo, a deficiência do fator intuitivo-afetivo pode ser compensada em parte pela inteligência. Um homem pode refugiar-se em seu mundo imaginário, em seus castelos, em detrimento de um contato mais próximo com a realidade, de modo que o mundo imaginário substitui o real. Uma ruptura produz-se e surgem mecanismos de compensação frente a sentimentos de inferioridade.

O importante papel da linguagem reside como sistema de referência, chamado a revelar os caracteres essenciais de ordem formal da vida humana, suas manifestações normais e patológicas (Minkowski, 1952). É então observada a fenomenologia da linguagem em sua função expressiva, a qualidade do espaço e do tempo vivido pelos pacientes, sua capacidade de empatia e ressonância no encontro com os outros.

Minkowski participou, no verão de 1940, na França, de todas as sessões sobre o método das manchas de tinta de Hermann Rorschach coordenadas por Françoise Minkowska, sua esposa. A prova de Rorschach era utilizada como meio de advertir a presença no mundo material da vivência do doente e seu modo de compreender as realidades objetivas (Follin, 1997). Para Minkowski (1952) tanto Françoise Minkowska como Hermann Rorschach seguiam o mesmo caminho: o estudo do mundo das formas.

Em nosso país, alguns autores têm feito referências à obra de Minkowski. Queluz (1989) abordou a expressão verbal de vinte crianças da pré-escola em uma abordagem fenomenológica, na qual se ancora no trabalho da vivência temporal daquele autor. A partir da vertente da Psicopatologia Fundamental, Pereira (2000) afirma que Minkowski “buscou constituir uma psicopatologia nãoespeculativa. Baseada numa rigorosa abordagem fenomenológica da experiência clínica e numa postura ético-científica resolutamente humanista” (p.155). Na perspectiva fenomenológico-existencial, Forghieri (2004 e 2007) tem citado a obra de Minkowski frente à necessidade de alternar a racionalidade com a vivência imediata e pré-reflexiva e o livro Le temps vécu tem influenciado, em parte, seu trabalho sobre aconselhamento terapêutico.

Silva Neto (2004) investiga pormenorizadamente a história do desenvolvimento dos conceitos da psicopatologia por Minkowski, das práticas de psicoterapia e da clínica psiquiátrica do século vinte. Nos últimos dez anos, na França, com o surgimento de novas edições de todos os livros de Minkowski e novas coletâneas de seus artigos raros, o interesse por seu pensamento foi renovado. O autor afirma que nenhum de seus livros jamais foi traduzido no Brasil e que a obra de Minkowski oferece uma sólida base para uma psicologia a ser desenvolvida no século XXI.

 

3. O estilo e os mecanismos essenciais: Françoise Minkowska

A primeira publicação de que se tem notícia em nosso país sobre esta autora é a de Villemor Amaral (1953). Nesse artigo, ele apresenta de modo muito vivo a vida e a obra de Minkowska, como a conheceu e seu contato com ela.

Minkowska (2007) apresentou uma análise da pintura de Van Gogh em uma perspectiva fenomenológica no primeiro congresso mundial de psiquiatria realizado em Paris na década de 50. Ela observara seu traçado, os movimentos, o uso do espaço, o mecanismo de ligação, a espiritualidade e as relações com a psicopatologia da epilepsia.

Como comentado anteriormente, a esquizofrenia é marcada pela perda do contato vital com a realidade e pela dissociação, onde tudo se fragmenta (Minkowski, 1953). Já no paciente epiléptico, observava Minkowska (1978), surge a viscosidade: nele tudo se acumula, condensa, concentra e aglutina-se. É desse modo que Minkowska descreve suas experiências nas quais une a análise fenômeno-estrutural de Minkowski à vivência por meio do Rorschach em seus estudos genealógicos da epilepsia. Ao estudar as famílias de pacientes epiléticos, constatou que tal viscosidade também era observada em seis gerações anteriores e nos outros integrantes que não apresentavam as crises epiléticas.

Estudando a genealogia de pacientes epiléticos, Minkowska (1978) observou que os pacientes que apresentavam características mais sensoriais viviam no concreto, viam o mundo em movimento e em imagens, enquanto ao contrário, os que possuíam características mais racionais, preferiam o abstrato, o imóvel.

Minkowska (1978) debruçou-se num estudo da linguagem que Hermann Rorschach não pôde fazer em sua obra intitulada Psicodiagnóstico, dada sua morte prematura, mas deixou as bases para tal a partir da codificação das respostas. Ela não adotou a tipologia de Hermann Rorschach fundada sobre o predomínio das respostas cinestésicas ou das cores, pois do ponto de vista fenomenológico este tipo de vivência introversiva ou extratensiva não aparecia nos epiléticos, o que era incompreensível para o próprio criador da prova (Rorschach, 1967). Não era possível conceber ao tipo introversivo ou extratensivo uma imagem precisa, ao contrário do que acontecia com um tipo racional esquizofrênico ou um tipo sensorial epilético. A ressonância íntima, segundo Minkowski (1952), é uma tradução insuficiente e deixa de lado o vivido sobre o qual Hermann Rorschach apontava ao usar a palavra alemã Erlebnistypus.

Minkowska estudou o método de Rorschach do ponto de vista clínico, não como um teste e valorizou o vivido na linguagem e no comportamento. Ela investigou os protocolos de Rorschach, analisando-os palavra por palavra. Muito mais que precisar um diagnóstico diferencial, fazia uma análise dos mecanismos essenciais de ligação e os de ruptura que muitas vezes conviviam mutuamente, ora enfraquecendo-se ora relacionando-se reciprocamente.

O método de Rorschach tornava-se um referencial que completava e elucidava com muita propriedade a observação clínica. O uso clínico do Rorschach e de desenhos não é explicado como testagem nesta perspectiva, mas tornam-se métodos coadjuvantes na clínica. A triagem das respostas mantém-se, como propôs Hermann Rorschach, mas Minkowska (1978) distancia-se do psicograma e das estatísticas para atribuir uma importância cada vez maior à linguagem e às expressões de base.

Segundo Minkowska (1978), diante do Rorschach, a linguagem que o sujeito apresenta-nos não é uma linguagem convencional e automatizada, mas sim espontânea e pessoal. Mais que uma mudança radical do método tradicional criado por Hermann Rorschach propõe seu desenvolvimento. Além dos recursos, as deficiências podem aparecer nos fatores estereotipados, respostas neutras e sem cor. Diferente de Rorschach (1967) que valorizava as respostas de movimento em conteúdo humano, para Minkowska o importante era a expressão da visão do mundo em movimento, característica da série epilepto-sensorial, observada em conteúdos humanos, animais ou inanimados. Vale lembrar que o próprio Hermann Rorschach surpreendeu-se com a alta quantidade de respostas de movimento em pacientes com epilepsia, deixando-o intrigado.

Verificamos na linguagem, na construção palavra por palavra, como o sujeito apresenta-nos sua visão em imagens (Helman, 1984), a sua manutenção no tempo ou desaparecimento, como aparecem os mecanismos essenciais que norteiam as observações, a saber: o mecanismo de ligação e o mecanismo de corte, dissociação, ruptura; as angústias diante do clima sensorial provocado pelas características das manchas de tinta; a sensibilidade à cor e à afetividade; o papel do movimento na visão seja humano ou animal (Helman, 1997), e as peculiares formas de estabelecer contato com o examinador (Ternoy, 1999).

De acordo com Minkowska (1978), o método de análise da linguagem traz em si a marca da expressão individual, do modo de ver e de tomar contato com o real, com os outros e consigo mesmo.

 

4. O alcance da análise fenômeno estruturala

Os estudos de Françoise Minkowska e Eugène Minkowski receberam ainda maior rigor com Helman (1980) e todo um grupo que a acompanhou e seguiu nesta escola (Helman, 1998). De acordo com Helman (1991), a observação individual tem, ela mesma, a sua própria história e afirma: “nós encontramos na prática desse método o espírito humanista de uma corrente centrada sobre a pessoa, sobre o vivido, sobre a expressão” (p.147).

Para Barthélémy (1997), entre a psiquiatria clínica e a psicanálise, encontra seu lugar a análise estrutural. Ela não se ocupa do conteúdo, mas dirige-se à forma, que pode ser apreendida em sua mobilidade e dinamismo vivo. Não se usa o conceito de inconsciente, mas encontra no consciente as forças criativas que se afirmam por elas mesmas. Não se recorre a interpretações com auxílio de simbolizações, mas na vida e na riqueza e força expressiva da linguagem humana.

Ternoy (1999) refere que o estudo da linguagem dos pacientes psicóticos abre uma via de acesso à compreensão dos fenômenos fundamentais tanto em uma dimensão expressiva como relacional. A expressão é uma relação fundamental, particularmente dinâmica e viva. É endereçada sempre a alguém e postula, nem que seja virtualmente, um espectador, um interlocutor, susceptível de apreender aquele que se expressa. Ela revela a coexistência, a troca e a interação ou a ausência delas.

A análise fenômeno-estrutural pode ser realizada em diversos campos da expressão humana. A título de exemplos, citamos estudos na música clássica (Constantin-Muller, 1980; Muller, 1998; Ternoy, S, 2004), a repetição mecânica no poeta Edgar Poe e a densidade e pormenores no poeta Hoffmann (Barthélémy, 1987), a sensorialidade dos poemas de Antonio Machado e a racionalidade em Cavafy (Yazigi, 2002).

No campo psicopatológico, há estudos sobre as rupturas e possibilidades de contato dinâmico com crianças psicóticas (Poubelle, 1997), a desestabilização do sentimento de realidade nos adolescentes drogadictos, suicidas e na saúde mental (Wawrzyniak, 1998, 2000 e 2004).

Em adultos, há investigações na cura da desintoxicação alcoólica (Barthélémy, 1987 e 1993), onde se constata um movimento do pólo sensorial ao racional na estrutura da personalidade. Em quadros psicóticos dos delirantes congoleses (Samba, 1984), a imagem não se mantém e há um racionalismo mórbido. Outro estudo focaliza o detalhismo e as imagens descontínuas de pacientes psicóticos (Ternoy, 1998), corroborados pelos mecanismos de corte dos esquizofrênicos (Amparo, 2002) em oposição das visões concretas e figuradas em pacientes com epilepsias (Helman, 1971).

Com esse meio, é possível apreciar as características esquizo-racionais em um caso de um paciente psiquiátrico (Yazigi, 2006), as imagens confusas em pacientes psiquiátricos participantes em ateliê de pintura de livre expressão (Ternoy, 1998; Santoantonio & Antúnez, 2002 e 2006), a racionalidade em um caso borderline (Villemor Amaral, 2004 b), os afetos pouco vividos e elaborados em casos com transtorno obsessivo compulsivo (Antúnez & Yazigi, 2004; Antúnez, 2006), bem como na área neurológica, verifica-se os elementos esquizóides e o aspecto dinâmico dos pacientes com Alzheimer (Viàla, 1998).

 

5. Procedimentos

Sob a óptica da análise fenômeno-estrutural do método de Rorschach, a análise da linguagem traz em si a marca da expressão individual, do modo de ver e tomar contato com o real, com os outros e consigo mesmo: é a maneira de situar-se e de inscrever-se na existência (Barthélémy, 1997).

Nesse sentido, as respostas às manchas de tinta elaboradas por Rorschach não são codificadas, quantificadas, como comumente se faz ao estudar a percepção como objeto de estudo e não são associadas a referenciais teóricos. Na análise fenômeno-estrutural, estuda-se as respostas como fruto da relação com o paciente, como um fenômeno intersubjetivo, compreendendo a interlocução que surge na relação do paciente com psicólogo.

Explicitar e revelar os fenômenos humanos a partir da ética do encontro terapêutico, aquilo que se revela na relação e na sua compreensão é o foco deste trabalho. O objetivo da fenomenologia é descrever os fenômenos como aparecem, isentos de teorias que os expliquem.

Além do método de Rorschach, Samba (1984) e Poubelle (1986) utilizaram o Teste de Apercepção Temática – TAT em suas investigações, o que nos motivou a utilizá-lo nesta perspectiva. O TAT, criado por Murray (2005) é embasado em sua teoria motivacional denominada Personologia, na qual são centrais os conceitos de necessidade e de pressão. Esta teoria considera o indivíduo naquilo que ele tem de mais próprio na sua relação consigo e com o mundo. O objetivo é estimular que cada sujeito verbalize histórias a partir de cartões com cenas de relacionamentos humanos. Usaremos tal método em uma compreensão fenomenológica das histórias relatadas, focalizando a imaginação.

Por fim, apresentaremos o rendimento de uma paciente diante da Escala de Inteligência Wechsler - WAIS-III (Wechsler, 2004) - validada e adaptada para a população brasileira por Nascimento (2000), que fornece dados sobre o quociente intelectual, quociente verbal e total. Analisamos todos os subtestes que constam do teste e enfocaremos a análise psicométrica, que lhe é própria, com algumas aproximações fenomenológicas aos componentes verbais, próximos ao pólo racional da estrutura da personalidade e os componentes de execução, relacionados ao sensorial ou motor da personalidade.

Como citado anteriormente, do ponto de vista fenomenológico-estrutural atentamos para os fenômenos essenciais da estrutura de personalidade, mecanismos de ligação e corte, espaço e tempo vividos, mecanismo de compensação fenomenológica. Yazigi (2002), baseado nos estudos de Minkowska (1978), sobre a análise fenomenológica, chama a atenção para dois estilos de funcionamento mental, o sensorial e o racional. O estilo sensorial caracteriza-se pela adesividade a tudo que tem vida, à experiência concreta, ao ambiente e à ação. O estilo racional é dominado pela abstração e pelo pensamento simbólico, isolamento e distância, imobilização e cisão, e por um contato menos vital com a realidade.

Villemor-Amaral (2004 a) afirma que, dentre os diversos sistemas de análise e interpretação do Rorschach desenvolvidos e conhecidos no Brasil, encontrase a metodologia fundamentada nos princípios da Psicopatologia Fenômenoestrutural, baseada no estudo da linguagem e da visão em imagens.

A fenomenologia dirige-se para além da perspectiva causal, mas à pesquisa dos fenômenos fundamentais. Na interação com a subjetividade do paciente explicita-se como os fenômenos operam. O interesse nesse modelo é a narrativa e a descrição, bem como a compreensão do fenômeno tal como ele emerge. Essa abordagem não visa à explicação ou o controle de variáveis, mas sim a compreensão que desvela os sentidos das experiências a partir da semântica da linguagem (Safra, 2006).

O método fenomenológico-estrutural permite uma aproximação distinta e peculiar ao sofrimento vivido, possibilitando compreensões próximas aos fenômenos tal como aparecem em cada paciente. É possível observar na livre expressão: os gestos, as necessidades, as dificuldades, as evoluções, os interesses, as ressonâncias, a empatia ou ausência dela, os mecanismos essenciais de ligação e ruptura em diversas avaliações psicológicas.

O método apóia-se na análise do fenômeno, buscando precisar suas características fundamentais na estrutura da personalidade. A importância de uma reflexão fenomenológica no campo da expressão possibilita, por meio dela, entrar em contato com o outro e então observar sua visão de mundo.

 

6. Estudo de Casos

Para ilustrar um modo de analisar-se nesta perspectiva, apresentaremos um estudo de casos. Trata-se de uma jovem de 23 anos, com escolaridade superior incompleta e que, em uma declaração médica, foi diagnosticada como personalidade borderline. Essa paciente procurou atendimento psicológico na Clínica Psicológica Durval Marcondes da Universidade de São Paulo.

Procedimentos: fez-se uma entrevista aberta e em seguida apresentouse o termo de consentimento livre e esclarecido3 para a sua assinatura, já que aceitou participar do presente estudo, o qual integra o psicodiagnóstico e intervenção psicológica em grupo. Assim, após a entrevista inicial, atendeu às seguintes avaliações psicológicas: método de Rorschach, TAT e WAIS-III.

Focalizaremos alguns dados do primeiro encontro e principalmente as respostas à Prancha I do Rorschach, por representar o primeiro contato com este exame; à Prancha 3RH do TAT, dada sua carga dramática, além de comentários gerais sobre características das respostas às outras pranchas de ambos os exames, e realizaremos a análise cognitiva tradicional do WAIS-III com algumas aproximações fenomenológicas.

 

7. Resultados e Discussão

Na entrevista aberta, a paciente buscou auxílio para compreender-se melhor. Revelou que havia sido aprovada para cursar uma graduação em determinada carreira de ciências humanas, mas tinha dúvidas quanto às suas capacidades de relacionar-se socialmente. Comentou sobre as brigas em que se envolvia e que expressava comportamentos explosivos. Ao fazer essa exposição, banhava-se em lágrimas, o que demandava sofrimento digno de nota. Ela procurava alguém e um lugar que a auxiliasse a compreender e dar sentido à sua existência. Aceitou participar desta investigação, por incluir uma determinada atividade terapêutica em grupo, como proposta de atendimento psicológico após as avaliações.

O contato direto com a paciente revelou a presença do outro (Minkowski, 1970), sem ocorrer desacordo entre a melodia expressa por ambos. A paciente abriu uma possibilidade de expressar, em sua própria linguagem, a sua vida e pudemos assim iniciar a apreciação de seu modo de ser e características de sua afetividade. O contato com ela era sensorial. Podemos inferir por sua exposição que ela vive a temporalidade com intensidade e um espaço de aprisionamento em um modo de ser que já não deseja. Como afirmava Minkowski (1952), observamos a fenomenologia da linguagem em sua função expressiva. Está preservada, nessa jovem, a capacidade de empatia e ressonância no encontro com o outro. O contato foi afetivo e revelou uma necessidade de ser reconhecida.

Rorschach – Prancha I: Interlocutor: Com o que se parece esta mancha? Paciente: “Pode ver de vários ângulos?” (sim, responde o psicólogo) v (inverte a prancha e retorna à posição original) “No primeiro momento, eu tive a sensação de uma moça dançando balé e parece também uma pessoa orando e agora um anjo, coisa assim angelical. É isso, parece uma estátua, sei lá, com dois anjos aqui no meio e dois aqui”. Análise fenômeno-estrutural: Apesar da instrução dada – “diga-me com o que se parece?” - a paciente apresenta dúvida que expressou ao interlocutor. Esta dúvida é racional: “ângulos”. Em seguida, inverteu a posição da prancha e retornou à posição inicial. Este comportamento pode ser uma atitude de investigação, exploração ou oposição. Retornou à posição inicial da prancha ( ^ ). Ao dizer “primeiro momento eu tive a sensação de...” revelou que pode ter visto outras imagens, que logo em seguida irá confirmar. Ela trouxe uma imagem em movimento ativo: “uma moça dançando balé”, para em seguida mostrar a segunda imagem em movimento mais passivo com tom espiritual: “uma pessoa orando”. Na primeira imagem definiu o sexo e o período de vida: “moça”; na segunda, tratou-a como “uma pessoa”, figura humana impessoal. A terceira imagem fora de “um anjo”, representante de um ser parahumano, reforçado por uma primeira expressão de desvitalização: “coisa angelical”, dado o uso da palavra “coisa”. Inverteu a prancha, retornou e desvitalizou a imagem de modo significativo: “parece uma estátua”. Duvidou da sua percepção da realidade, usando uma expressão de pouco caso: “sei lá”. Por meio de um mecanismo de compensação fenomenológica, finalizou a resposta à lâmina 1 com uma imagem parahumana e irreal dos “anjos”. De acordo com Minkowski (1999), a compensação fenomenológica é um fator de equilíbrio, compensa a dificuldade que se impõe quando diante do outro.

Há no protocolo como um todo o predomínio da estrutura sensorial de personalidade com abundantes imagens em movimento e mecanismos de ligação. Exemplos: Prancha II: “duas pessoas abaixadas com as mãozinhas juntas”; Prancha III: “ele tá segurando a panela”; Prancha IV: “um monstro num tronco, sentado num tronco”; Prancha VII: “duas senhoras dançando e o bumbum encostado um no outro e aqui duas mulheres dançando com o cabelo encostado um no outro”; Prancha IX (colorida): “dois bonequinhos de fogo, bebendo e dançando”. Inquérito: “dançando porque estão caídos para trás, em movimento com a cerveja na mão, na boca né, dançando e bebendo (...) monstro-sapo subindo numa árvore”; Prancha X (colorida): “dois alienígenas segurando uma espécie de lampião”, “Os cavalos marinhos têm dois bichinhos amarelinhos pendurados nas perninhas de cada um”.

Como visto, Minkowska (1978) afirmava que o tipo sensorial vive no concreto, vê o mundo em movimento, e em oposição, o racional prefere o abstrato, sólido e imóvel. Neste caso, a imagem vista em movimento também é acompanhada de elementos discordantes. Trata-se de um movimento desequilibrado, deturpado em imagens irreais e parahumanas.

Encontramos também elementos de oposição ao inverter sistematicamente as pranchas com vários comentários. Prancha II: “Ao contrário parece que as duas pessoas estão lutando”; Prancha VI: “Um urso virando de costas para o outro”. Deduzimos que se trata da aproximação da agressividade entre duas pessoas e a oposição de características de um animal forte e feroz (urso virando de costas para o outro).

Outras características são as qualidades mórbidas e em decomposição que refletem a desvitalização e dificuldades em perceber aspectos do real.

Prancha I: após expressar “Moça dançando balé”, a paciente trouxe a imagem de uma “pessoa orando”, seguida da de um “anjo” e por fim da “estátua”. A paciente desvitalizou a percepção humana e culminou com uma visão rígida e sem vida: “estátua”; Prancha III: Inquérito: “dois monstrinhos com a cabecinha abaixada, meio mórbido, sei lá”; Prancha IV: “um rosto de demônio”; Prancha VIII (colorida): “a figura toda me parece uma pessoa em decomposição, sei lá”; Prancha X (colorida): “Duas minhocas, fininhas, meio distorcidas, alienígenas”.

Os mecanismos de corte aparecem principalmente na prancha VIII, colorida, e são acompanhados por cinestesias, exemplos: “short meio rasgado”, “tá se rompendo, tem vários buracos, parece que tá consumido”. Minkowska (1978) observara os mecanismos de corte na esquizofrenia. Neste caso, tal mecanismo é revelador de uma ruptura da consistência e duração da imagem, em outras palavras, da manutenção da percepção da realidade. Há uma vivacidade e dinamismo vivo (Barthélémy, 1997) que é anestesiado após a aparição da cisão e da desvitalização. O estímulo colorido da prancha VIII suscita a expressão do humano em decomposição, em movimento mortífero. A vida nela não é colorida (Minkowski,1970) e mostra logo na primeira prancha do Rorschach como acontece a perda do contato dinâmico com a vida (Minkowski, 1953).

Teste de Apercepção Temática - Prancha 3RH (Pessoa curvada sobre o divã): Examinador: Conte-me uma história a partir desta prancha? Paciente: (Olha bem de perto, aproxima-se)... (breve silêncio). “Depois de uma discussão com o namorado e meus familiares, fiquei muito triste e parei em um bar para tomar uma bebida, depois fui para casa, encostei no banco, pois estava embriagada... havia (olha atentamente) um... (aproxima mais a prancha para observar o detalhe) estilete em minha mão que caiu no chão”.

A partir da apresentação dessa figura – estímulo representante do Real – a paciente relatou uma história própria. Ela não fala da personagem, mas colocouse na situação. Após uma “discussão”, sente-se “triste” e para lidar com essa situação recorreu ao afastamento de quem se relacionava “namorado e meus familiares” e à ingestão de bebida alcoólica. Em seguida, retornou à sua casa e apoiou-se (mecanismo de ligação) em um móvel, perdeu o equilíbrio dada a “embriaguez”. Faz um silêncio, deteve-se em um pequeno detalhe importante da figura: o revólver, ao expressar “um...” olha com mais atenção, tentou focalizar o que é e disse que em sua mão tinha um “estilete” que “caiu no chão”. É sintônica com o clima que a figura estimula e pôde expressar dados consoantes com sua história de vida, que contém uso abusivo de álcool e tentativas de suicídio.

As outras histórias relatadas nas pranchas do TAT revelam preocupação e medo diante da presença do outro. As histórias têm um tom melancólico, uma falta de vitalidade, tristeza nas relações, fuga na embriaguez, solidão, sentimentos de vazio e cansaço.

Ao deparar-se com suas imagens confusas e distorcidas, deteve o olhar e navegou nos pensamentos racionais usados como mecanismo de compensação fenomenológica diante do sofrimento vivido, como observado na seguinte resposta à Prancha 19: “Fui ao museu de arte moderna e vi um quadro que mais me parecia imagens... imagens... confusas e distorcidas, mas ao olhar bem comecei a navegar nos pensamentos como se aquelas imagens fossem uma paisagem tranqüila no deserto, povos e costumes”. Após a vivência de espaço amplo – “museu de arte” - direcionou a atenção a um detalhe do todo – “quadro” – imagens confusas e distorcidas. Das imagens incompreensíveis, ela transformou em imagem da natureza. A expressão “ao olhar bem comecei a navegar nos pensamentos” mostrou uma tendência ao pensamento abstrato e metafórico – “navegar nos pensamentos” - que contém movimento que proporciona um dinamismo à sua apercepção criativa. Em seguida, ela apresentou um tempo vagaroso em um espaço vazio do ambiente e seus valores – “paisagem tranqüila no deserto, povos e costumes”. A qualidade “tranqüila” da paisagem pode ser compreendida como reveladora de uma intranqüilidade inquietante.

WAIS-III: Os resultados do quociente verbal situam-se na média,omquociente de execução, no nível superior e o quociente total situa-se na faixa média superior.

Há discrepância significativa entre os elementos verbais e de execução, o que sugere que aspectos emocionais interferem na apreensão dos dados da linguagem verbal em relação aos motores.

Apesar de estar globalmente na média, o pior desempenho nos subtestes verbais é referente à linguagem, no conhecimento de palavras e na memória (Vocabulário). Seus conceitos verbais e de pensamento lógico-abstrato mostramse em respostas monossilábicas, sem uso de artigos ou frases; é econômica no uso das palavras (Vocabulário, Semelhanças). O melhor desempenho é na atenção para estímulos auditivos, na memória imediata e de trabalho (Dígitos).

Nos subtestes de execução, apresentou excelente rendimento no reconhecimento da essência de uma história e na seqüência de eventos, com capacidade de planejamento (Arranjo de Figuras), na percepção visual de estímulo abstrato, na organização espacial, na coordenação visomotora e na análise e síntese (Cubos). Observou-se boa diferenciação dos detalhes essenciais dos não essenciais, exigindo conhecimento do objeto, raciocínio e memória de longo prazo (Completar Figuras); atenção, rapidez de processamento e percepção visual (Procurar Símbolos), coordenação visomotora e habilidade de organização perceptual (Armar Objetos). Houve uma leve queda de rendimento no raciocínio não-verbal, na organização espacial, na percepção, na inteligência fluida e no processamento simultâneo, onde as cores podem ter interferido (Raciocínio Matricial). Apresentou satisfatório rendimento na velocidade do processamento, na percepção visual e na memória de curto prazo (Códigos).

Assim, é na área motora que a paciente tem melhor rendimento. Na área verbal, mais dificuldade, apesar de estar na média esperada da população brasileira. Na organização espacial, a presença de cores em alguns subtestes executivos poder ter influenciado na queda de rendimento em Raciocínio Matricial. A deficiência dos fatores intuitivo-afetivos é compensada em parte pela inteligência média superior, afirmava Minkowski (1965).

 

8. Considerações finais

Na entrevista, o interlocutor reconhece uma sintonia no contato com a paciente, o que mostra um contato dinâmico desta com a realidade. A paciente mostra-se afetiva neste contato e vibra em uníssono com o outro. Ela expressa suas dificuldades e revela um anseio por encontrar solução para os seus problemas e sofrimentos, de modo que seu devir não parece barrado em suas possibilidades expressivas.

O método de Rorschach, a partir da análise fenômeno-estrutural, mostra um predomínio da expressão do pólo sensorial da personalidade em associação a fenômenos de desvitalização da percepção humana e elementos de contradição e oposição. Na entrevista, a paciente expressa dificuldades de relacionar-se, que culminam em atos violentos em seu comportamento, como a ingestão de álcool.

Os mecanismos de compensação aparecem em forma de uma visão em movimento, dinamismo vital que também é acompanhado por rupturas e cortes quando se depara com estímulos afetivos pouco elaborados e integrados em sua percepção. Na Prancha I, revela uma imagem viva que tende a uma solidez e imobilidade. As qualidades mórbidas e em decomposição refletem a desvitalização e as dificuldades em perceber aspectos do Real.

O teste de apercepção temática revela aspectos melancólicos e distorções perceptivas diante da imaginação de histórias. A paciente vê-se nas personagens e conta histórias muito próximas a fatos que ela vivenciou na realidade, não só fruto de sua imaginação. O sofrimento emocional é expresso em cada prancha em forma de solidão e desamparo. Tal sofrimento aproxima-a da experiência vivida que necessita ser aplacada por meio de uma compensação fenomenológica de uso de bebida alcoólica e de mecanismos que se ligam à vida. É assim que ela usa seus próprios recursos para enfrentar suas dificuldades.

De modo que se reconhece um contato vital com a realidade sujeito à ruptura e cortes no senso de continuidade.

No teste de inteligência, há um predomínio da área motora sobre a verbal, com diferença significante em direção à primeira. Do ponto de vista fenomenológico, há uma boa composição do espaço no gesto motor da apreensão da realidade por meio do WAIS-III. Essa diferença de rendimento é um dado indicador de que a dor emocional afeta a capacidade de ter um rendimento intelectual que lhe favoreça. É a área motora, mais do que a expressão verbal, o modo preferencial em que se situa na espacialidade do mundo. A paciente tem capacidade de empatia e potencial cognitivo, mas o contato com o outro não se dá sem repercussões incômodas, como aparecem na expressão das percepções do Rorschach e na imaginação próxima ao Real no TAT.

A presença simultânea de mecanismos de ligação e de corte é uma característica revelada pela linguagem espontânea e pessoal (Minkowska 1978) por esse caso que apresenta sintomas de transtorno de personalidade. O estudo de Villemor-Amaral (2004 b) mostra a racionalidade em um caso borderline associada à alternância e às oscilações da presença de mecanismos de ligação, como também pudemos observar neste caso.

As deficiências aparecem no Rorschach que revela a desvitalização e decomposição do modo de ver o mundo, mas também os recursos da visão em movimento e ligação, para compensar esses prejuízos. São estilos de funcionamento mental, sensorial e racional (Yazigi, 2002), em contato ao mesmo tempo dinâmico e menos vital com a realidade.

Assim, por meio deste caso, ilustramos as possibilidades da análise fenômeno-estrutural da linguagem e da expressão, o modo de ser dessa paciente e como sente e transcreve os problemas que a afetam em suas características perceptivas, imaginativas e cognitivas.

O estudo aprofundado de casos é o alvo deste método, tal como preconizavam Jaspers (1979) e Minkowski (1999). O valor multiplicador para novos estudos é demonstrado pela história da evolução da análise fenômenoestrutural, desde o estudo da linguagem na esquizofrenia, na epilepsia, na depressão, no alcoolismo, nas crianças psicóticas, na adolescência, nas psicoses e como realizado neste ensaio no transtorno borderline. Um caso é revelador de aspectos estruturais encontrados em outras pessoas, como a estrutura racional ou sensorial e os fenômenos peculiares que se configuram em cada pessoa.

O método aproxima-se às investigações qualitativas, mas mantém seu rigor fenomenológico no estudo da semântica da linguagem. De modo que pudemos acompanhar a expressão dos fenômenos que emergem da entrevista, do Rorschach, do TAT e do WAIS e compreender o desvelar aspectos essenciais do sentido da existência, a partir da linguagem e das expressões que revelam o modo de ser de uma pessoa.

 

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Recebido em: 15/12/2007
Aceito em: 20/03/2008

 

 

1Docente do Departamento de Psicologia Clínica do IPUSP. R.Napoleão de Barros 447, ap.41 - Vila Clementino. CEP 04024-001 São Paulo, SP. E-mail: antunez@usp.br
2Doutora em Ciências e Psicóloga do Departamento de Psiquiatria da UNIFESP. E-mail: jacqueline.santoantonio@uol.com.br.
3Aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos no IPUSP em 04/12/2006. Caso que faz parte de um estudo mais amplo sobre o tema.

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